Capa da obra de Antônio Paim, intitulada: Tratado de Ética (Londrina: Edições Humanidades, 2003). |
Quando um grupo de pessoas se reúne para constituir uma organização, precisa ter algo em comum. Nas comunidades de animais, o elemento aglutinador é o instinto, que lhes possibilita dar uma resposta às necessidades básicas. Nas comunidades humanas, as tendências instintivas são canalizadas pela razão (da qual emana o direito). Sobre a base de ordenação jurídica estrutura-se o grupo humano. Sem essa ordenação, a comunidade humana se dissolve. É o que os filósofos denominam de situação de anomia ou carência de organização legal. Mas o direito, para ser fator de aglutinação humana, precisa de um embasamento cultural. Imaginemos que a sociedade brasileira passasse a ser, por um dia, governada à luz do Alcorão, que constitui o referencial culturológico dos povos de tradição muçulmana. Simplesmente o conjunto de práticas legais apresentadas nesse código, não pegaria, como se diz popularmente. Para que uma lei pegue, é necessário que exista uma base cultural, que hoje identificamos com certa ordem de valores.
A finalidade deste texto consiste em
identificar os elementos ético-culturais necessários à ordenação das sociedades
humanas, destacando o conjunto de valores morais que deve inspirar ao cidadão
na construção da sociedade brasileira. Veremos de que forma o âmbito da
legalidade pressupõe uma ordem de valores que constitui um ethos (explicitado na moral).
Serão desenvolvidos os seguintes itens: 1) A crise de governabilidade ensejada
pela Constituição de 1988 e a valorização da discussão ética. 2) Conceitos básicos acerca de ética e
moral. 3) Conceitos básicos acerca
dos valores e da pessoa. 4) Modelos
de moral social na cultura brasileira. 5)
O empresário, os valores morais e a cidadania no Brasil contemporâneo. 6) O fenômeno da globalização: pressupostos éticos. Conclusão: Bases éticas e humanísticas da
globalização.
1) A crise de
governabilidade ensejada pela Constituição de 1988 e a valorização da discussão
ética.
A reflexão sobre a moral e a ética ganhou
muita popularidade no Brasil, ao longo dos últimos vinte e cinco anos.
Tradicionalmente as questões relativas à moral eram tratadas com certo
menosprezo, como se fosse algo careta. Moral era confundida com moralismo, que consiste numa atitude
puramente formal, que se apega a usos e costumes adotados por tradição e muitas
vezes ultrapassados, sem enxergar a conveniência de engajamento consciente e
responsável, a fim de renovar os critérios de comportamento quando isso se
torne necessário. A opinião pública brasileira esperava que a democracia se consolidasse
sem problemas, após a promulgação da "Constituição Cidadã" de 1988.
Acontece que a nossa Carta Magna trouxe mais perplexidades do que soluções. O
primeiro problema consistiu em que ela negava, na segunda parte, o que
apregoava na primeira. Ou seja: os direitos do cidadão, que apareciam
claramente defendidos na primeira parte, tornar-se-iam inviáveis na segunda,
que consagrou velhas estruturas corporativistas e que passou, de forma idealista,
a fixar no texto constitucional coisas inviáveis, como juros tabelados. As
incoerências da Carta Magna produziram o fenômeno da ingovernabilidade. Para poder administrar o país nestas últimas
décadas, poder executivo, legisladores e magistrados tiveram de deixar muita
coisa sem regulamentar. A principal conseqüência que disso tiraram os
brasileiros é a de que a construção da democracia não acontece por arte de
magia, mas que se trata de um trabalho diuturno e penoso, que pressupõe a
explicitação dos fundamentos morais da lei, e que se consolida num longo
processo de ensaios de acerto e erro, que implica em muita discussão,
disciplina parlamentar, bom senso, paciência infinita e consciência cívica.
Duas citações servirão para ilustrar o
descompasso entre a Carta de 1988 e a
realidade do país. Em relação a esse fato, escreveu Paulo Mercadante: "A
emoção e o açodamento, unidos numa interseção de nacionalismo e populismo,
produziram uma Constituição que prima pela idealidade. Um diploma ilusório por
razões fortuitas, nascido sem o selo do necessário. O descompasso entre os dois
requisitos para um saldo positivo (o acaso e a necessidade) gerou,
paradoxalmente, o fenômeno do pretensioso parto dos montes, segundo o verso de
Horácio (...). Tomados pela euforia, decidiram os constituintes redigir um
texto minucioso e bombástico, sujeito, por inadequação, à morte prematura.
Esqueciam-se os progressistas que uma
Carta não pode contrapor-se ao projeto histórico de uma nação"
[Mercadante, 1988: 505].
Miguel Reale, por sua vez, escreveu o
seguinte: "Uma nova Constituição pode não redundar, de per si, em
possibilidades de cultura e riqueza, que só o trabalho perseverante e metódico
proporciona, mas pode embaçar e até mesmo travar o progresso de uma nação.
Infelizmente, a Carta que vai reger o nosso destino pertence a esta segunda
categoria, por termos sido, mais uma vez, vítimas das oscilações pendulares que
têm marcado nossa vida política ao longo do tempo (...). Como sinal de nossa
imaturidade, carecemos do devido senso histórico (...). Assim é que, em 1946,
reagimos à ditadura do Estado Novo reduzindo em demasia as atribuições do Poder
Executivo; forçando uma política de barganha ou de confronto com o Legislativo,
foi este que foi duramente atingido com o advento dos Atos Institucionais e as
Cartas de 1967 e 1969. Agora, legislando novamente sob o signo do revide,
voltamos a fortalecer o Congresso Nacional além do necessário. Eram requeridas,
sem dúvida, medidas de contenção contra os excessos de nosso presidencialismo caudilhesco,
mas não até o ponto de subordiná-lo às deliberações precárias de um Poder
Legislativo apoiado em clientelas personalistas e não em partidos distintos,
não digo por seus programas, que seria exigir muito em nossas circunstâncias,
mas pelo menos por seus planos de governo" [Reale, 1988: 498].
Esperávamos deitados, como frisa Meira Penna,
"em berço esplêndido" [cf. Penna, 1974], que chegássemos ao primeiro
mundo de trem bala, com tudo resolvido no terreno econômico pelo Plano Real e,
no terreno político, pela ação dos nossos constituintes, que elaborariam uma
Carta democrática que garantiria o nosso convívio civilizado. Não contávamos
com a desagradável constatação de que a Nova República já nasceu com o pecado
original de velhas práticas estatizantes e cartoriais, por nós assimiladas ao
longo de séculos de cultura patrimonialista. Justamente no momento em que a
sociedade brasileira percebeu o beco sem saída das contradições da democracia,
começou a ter validade a discussão das questões relacionadas à ética e à moral.
Tinha entrado em crise o velho arquétipo pombalino-getuliano, segundo o qual o
Estado Empresário garante a riqueza da Nação e equaciona os problemas da ordem
social e política e da moral dos cidadãos [cf. Paim, 1982]. Ficamos entregues a
nós mesmos, com a incômoda incumbência de pensarmos de novo tudo de baixo para
cima, sem esperarmos fórmulas pré-fabricadas em Brasília, a partir unicamente
das nossas convicções. Tinha acabado definitivamente a expectativa positivista
de a moralidade ser gerada a partir da lei positiva. Era necessário elaborar
critérios para avaliar os pressupostos morais da legislação.
2) Conceitos
básicos acerca de ética e moral
Antes de iniciarmos uma reflexão acerca da
ética nas organizações, devemos deixar claras algumas noções fundamentais.
Esclareceremos primeiro os seguintes conceitos básicos relacionados ao tema em
apreço: moral, ética, moral individual, moral social, moral social vertical,
moral social horizontal ou consensual, moral de convicção (ou ética dos intelectuais),
moral de responsabilidade (ou ética dos políticos).
A moral
pode ser definida assim: conjunto de
normas de conduta adotado como universalmente válido por uma comunidade humana,
num lugar e num tempo determinados [temo-nos baseado, para estas noções,
em: Paim, 1992]. Três aspectos ressaltam nesta definição: em primeiro lugar, o conjunto de normas de conduta adotado
como universalmente válido; ou seja, a moral sempre se apresenta como algo de
imperativo, em relação à ação humana e em face das noções de bem e de mal.
Difere de outras pautas comportamentais como os regulamentos ou a moda, pela
feição de norma absoluta de conduta
que não admite, portanto, negociação, porquanto intimamente vinculada às noções
de bem e de mal. Destaca-se, em segundo lugar, o aspecto da comunidade humana que adota o código
moral. Efetivamente, esta sempre esteve relacionada a um específico contexto
humano, a certa comunidade, como já fica claro da forma em que Aristóteles
entendia a moral grega na Ética a Nicômacos [cf. Aristóteles, 1992], ou como
aparece na história da consolidação da moral no povo judeu, segundo a tradição
bíblica. Em terceiro lugar, salta à vista o aspecto da condição espaço-temporal da lei moral,
essencialmente vinculada à história humana e passível, sob este ângulo, de
ajustes no seu evoluir.
A ética
consiste no estudo racional e sistemático da moral. Enquanto esta constitui a
variável concreta, a ética representa o aspecto abstrato e teórico da mesma. Em
relação a um determinado código moral, como o fixado na Grécia, por exemplo,
pela pedagogia dos sofistas ou paidéia,
podemos encontrar várias abordagens teóricas: as representadas pela ética socrática (presente nos Diálogos que Platão dedicou a cultuar a
memória de seu mestre), pela ética da
pólis (que Platão concebeu como ideal da cidade grega, na sua obra A
República) ou pela ética da
bem-aventurança ou da felicidade (sistematizada
por Aristóteles nas suas obras Ética a Nicômacos, Ética
a Eudemo e Grande Ética, levando em consideração a abertura da Grécia ao
mundo, no império de Alexandre).
De forma semelhante, em relação ao código
moral emergente da tradição judaico-cristã, encontramos várias éticas que
tentam explicitar teoricamente os seus aspectos fundamentais, como a ética do dever tematizada por Kant no
século XVIII, a ética de menosprezo do
mundo típica da espiritualidade dos monges na Idade Média, a ética do trabalho presente na obra de
Calvino (no século XVI), a ética de
convicção e de responsabilidade (tematizadas por Max Weber no século XX,
para ilustrar, respectivamente, a ética dos intelectuais e a dos políticos),
etc. As éticas profissionais
constituem uma variante teórica do código moral judaico-cristão e se alimentam
da rica tradição filosófica do Ocidente, que foi adaptando a reflexão ética aos
problemas emergentes na modernidade, em decorrência da necessidade de ajustar a
preservação dos direitos humanos básicos (expressão hodierna da moral
ocidental) às exigências da prática profissional, nas suas várias
especializações.
O código moral pode ser abordado de dois
ângulos: individual e social. O código
moral individual consiste naquilo que o Kant denominava, no final do século
XVIII, de imperativo categórico da
consciência, que nos exige agir de acordo com ela custe o que custar, sem enxergar
as conseqüências. Max Weber aprofundou teoricamente sobre esse tipo de moral, à
luz do conceito de ética de convicção,
que constitui o modelo presente na moral evangélica e que deveria inspirar a
tarefa dos intelectuais, preocupados unicamente com a busca diuturna da
verdade, sem calcular vantagens ou desvantagens. O código moral individual configurou-se tradicionalmente no Ocidente
a partir da religião cristã. Mas Immanuel Kant elaborou uma fundamentação
eminentemente racional para a moral individual, na sua Fundamentação da metafísica dos
costumes, como ficará explicado no próximo item.
Já o código
moral social consiste no mínimo comportamental a ser exigido dos membros de
uma comunidade para que ela não se desintegre. A filosofia inglesa, ao longo dos
séculos XVII e XVIII desenvolveu ampla reflexão sobre a moral social, em decorrência do fato de ter se consolidado na
Inglaterra a tolerância em matéria religiosa.
O código
de moral social pode ser
formulado de duas formas: vertical ou
horizontal. Ocorre a moral social vertical quando o mínimo
comportamental exigido dos membros de uma sociedade é imposto por um grupo, uma
pessoa ou um estamento que detém o poder. É isso o que ocorreu, por exemplo,
nos países comunistas ao longo do século XX, onde o Estado foi o exclusivo
formulador das normas de comportamento moral da sociedade. Outro exemplo de moral social vertical foi o acontecido
na Colômbia, no período compreendido entre 1886 e 1991, em que a religião
católica foi considerada como a religião oficial do Estado, passando este à
Igreja Católica a incumbência de formular a moral social. Outro exemplo seria o
do Irã, no período que se estende de 1979 até os nossos dias, em que os
Aiatolás chamaram para si a função de formular e implantar a moral social xiita.
