Não há dúvida de que o saudoso Papa João Paulo II foi um eminente pensador do Humanismo Cristão. Alicerçado em fontes medievais, notadamente no pensamento de Santo Agostinho e de S. Tomás de Aquino, João Paulo II , antes de ser eleito Papa, destacou-se como um dos grandes pensadores da Escola de Cracóvia, tendo mantido estreito diálogo com o pensamento moderno, notadamente com a axiologia de Max Scheler. É o que pretendo mostrar na seguinte síntese, que reescrevi ao ensejo do convite que recebi para prefaciar obra do jurista Ives Gandra Martins. O texto inicial tinha sido escrito por mim para a Revista Communio.
A problemática da centralidade do homem na sociedade é questão
fundamental da filosofia cristã e se situa como porta de compreensão para os
problemas do mundo de hoje. No Brasil, embalados pelas notas outrora sedutoras
e hoje dissonantes do socialismo tupiniquim, os cidadãos perguntam-se,
perplexos, se ainda há espaço para a esperança. A chegada do Partido dos
Trabalhadores ao poder, apoiada irrestritamente pela ala denominada libertadora
da Igreja, acordou esperanças messiânicas no seio do povo. Mas, aos poucos, em
face dos sucessivos erros do governo, tanto no terreno das políticas públicas,
quanto no da governabilidade e do trato com os mais débeis da sociedade, velhos
e crianças, as pessoas se perguntam pelas perspectivas futuras.
Dois caminhos abrem-se, identificados com as alas em que se dividiu o
partido governante: a do burocratismo irresponsável, que faz vista grossa
diante da privatização do Estado pelos clãs e os partidos no poder, repetindo a
tendência secular do patrimonialismo, fato que levou o estudioso Raymundo Faoro
a afirmar que, no Brasil, o poder "tem donos", ou a do radicalismo
revolucionário da ala mais afoita, que ainda pretende fazer, a ferro e fogo, a
revolução comunista no Brasil, tendo como ponta de lança os “Movimentos
Sociais”, apoiados claramente pela Pastoral da Terra e o Conselho Indigenista
Missionário.
Ora, nem uma nem outra alternativas são alvissareiras, do ângulo do
humanismo cristão. Digamos, de antemão, que não duvidamos da validade de um
socialismo humanitário e democrático, de forte conteúdo moral, como o apregoado
na França pelo ex-premiê Leonel Jospin, (embora não compartilhemos as suas
teses, a começar pelo modelo econômico que hoje afunda na França sob o comando
do principal teórico, o presidente Hollande). Convenhamos, entretanto, que o
núcleo duro do PT, hoje na cúpula do Estado brasileiro, não parece apostar
nesta alternativa. Restam, portanto, as duas tendências mencionadas
anteriormente.
O que está em jogo nesta hora difícil é a questão da centralidade do
homem na sociedade. Ela é questionada, de um lado, na versão burocrática de
mais uma etapa do patrimonialismo brasileiro, que distribui generosamente
cargos e salários entre amigos e apaniguados, perdoando-os pelo nepotismo ou
pela apropriação indevida do seu, do meu, do nosso dinheiro. O burocratismo
orçamentívoro ainda está na ordem do dia, dando ministérios aos companheiros
que perderam feio nas eleições passadas e financiando com os dinheiros do
Tesouro gastos pessoais da burocracia graúda.
Não resta dúvida, por outro lado, de que a centralidade do homem na
sociedade é questionada também pela ala radical petista, que ainda sonha com
fazer a revolução comunista no Brasil. Um dos porta-vozes do radicalismo
petista no primeiro governo Lula, frei Beto, deixou claro o pano de fundo
totalitário em que se situa a pretensa "revolução socialista". Quando
da visita a Cuba, o assessor presidencial recusou-se a falar com o jornalista
que tinha sido preso por delito de opinião, embora a mulher deste tivesse
insistido num pedido de mediação humanitária. Muito menos quis se pronunciar,
de forma crítica, em face do covarde fuzilamento sumário de três jovens que
pretendiam fugir da Ilha (ao contrário do que fizeram, aliás, vários governos
de tendência socialista pelo mundo afora). Atitudes semelhantes às do frei
assessor teve o seu chefe máximo, o presidente Lula, que tentou negar até o fim
o crime do mensalão, como se este tivesse sido inventado pela imprensa
“burguesa”.
Em face dessas contradições, que só fazem pôr de relevo o questionamento,
pelo Partido que exerce o poder no Brasil, da centralidade do homem na
sociedade, nada mais importante do que lembrar os princípios da filosofia
cristã que colocam em alto essa verdade. Voltar-me-ei para as duas figuras
máximas da Filosofia Medieval: Santo Agostinho, precursor desta no século IV e
Santo Tomás de Aquino, o sistematizador da mesma no século XIII. Destacarei,
outrossim, o pensamento do saudoso Papa João Paulo II que, quando ainda era o
cardeal Wojtyla e lecionava filosofia na Universidade de Cracóvia, recolheu
essa rica tradição humanística, aproximando-a do pensamento moderno.