Ocorre a moral
social horizontal (ou consensual),
quando o mínimo comportamental exigido dos membros de uma sociedade é fixado
consensualmente por eles. Esse modelo deu-se historicamente na Inglaterra a
partir do final do século XVIII, com a adoção da tolerância religiosa. Se todas
as crenças eram válidas, não existiria nenhuma Igreja que fosse privilegiada
para pautar a moral social. Decorreu daí que a moral social somente poderia ser
fixada por consenso. Essa moral social
consensual seria a única base possível para o exercício da autoridade racional, na forma em que
Weber tematizou esse tipo ideal de dominação no seu ensaio intitulado A política como vocação [cf. Weber,
1993]. A prática verdadeira da democracia implica a consolidação, na sociedade,
de uma moral social consensual.
A moral
de responsabilidade consiste em agir calculando o resultado que advirá,
para a comunidade, da ação executada. É o ideal que deve pautar, no sentir de
Max Weber, a ação dos políticos, que devem sempre calcular, nas suas ações, as
conseqüências que das mesmas decorrerão para as comunidades onde eles exercem o
poder. Dos políticos nós queremos cobrar duas coisas, no que tange ao seu
comportamento: que preservem a dignidade do cargo e que cumpram o que
prometeram aos seus eleitores. Imediatamente não será cobrado deles o que
atinja o seu foro íntimo, salvo se isso tiver conseqüências na prática
governamental ou representativa.
Um exemplo dessa expectativa, presente na
sociedade, é a valoração altamente positiva que os historiadores franceses têm
em relação a Napoleão Bonaparte, que conseguiu tirar a França do redemoinho
revolucionário, em que pese a sua ambição e as suas ambigüidades morais no
terreno particular. Um contraexemplo dessa expectativa seria o do juiz carioca
que, em meados dos anos oitenta, aprovou, em plena inflação galopante, liminar
que castigava os usuários com aumento intolerável no preço das passagens, tendo
dado ensejo a graves distúrbios populares, no centro do Rio, nos quais foram
incendiados mais de 20 veículos. O juiz, ao que consta, era um bom sujeito, pai
exemplar, mas péssimo homem público, pois quando entrevistado pela TV afirmou
mais ou menos o seguinte: "nunca imaginei que uma liminar fosse causar
tanto tumulto", tendo se revelado absoluto desconhecedor das conseqüências
sociais adversas que se seguiriam à sua infeliz decisão.
3) Conceitos
básicos acerca dos valores e da pessoa
Quando agimos seguindo a voz da nossa
consciência, não nos pautamos por normas exteriores a nós (que constituem o
Direito), mas por uma regra de conduta interna, à qual nos sentimos obrigados.
Se a desobedecermos, poderemos ocultar isso dos demais, mas não de nós mesmos.
Sentimos um desconforto íntimo que chamamos de "remorso". Vamos
centrar a atenção na forma em que se dá essa voz da nossa consciência.
Immanuel Kant, como já foi dito, dedicou a
sua obra intitulada Fundamentação da Metafísica dos Costumes [cf. Kant, 1973], ao
estudo da forma em que opera em nós a voz da consciência moral.
Tradicionalmente a consciência moral alicerçava-se na religião. Mas, no século
XVIII, Kant considerava que era necessário fundamenta-la racionalmente, em
decorrência do fato de começarem a aparecer incrédulos. Ora, perguntava o
filósofo alemão, se a moral continuasse a se fundamentar na religião, não
existindo esta para algumas pessoas, tudo seria permitido para elas.
Kant considerava, de outro lado, que a razão
não é suficientemente capaz de guiar com segurança a vontade no que concerne ao
seu objeto (a ação). Supunha que um instinto natural a guiaria de forma mais
segura. Se a razão não é uma faculdade que possa exercer influência sobre a
vontade, a sua verdadeira função consiste, no que tange à ação, em encontrar
uma vontade boa em si mesma (ou seja, sem o propósito de usá-la como meio para
atingir qualquer outro fim). Para Kant, uma ação cumprida por dever tira seu
valor moral não do fim que por ela possa ser alcançado, mas da máxima que a determina. Distingue máxima
de lei, entendendo pela primeira o princípio subjetivo (a representação da lei),
enquanto a segunda serviria também de princípio prático se a razão tivesse
plenos poderes sobre a ação. O valor moral da ação, segundo Kant, não reside no
efeito que dela se espera, mas da obediência a um princípio geral que se
formula deste modo: "que eu possa também querer que minha máxima se torne
lei universal".
Kant considera que é possível encontrar o
princípio supremo da moralidade sem apelo à experiência. Sendo o homem um ser
racional, ele é o único que se acha em condições de agir segundo a representação
da lei ou segundo princípios. A representação de um princípio objetivo é
denominada por Kant de mandamento e a
sua fórmula chama-se imperativo. O
imperativo moral é único e recebe o nome de imperativo
categórico, sendo a sua fórmula a seguinte: "Procede unicamente
segundo aquela máxima, em virtude da qual possas querer que ela se torne uma
lei universal". Dessa fórmula, Kant deduz o seguinte imperativo prático:
"Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na
de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como fim, e nunca como puro
meio". Pode-se sintetizar esse imperativo prático da seguinte forma:
"o ser humano é um fim em si mesmo e não pode ser usado como meio"
[cit. por Paim, Prota, Vélez, 1997: 146-147].
Se bem é certo que Kant firmou, de forma
clara, os fundamentos racionais da moral, os filósofos posteriores passaram a
completar a sua concepção, destacando o enraizamento do imperativo moral no
contexto da história, bem como da dinâmica espiritual da pessoa. Os passos
iniciais para essa complementação foram dados, no início do século XIX, por
Hegel [1981], que destacou o caráter histórico da consciência e, por
conseguinte, da formulação do código moral (sendo seguido por Victor Cousin e
François Guizot na França, no período compreendido entre 1830 e 1850).
A moral ocidental, considerada do ângulo da
sua estruturação histórica, ancora em duas tradições (que constituem, também,
os pilares da civilização européia, na qual nos inserimos). Essas duas
tradições são a judaico-cristã, da qual surgiu o conceito de pessoa, tematizado filosoficamente no
século XIII especialmente por S. Tomás de Aquino e que constitui o fundamento
hodierno para os direitos humanos. A segunda tradição é a helenística,
consolidada em Alexandria no período compreendido entre os séculos III a. C. e
III d. C., à luz da qual se consolidou o conceito de lógos ou de razão que
liberta o homem das cadeias da ignorância. Immanuel Kant fez, de maneira
genial, a simbiose entre essas duas tradições, ao ter traduzido o mandamento
fundamental do cristianismo em imperativo categórico passível de formulação
racional [cf. Paim, Prota, Vélez, 1997: 13-26].
O ecletismo espiritualista na França, com
Maine de Biran, na primeira parcela do século XIX e o espiritualismo do final
do século, com Émile Boutroux e Henri Bergson, passaram a aprofundar no
entrelaçamento entre a moral racional e a estrutura espiritual da pessoa. No
século XX, correspondeu a Edmund Husserl [1986] e a Max Scheler [cf. Hessen,
1980] completar essa reflexão, respectivamente com a fenomenologia e a axiologia.
A primeira corrente, sistematizada por Husserl, tentou estabelecer um nexo
entre a razão e o mundo da vida, ao passo que a segunda desenvolveu a reflexão
em torno aos valores.
De todos esses avanços, surgiu a ética material dos valores de Max
Scheler, em que a dinâmica moral da pessoa passou a ser interpretada no
contexto dos valores. A formulação
do imperativo categórico passou a ser interpretada no seio do ato de valorar,
que constituiria, assim, o ato primordial da pessoa. A voz da nossa consciência
se estrutura ao redor de valores, que incorporamos ao longo da vida. Em que
consistem os valores? São eles entidades ideais, de tipo relacional e
hierárquico, que se tornam presentes no seio de uma vivência emocional que é o
ato de valorar. A pessoa valora diante de algo que suscita o seu interesse. Os
seres humanos crescem, na medida em que vão criando, ao seu redor, uma teia de
ideais que lhes interessam. Esse conjunto de ideais que interessam às pessoas
constitui o universo dos valores. Poderíamos parafrasear Descartes (que falou: penso, logo existo), e afirmarmos: valoro, logo existo. Sempre estamos
valorando, desde quando acordamos até quando dormimos. Quando o filósofo
espanhol Ortega y Gasset dizia "eu sou eu e as minhas
circunstâncias", referia-se justamente a esse conjunto de ideais da
pessoa, que constitui o seu universo axiológico.
Miguel Reale ilustrou claramente, na sua obra
intitulada Pluralismo e Liberdade [Reale, 1963: 60], o estreito entrelaçamento
entre valores e desenvolvimento da pessoa, num processo dinâmico em que não
está ausente a contradição. A propósito, frisa o filósofo brasileiro:
"Nada mais contraditório do que o homem, dada a ambivalência essencial de
seu ser pessoal, ora voltado para si mesmo, ora voltado para a sociedade; ora
desejoso de estabilidade, ora seduzido pelo movimento; ora preso às amarras do
passado, ora projetado liricamente para o futuro; ora impulsionado pelas forças
dionisíacas da afetividade, ora sublimado pelas forças apolíneas da razão;
sempre vacilante entre a certeza empírica de nexos causais imanentes e os
planos encobertos da transcendência. Polaridade do existir, polaridade do
valor, num perene equilíbrio instável através do qual se renovam os ângulos e
as perspectivas da história, que constitui, sob esse prisma, a experiência
filosófica concreta".
Mas no emaranhado de valores que constitui
existência do homem, encontramos uma ordem. Há valores positivos e valores
negativos ou anti-valores. Há justiça
e injustiça, beleza e feiúra, por exemplo. Encontramos, de outro lado, valores
superiores e valores inferiores. Temos uma regra de ouro para auferir a posição
de um determinado valor na hierarquia dos valores: aquele valor que,
compartilhado por muitos, não se esgota, é superior. Inversamente, aquele valor
que, compartilhado por muitos, se esgota, é inferior.
Os valores morais constituem o centro do
universo axiológico, porque são aqueles que conferem autenticidade à pessoa. O
que define uma pessoa como boa é a sua autenticidade. E esta consiste em agir
de acordo com a própria consciência, custe o que custar. Todos os outros
valores ficam bem estruturados e justificados, quando se alicerçam sobre os
valores morais. Quando estes faltam, o universo da pessoa perde sentido.
O processo de assimilação de valores
corresponde à educação. Os valores
não são assimilados pelas pessoas de forma teórica, mas vivencial. Os valores
que fundamentam a nacionalidade, por exemplo, somente poderão ser incutidos nas
crianças que conhecerem e experimentarem a emoção diante dos próprios heróis.
Se num determinado país desaparecerem os exemplos de patriotismo apresentados
vivos na figura dos seus grandes homens e mulheres, achincalha-se o sentimento
cívico e podemos falar numa crise de valores nessa determinada sociedade.
Miguel Reale chama a atenção para a
importância da assimilação, no processo educacional, dos valores que constituem
a tradição, a fim de habilitar as novas gerações para a criatividade, a partir
do legado dos antepassados. A respeito, afirma o filósofo brasileiro:
"Preparar para a aventura da vida, não pode, porém, significar (que) se
deva esquecer o valor do que se converteu em constantes axiológicas, ou invariantes
de estimativas que representam as colunas da tradição, compreendida como
memória da história e, tanto como esta, aberta a novas conquistas de bens a
serem memorizados e conservados. Se se pensasse que a cultura é,
concomitantemente, amor de aquisição de novos bens, ligado ao amor dos bens já
conquistados, a Pedagogia atual volveria a dar mais atenção aos valores da memória, cada vez mais
eclipsados pelos propósitos de só educar para a transformação do mundo e a
aventura existencial" [Reale, 1977: 105].
Decorre desta reflexão a importância que no
mundo de hoje tem a educação para a
cidadania, que consiste na assimilação, por parte das novas gerações, dos
valores que fundam a nacionalidade e do sentimento de patriotismo. Torna-se
imprescindível, a esta altura, analisar qual é o conjunto de valores que, no seio
de uma determinada sociedade, estão sendo assimilados pelas novas gerações.
Isso corresponde a discutir os modelos de moral social que imperam numa
determinada comunidade. Poderíamos nos perguntar, a esta altura, quais são os
modelos de moral social que foram se sedimentando na história da cultura
brasileira.
4) Modelos de
moral social na cultura brasileira
Toda sociedade
que aspire ao amadurecimento democrático precisa discutir a questão da moral
social. Esta discussão, no seio da cultura brasileira, tradicionalmente foi
atribuída a instâncias verticais, encampadoras do poder de decisão sobre os
cidadãos. Tais instâncias, na nossa história cultural, polarizaram-se ao redor
de quatro grandes núcleos: família patriarcal, Estado, mídia e Igreja. Em torno
a essas forças centrípetas consolidaram-se os modelos de moral social. Vamos
identificar neste item tais modelos e discutir a sua validade, em face dos
requerimentos hodiernos do ideal democrático que é, sem dúvida, o grande desideratum da sociedade brasileira.
Nove modelos
de moral social podem ser identificados na nossa história cultural: de saber de
salvação, pombalino, castilhista-getuliano, messiânico-populista, salvador
militar, patrimonialista, estetizante, totalitário e consensual. Analisaremos
cada um deles, destacando a relação que possuem com os núcleos de poder social
ao redor dos quais se consolidaram (família patriarcal, Estado, mídia, Igreja).
É importante salientar, entretanto, que tais modelos não constituem categorias
estanques nem reificações concretas, se tratando, melhor, de tipos ideais
encontradiços, muitas vezes, entrelaçados na complexa realidade social. Assim,
por exemplo, os modelos messiânico-populista, salvador militar e
patrimonialista acham-se tradicionalmente geminados nos vários tipos de
caudilhismo em que a nossa história é particularmente rica.
Especial
atenção dedicaremos à análise do modelo consensual, pelo fato de ser ele,
hodiernamente, o único que garante a completa institucionalização da democracia
no Brasil, superando os vícios do patrimonialismo e do democratismo.
O modelo do “saber de salvação”.- No período colonial
estruturou-se a concepção de moral social chamada por Luis Washington Vita
[1968: 17-18] de “saber de salvação”. Consistia ela na convicção de que o homem
está na terra como “passando uma noite ruim numa pousada ruim”, segundo as
palavras da mística espanhola Santa Teresa de Ávila. Se o que interessa é a
salvação da alma, se não somos mais do que “um vil bicho da terra e um pouco de
lodo”, segundo a expressão de Nuno Marques Pereira [cf. Moog Rodrigues, 1979]
pouco interessava, logicamente, este mundo e a organização racional do convívio
político. A "res publica” ficava nas mãos de Deus, destino que nos séculos
XVII e XVIII concretizou-se no absolutismo alicerçado em razões religiosas. Sem
dúvida que o ideal monástico da fuga do mundo, apregoado no Brasil por Nuno
Marques Pereira no seu Compêndio narrativo do peregrino da América
[in: Moog Rodrigues, 1979] levava a reforçar o poder absoluto do monarca.
Em que pese o
fato dessa proposta ter sido formulada no período colonial, não podemos deixar
de reconhecer a sua presença nas propostas teocrático-moralizantes de
tradicionalistas inspirados no passado medieval, como Plínio Correia de
Oliveira. A inspiração ética do tradicionalismo insere-se, quando aplicada à
política, no contexto do pensamento anti-utópico descrito por Mannheim [1966]:
a proposta dos tradicionalistas é a negação das utopias perseguidas pelos
progressistas [cf. Cordi, 1984; Macedo, 1977]. Como uma das idéias-chave destes
sempre foi a valorização da razão e da liberdade individual, os
tradicionalistas defendem a tutela da tradição sobre o indivíduo [cf.
Vélez-Rodríguez, 1978: 85-112]. No caso de Plínio Correia de Oliveira, fundador
e primeiro ideólogo do movimento Tradição,
Família e Propriedade, essa tutela estabelecer-se-ia mediante uma volta ao
passado medieval, quando a Igreja controlava a consciência das pessoas. A
moralidade da "res publica" estaria garantida quando voltássemos a
adotar uma estrutura de "cristandade", com a Igreja exercendo o
controle sobre os costumes, com a ajuda de "ordens militares" como os
Templários.
O modelo pombalino.- A essência das reformas
efetivadas em Portugal por Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal,
consistia na "aritmética política", que segundo Antônio Paim [1978:
cap. I; cf. 1982] baseava-se em dois princípios: o Estado, convertido em
empresário e possuidor da ciência aplicada, garante a riqueza da nação; em
segundo lugar, compete ao Estado, presidido pelo déspota ilustrado, regular a
moral dos cidadãos e a ordem social e política.
A questão da
moralidade (tanto a privada quanto a pública) era, portanto, função do Estado
que, numa concepção hegeliana avant la
lettre ganhava a caraterística de ente moral. A problemática moral escapa,
conseqüentemente, do foro individual ou da iniciativa de grupos sociais, para
se situar no terreno do Leviatã que, segundo se supõe, conseguirá garantir a
moralidade pública e a ordem social. As reformas efetivadas pelo Marquês
tiraram da Igreja as funções educativas e de controle direto sobre os costumes,
para colocá-las sob o império do Estado, num contexto de galicanismo eclesial, ou de cooptação do poder espiritual pelo
temporal.
Convém lembrar
que a geração que fez a Independência formou-se na Universidade pombalina [cf.
Barretto, 1973] e, graças a isso, a idéia estatizante que inspirava a
moralidade pública, entrou a formar parte essencial do patrimônio cultual
brasileiro. Não foi somente a tendência ao empreguismo orçamentívoro que o
Brasil herdou do ciclo pombalino, mas também a idéia, fortemente enraizada na
cultura política, de que a questão moral não é incumbência do indivíduo, mas
que é função exclusiva do Estado.
Essa passagem
da questão moral do âmbito individual e social para o estatal, produziu, no
Brasil, um fortalecimento muito grande do autoritarismo. Quando a tendência
centrípeta e estatizante do cientificismo pombalino encontrou-se com a
filosofia comteana, na segunda metade do século XIX, deu ensejo à forma
autoritária e moralizadora do positivismo que empolgou os próceres da
República, com Benjamim Constant Botelho de Magalhães à testa. Plantada no
terreno fértil das Faculdades de Direito, essa tendência formou várias gerações
de advogados republicanos, inspirados (como Júlio de Castilhos, por exemplo),
no mais ardente jacobinismo moralizador [cf. Vélez-Rodríguez, 1980; 1994a;
1994b; 1994c].
À sombra do
estatismo pombalino encontrou refúgio um sub-modelo de moral social, que tinha
se desenvolvido na cultura ibérica ao longo dos séculos XV e XVI e que foi
identificado por Américo Castro [1950; cf. Jaramillo Uribe, 1974] e por
Oliveira Viana [1958]. Trata-se do sub-modelo que identifico como "ética
do atalho" ou do "não trabalho" e que consiste no preconceito em
face do trabalho produtivo, considerado como castigo pelo pecado original, e
que conduz ao ideal da apropriação "heróica" da riqueza na guerra
santa contra o infiel e à identificação do trabalho como atividade de párias e
não de senhores. Tanto a cultura espanhola quanto a portuguesa, no período dos
descobrimentos e da colônia, estiveram profundamente enraizadas nesse complexo
cultural, que encontrou formulação prática na idéia do Estado-empresário,
guindado por Pombal à dignidade de demiurgo produtor de riquezas. A mediação
estatal libertava o homem ibérico do castigo do trabalho produtivo e garantia a
posse das riquezas produzidas pelo Pai-Estado. Em trabalhos anteriores [cf.
Vélez-Rodríguez, 1985; 1994d] tenho identificado esse sub-modelo de "ética
do atalho" como fonte culturológica do fenômeno da corrupção,
estreitamente vinculado ao "complexo de clã" ou "espírito de
patota".
O modelo castilhista-getuliano.- Como continuadora do modelo
estatizante pombalino, a ditadura castilhista (iniciada no Rio Grande do Sul
por Júlio de Castilhos, consolidada ali por Borges de Medeiros e continuada, em
nível nacional, por Getúlio Vargas), constituiu eficaz reificação do espírito
hobbessiano no Brasil. O modelo da ditadura castilhista alicerçava-se em dois
princípios: de um lado, na busca da regeneração moral da sociedade a partir de
uma intervenção autoritária do Estado; de outro, na legitimação dessa presença estatal
mediante o apelo à ciência, no contexto do princípio comteano de que "o
poder vem do saber" [cf. Vélez-Rodríguez, 1980 e 1994c]
Castilhos
revelou-se mais autoritário que o próprio Comte. Se bem é certo que a
"física social" do filósofo de Montpellier ensejava uma visão
determinista do homem como destaca com propriedade Stuart Mill [1972], o regenerador
francês não caia, no entanto, no estatismo. Chegar-se-ia à ordem social e
política, no seu entender, mediante um processo pedagógico e moralizador,
efetivado pacificamente por uma elite de cientistas e apóstolos da humanidade,
que tentaria mudar as mentes e os corações a partir de uma pregação
desinteressada. Já o gaúcho Júlio de Castilhos acreditava diretamente no poder
do Estado que, consolidado bismarkianamente com mão de ferro, imporia a ordem
social e política de forma compulsória.
A questão da moralidade
pública, tão apregoada pelos castilhistas e tão vivida por eles no seu ideal de
"reino da virtude" [1]
seria incumbência do Estado. O ditador, supremo legislador, era o grande centro
de moralização da sociedade. Os castilhistas tornaram realidade a idéia do
Estado artífice da revolução moralizadora que, numa visão antecipada do
leninismo, os socialistas portugueses (Oliveira Martins e Antero de Quental)
tinham concebido, em fins do século XIX.
O modelo
getuliano alargou, modernizou e viabilizou tecnocraticamente o modelo
castilhista. Dois princípios guiaram a estruturação do Estado autoritário e
modernizador de Vargas: de um lado, o do equacionamento técnico dos problemas;
de outro, o da alergia antidemocrática, concretizada no slogan de inspiração castilhista: "o regime parlamentar é um
regime para lamentar". A questão da moralidade pública foi reduzida por
Getúlio a simples problema técnico, que deveria ser equacionado pelo Estado
autoritário, com o auxílio dos conselhos técnicos integrados à administração
[cf. Vélez-Rodríguez, 1982].
O modelo messiânico-populista.- Este modelo da moral social
brasileira está profundamente enraizado na cultura, pois foi herdado da
tradição sebastianista portuguesa. O sebastianismo, na sua essência,
corresponde ao que Talmon [1969: 21-140] identifica como um modelo de
"Messianismo Político". Originada na gesta de Alcácer-Quibir, quando
em batalha contra os sarracenos o rei português dom Sebastião foi morto, a
tradição sebastianista desenvolveu-se junto com a crença de que o rei não teria
morto, teria se ocultado e voltaria para libertar o seu povo. Essa tradição
passou a inspirar boa parte da literatura popular brasileira, especialmente nos
remotos e miseráveis sertões do nordeste. Prova dessa rica influência foi elaborada
por Euclydes da Cunha [1979], quando relatou as lutas de Antônio Conselheiro
conta o governo republicano, no final do século passado. O escritor peruano e
prêmio Nobel de literatura, Mário Vargas Llosa deu vida ao relato do sociólogo
brasileiro, no seu romance A guerra do fim do mundo [1981].
A corrupção, a
exploração, o desespero das massas oprimidas, todos os males que o povo humilde
sofre, encontrarão remédio definitivo na gesta histórica de um novo salvador
que a Providência enviará. Tal é a essência da crença sebastianista que hoje,
como ontem, sobrevive na alma popular brasileira. Prova de que essa crença é,
hoje, oxigênio que dá vida à esperança popular, foi a entrevista que José
Henrique Nazareth [cf. Fernandez, 1990], um humilde contínuo do palácio
presidencial brasileiro, concedeu à revista Istoé
em 1990. À pergunta: "O que você espera do presidente Collor?"
Nazareth respondeu: "O presidente Collor é como uma missa, que tem o
ofertório, a consagração e a comunhão. O ofertório era a campanha, até aí era
apenas um pão e vinho comum, sem nada de especial. Mas agora não. Agora a gente
fica contrito, de cabeça baixa, e começa a louvar o Deus vivo, já não é mais
aquele pão simples, aquele vinhozinho que inicialmente foi oferecido...".
Pergunta: - "Agora Collor o que é?" - Nazareth: "Ele é o corpo e
o sangue de Cristo, é esse o sangue que vai transformar, que vem a nós como um
novo Belém, a terra prometida. Ele é o Messias que vai levar o povo à terra
onde vamos comer mel".