1) A
centralidade do homem na sociedade, segundo a filosofia cristã pensada por
Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, e retomada por Karol Wojtyla.
Destaquemos, de entrada, que a questão da centralidade do homem na
sociedade é fruto da civilização cristã ocidental, que incorporou duas tradições
fundantes: a judaico-cristã e a helenística. Enquanto a primeira firmou o ideal
de pessoa humana, a segunda alicerçou o ideal da racionalidade. A Filosofia
Medieval realizou a síntese entre as duas tradições. Encontramos as sementes da
concepção do humanismo cristão na literatura dos Santos Padres, notadamente em
Santo Agostinho. Certamente foi o mestre de Hipona quem realizou, pela primeira
vez, do ângulo filosófico, a síntese entre as tradições judaico-cristã e
helenística, superando o imanentismo em que sínteses anteriores tinham caído,
ensejando a denominada gnose. Vale a
pena que lembremos sumariamente os pontos centrais da concepção agostiniana,
pois deles emerge a tradição filosófica que coloca o homem como centro do
universo político, na bela síntese da filosofia cristã desenvolvida pelos
pensadores do século XIII.
A busca das condições em que se dá o conhecimento conduz o doutor de
Hipona à descoberta do fundamento do saber na certeza interior da consciência.
No seu esforço para superar o ceticismo, Santo Agostinho encontra um caminho de
pensamento que antecipa a modernidade, comparável ao que Descartes seguirá mais
tarde. Eu posso equivocar-me acerca das coisas fora de mim. Mas, enquanto
duvido, sou consciente de mim mesmo enquanto duvidante. A certeza da minha existência é pressuposta
em todo julgamento e em todo erro: "Se
enim fallor, sum". Destarte, a via em direção ao fundamento da certeza
conduz à interioridade. A respeito, escreve o doutor da Igreja: "Noli foras ire, in te ipsum redi, in interiore
homine habitat veritas". O homem, ao procurar a verdade, envolve-se
num movimento que o conduz sempre mais profundamente ao interior de si mesmo e
que constitui a ascensão ao amor de Deus. Esse movimento leva do mundo exterior
sensível (foris) ao mundo interior do
espírito humano (intus), e daí ao
mais íntimo do coração (intimum cordis).
Tudo se dirige "a Deus como fundamento original da verdade em si
mesma".
É no seu próprio interior que o homem encontra certas verdades
necessárias e seguras, válidas independentemente do tempo e supraindividuais
(por exemplo, os fundamentos da matemática e o princípio de não contradição).
Essas verdades não provêm da experiência sensível, pois a sua análise mostra,
pelo contrário, que elas pressupõem já idéias determinadas e que não podem se
tornar presentes sem uma participação intelectual. Isso vale, por exemplo, para
as idéias de Unidade e de Igualdade, que não encontramos de início na
experiência sensível. Igualmente, a impressão sensível, efêmera, não é capaz de
nos fornecer nenhum conceito acerca das coisas. É unicamente quando podemos
conservar as imagens dessas impressões na memória, juntá-las e compará-las,
como nós conseguimos chegar a uma certa claridade quanto à natureza das coisas
sensíveis. Genialmente o bispo de Hipona antecipa a concepção kantiana da razão
como "faculdade ordenadora do real", que realiza a intelecção do
fenômeno mediante o juízo sintético a priori, possibilitado pelas categorias
puras do entendimento. Postula o Padre da Igreja uma dimensão subjetiva,
estruturada a priori, não redutível, portanto, ao mundo da experiência.
De que forma, independentemente da experiência sensível, chegamos ao
domínio das Idéias? A essa questão Santo Agostinho responde com a teoria da
Iluminação. A respeito, frisa: "As
verdades eternas nos são dadas graças à Iluminação de Deus. Essa ação de
Iluminação é comparável à da luz do sol. A força do espírito corresponde aos
olhos, os objetos do conhecimento às coisas iluminadas e a força da verdade ao
sol".
O doutor da Igreja utiliza, aqui, uma imagem tomada de empréstimo à
tradição neoplatônica da metafísica da luz. As Idéias são os arquétipos de todo
ser no espírito de Deus. O mundo criado é a realização e o reflexo desses
arquétipos. Deus cria o mundo a partir do nada. Isso significa que, antes da
criação, não havia nem matéria nem tempo. O tempo só aparece com a criação e
Deus encontra-se, assim, fora do tempo. Nos perguntarmos pela data da criação
do mundo é um absurdo.
Os elementos que constituem o mundo são a matéria, o tempo e a forma (que são as Idéias eternas). Deus
criou, ao mesmo tempo, uma parte dos seres na sua forma completa (anjos, almas,
astros). Quanto à outra parte das criaturas, ela é submetida à mudança (por
exemplo, os corpos dos seres vivos). Para explicar isso, Santo Agostinho
vale-se da teoria das rationes seminales.