Não é
necessário destacar o enorme cabedal de paternalismo autoritário que se encerra
nessa mentalidade. A duríssima e longa ditadura getuliana, durante as décadas
de 30 e 40, bem como o posterior ciclo salvador militar, deram provas
suficientes dos extremos de paternalismo e de manipulação popular de que é
capaz o messianismo republicano brasileiro. Estamos vivendo, no atual ciclo de
sebastianismo protagonizado pelo ciclo lulopetista (que já dura mais de uma
década), mais uma versão desse modelo.
O modelo salvador militar.- Juarez Távora, um dos
oficiais do Exército que protagonizaram as famosas revoluções tenentistas, ao
longo dos anos vinte, revelou, em certa oportunidade, a índole salvadora que
assumiram as intervenções militares ao longo do período republicano. Estreito
colaborador de Vargas no governo provisório (1930-1934), que se organizou
depois da revolução de 1930, procurou um dos assessores jurídicos do governo, o
sociólogo Oliveira Vianna, e lhe pediu que elaborasse um modelo de
Constituição. Como no modelo apresentado pelo assessor não aparecesse definido
o papel dos militares, assim o explicou: "A nossa atitude em política é a
de quem observa um banquete. Quando o banquete se converte em rega-bofe, então
entraremos com a espada moralizadora" [apud Almeyda, 1956: 184].
As Forças
Armadas entenderam dessa forma salvadora o seu papel na política brasileira, ao
longo do período republicano: assim foi durante a República Velha (1891-1930),
com as chamadas "salvações"; assim foi durante o longo governo
getuliano (1930-1945), que se apoiou na jovem oficialidade do Clube 3 de
Outubro; assim foi quando Getúlio deixou o poder em mãos do marechal Eurico
Gaspar Dutra, depois da Segunda Guerra Mundial em 1945; assim foi em 54, com a intervenção dos chefes militares que
levou o presidente constitucional Getúlio Vargas ao suicídio; assim foi em 64,
com a chamada "revolução salvadora".
Não há dúvida,
como sugere Alfred Stepan [1975] de que essa concepção salvadora encaixou na
praxe do "poder moderador", à qual se acostumaram os brasileiros ao
longo de mais de quarenta anos de Império. Desaparecida a figura do Imperador a
partir da instauração da República em 1889, continuou presente, contudo, a
idéia de que um poder superior ao Parlamento e ao jogo político-partidário
deveria exercer uma espécie de tutela sobre a sociedade, a fim de evitar que os
interesses privados dos políticos terminassem prevalecendo sobre o interesse
público. As Forças Armadas, no sentir de Stepan, passaram a exercer essa função
moderadora.
Paulo
Mercadante [1978] destaca o fato de que, no cumprimento de sua missão salvífica
e moderadora, os militares brasileiros inspiraram-se no modelo weberiano da
ética de convicção (baseada na preservação do valor absoluto da honra), e
rejeitaram (porque o consideravam oportunista) o modelo de ética de
responsabilidade, identificado por Weber [1993] como próprio do homem público,
que calcula, nas suas ações, o resultado que delas provirá. Essa visão salvadora, baseada no código de
honra, encontrou primorosa manifestação no final do Império, quando, por causa
da chamada "questão militar", o marechal Deodoro da Fonseca
desembainhou no Parlamento a espada e exclamou: "a honra do Exército está
acima da lei!"
Antônio Paim
[1978] lembra que esse sentido da moral de convicção que não admite negociações,
fez com que a intervenção militar de 1964 se revestisse de feição autoritária.
Esse espírito revelar-se-ia, entre outras coisas, na forma tuteladora como
foram entendidos os "objetivos nacionais permanentes" os quais,
formulados pela elite militar, passaram a ser interpretados como paradigmas
inquestionáveis pelos líderes da ESG.
O modelo patrimonialista.- Nas suas oras fundamentais
Oliveira Vianna [1982] destacou um fato fundamental da formação social
brasileira: a tendência a confundir público com privado. Não existe claramente
definida, na mentalidade do povo, nem na das elites, a linha de demarcação
entre interesses familiares e aqueles pertencentes à esfera pública. Parece
como se ambas as ordens de interesses coexistissem, de modo indiferenciado, no
mesmo universo. Esse fato levou a sabedoria popular a cunhar slogans como "aos amigos marmelada,
aos inimigos bordoada"; "aos amigos os cargos, aos inimigos, a
lei"; "governar é nomear, demitir e prender"; "é dando que
se recebe", etc.
A idéia subjacente
a todas essas expressões é a de que a coisa pública é patrimônio familiar para
ser distribuído entre consangüíneos, amigos e paniaguados. Nada mais
ilustrativo dessa mentalidade do que os "trens da alegria" ou os
“mensalões”, com que ocupantes de cargos públicos recompensam generosamente
familiares, amigos e “companheiros”. Outro exemplo eloqüente desse espírito
privatizante e orçamentívoro é constituído pelas gordas remunerações que, na
nossa história republicana, membros dos corpos legislativos aprovam em
benefício próprio, fato que levou Simon Schwartzman [1982] a escrever que
enquanto a política é, para outros povos, um meio de beneficiar os negócios,
para os brasileiros é o grande negócio.
A origem desse
espírito privatizante é situada por Oliveira Viana no "complexo de
clã", proveniente do latifúndio. A primeira experiência que tivemos como
povo, logo depois do descobrimento, foi a da casa grande, presidida pela figura
todo-poderosa do "senhor de engenho", autoridade patriarcal amada e
temida ao mesmo tempo, que com a "guarda de corp" ao seu serviço, garantia a sobrevivência de clientes,
familiares, amigos e paniaguados, perseguindo os seus inimigos até a morte. Em
que pese o fato de o Brasil ter-se convertido, a partir dos anos 70, num país
predominantemente urbano, a tendência privatizante herdada do complexo de clã é ainda o pano de fundo
que inspira a participação política. Seria uma fantasia ignorar hodiernamente
essa tendência. Ainda há muito clientelismo e espírito familístico nas nossas
estruturas governamentais. À luz dessa mentalidade têm sido “privatizadas”, em
benefício de siglas partidárias, conhecidas empresas estatais como a Petrobrás
ou a Eletrobrás. O PT, no poder, conseguiu generalizar esse clima de
apropriação do bem público pelos espertos militantes, sob a complacência do
Executivo e de boa parcela do Legislativo e do Judiciário.
A discussão da
moralidade pública passa, necessariamente, pelo caminho da crítica ao
"complexo de clã", que afeta a cultura política. Não se pode falar em
gestão ética da coisa pública, enquanto a noção de República coincidir mais com
a de coisa nossa ou "res privata". José Murilo de Carvalho [1989: 13]
escreveu a respeito: "(...) a República fracassou até agora. A proposta
republicana, seja no modelo liberal, seja no autoritário, significa sempre
participação, reforma social, desenvolvimento da cidadania, da vida pública. De
um sistema político que incorpore a população, um sistema que não procure
excluir, mas que, ao contrário, procure construir uma nação. A nossa República
não tem, nesse ponto, um saldo muito positivo para apresentar". É longa a
bibliografia que analisa e critica o fenômeno do patrimonialismo brasileiro.
Cf. entre outros, Faoro [1958], Schwartzman [1982], Paim [1978], Vélez-Rodríguez
[1984], Meira Penna [1988]).
O modelo estetizante.- Segundo Mário Vieira de
Mello [1980] o brasileiro adotou, no terreno moral, um comportamento
estetizante. A bondade ou malícia dos atos humanos não se deduz do seu
ajustamento, ou não, a um imperativo categórico proveniente da consciência
moral, mas da exteriorização, como num palco, dos próprios sentimentos.
A propósito,
afirma Viera de Mello [1980: 187]: "(...) De um modo geral (o brasileiro)
parece ser, nos nossos dias, um homem que se contempla a si mesmo e que
contempla os outros como se o mundo fosse um grande palco e como se a vida
devesse estar destituída de sentido, no caso de que não pudesse se constituir
como um espetáculo ao qual assistiriam certo número de pessoas assíduas e
atentas. Esse traço que se encontra certamente em outros países que, como o
nosso, tenham sido submetidos à influência do estetismo, apresenta-se
naturalmente na nossa psicologia em graus muito variados indo desde o simples
desejo de não deixar passar inadvertido um mérito, uma ação, uma qualidade ou
uma intenção louvável, até as manifestações excessivas de um exibicionismo sem
pudor ou de um cabotinismo indiferente às exigências mais rudimentares da
modéstia. O brasileiro de nossos dias é pouco sensível às qualidades da alma que
são menos óbvias, as qualidades que são, por assim dizer, invisíveis.
Escapa-lhe completamente o sentido valioso de um gesto de renúncia, de uma
palavra não proferida, o valor moral associado à repressão silenciosa de um
movimento de egoísmo, de vaidade ou de orgulho. A exteriorização dos
sentimentos parece constituir para ele a única garantia de que tais sentimentos
existem. Essa psicologia de extrovertidos poderia naturalmente, através de
explicações de tipo supostamente científico, ser justificada à luz das
condições raciais e somáticas do povo ou climáticas do país. Mas, em verdade, é
a compreensão do mundo como um palco a que conduz o brasileiro a uma
exteriorização excessiva dos seus sentimentos que, muitas vezes, não é possível
levar a cabo sem uma certa falta de sinceridade (...)".
Manifestação
concreta desse modelo ético deu-se, a meu ver, no fenômeno do chamado
"bacharelismo", ou comportamento estetizante do advogado brasileiro
de início de século XX. Rui Barbosa, máxima expressão da advocacia, assumiu, na
sua vida pública, a condição de ator, profundamente admirado ou odiado.
"Durante muito tempo a imagem de Rui Barbosa - escreve Nelson Saldanha
[1979: 164] - representou um símbolo de enorme relevância, tanto para as elites
intelectuais quanto para o público comum. Um símbolo que ocasionalmente
funcionou ao contrário, com oscilações entre a idolatria e o repúdio. Símbolo
do bacharel e do advogado, bem como do orador liberal, do jornalista palavroso,
da cultura que chegou a ser chamada de ornamental,
Rui Barbosa não foi apenas uma vocação: a sua figura foi promovida pela
circunstância, cujos valores e tendências em matéria cultural ele exemplarmente
encarnou. O 'ruismo', como adesão de várias gerações ao seu estilo verbal e aos
conteúdos que defendeu, foi fenômeno explicável nos quadros da classe média
brasileira, fascinada pelo saber e pelas hipérboles. O Rui Barbosa polifacético
e versátil correspondeu à dispersão que foi regra entre os intelectuais da
época: jornalismo, advocacia, teoria política e, ao mesmo tempo, a vida entre
os livros e no gabinete (...)".
O modelo totalitário.- Este modelo consolidou-se ao
ensejo da experiência de poder total
dos grandes sistemas totalitários comunista, fascista e nacional-socialista.
Convém lembrar, inicialmente, que: "O totalitarismo é um fenômeno ocorrido
no século XX e, por mais que possa apresentar essa ou aquela semelhança com o
absolutismo monárquico ou com os governos tirânicos do passado, tem na verdade
características próprias que o singularizam. Assim, até onde podemos conhecer
as estruturas estatais antigas e modernas, nenhuma delas conseguiu o poder
total e absoluto alcançado pelos Estados totalitários contemporâneos. Estes
lograram a proeza de quebrar todos os laços de solidariedade entre seus súditos,
transformando-os em massa amorfa. A oposição torna-se episódica, sem despertar
qualquer interesse popular" [Paim, Prota, Vélez, 1997: 207]. Em que pese o
fato de parecerem indestrutíveis, os sistemas totalitários do século XX vieram
por terra, ou como resultado de ações armadas contra eles (queda da Alemanha
nazista e dos países do Eixo na Segunda Guerra Mundial), ou simplesmente como
conseqüência da própria corrupção e ineficiência (o acontecido com a União
Soviética, quando da derrubada do Muro em 1989). Semelhante sorte devem esperar
os populismos totalitários sul-americanos constituídos nas duas últimas décadas
pelos seguidores do Foro de São Paulo, entre os que se destaca o modelo
venezuelano da “revolução bolivariana” posto em marcha pelo finado presidente
Chávez, da Venezuela. O PT brasileiro pretende, extemporaneamente, se somar a
essa tresloucada aventura, mediante a posta em marcha de uma “reforma política”
radical que consolide a hegemonia definitiva do Partido dos Trabalhadores.
Qual é o cerne
da ética totalitária? O seguinte: a convicção de que os fins justificam os
meios. "Posto que pretendo erigir uma sociedade nova, onde haja
desaparecido a exploração do homem pelo homem, posso valer-me de não importa
que meio para alcançar tais objetivos" [Paim, Prota, Vélez, 1997: 208]. O
melhor exemplo da presença desse tipo de modelo na cultura brasileira
contemporânea são as ações do MST. Como alegam pretender a realização plena da
justiça social, os militantes desse movimento sentem-se justificados para fazer
qualquer coisa: invadir terras produtivas, ocupar prédios públicos, seqüestrar
funcionários do governo, assassinar opositores se for o caso, etc. Atitude
semelhante é a que inspira o chamado "clientelismo armado" das Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia, que em nome de um vago socialismo matam
populações inteiras, seqüestram, desconhecem os acordos feitos com as
autoridades, etc., tudo acobertado pela atitude políticamente correta dos que
temem as suas ações ou dos que, acobertados por ONGs de duvidosa moralidade,
pretendem "pescar em águas turvas".
É difícil
enfrentar diretamente quem está inspirado pela ética totalitária. "O que se pode fazer é reiterar que a
moralidade encontra-se nos meios a que recorremos para vê-la realizada e não
nos fins que nos movem" [Paim, Prota, Vélez, 1997: 209]. A questão dos
meios a serem utilizados para realizar os ideais é essencial, pois sem levar em
consideração essa variável, podemos instaurar um critério de ação que termine
ferindo a dignidade das pessoas. Não podem ser aceitos meios imorais, que
passem por cima da dignidade dos seres humanos. Aceitar isso é deitar por terra
toda a moralidade.
O modelo de moral social de tipo consensual.- Antônio Paim foi quem
primeiro propôs, no Brasil, este modelo na sua obra intitulada Modelos
éticos escrita em 1983 e publicada posteriormente [1992]. Ali, o autor
analisa a forma em que foi tematizada, pela primeira vez, a moral social na
Inglaterra no século XVII, e segue os passos que ela percorreu ao longo dos
séculos XVIII, XIX e XX. Assim como Kant
firmou as bases da moral do dever (chamada por Weber de "ética de
convicção"), os moralistas ingleses formularam a moral social de tipo
consensual. Na sua essência, ela consistiria no seguinte: nas sociedades
modernas, multitudinárias e pluralistas, vários padrões de moral individual
(fixados pela família, a igreja, a escola e o convívio social) muitas vezes se
contrapõem. Sem que isso signifique relativização da moral individual, cuja
essência consiste no imperativo categórico ou consciência do dever moral, tornou-se
necessária a formulação negociada de uma moral social, que indique o mínimo que
passará a ser exigido de qualquer cidadão. Não é desejável que esse mínimo seja
fixado por uma determinada confissão religiosa; poder-se-ia dizer que ela seria
privilegiada em face das outras. Também não é desejável que esse mínimo seja
fixado de forma imperativa pelo Estado: além de não ser ele ente moral (pois é
fruto, como frisa Thomas Paine, de nossas fraquezas e não das nossas virtudes),
ficaria seriamente comprometida a evolução democrática da sociedade.
A questão da
moral social de tipo consensual remete-nos a outra, igualmente essencial: a
necessidade de promover a educação básica, a fim de que a sociedade possa
deliberar acerca de seus problemas morais. É claro que numa sociedade de pobres
e analfabetos, impor-se-á autoritariamente a minoria ilustrada e poderosa. Isso
não significa que a questão da moral social deva ser relegada às calendas
gregas, mas que deve haver uma equilibrada evolução da sociedade nos planos
econômico, político e cultural, a fim de que tal moralidade, de tipo
consensual, seja formulada a contento.
Falar em moral
social de tipo consensual no Brasil de hoje - como em qualquer país
latino-americano ou do terceiro mundo -, implica em encarar os problemas do
estatismo, dos graves desequilíbrios na distribuição da riqueza, do
analfabetismo, etc. O primeiro passo, certamente, consiste em chegar à
convicção de que não haverá democracia enquanto os nossos povos não tenham a
capacidade de fixar, por si próprios, de maneira consensual, a moral social que
deve presidir ao convívio político. Sem essa base moral, os decretos e as leis
são letra morta. Somente a consciência moral é base para a democracia e para a
mudança. Como frisa Michel Crozier [1979], "não se muda a sociedade por
decreto".
Na sociedade
brasileira, tradicionalmente (ao longo da nossa história quadrissecular) a
moral social foi formulada de maneira vertical, quer pela Igreja - quando ainda prevalecia a cultura agrária
-, quer pelo senhor de engenho -nos
remotos tempos da casa grande -, quer pelo Estado autoritário - até o final do ciclo militar e, de novo, no
ciclo lulopetista contemporâneo-, quer pela mídia - nos tempos recentes da abertura e da atual
experiência democrática -. Um fato novo, no entanto, começou a se generalizar
no país, notadamente após a Constituição de 1988 a qual, embora carregada ainda
de vícios corporativistas e casuístas [cf. Mercadante, 1990], pôde ser chamada
de "Constituição cidadã", justamente pelo fato de ter sido concebida
a partir da perspectiva do cidadão, não do Estado (como era praxe na nossa
tradição constitucional). Esse fato novo é o seguinte: a sociedade brasileira
tem tomado, paulatinamente, consciência de que ela própria deve se engajar na
discussão e na fixação dos princípios de moral social.
Essa
consciência tem-se desenvolvido, com maior intensidade, após o affaire Collor de Mello, que conduziu ao
impeachment de um mandatário eleito a
partir da pregação do binômio: moralidade-modernidade. Desiludida em face da
incapacidade moralizadora do Estado, a sociedade tem acordado para múltiplas e
variadas iniciativas que possuem, como base comum, a preocupação com a
discussão dos princípios da moral social, bem como com o pressuposto de que ela
deve ser formulada consensualmente. Tomara que no atual ciclo de renovado
estatismo presidido pelo PT volte a surgir uma sadia reação, em prol da
formulação de uma moral social consensual que ponha limites à ação
indiscriminada do Estado autoritário.
5) O empresário, os valores morais e a cidadania no
Brasil contemporâneo
A figura do
empresário como produtor de riqueza tem sido muito desvalorizada no contexto da
cultura brasileira, afinada com a mentalidade contra-reformista de ódio ao
lucro e aos empreendimentos materiais. Mas não foi apenas a Contra-Reforma que
atrapalhou o surgimento, no Brasil, de autêntica mentalidade capitalista. O
Estado patrimonial, orçamentívoro e centralizador tem, na nossa história, boa
parcela de responsabilidade. Ser empresário era, para a mentalidade ibérica dos
séculos XV e XVI, estar com a cabeça a prêmio. O Rei, "mercador de
mercadores" em Portugal, segundo a acertada expressão de Lúcio de Azevedo
[1978], não admitia concorrentes. Max Weber [1944] tem demonstrado que da
dinâmica do patrimonialismo decorre essa caraterística.
Um poder
patriarcal omnímodo não tolera poderes paralelos. Estes foram, certamente,
muito fortes na parte da Europa que conheceu o Feudalismo, tendo decorrido
dessa luta entre interesses diferentes, a diversificação da sociedade em
classes, o confronto entre estas e o surgimento do Estado a partir de um
contrato entre as mesmas. Mas, no contexto patrimonialista que vingou na
Península Ibérica e, por extensão, na América Latina, as coisas ocorreram de
forma diferente. Entre nós, constituiu-se um Estado mais forte do que a
sociedade, administrado ciosamente por estamentos que não toleravam poderes
sociais concorrentes. Consequentemente, a sociedade não se diversificou e todo
mundo ficou pendurado do Estado empresário. E o Brasil não achou o rumo para o
seu desenvolvimento.
São inúmeros
os testemunhos acerca da ausência, no Brasil, de uma autêntica mentalidade
capitalista, que favoreça o desenvolvimento econômico. Ao passo que ser rico,
num país desenvolvido como os Estados Unidos, é símbolo de vitória e de
preeminência social, o rico, no Brasil, se esconde ou por medo a ser perseguido
pelo Estado orçamentívoro, ou porque acha que será assinalado como causa da
pobreza. A propósito, pesquisa desenvolvida pela Revista Exame mostrava que
ninguém assume entre nós que é rico, preferindo se mimetizar na classe média
[cf. Ferreira, 2000: 38-39]. Isso, aliás, constitui hábito cultural decantado
na sociedade brasileira, em longos séculos de perseguição contra quem
ostentasse, perante o Estado patrimonial, sucesso econômico. Primeiro, as
vítimas foram os judeus e os cristãos novos. Logo, os empresários, aqueles que
conseguem produzir riqueza. O interessante de tudo isso é que a figura do
político, como aquele que utiliza o poder para enriquecimento próprio, não foi
exorcizada da nossa cultura.[2]
A causa do
nosso secular atraso consiste, sem dúvida, nessa hipertrofia do Estado sobre a
sociedade e na falta de estímulos de tipo cultural, (e a ética do trabalho é um
destes), para a livre iniciativa e a definitiva consolidação da economia de
mercado. Os inimigos do nosso desenvolvimento não são exógenos, como pretende a
chocha retórica nacionalista. Valham aqui as palavras de Roberto Campos:
"Nunca aderi ao discurso de denúncia
em relação aos agentes externos - imperialismo e capitalismo - pois sempre
achei que os nossos demônios eram internos. Descobri
o inimigo: somos nós mesmos, como se diz na fábula de Pogo. E cedo me
desiludi do paternalismo governamental. Em nosso assistencialismo demagógico os
assistentes se dão melhor que os assistidos. O gasto social no Brasil é uma
sucessão de ralos burocráticos. Assim
o atestam o péssimo estado da educação pública, o desastre no sistema de saúde
e as humilhações impostas à clientela da previdência social. Cada vez mais me
convenço da terrível verdade do que dizia o liberal mexicano Octavio Paz: O Estado é um pai terrível; na melhor
das hipóteses, um ogro filantrópico"
[Campos, 1994: 1282].
A Revolução
Industrial ensejou uma sociedade dinâmica em que, pela primeira vez na história
do homem, disseminou-se o bem-estar material. Surgiram grandes cidades e a
situação dos trabalhadores, nelas, tornou-se algo muito difícil, haja vista os
testemunhos de romancistas de início do século XIX na Inglaterra, como Dickens,
ou de estudiosos das questões sociais, como Marx. Graças aos avanços da
medicina e à acumulação de riquezas por parte dos industriais, as cidades
melhoraram muito na sua estrutura urbanística, sendo abertos parques e jardins
e tendo sido empreendidas obras de esgotamento sanitário. A história de cidades
como Londres ou Paris é muito clara a esse respeito, com diversos planos de
urbanização e de melhora das condições de vida, ao longo do século passado.
Paralelamente, a indústria e a vida urbana aceleraram o surgimento de empresas
de prestação de serviços e a propriedade disseminou-se. Os trabalhadores
melhoraram sensivelmente o seu padrão de vida, tendo conquistado prerrogativas
importantes. Ao mesmo tempo, desapareceram as grandes diferenças até então
existentes entre campo e cidade. A agricultura tecnificou-se e as condições de
vida no campo melhoraram sensivelmente. No chamado mundo desenvolvido,
desapareceram os grandes desníveis na distribuição da renda [cf. Paim, Prota,
Vélez, 1999, vol. I: 7-9].
Como o emprego
tornou-se, na moderna sociedade industrial, o meio através do qual se garantia
o padrão de vida do cidadão, o empresário que criava fontes de trabalho passou
a ser muito valorizado. Destarte, em países como os Estados Unidos, todos os
anos inúmeras publicações e eventos oficiais e particulares engrandecem a
figura do empresário, como aquele que garante o bem-estar das suas comunidades.
Contrariamente ao que se supunha no século XIX, a sociedade industrial não se
consolidou em todo o mundo. Muitos países permaneceram pobres, como é o caso de
Portugal, sendo que agora, com a inserção na Comunidade Européia viu-se
obrigado a se modernizar, superando anacrônicos critérios em matéria econômica
e social. Pensava-se que o atraso da África decorria da sua condição colonial;
mas quando países outrora submetidos ao regime colonial, como os Estados
Unidos, Austrália e o Canadá, tornaram-se amplamente desenvolvidos, viu-se que
a razão para o atraso africano não era exatamente essa. Tendo-se tornado
independentes dos antigos regimes coloniais, os países do continente africano
permaneceram, via de regra, no atraso. A Revolução Industrial tampouco
aconteceu em todos os países da Ásia, circunscrevendo-se ao Japão e aos chamados
Tigres Asiáticos. Os sucessivos e enormes aumentos nos preços do petróleo não
significaram, de outro lado, melhores condições de vida para as populações dos
países do Extremo Oriente ou da América Latina (como é o caso da Venezuela).