Esses germes originais são implantados por Deus na matéria e a partir deles
desenvolvem-se os seres vivos. É assim como se pode compreender o processo de
desenvolvimento do cosmo, sem ter de levar em consideração outras causas
diferentes da absoluta força criadora de Deus. Não há dúvida de que o
mestre de Hipona deitava aqui os alicerces para uma concepção da evolução, que
não fosse incompatível com o conceito cristão de criação.
É conhecida a análise do tempo
efetivada por Santo Agostinho no livro 11º das Confissões. Essa análise não fica
restrita apenas à descrição da faculdade da consciência (memória), constitutiva
da experiência do tempo. O Padre da Igreja examina radicalmente a constituição
fundamental do ser do homem, como sendo uma essência temporal em face da
eternidade da verdade. Santo Agostinho muda radicalmente a antiga concepção do
tempo ligado ao kosmos grego,
dando-lhe a dimensão de uma consciência do tempo, interna e subjetiva. (Ancorará posteriormente aqui a teoria
kantiana do esquematismo, com que o
mestre de Königsberg tentou explicar, na sua Crítica da Razão Pura, a maneira como a razão entra em contato
com os dados da experiência, organizando os dados provenientes da sensação,
mediante as formas a priori da sensibilidade).
Segundo Santo Agostinho, se considerarmos o tempo como algo dado
objetivamente, ele se decompõe em momentos diferentes. Pois o passado já não é
mais, o futuro ainda não é e o presente reduz-se ao instante de passagem do
passado ao futuro. Temos, portanto, uma consciência da duração, uma experiência
do tempo e dispomos de uma medida deste. Isso só é possível se a consciência
humana possui a faculdade de conservar na memória, enquanto imagens, os traços
que deixa, depois dela, a impressão sensível passageira, produzindo, assim, a
duração.
A originalidade de santo Agostinho consiste em ter transformado a visão
platônica do tempo, definido como queda, numa justificação do tempo como espaço
de criação e de santificação, na qual a existência pode se salvar, pois ela
vincula-se à essência divina que a criou, tirando-a do nada, o nada sempre
ameaçador que nos puxa em direção a ele. O Ser nos tira do nada e nos incita a
ser, a nos livrarmos do mal ensejado pelo fluxo do tempo. A experiência de uma
temporalidade própria orienta o homem em direção ao não perecível. O espírito
conquista a serenidade se voltando para a verdade eterna, como frisa santo
Agostinho, "não disperso através de uma multiplicidade sempre em
movimento, mas unificado na antecipação do porvir". Na medida em que o
espírito se volta para o Deus eterno, do qual provém todo ser, o homem
"participa da sua eternidade". O homem, para Agostinho, "é uma
substância feita de corpo e alma e dotada de entendimento". A alma, no
composto humano, tem a preeminência. O homem interior se manifesta como unidade
de uma trindade: ou seja, consciência (memoria),
entendimento (intelligentia) e
vontade (voluntas). O homem é, assim,
imagem da Trindade divina.
Fiel à concepção agostiniana atrás descrita, Santo Tomás de Aquino parte,
no que tange à antropologia filosófica, da constatação de um fato revelado: o
homem foi criado por Deus à sua imagem e semelhança. A propósito, o Doutor Angélico frisa na Suma Teológica: "É evidente que
no homem há uma semelhança com Deus e que dele procede como exemplar, e que não
é semelhança de igualdade, já que o exemplar é infinitamente superior ao
exemplado. Há, pois, no homem uma imagem de Deus, não perfeita, contudo, mas
imperfeita. E isto dá a entender a Sagrada Escritura quando diz que o homem é
feito à imagem de Deus, porque a
preposição à indica aproximação, que
só é possível entre duas coisas distantes" [Aquino, 1959:
568]. Santo Tomás dá continuidade, aqui, à tradição firmada a partir de
Agostinho, para quem "o ser humano que, pela sua interioridade (secundum interiorem hominem) pode
participar da divina sabedoria, é também interiormente, no que de melhor tem,
imagem da Trindade divina; a sua mente a exprime num triplo aspecto que nos
revela, ao mesmo tempo, a íntima estrutura anímica e a sua ordenação essencial
à divindade pelo caminho do amor" [apud Ubeda-Purkiss, 1959: 12/13].
Se bem é certo que Santo Tomás, ao formular o seu princípio
antropológico-teológico de que o homem foi criado à imagem e semelhança de
Deus, recolhe a tradição judaico-cristã já formulada em termos filosóficos por
Santo Agostinho, no entanto corrige o extremado neoplatonismo do doutor de
Hipona, que o levou a enfatizar demais o papel da alma, com o quase
esquecimento do corpo. O pensador italiano destaca a existência de um cosmo
objetivo, do qual o homem faz parte. Ele é, antes de tudo, um ente finito.
Enquanto tal, forma parte da ordem da natureza, ao mesmo tempo em que é o
coroamento dela. O homem está em estreita vinculação com os demais seres,
mediante um tipo de relação que, embora brotando de sua essência, não o
constitui, contudo, ontologicamente. Essa ordem natural, para Santo Tomás,
ganha plenitude quando aberta à transcendência de Deus, Ser situado fora do
cosmo e criador dele. Emerge aqui, no pensamento tomista, o sentido teleológico
do universo.