De outro lado,
podemos indagar por que razão um país como o Brasil, que no século XVII
despontava como uma potência mundial, graças à hegemonia que lhe deu a produção
de açúcar, ficou atrelado ao atraso nos séculos subseqüentes, sendo de longe
ultrapassado por países (como os Estados Unidos), que estavam notoriamente
atrás dele naquele tempo. Muita discussão tem ensejado essa pergunta. Algumas
respostas reforçam a nossa situação de complexo subdesenvolvido: somos pobres
porque os Estados Unidos são ricos. É uma forma de não responder à questão.
Entre outras coisas, porque tal colocação situa-se, anacronicamente, no contexto mercantilista. Nele, os processos de enriquecimento implicam em
empobrecimento de alguém, toda vez que se parte do pressuposto de que a riqueza
já está feita. Qualquer alteração na posse dela pressupõe, portanto, um
processo de soma zero. Se alguém fica rico, é porque tomou de outra pessoa.
Ora, a questão tem de ser colocada no contexto
macroeconômico, que foi formulado inicialmente por Adam Smith e em cujo seio
situa-se a moderna concepção da economia, inclusive a do próprio Marx. Para
esse contexto, a riqueza não está feita e pode ser produzida pelo trabalho e o
engenho humanos. De forma tal que os ricos não o são porque roubaram dos
pobres, mas porque produziram a riqueza.
A questão de
fundo é de índole moral e consiste no
fato de que entre nós não se solidificou uma ética do trabalho nem uma
apreciação positiva dos valores que ensejaram o surgimento do capitalismo:
eficiência, produtividade, espírito de empreendimento. Muito pelo contrário, a
nossa cultura incorporou os anti-valores da concepção contrarreformista: ódio
ao lucro, desinteresse pelas coisas deste mundo, avaliação negativa do trabalho
como castigo pelo pecado original. A propósito deste aspecto, é destacado o
seguinte no curso intitulado O empresário e a cidadania:
"Pretendemos que se proceda a uma discussão mais sofisticada e, com essa
intenção, submetemos à meditação dos participantes a questão da persistência,
entre nós, dos valores que nos foram transmitidos pela Contra Reforma. Tudo
leva a crer que justamente essa persistência explique alguns fenômenos que nem
sempre são considerados em conjunto, mas que constituem um todo homogêneo.
Temos em vista o desapreço pelo empresário e a simultânea adoração do Estado,
de um lado e, de outro, as dificuldades com que nos defrontamos, há cerca de
duzentos anos, para implantar as instituições do sistema representativo"
[Paim, Prota, Vélez, 1999, vol. I: 9].
A mudança
somente ocorrerá pela troca de paradigma cultural. Trata-se de substituir o
modelo contrarreformista por uma concepção moderna, aberta ao capitalismo e ao
desenvolvimento. Isso só ocorrerá através de um amplo processo educacional que
deverá levar em consideração dois aspectos: 1) mostrar aos empresários o papel
mais ativo que podem assumir para mudar as instituições no Brasil, não
promovendo apenas clubes de estudo, mas se organizando políticamente para
promover mudanças na legislação, que favoreçam a consolidação da modernidade
econômica entre nós; 2) incutir nas novas gerações um conjunto de valores
condizentes com a modernidade, o que implicaria a discussão de um novo
paradigma de educação para a cidadania.
É necessário discutir propostas nesse sentido. Parece que, até agora, as mais
agressivas alternativas tem sido assinaladas pelos que pretendem continuar com
o nosso subdesenvolvimento tradicional, reforçando um modelo de Estado
patrimonial vinculado a propostas estatizantes e socialistas. Uma proposta do
ângulo liberal é apresentada na obra Cidadania: o que todo cidadão precisa saber
[cf. Paim, Prota, Vélez, 1999a].
Em outras
palavras, trata-se de substituir uma ordem de valores tradicionalistas,
vinculados à Contra-Reforma e ao desprezo deste mundo, por outra ordem
axiológica aberta à modernidade, à produção de riqueza e à promoção do
bem-estar material de todos os cidadãos. Sem essa mudança de fundo, de pouco
adiantarão reformas na legislação. As novas leis simplesmente não pegarão. A nova ordem de valores
deverá expressar a realidade da economia capitalista, que segundo Max Weber
caracteriza-se pelos seguintes itens: "1) apropriação de todos os bens
materiais de produção como propriedade de livre disposição por parte das
empresas lucrativas autônomas; 2) a liberdade mercantil, isto é, a liberdade de
mercado em relação a toda irracional limitação; 3) técnica racional, isto é,
contabilizável ao máximo e, por conseguinte, mecanizada, tanto na produção como
na troca, não só quanto à confecção senão também com respeito aos custos de
transporte; 4) direito racional, isto é, direito calculável. Para que a
exploração capitalista proceda racionalmente, precisa confiar em que a justiça
e a administração seguirão determinadas pautas; 5) trabalho livre, isto é, que
existam pessoas, não somente do ponto de vista jurídico mas econômico, (que
vendam) livremente a sua atividade num mercado; 6) comercialização da economia,
sob cuja denominação compreendemos o uso geral de títulos de valor para os
direitos de participação nas empresas e igualmente para os direitos
patrimoniais" [Max Weber, História econômica geral, 1923,
cit. por Paim, Prota, Vélez, 1999, vol. I: 11].
É evidente que
uma ordem de valores morais que responda à realidade econômica que acabamos de
descrever, deverá ser muito diferente dos primeiros oito modelos de moral
social que foram descritos no item 4 desta exposição. A nova ordem de valores
deverá ser um modelo de moral social
consensual (formulado, portanto, horizontalmente no seio da sociedade
brasileira), aberto à modernidade e à empresa capitalista.
Mencionemos os
valores que esse novo modelo deveria comportar: apreço pelo trabalho produtivo,
eficiência, racionalidade, apreço pela liberdade e valorização da livre
iniciativa. O valor da solidariedade deverá estar presente, mas não da forma em
que se faz costumeiramente na nossa cultura, banindo como imoral a
produtividade e o lucro. A questão do bem comum é fundamental, mas como
expressão da conciliação dos interesses materiais dos indivíduos. Deve ficar
claro que não existe interesse público nem bem comum que desconheçam a defesa
dos interesses dos indivíduos.
Benjamin
Constant de Rebecque, em texto lúcido e clássico do pensamento liberal, deixou
clara a relação estreita que existe entre bem
público e defesa incondicional dos interesses
individuais. Terminaremos esta exposição com a transcrição desse texto,
tirado dos Princípios de Política (obra escrita em 1815): "O que é o
interesse geral senão a transação que se faz entre os interesses particulares?
O que é a representação geral senão a representação de todos os interesses
parciais que devem transigir naquilo que lhes é comum? O interesse geral é
diferente, sem dúvida, dos interesses particulares, mas não é contrário a eles.
Fala-se sempre como se uma pessoa ganhasse o que os outros perdem; o geral não
é senão o resultado desses interesses combinados; deles difere como um corpo
difere das suas partes. Os interesses individuais são os que mais concernem aos
indivíduos; os interesses dos distritos são os que mais concernem a estes. Ora,
são os indivíduos e os distritos os que compõem o corpo político; são,
consequentemente, os interesses desses indivíduos e desses distritos os que
devem ser protegidos. Ao protegê-los a todos, suprimir-se-á de cada um deles o
que prejudica aos demais, disso resultando o verdadeiro interesse público, que
coincide com os interesses individuais, uma vez que lhes foi tirado o poder de
se prejudicarem mutuamente. Cem deputados nomeados por cem distritos de um
Estado levam ao seio da assembléia os interesses particulares, as preocupações
locais dos seus representados. Essa base é útil a eles: forçados a deliberarem
juntos, logo percebem os sacrifícios respectivos que são indispensáveis.
Esforçam-se para diminuir a extensão deles, e nisso reside uma das maiores vantagens
da forma de sua designação. A necessidade acaba sempre por uni-los numa
transação comum, e quanto mais fragmentadas tiverem sido as eleições, a
representação consegue um caráter mais geral. Se for invertida a gradação
natural, se for colocado o corpo eleitoral na cúpula do edifício, os nomeados
por ele deverão se pronunciar em relação a um interesse público cujos elementos
desconhecem, (pois) lhes é incumbida a tarefa de conciliar interesses cujas
necessidades ignoram ou desprezam. Convém que o representante de um distrito
atue como órgão do mesmo, que não abra mão de nenhum dos seus direitos, reais
ou imaginários, senão depois de tê-los defendido; que seja parcial na defesa
dos interesses de que é mandatário, porque se cada um for parcial nessa defesa,
a parcialidade de cada um, unida e conciliada, terá as vantagens da
imparcialidade de todos" [Constant de Rebecque, 1970: 46-47].
6) O fenômeno da globalização:
pressupostos éticos
A comunicação a nível
mundial é, neste novo milênio, o fato cultural mais relevante a que a
Humanidade já assistiu, desde a invenção do Lógos filosófico pelos
Gregos. Destacarei neste item a base ético/filosófica desse fato. Para cumprir
com este objetivo desenvolverei quatro itens: em primeiro lugar, os paradoxos
do início de milênio e o papel desempenhado, em face deles, pela comunicação
globalizada; em segundo lugar, a estrutura e a dinâmica da integração mundial
via redes; em terceiro lugar, as exigências educacionais dos novos sistemas
comunicativos e, por último as bases humanísticas, notadamente éticas, da
globalização no novo milênio.
Toda mudança de século aguça
a imaginação de líderes religiosos, historiadores, cientistas e do próprio
homem comum. Quando se trata da passagem de um milênio para outro, as
expectativas se exacerbam. O advento do Cristianismo marcou o início do
primeiro milênio. As esperanças messiânicas da unidade religiosa européia
marcaram o trânsito do ano 999 para o 1000, com a conversão da Rússia ao
Cristianismo em 989. As tendências à globalização da política, da economia e da
cultura, marcaram a passagem ao terceiro milênio.
Em face da virada milenar,
descortinaram-se dois caminhos: o da ratio
e o da fides. Poderia se encarar o
novo milênio rationaliter - como
dizia Nicolau de Cusa, no início da Renascença - checando à luz da razão, uma a
uma, todas as variáveis que se apresentam. Ou poderíamos, diversamente, encarar
os novos tempos intellectualiter - na terminologia do mencionado pensador - à
luz da fé no mistério. Não se trata aqui de fazer uma escolha excludente. Ambos
os pontos de vista, no terreno que lhes compete, são válidos, conquanto um não
pretenda impedir a existência do outro. Provenientes de fontes diversas, fides e ratio podem conviver no homem, respeitando cada uma a sua
peculiaridade. Essa síntese dialética era a que constituía a douta ignorância proposta por Nicolau de
Cusa. Síntese paradoxal dos contrários, sem a qual o conhecimento humano
ficaria incompleto e que o pensamento renascentista soube manter em toda a sua
complexidade dinâmica. Lembremos, por exemplo, a singular valorização da magia
ao lado da ciência que encontramos no pensamento de Galileu Galilei, ou a dupla
vertente representativa proposta por Leonardo da Vinci: a plástica (imago) e a racional (conceito), ambas indissoluvelmente
ligadas.
No terreno das expectativas
racionais, como se apresentou o novo milênio? Segundo Paul Kennedy [1993], seis
tendências gerais puderam ser identificadas nesse limiar: a explosão
demográfica; a revolução nas comunicações, bem como no terreno financeiro e no
da ascensão da empresa multinacional; a questão da agricultura mundial e a
revolução da biotecnologia; a robótica, a automação e a nova revolução
industrial; os perigos para o nosso meio ambiente natural e a problemática do
Estado nacional.
Poderíamos falar, ao nos
referirmos a essas seis grandes tendências, de gravíssimos paradoxos que
enfrenta a Humanidade no início de milênio. Façamos um rápido balanço, mesmo
que superficial, acerca das momentosas questões que cada uma dessas tendências
levantou, destacando o estreito nexo que há entre o equacionamento dos
problemas propostos por elas e o fenômeno da comunicação.