O homem é centro da criação, pelo fato de ter sido criado à imagem e
semelhança de Deus. Embora toda criatura seja uma participação de Deus e
possamos achar nela "tantas semelhanças com o ser divino quantas são as
perfeições que nela se encontram" [Aquino, 1959: 563], no entanto somente
no homem (e nos anjos) há uma semelhança de espécie com Deus, porquanto são
possuidores de natureza espiritual, que é causada pelo mesmo Deus. Esta
dignidade abarca, sem distinções, todos os seres humanos. "Tanto no homem
quanto na mulher - frisa o Doutor Angélico - encontra-se a imagem de Deus, no
essencial a mesma, ou seja, quanto à natureza intelectual" [Aquino, 1959:
575]. Graças à sua natureza intelectual, o homem pode humanizar a natureza,
mediante o conhecimento dela e colocando-a ao seu serviço. O homem, graças à
sua inteligência, pode compreender o mundo e construir uma ampla gama de
relações que integram o que modernamente chamamos de cultura.
Ubeda-Purkiss destacou nestes termos a grandeza humana, decorrente da
natureza intelectual segundo a concepção tomista: "Quando esse indivíduo é
racional, ou seja, quando se trata da pessoa humana, surge uma nova ordem de
relações: inicialmente, a ordem que ele é capaz de contemplar - não de produzir
- na natureza; e logo, a que pode
estabelecer, quer no seu próprio ato de conhecimento, resultado dessa
contemplação, quer nas suas operações exteriores; quer, finalmente, nas obras
da sua vontade. Desse modo, abrem-se lhe novos âmbitos surpreendentes: o da
ciência, o da arte, o da cultura, o da moralidade... Consequentemente,
constitui-se num gênero muito especial de vinculação aos demais seres, que
torna possível, por exemplo, a
consideração da sua comunidade com os outros homens com todas as perspectivas
sociais, políticas, etc. que isso implica; ou a da sua dependência em relação a
Deus, que explica o fato universal e profundamente humano da religião. Tudo
isso coloca-nos perante umas dimensões da atividade humana profundamente
enraizadas no seu mesmo ser, que oferecem horizontes luminosos a uma autêntica
ciência antropológica" [Ubeda-Purkiss, 1959: 19].
A definitiva contribuição de Santo Tomás de Aquino à filosofia medieval
reside, basicamente, na formulação da idéia metafísica de pessoa humana, que é
definida - na trilha aberta por Boécio ao tratar do suppositum - como "rationalis
naturae individua substantia" (substância individual de natureza
racional) [cf. Vélez, 1963b]. A pessoa, para Santo Tomás de Aquino, é imagem da
Trindade e reveste-se de um caráter absoluto, na medida em que é capaz de
chegar, pela inteligência, ao conhecimento de Deus e, pela graça, à clara visão
d'Ele. Ubeda-Purkiss sintetizou este aspecto central da meditação tomista
assim: "Essa imagem da Trindade é, em nós, objeto de contínuo
aperfeiçoamento nas diferentes etapas da vida espiritual, segundo os
ensinamentos de São Paulo, até culminar na glória com a clara visão de Deus, na
qual seremos conformados com a imagem do Filho (Rom. 8, 29). Com muita razão
dizia, pois, Santo Tomás que o homem, intensiva e coletivamente, é mais perfeito
que todo o universo já que dentro de si encerra tão divino tesouro, que o torna
capaz de (chegar) ao mesmo Deus" [Ubeda-Purkiss, 1959: 566].
Formulada no contexto teológico-filosófico da Suma Teológica, a idéia de pessoa
humana tornou-se, a partir da meditação de Santo Tomás de Aquino, o centro
da filosofia ocidental. Essa idéia evoluirá, indubitavelmente, na filosofia
posterior, adotando a concepção renascentista de virtù, retomando a tradição agostiniana do homem interior na filosofia escocesa do senso comum e na meditação
de humanistas doutrinários como Madame de Staël, Benjamin Constant de Rebecque
ou Pierre-Paul Royer-Collard, bitolando-se dolorosamente como ratio desligada do mundo e da
corporeidade na metafísica dualística cartesiana, renascendo com visos de
modernidade nas metafísicas espiritualistas de Francisco Suárez e de Gottfried
Wilhelm Leibniz, até desabrochar como alicerce último do imperativo moral, já
desligada da bagagem teológica que lhe serviu de sustentáculo inicialmente, na
concepção transcendental kantiana, que colocaria definitivamente o legado
metafísico medieval na trilha da modernidade, no imperativo categórico que
serve de embasamento moral à cultura ocidental: "Age de tal modo que
trates a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro,
sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca somente como um meio" [Kant,
1973: 84].
O pensamento do filósofo polonês Karol Wojtyla, que se tornou em 1978 o
Sumo Pontífice João Paulo II responde, neste início de milênio, à mais grave
questão colocada pelo homem contemporâneo: qual o sentido da sua existência e
da sua ação? O pensador retoma a tradição medieval iniciada no final do século
IV por Santo Agostinho e sistematizada por Santo Tomás de Aquino no século
XIII. Mas Karol Wojtyla, profundo conhecedor dos sistemas filosóficos modernos
e contemporâneos, não duvida em colocar essa tradição antropológica do
humanismo cristão, em diálogo com os pensadores dos últimos tempos, a fim de, à
luz dessa síntese, pensar os problemas do homem hodierno. Como salientou com
propriedade Rocco Butiglione, uma das caraterísticas marcantes da modernidade
consiste em ter respondido à questão fundamental do sentido do homem, levando
em consideração o seu agir [cf. Butiglione, 1984]. Esse fato permitiu à
filosofia ocidental superar o contexto de uma visão estática do mundo e do
homem, em que ainda mergulham alguns universos culturais, como o islâmico, por
exemplo. Se o pensamento moderno ensejou a reflexão sobre o sentido do ser do
homem abarcando a sua ação, no entanto, quando absolutizada a perspectiva
humana, abrir-se-ia caminho a concepções de cunho imanentista, em que o agir do
homem fecha as portas à transcendência. Tal é o impasse ensejado, no seio da
modernidade, pela aparição do messianismo político, formulado no início do
século XIX por Henri-Claude de Saint-Simon.
O marxismo, herdeiro direto da perspectiva messiânico-política de
Saint-Simon, saberia muito bem formular a perspectiva soteriológica,
horizontalizando os elementos da mensagem salvadora judaico-cristã. De outro
lado, a cultura ibérica, fortemente carregada de profetismo originário da
tripla vertente: cristã, hebraica e muçulmana que a alimentou ao longo da Idade
Média, veria surgir a modernidade sobre o pano de fundo da preocupação salvadora.
Isso explica, entre outras coisas, a grande acolhida que tiveram, na Espanha e
em Portugal, pensadores como Baruch Espinosa ou Gottfried Wilhelm Leibniz, que
tematizaram a problemática humana à luz de uma perspectiva soteriológica, de
cunho panenteísta, no primeiro, de tipo espiritual e providencialista, no
segundo. Reveladora, aliás, da proximidade existente entre o pensamento desses
autores e a cultura ibérica, é a simpatia que ambos tiveram em face de
pensadores como Suárez, Fonseca ou Molina.
No contexto soteriológico em que vingaram as culturas ibéricas, nasceu e
se desenvolveu a nossa identidade ibero-americana. Em que pese o fato de tal
herança não se ter explicitado ainda de maneira sistemática no nível da
tradição filosófica, no caso brasileiro, a perspectiva messiânica permaneceria
viva no sentimento sebastianista que anima a cultura popular. Um episódio como
Canudos, centrado ao redor da carismática figura de Antônio Conselheiro, revela
a tremenda força que se esconde por trás dessa herança cultural. Não estranha,
assim, que seja precisamente no meio latino-americano onde se formulou e se
sistematizou essa vertente do messianismo político marxista, identificada com a
teologia da libertação. Sem pretender aqui uma análise completa do mencionado
fenômeno, salientemos apenas aquilo que do ponto de vista de uma filosofia da
ação decorre dos seus pressupostos.
Ao ter sido identificada a luta revolucionária dos oprimidos contra os
opressores como o lugar teológico em que se dá a revelação e em que acontece a
salvação, ocorre, no interior da versão radical da teologia da libertação, a
identificação da perspectiva soteriológica com a perspectiva política.
Encontramos aí uma dupla redução: do agir humano ao agir político e da fé à
perspectiva revolucionária. Tudo se reduz, no contexto desse imanentismo, à
luta de classes. O agir do homem se explica e se justifica pela versão radical
do mesmo, na perspectiva revolucionária. E como no seio desta as formas
violentas consagram a eficácia, tal imanentismo enseja o culto à violência
totalitária. Encontramo-nos, pois, diante de uma ideologia que enaltece a
violência como a forma mais humana de ação sem que existam critérios a partir
dos quais se possa julgar acerca da sua validade ética. Ou melhor: o modelo
ético escolhido é o totalitário, segundo o qual o agir moral não é questão de
meios, mas de fins. Os fins justificam os meios.
A ação revolucionária possui, de
per se, racionalidade. É aí que o pensamento de Karol Wojtyla sobre o agir
do homem constitui resposta clara à problemática ensejada pela teologia da
libertação, no seio da cultura latino-americana. O agir humano, para Wojtyla,
não pode ser explicado num contexto imanentista em que o homem e seus atos
sejam absolutizados. Só numa perspectiva transcendente pode encontrar adequada
fundamentação o agir do homem. É o que o
pensador polonês frisa na sua obra intitulada Max Scheler e a ética cristã: "Ao analisar as fontes
reveladas da ética cristã, vemos que os valores éticos estão subordinados,
nelas, à relação religiosa da pessoa humana com Deus. (...). Segundo a doutrina
revelada, os valores morais objetivos estão em relação real com Deus, como bem
supremo na ordem ética, como perfeição suprema. E essa relação real não é
puramente estática; é uma relação dinâmica, porque o bem e o mal possuem um
caráter prático e são realizados pelo homem mediante a sua ação. Em segundo
lugar, mediante o bem (e, respectivamente, mediante o mal) moral de seus
próprios atos, o homem entra em relação não com alguma abstrata altíssima perfeição ética, mas com o
Deus pessoal, que é eticamente perfeito no mais alto grau" [Wojtyla, 1982:
176-177].