Quanto à explosão
demográfica [cf. Kennedy 1993: 28 seg.], é necessário destacar a dimensão
gigantesca do problema. A população mundial passará dos atuais 6 bilhões de
habitantes para 8,5 bilhões em 2025 e 14,8 bilhões em 2075. A aceleração do
crescimento demográfico tem aumentado consideravelmente nos últimos sessenta
anos e a previsão é de que continue a
aumentar. No período compreendido entre 1950 e 1955, a população do planeta
cresceu anualmente numa proporção equivalente ao número de habitantes da
Inglaterra (47 milhões). No período 1985-1990 a população mundial cresceu, por
ano, numa proporção equivalente aos habitantes do México (88 milhões). No
período 1995-2000, estimava-se que a população mundial aumentaria anualmente na
proporção do número de habitantes da Nigéria (112 milhões). Se os países
quiserem equacionar racionalmente a questão do crescimento populacional, deveriam
fazer um grande esforço de esclarecimento dos seus habitantes, no que tange às
políticas e técnicas de controle da natalidade. É evidente que, nessa
empreitada, os meios de comunicação de massa representavam o mais importante
instrumento de que dispunham os governos, especialmente os dos países em
desenvolvimento, às voltas com sérios problemas no ensino básico.
No relativo às comunicações,
à revolução financeira e à ascensão da empresa multinacional, Paul Kennedy
[1993: 45] frisava que o atual fenômeno da economia mundial corresponde à
globalização. As empresas multinacionais, estimuladas pela redução do
protecionismo e pela decisão dos Estados Unidos, tomada em 1970, de abandonar o
padrão ouro e de liberalizar os controles cambiais, firmam-se como os
principais atores econômicos neste início de milênio. Em função de um mercado
global, as empresas estão sendo levadas a produzir nas regiões do mundo que
melhores condições ofereçam. Além de se beneficiarem com as economias de
escala, elas passam a se resguardar das incertezas do mercado e das flutuações
das moedas. A recessão na América Latina ou na Europa, certamente preocupará
menos a uma empresa que tenha penetrado no mercado asiático. Os novos sistemas
de teleinformática permitem ao mercado financeiro trabalhar ininterruptamente
durante as 24 horas do dia e transferir, em segundos, de um ponto a outro do
planeta, enormes somas de dinheiro, de acordo com as necessidades do mercado
[cf. Kennedy, 1993: 51 seg.]. Do processo de globalização sairão beneficiadas
as nações que melhor se tiverem preparado tecnológica, cultural e politicamente
para lidar com as empresas multinacionais e com a atual realidade do mercado
mundial. É evidente que, nesse contexto, o acesso à teleinformática será
definitivo para os países do Terceiro Mundo se integrar à economia
internacional. Para que isso se concretize, eles deverão dar preferência ao
alargamento e aperfeiçoamento do ensino básico, bem como à política de abertura
tecnológica dos seus sistemas de comunicação.
No relativo à agricultura e
à revolução da biotecnologia, é necessário destacar que o modelo atual de
produção está esgotado. De acordo com o World
Watch Institute, é necessário um aumento na produção de alimentos de 28
milhões de toneladas a cada ano, somente para acompanhar o crescimento
populacional. Ora, o ritmo atual de aumento da produção agrícola é de apenas 15
milhões de toneladas por ano. Várias possibilidades são levantadas pelos
especialistas, visando a equacionar este grande problema: em primeiro lugar, a
criação de estímulos para a transferência dos excedentes agrícolas dos países
desenvolvidos para o Terceiro Mundo; em segundo lugar, a multiplicação do
volume de terras cultivadas; em terceiro lugar, o aumento da eficiência dos
agricultores nos países pobres; em quarto lugar, a adoção sistemática da
biotecnologia, que consiste numa técnica que utiliza organismos ou processos
vivos "para fazer ou modificar produtos, melhorar plantas ou animais, ou
para desenvolver microorganismos para usos específicos" [Kennedy, 1993:
67]. Ora, esse elenco de alternativas exige o desenvolvimento acelerado de
conhecimentos e a sua circulação em largas camadas da população que se dedica
às fainas agrícolas, especialmente no Terceiro Mundo. Sem um sistema moderno de
ensino básico e de teleinformática, será impossível a um país como o Brasil ter
acesso às novas tecnologias que aceleram a produção no campo.
No que diz respeito à
robótica, à automação e a uma nova revolução industrial [cf. Kennedy, 1993: 81
seg.], pode-se afirmar que, nos dias que correm, assistimos a uma modificação
tão profunda como a causada pela Inglaterra no século XVIII, quando da invenção
da produção fabril. Assim como a era do artesanato foi substituída pela
primeira revolução industrial (que homogeneizou nas cidades um proletariado
separado das suas bases rurais), está acontecendo hoje, sob a batuta do Japão, outra
revolução igualmente profunda e prenhe de conseqüências sociais: os robôs
mandam os trabalhadores para casa, enquanto as máquinas os tinham concentrado
nas fábricas.
A partir da utilização
sistemática dos robôs de terceira geração (ou robôs inteligentes, capazes de
resolver problemas) assistimos, nas empresas japonesas, a uma nova revolução
industrial, a chamada por Alvin Toffler [1995: 16 ; 1997: 141-143] de terceira onda, alicerçada na aplicação
de conhecimentos muito especializados, bem como na sua transmissão. Neste, como
em outros terrenos, beneficiar-se-ão os países que tiverem equacionado o
problema do ensino básico e que houverem realizado notáveis investimentos em
pesquisa e em tecnologia de comunicações. Além do Japão e dos Tigres Asiáticos,
a Europa Ocidental, os Estados Unidos, Austrália e o Canadá estão sem dúvida em
condições de aproveitar cada vez mais a robótica. Teremos possibilidades, no
Brasil, de chegar a essa tecnologia, com a tendência do Estado a
dinossaurizá-lo tudo, notadamente o que diz respeito à democratização do
conhecimento?
Já no relacionado aos
perigos crescentes para o nosso meio ambiente natural [cf. Kennedy, 1993: 95
seg.], não perdeu validade o que tantas vezes foi dito na reunião da Eco 92, no Rio de Janeiro: são
gravíssimos os danos causados à natureza pelo crescimento demográfico e pela
industrialização. Levando apenas em consideração o período compreendido entre
1950 e 1993, estima-se que o mundo perdeu aproximadamente um quinto de solo
arável em terras férteis, um quinto de suas florestas tropicais e algumas
dezenas de milhares de espécies vegetais e animais. Isso sem considerar a
contaminação das águas e do ar, responsável esta última pelo efeito estufa e
pela destruição da camada de ozônio. De novo salta aqui à vista a importância
do ensino básico e das comunicações no equacionamento dos problemas ambientais,
pois os danos ao ecossistema mundial são causados por todos, ricos e pobres, e
a inviabilização da vida sobre a Terra é um risco que afeta à Humanidade como
um todo. Consequentemente, a consciência da solidariedade planetária é a
condição prévia para qualquer política ecológica de longo alcance. Ora, essa
consciência é constituída, fundamentalmente, pela meditação filosófica e pela
aplicação das tecnologias de comunicação de massa aos processos educativos
formais e informais.
No que diz respeito à
problemática do Estado nacional [cf. Kennedy, 1993: 121], em que pese o fato de
os governos não possuírem hoje a força de que dispunham em séculos anteriores,
devido à crescente internacionalização da política e da economia, é necessário
reconhecer, contudo, que o Estado é ainda o mais importante instrumento com que
contam as nações para se prepararem a fim de enfrentar os reptos do novo
milênio. É evidente que se faz necessário, especialmente nos países do Terceiro
Mundo, racionalizar o papel do Estado e limitar o seu tamanho, reduzindo-o
àquilo que a iniciativa privada não puder resolver. Mas justamente no
cumprimento das suas funções essenciais, uma das quais é sem dúvida a
formulação de políticas de desenvolvimento levando em consideração a conjuntura
internacional, os Estados precisam hoje de um cabedal crescente de informações,
bem como de processos rápidos e eficazes de comunicação com os seus cidadãos,
com as agências e as instituições internacionais e com outros governos.
Ao analisarmos os paradoxos
do início de milênio, chegamos à seguinte conclusão: a comunicação entre os
homens em nível mundial, está na base da busca de soluções aos problemas que
enfrenta a humanidade. Esse caminho, aliás, não é novo. Já no século XVII, o
filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz, em face do paradoxo da atomização cultural
da Europa decorrente do abandono do latim como língua franca da cultura, bem
como das guerras de religião, da dessacralização do mundo efetivada pela
revolução científica e o surgimento das filosofias nacionais expressas em
línguas vernáculas, propunha uma linguagem universal que garantisse a
comunicação entre os homens.
Segundo Leibniz, há
discussões e desentendimentos porque a linguagem usa palavras equívocas, que
acobertam sob o mesmo vocábulo conceitos diversos e até contraditórios. O
caminho para superar esse impasse seria, para o filósofo alemão, a adoção de
uma linguagem matemática, que substituísse as inexatas expressões das línguas
vernáculas por símbolos algébricos. "Calculemos, a fim de que nos
entendamos", esse era o slogan que Leibniz divulgou na sua obra intitulada De
arte combinatória, que constitui a remota origem da lógica matemática. Esta disciplina foi
sistematizada, no início do século XX, por Bertrand Russell e Alfred North
Whitehead na obra Principia mathematica e constituiu, por sua vez, a base para a
elaboração, a partir dos anos 50, da lógica
dos circuitos ou lógica binária,
fundamento da memória artificial dos computadores. A lógica dos circuitos substituiu por impulsos elétricos os símbolos
algébricos propostos pela lógica
matemática.
Acontece hoje, graças à
telemática (ou informática utilizada nos meios de comunicação), o magnífico
fenômeno da integração mundial via redes, que permite ao homem de nossos dias
ampliar indefinidamente o horizonte da comunicação com os seus semelhantes,
tornando realidade em boa medida o ideal acalentado por Leibniz no século XVII.
Essa nova realidade constitui uma autêntica revolução nas comunicações e está
tendo insuspeitas conseqüências nos
terrenos do exercício do poder, da economia, da educação e, em geral, da
cultura contemporânea [cf. Dorneles e Carvalho, 1994]. Esse novo fato constitui
o cerne da terceira onda, que é
entendida pelo seu teorizador, Alvin Toffler [1995:16], como "a mudança na
relação entre conhecimento e economia".
A mais importante
manifestação dessa terceira onda é a
Internet, que tem sido objeto de análises recentes do ângulo de como essa
tecnologia está mudando os caminhos para os negócios [Verity e Hof, 1994:
38-44]. As origens da Internet situam-se em plena guerra fria. Em 1969 o
Pentágono, preocupado com uma possível "decapitação" do sistema de
telecomunicações nos Estados Unidos, criou o estratégico programa chamado de Arpanet, que vinculava via telemática
quatro laboratórios de pesquisa, dando ensejo a que dezenas de pesquisadores e
engenheiros trocassem informações básicas de segurança e testassem formas para
tornar essa rede mais ampla e eficaz. Diminuídas as tensões da guerra fria, o
sistema se alargou ao resto da sociedade americana e ao mundo, como forma de
correio eletrônico que se expandiu vertiginosamente. Em 1983 a rede interligava
um milhão de pessoas; em 1994 esse número pulou para 20 milhões e chegou a 300
milhões em 2000. No Brasil, os usuários da rede ultrapassam, hoje, os 100
milhões de internautas.
As possibilidades abertas
pela rede são infinitas, no que tange ao correio eletrônico, à participação em
grupos de discussão através de chats,
às compras em shoppings centers
virtuais, ao lazer, à pesquisa bibliográfica e documental, às trocas de
informações culturais e práticas, ao ensino e treinamento profissional, à
indústria do turismo, à prestação eficaz de serviços de saúde (através dos hospitais virtuais), à agilização dos
processos de avaliação acadêmica e de recursos humanos, etc. Até os
guerrilheiros das FARC divulgam as suas reivindicações via Internet. E abre-se
também a possibilidade para cometer crimes
virtuais no terreno do terrorismo, da pedofilia, da prostituição, da
chantagem e dos atentados contra o patrimônio e a privacidade das pessoas. Os hackers são considerados hoje, sem
exagero, os piratas do mundo virtual.
Nem os filósofos neoplatônicos,
que falavam de uma "alma do mundo" ou razão universal, nem Immanuel
Kant (que no século XVIII desenvolveu a idéia de eu transcendental para se referir à capacidade da razão de elaborar
conhecimentos universalmente válidos), [Cf. Kant, 1985] nem Georg Wilhelm Friedrich Hegel (que no
século XIX elaborou o conceito de espírito
absoluto para significar o mesmo fenômeno, destacando a sua natureza
histórica) imaginaram que a Humanidade chegaria tão perto da comunicação
planetária, no final do século XX. Não é casual que pensadores como Jürgen
Habermas [1989] tenham desenvolvido modelos de éticas dialógicas ou
comunicativas e que culturalistas como Antônio Paim [1977] falem em moral social consensual, justamente
chamando a atenção para o fato de o homem ser, fundamentalmente, um ser que se
comunica.