Se na visão da ética cristã os valores morais estão intimamente ligados
aos religiosos, isso não significa, no entanto, que se trate de uma ética que
Max Scheler chamaria de bens e de fins, segundo a qual os valores éticos descem
ao nível de meios para se atingir um fim imposto desde fora. Uma ética dessa
natureza seria, a nosso ver, a ensejada pela teologia da libertação, que
coloca, de forma positivista, o valor político da luta revolucionária como meta
definitiva do agir humano, e acomoda a esse fim o sistema de valores morais.
Na ética cristã, segundo o pensamento de Wojtyla, não acontece isso. Apesar
de sua conotação religiosa, o sistema de valores morais conserva o seu valor
absoluto, porquanto referido à pessoa humana. A respeito, frisa Karol Wojtyla:
"Se o bem moral fundamenta a relação positiva (do homem) com Deus e o mal
a sua relação negativa, é o homem quem realiza tanto o bem quanto o mal e, por
isso, o homem, mediante o valor moral de seus atos, cria a sua relação positiva
ou negativa com Deus. Destarte, pois, os valores morais adquirem um caráter
religioso. Posto que estes fundamentam a relação positiva ou negativa do homem
com Deus, temos base suficiente para lhes atribuir tal caráter religioso"
[Wojtyla, 1982: 178].
Na tentativa de pensar essa abertura dos valores morais à dimensão
religiosa, Karol Wojtyla busca um sistema que "nos permita objetivar a
relação causal da pessoa em face dos valores morais" [Wojtyla, 1982: 179].
Descarta o sistema de Scheler, que por ser "fenomenológico e emocionalista
nas suas premissas (...) não nos permite (...) objetivar a relação causal da pessoa
em face ao bem e ao mal moral" [Wojtyla, 1982: 179]. No entanto, valoriza
esse sistema na medida em que permite a aproximação e a completa descrição da
experiência humana, que constituiria o ponto de partida para a reflexão
metafísica.
Na ulterior discussão acerca dos fundamentos últimos do agir humano, o
pensamento de Karol Wojtyla se volta, entretanto, para a metafísica tomista,
que a partir da definição de pessoa como "rationalis naturae individua substantia", faz ênfase no
caráter causal-eficiente da pessoa em relação aos seus atos. O nosso autor se
situaria, assim, como bem nota Rocco Butiglione, no plano "da renovação da
antropologia tomista tradicional através do encontro com a fenomenologia".
Desta rápida incursão no pensamento de Karol Wojtyla acerca do homem,
fica claro o seu papel central no mundo e na sociedade. O homem, por ser
pessoa, pertence a uma dimensão transcendente que lhe confere um valor
absoluto. Immanuel Kant traduziu racionalmente, com propriedade, a natural
decorrência desse princípio do humanismo cristão, no conhecido imperativo
categórico: "Trata sempre a pessoa humana como fim e nunca como
meio". Por ser aberto à transcendência e filho de Deus, ninguém pode
utilizar o ser humano como se fosse um instrumento. Por ser pessoa, o homem tem
um valor absoluto, que o coloca por cima dos regimes e dos sistemas econômicos.
Não é demais recordar que não teríamos hoje sedimentado esses princípios no
interior da civilização ocidental, se a filosofia cristã de Santo Agostinho e
de Santo Tomás não tivessem explicitado todas as implicações filosóficas do
princípio teológico do homem como filho de Deus. Como lembra com propriedade
Jacques Maritain, "Considerando o Humanismo ocidental nas suas formas
contemporâneas aparentemente mais emancipadas de toda metafísica da
transcendência, salta à vista que se nele subsiste um resto de concepção comum
da dignidade humana, da liberdade, dos valores desinteressados, é a herança de
idéias antigamente cristãs e de sentimentos antes cristãos, hoje secularizados"
[Maritain, 1955: 17].
2) Estado,
comunidades e subsidiariedade, à luz da filosofia cristã.
O pensamento político da modernidade, conforme revela a filosofia do mais
importante teórico do liberalismo, John Locke, ancora firmemente em fontes
medievais, a julgar pela influência que a obra de Richard Hooker intitulada The Laws of Ecclesiastical Polity
(de 1597) teve nele, especificamente no que tange à idéia de controle moral ao
poder por parte da comunidade política. Afinal de contas, a idéia da
tripartição de poderes públicos que se policiam e se contrapõem, já estava
presente no seio do pensamento medieval, na tríade que constituiu a essência
das forças sociais na Europa feudal:
Sacerdotium, Imperium, Studium. De outro lado, a idéia do "bem
comum" como norte da organização política, foi destacada nas grandes
sínteses do século XIII, das quais emerge uma concepção de dever ser da política, e pode-se resumir na definição medieval, que
reza assim: "Administração desinteressada da res publica para o bem comum".
A esta concepção contrapor-se-ia a definição, ditada pela Realpolitik renascentista, cunhada por
Maquiavel: a política é a "Luta pelo poder e pela distribuição dos seus
benefícios, entre Estados ou no interior de um Estado". Max Weber destacou
que não se trataria de elegermos hoje entre uma e outra. O sociólogo alemão
considera que ambas as noções são complementares: só pode aspirar à política
como dever ser, quem tiver entrado pela porta estreita da luta pelo poder. O
verdadeiro político, achava Weber, não seria aquele que, inspirado na ética de
convicção, mandasse às favas o poder e tudo aquilo que com ele pudesse fazer
para melhorar as condições de existência da sua comunidade. O estadista seria
aquele que, inspirado na ética de responsabilidade e tendo conquistado o poder
na luta das urnas, não ficasse na simples distribuição de benesses entre amigos
e apaniguados, mas pensasse e agisse com a finalidade de beneficiar a
comunidade que o elegeu [cf. Weber, 1972].
A questão do Estado, hoje, continua, a meu ver, ligada à problemática da
sua legitimidade, ou melhor, da legitimidade do exercício da força, já que o
Estado, como frisa Weber, define-se pelo uso da mesma, por parte de uma
comunidade, num determinado território. Dentre as modalidades de legitimação apresentadas
por Weber (carismática, tradicional e racional), a última é a que parece ser
mais consentânea com o amadurecimento das sociedades humanas. Nesta forma de
legitimação, torna-se aceita a dominação de quem exerce o poder, mediante o
consenso da comunidade expresso nas urnas. Toda a questão da legitimidade
estaria, portanto, estreitamente vinculada à forma como vai ser processada a
consulta à sociedade e à maneira em que a mesma participa da tomada de
decisões, daquilo que diz respeito ao bem-estar coletivo. Diríamos que a
questão da representação tem ainda plena validade, porquanto nas sociedades
modernas, multitudinárias, torna-se inviável a prática exclusiva da democracia
direta. Que ambas complementam-se, deixou-o claro a experiência americana, estudada
detalhadamente por Tocqueville no seu clássico A Democracia na América.
Um problema coloca hoje o exercício do poder por parte de grandes
comunidades alheias à tradição liberal da representação e da participação na
gestão do que é de todos. Antes mesmo de que a representação seja construída, é
simplesmente banida como "representação burguesa", sendo apregoadas
formas primitivas de democracia direta que, no sentir dos detratores daquela,
constituiriam a melhor forma de exercício do poder. Esse tipo de crítica é
muito comum no Brasil de hoje, com demagogos de esquerda repetindo aos quatro
ventos que o melhor sistema de governo é o da assembleia ampla, geral e
irrestrita, uma espécie de populismo de praça pública. Exemplos não faltam,
desde as multitudinárias manifestações convocadas por Fidel Castro na Praça da
Revolução em Havana, até os comícios-arruaças protagonizados pelo mais novo
rebento do rousseaunianismo caboclo, o finado coronel Chaves, na Venezuela e o
seu sucessor, Maduro.
É bom lembrar o que já transitou em julgado no laboratório da história. A
propósito da validade hodierna do sistema representativo, escrevemos no Curso de Introdução à Ciência Política,
patrocinado pelo Instituto de Humanidades: "A democratização do sufrágio
representou o grande desafio enfrentado pelo sistema representativo ao longo do
século XX e ainda corresponde à questão nuclear para países como o Brasil, onde
não se conseguiu consolidar as instituições daquele sistema. A generalização do
sufrágio permitiu que chegassem ao poder, pelo voto, inimigos declarados do
sistema representativo, valendo-se da oportunidade para destrui-lo. O Partido
Nacional Socialista, na Alemanha, tornou-se o exemplo paradigmático. Semelhante
resultado não poderia deixar de enfraquecer as convicções dos próprios
liberais, surgindo em seu seio uma tendência nítida, representada pela chamada
Escola Austríaca, de encontrar-lhe uma alternativa. Por outro lado, os
socialistas popularizavam a crença de que a riqueza provinha exclusivamente do
trabalho realizado pelos operários, sendo a propriedade capitalista um roubo,
como diria Proudhon. Análises aparentemente sofisticadas seriam produzidas
pelos marxistas, em favor da mesma simplificação. Bastaria eliminar a figura do
capitalismo e a prosperidade passaria a ser fenômeno geral. Tratava-se
evidentemente de uma balela, mas alguns contextos culturais revelaram-se
extremadamente receptivos a esse tipo de promessa irresponsável. Na Rússia,
foram necessários sete decênios para que a elite comunista dirigente reconhecesse
a falência daquele princípio diante da evidência empírica de que, ao invés da
prosperidade geral prometida, de sua aplicação resultava que o país estivesse
cada vez mais pobre" [Paim, Prota, Vélez, 2002: II, 107].