Conclusão:
Bases éticas e humanísticas da globalização.
Tenho destacado nos itens
anteriores, em primeiro lugar, de que forma a comunicação entre os homens está
na base do equacionamento dos grandes problemas que enfrentamos neste início de
milênio; em segundo lugar, tenho salientado a mais importante manifestação da terceira onda, o sistema Internet, que
constitui hoje fenômeno extraordinário de comunicação cibernética entre os
seres humanos. Foram destacadas, de outro lado, as exigências educacionais dos
novos sistemas comunicativos. Concluirei mostrando que sem o fundamento do
estudo das Humanidades, não saberemos incorporar plenamente esses recursos
tecnológicos.
Os processos cibernéticos (e
a telemática é um deles) pressupõem, além das máquinas programáveis (os
computadores, que constituem o hardware),
um elenco de informações programadas (ou software).
Ora, tanto umas quanto outras pressupõem a razão. É evidente que sem homens
pensantes os computadores viram sucata. Portanto, formar a razão das novas
gerações é garantir a continuidade da teleinformática, bem como a assimilação
dessa tecnologia por outras gerações.
Três grandes problemas
filosóficos coloca hoje a nova tecnologia da comunicação: a questão da verdade,
a do conhecimento a serviço do poder e a tradicional problemática da liberdade
em face da tecnologia. Apenas para mostrar a rica gama de questões levantadas,
do ângulo da filosofia, por esses problemas, aprofundemos um pouco em cada um
deles.
No que tange à problemática
da verdade, o mundo virtual tanto pode ser um caminho para o esclarecimento,
quanto para a falsidade. A nova tecnologia do ciberespaço é, como diria o velho Parmênides, uma dokounta, ou seja, uma faca de dois
gumes, que tanto pode servir ao homem para a sua libertação rumo à luz, quanto
para mantê-lo encadeado às sombras da ignorância. Quantos enganos cometem-se
diariamente em chats e homepages! Quantos falsos retratos de
seres humanos que oferecem (e buscam) carinho! Quanta informação fraudulenta é
repassada sem escrúpulo. Quanta falsidade é veiculada pela net! Diríamos que se multiplicou por milhões o risco de ser
enganado. Esse fato cria, para o homem contemporâneo, uma situação existencial
de desconfiança em face das informações que recebe, o que leva ao usuário da
rede a surfar com cuidado. Está
presente aqui o rico tema da Sorge
que o existencialismo heideggeriano tão pertinentemente desenvolveu, bem como a
velha questão da contraposição entre verdade (aletheia) e aparência (dóxa)
[cf. Heidegger, 1991: 119-135]. E nem falar dos vírus que os hackers, sem a menor consideração
derramam na Internet, com o ânimo anti-ético de omnes nocere ou de prejudicar, indiscriminadamente, a todos. De
novo aparece diante dos nossos olhos a velha questão que já tinha sido colocada
ao longo do século XX por pensadores os mais diversos, em relação à
neutralidade axiológica da tecnologia, carente, por isso mesmo, de um
fundamento ético. O compromisso com a busca da verdade deve ser a nossa
exigência moral básica ao utilizarmos a rede. O imperativo categórico da
transparência, tão bem definido por Kant na sua Paz perpétua [1989],
conserva plenamente a sua validez.
No que tange à problemática
do conhecimento a serviço do poder, a Internet apresenta-nos hoje um exemplo
concreto: a utilização de sofisticadíssimos mecanismos tecnológicos para
"sugar" da rede informações confidenciais que interessam às grandes
potências, passando por cima da legislação que garante a privacidade das
pessoas. É o que revelaram, nos anos 90 do século passado, as denúncias feitas
pela imprensa européia acerca da indiscriminada invasão, por parte dos
organismos de inteligência de alguns países ligados à Commonwealth (Estados Unidos, Grã Bretanha, Canadá, Austrália, Nova
Zelândia), das informações que circulam pela rede no mundo inteiro.
Efetivamente o projeto Echelon
conseguia clonar, mediante maciça utilização da tecnologia digital, qualquer
informação ligada a algumas palavras-chave, que revelariam temas de interesse
para a segurança dos países mencionados. Tratava-se de um projeto que visava a
utilizar sistematicamente os conhecimentos para finalidades de dominação. Mais
recentemente, a divulgação de dados pelo técnico americano Edward Snowden, ex-funcionário
da CIA e ex-contratado da NSA revelava um esforço do governo dos Estados Unidos,
no sentido de invadir domínios de dados, em vários países, com a finalidade de
garantir a segurança estratégica desse país.
Ora, esse fenômeno somente
poderia ser compreendido e analisado criticamente em profundidade, à luz da
milenária tradição filosófica ocidental. Não foi por outro motivo, senão para
desligar o conhecimento dos anseios de poder, que o velho filósofo Sócrates deu
a vida, ao criticar, sem meias palavras, o uso politicamente correto da
inteligência dos jovens, para manter estruturas de dominação na sociedade
ateniense. Esse foi o cerne da briga que contrapôs Sócrates aos seus colegas de
profissão, os sofistas, que pretendiam ensinar aos jovens com a finalidade
exclusiva de que mantivessem o seu status,
mediante os conhecimentos adquiridos. O exemplo socrático talvez fosse mais
construtivo do que a saída imaginada por Snowden, no sentido de que, divulgando
sem nenhuma intermediação os dados de que dispunha, conseguiria, num mundo
complexo como o atual, garantir a liberdade das pessoas.
Já no que diz relação ao
binômio liberdade/tecnologia, a questão aparece em primeiro plano, nos debates
travados entre os governos e os usuários da Internet, de um lado, e empresas
detentoras de tecnologia digital de ponta, de outro. O que se debate nesse caso
é até que ponto a tecnologia gerada por essas empresas não obriga o usuário da
mesma a ficar atrelado aos produtos que monopolisticamente lhe são oferecidos.
Clara discussão ética acerca da liberdade no contexto das relações econômicas,
bem como sobre a defesa dos interesses dos usuários e da sua representação
política. O que se deduz destes arrazoados é que sem uma base humanística
ampla, em que a reflexão filosófica sirva como alicerce fundante da razão, não
haverá a mínima possibilidade para uma utilização da tecnologia informática, na
Internet, de forma a preservar a liberdade e a dignidade das pessoas.
Durante muito tempo se
pensou no Brasil, ao abrigo da ideologia positivista, que o estudo das
matemáticas era suficiente para formar a razão dos jovens. No entanto, a
experiência de países com longa tradição de cultivo das ciências (como
Alemanha, França, Inglaterra ou Estados Unidos), deixou claro que a formação
humanística é básica para o desenvolvimento da razão do educando, pressupondo a
educação tecnológica essa base. Hegel, na sua primeira aula na Universidade de
Heidelberg, em 1816, dizia aos seus alunos que o pressuposto da filosofia (como
o de qualquer ciência) é a fé no valor do espírito humano. Eis as palavras com
que o mestre alemão descrevia aos seus discípulos a aventura do espírito,
franqueada a todos aqueles que cultivarem as Humanidades: "Espero que hei
de merecer e conquistar a confiança de todos. De início, só uma coisa exijo:
confiai na ciência e em vós mesmos. A coragem da verdade, a fé no poder do
espírito é a condição primordial da filosofia. O homem, por ser espírito, pode
e deve julgar-se digno de tudo quanto há de mais sublime. Da grandeza e do
poder do seu espírito nunca pode formar um conceito demasiado altivo, e animado
por esta fé não se negará a desvelar o seu segredo. A essência do universo, a
princípio oculta e encerrada, não dispõe de força capaz de resistir à tentativa
de quem pretenda conhecê-la; acaba sempre por se desvendar e patentear a sua
riqueza e profundidade, para que o homem dela desfrute" [Hegel, 1985:
318].
Referindo-se à importância
dos estudos humanísticos ou de história da cultura, o historiador francês
Pierre Vidal-Naquet [1992: 27] frisava que "é necessário enraizar os
jovens numa tradição, lhes dizer de onde viemos. Essa tradição, bem como o
sentido da distância temporal, constituem os dois pontos fundamentais".
Foi precisamente por ter-se perdido nas nossas instituições de ensino,
sobretudo nas Universidades, o contato dos jovens com a tradição humanística,
que o Brasil entrou na crise de identidade que hoje o afeta, conforme lembra
Antônio Paim [cf. 1983: 99 seg.].
Assistimos hoje ao fenômeno
da globalização econômica, política e cultural. Em escala continental, oferecem-se,
hoje, duas opções: a do MERCOSUL, cada vez mais atrelado ao Terceiro Mundo e
aos ideais ultrapassados e totalitários da “revolução bolivariana”, e a Aliança
do Pacífico, promovida pela Colômbia, o Chile, o Peru e o México, com a
finalidade de tender uma ponte entre os dois grandes polos do capitalismo
mundial, os Estados Unidos e a China e os países latino-americanos. Qual das
duas opções é a melhor para os brasileiros? Onde fica, nesse contexto de
integração continental e mundial, a questão da nacionalidade? Sobre quais
fundamentos de conhecimento deve ser dada resposta a essas questões? Elas,
certamente, deverão ser respondidas levando em consideração os interesses dos
cidadãos do nosso país, não apenas as preferências ideológicas de militantes
partidários.
O que fica claro no
horizonte é que sem uma visão humanística ampla, não haverá resposta satisfatória
a essas perguntas. Ela não é hoje problema de reserva de mercado ou de isolamento
cultural. Ela é, basicamente, conhecimento dos valores da cultura ocidental e,
no interior desta, dos valores que constituem o nosso modo peculiar de sentir e
de ser. Mesmo que o Brasil se integre em grandes blocos, ou justamente por isso
os brasileiros precisaremos, sempre, de termos consciência dos valores que nos
caracterizam. Os estudos de história da cultura ocidental, bem como dos nossos
valores, não são simples ornato intelectual, mas questão de sobrevivência como
nação.
O pior atentado que alguém
pode cometer hoje contra a soberania de um país é renunciar ao estudo das
humanidades e dos próprios valores, e fechar esse caminho às novas gerações.
Peter Drucker [1993: 211] destacou que o ideal básico da sociedade
pós-capitalista é o de pessoa formada
("the educated person"), que contrasta com o ideal cavalheiresco (das
sociedades antiga e medieval) e burguês (da sociedade industrial). A respeito,
escreve o notável educador norte-americano: "A sociedade pós-capitalista
ocupa-se com o conjunto de circunstâncias em que se desenvolve a vida humana,
bem como com o trabalho e a aprendizagem. Não se ocupa com a pessoa. Mas na sociedade
do conhecimento na qual nos movimentamos, os indivíduos são centrais. O
conhecimento não é impessoal, como a moeda. O conhecimento não reside num
livro, num banco de dados ou num programa de software; ele somente contém informações. O conhecimento sempre se
concretiza numa pessoa; é transportado, criado, aumentado ou improvisado por
uma pessoa; é aplicado por uma pessoa; é pensado e esquecido por uma pessoa;
usado ou colocado fora de uso por uma pessoa. A passagem à sociedade do
conhecimento coloca, portanto, a pessoa no centro. E unicamente fazendo isso é
como a pessoa formada propõe novos desafios, novos problemas, novas e
insuspeitas questões acerca do conhecimento da sociedade representativa".
"Em todas as sociedades
mais antigas -frisa ainda Drucker - a pessoa educada ou formada era um ornato.
(...) Mas na sociedade do conhecimento, a pessoa formada é o emblema da
sociedade; é o símbolo da sociedade; é a porta estandarte da sociedade. A
pessoa formada é o arquétipo social,
para usar a palavra dos sociólogos".
Três integrantes do Instituto de Humanidades. (Da esq. para direita): Arsênio Eduardo Corrêa, Antônio Paim e Leonardo Prota. (Tiradentes, MG., Setembro de 2009). |
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Quatro figuras da Filosofia Luso-brasileira contemporânea: (de esq. para direita): Antônio Paim, Leonardo Prota, Ricardo Vélez Rodríguez e José Esteves Pereira (Porto, Novembro de 2007). |
[1] Deve-se
reconhecer, com justiça, o fervor quase religioso dos Castilhistas na
administração dos dinheiros públicos.
[2] Como
frisa Simon Schwartzman, ao passo que a política é, para outros povos, um meio
de melhorar os negócios, para o brasileiro ainda é o grande negócio [cf.
Schwartzman, 1982].