Não restam dúvidas quanto à validade hodierna do sistema representativo.
Tornar-se-ia necessário, contudo, aprimorá-lo, a fim de que os representantes
do povo realmente representassem as comunidades que os elegeram. Para isso,
considero que ainda é a melhor solução a adoção do voto distrital, aliada a uma
legislação partidária que impeça o carnaval de alianças de legenda que deforma
as propostas políticas das agremiações partidárias. Em síntese, seria
necessária uma reforma política, pensada não do ponto de vista de como
perpetuar um Partido no poder, mas levando em consideração fundamentalmente os
interesses da Nação, que não se sente representada de forma adequada com as
atuais instituições. A democracia direta tem valor, quando centrada na defesa
dos interesses dos cidadãos e não exclui a representação. Praticada de outra
forma, torna-se truculência política que visa a colocar os militantes
sobranceiros à população que dizem representar. Críticas do ângulo liberal à democracia direta já foram feitas
sobejamente, tendo sido bem fundamentadas. Limito-me a citar as análises
desenvolvidas pelo Círculo de Estudos do Liberalismo no Rio de Janeiro, que sob
a coordenação do prof. Ubiratan Macedo se debruçou, há mais de dez anos, sobre
essa problemática [Cf. Macedo, 2000 e 2002].
Resta-nos por discutir a questão da subsidiariedade. Recordo a doutrina
social da Igreja a respeito, herdeira da riquíssima tradição medieval que
lembrei na primeira parte desta introdução. O Estado deve intervir somente
naquelas coisas que não podem ser efetivadas pelos cidadãos, através das suas
associações civis. Sábio princípio de higiene política que certamente é contra
a abusiva intervenção do Leviatã legiferante e ameaçador em todos os campos da
vida social, como é, infelizmente, ainda, a nossa tradição, herdada do
patrimonialismo ibérico. Define-se pelos detentores do poder como bem público,
aquilo que eles acham que favorece o fortalecimento do Estado. Bem público,
segundo a mais elementar tradição do humanismo cristão, não é senão o bonum commune, que no jargão liberal
conhecemos com o nome de interesse geral.
Nem mais, nem menos.
Termino citando um clássico trecho de Benjamin Constant de Rebecque, em
que o pensador suíço destaca os elementos fundamentais que devem ser contidos
sob o termo interesse geral, destacando,
de outro lado, que somente a negociação entre os representantes dos cidadãos é
que pode decidir o que é melhor para eles, sendo que quando se perde o nexo
entre representantes e representados, estes passam a se representar a si
próprios e a identificar como bem da Nação aquilo que os beneficia
particularmente. Escreve a propósito o mencionado pensador: "O que é o
interesse geral, senão a transação que se efetiva entre os interesses
particulares? O que é a representação geral, senão a representação de todos os
interesses parciais que devem transigir no que lhes é comum? O interesse geral
é diferente, sem dúvida, dos interesses particulares, mas não lhes é contrário.
Fala-se sempre como se um ganhasse aquilo que os outros perdem. O geral não é
senão o resultado desses interesses combinados. Difere deles como um corpo
difere das suas partes. Os interesses individuais são os que afetam mais aos
indivíduos. Os interesses dos distritos são os que afetam mais a estes. Ora,
são os indivíduos e os distritos os que compõem o corpo político. São,
consequentemente, os interesses desses indivíduos e desses distritos os que
devem ser protegidos. Ao protegê-los a todos, suprimir-se-á de cada um deles o
que prejudica aos demais, disso resultando o verdadeiro interesse público, que
coincide com os interesses individuais, pelo fato de que lhes foi retirado o
poder de se prejudicarem mutuamente. Cem deputados nomeados por cem distritos
de um Estado levam ao seio da assembleia os interesses particulares, as
preocupações locais dos seus representados. Essa base lhes é útil: forçados a
deliberarem juntos, cedo percebem quais são os sacrifícios respectivos que são
indispensáveis. Esforçam-se para diminuir a extensão deles, e nisso reside uma
das maiores vantagens da forma de sua designação. A necessidade acaba sempre
por uni-los numa transação comum, e quanto mais fragmentadas tiverem sido as
eleições, a representação consegue um caráter mais geral. Se se inverter a
gradação natural, se se colocar o corpo eleitoral no cume do edifício, os
nomeados por ele deverão se pronunciar acerca de um interesse público cujos
elementos desconhecem. Encomenda-se lhes conciliar interesses cujas
necessidades ignoram ou menosprezam. Convém que o representante de um distrito
atue como órgão do mesmo, que não abra mão de nenhum de seus direitos, reais ou
imaginários, senão depois de tê-los defendido; que seja parcial na defesa dos
interesses de que é mandatário, porque se cada um for parcial nessa defesa, a
parcialidade de cada um, unida e conciliada, terá as vantagens da parcialidade
de todos" [Constant, 1970: 46-47].
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É bom relembrar para não esquecer.
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