Alguns amigos leitores do meu blog têm protestado porque publiquei, em primeira mão, há semanas atrás, a minha versão, em espanhol, de "Dez anos de lulopetismo". Fi-lo para leitores hispano-americanos que estavam interessados em conhecer um balanço sobre os dez anos do PT no poder. Em função disso, escrevi um comentário com detalhes sobejamente conhecidos da opinião pública brasileira, mas que não são de domínio público entre os nossos vizinhos de fala espanhola. Ofereço aqui, aos meus leitores brasileiros, o artigo que, com o mesmo título, foi publicado hoje pelo Estadão. Aparece bem mais enxuto que o meu anterior artigo em espanhol, pois tirei as informações circunstanciais que tinha colocado no primeiro texto.
Dez anos de lulopetismo
O Estado de S. Paulo - 05 de
junho de 2013 | 2h 06
RICARDO
VÉLEZ RODRÍGUEZ *
Passada
uma década de exercício do governo pelo Partido dos Trabalhadores (PT), é
possível fazer uma avaliação das suas realizações e fracassos, à luz do que os
anglo-americanos chamam de "a prova da história".
O Partido
dos Trabalhadores chegou ao poder com duas cartas de navegação. Uma, inspirada
num modelo social-democrático e elaborada rapidamente por recomendação dos
marqueteiros políticos de Lula, tendo sido publicada com o título de Carta ao
Povo Brasileiro, ou simplesmente Carta do Recife, em junho de 2002. Outra,
datada de dezembro de 2001, é denominada de Carta de Olinda, escrita nos
laboratórios da direção do Partido dos Trabalhadores, sob a influência de José
Dirceu e com a aprovação de Lula. Nela, a militância do partido deixava claro o
modelo de governo que pretendia pôr em prática: um socialismo estatizante
inspirado no regime cubano e próximo do ideal bolivariano que Hugo Chávez
buscava implantar na Venezuela.
Na Carta
ao Povo Brasileiro, elaborada pelos assessores de marketing eleitoral de Lula,
sob a coordenação de Antonio Palocci (que logo depois seria ministro da Fazenda
do primeiro governo Lula), ficava claro que o candidato petista, caso fosse
eleito presidente da República, honraria os contratos internacionais assinados
pelo Brasil, manteria o regime democrático de liberdades e de tripartição de
poderes, respeitando a Constituição vigente, a rotatividade do poder entre os
partidos, bem como a economia de mercado e os marcos da política macroeconômica
fixados no Plano Real e implementados nos dois governos social-democráticos de
Fernando Henrique Cardoso. Seriam respeitados os tratados internacionais, bem
como a gestão democrática da política externa administrada pelo Itamaraty,
seguindo a tradição de não intervenção na política interna dos outros países e
o convívio pacífico do Brasil com as demais nações. A classe média foi
conquistada pela Carta ao Povo Brasileiro.
Contrariamente
ao que tinha ocorrido nas eleições presidenciais anteriores (de 1990, 1994 e
1998), a opinião pública deu decisivo apoio ao candidato Lula. Nos seus
programas eleitorais anteriores, ele tinha apresentado plataformas inspiradas
num modelo de socialismo à maneira cubana, polarizadas pelo marxismo-leninismo.
A Carta de Olinda repetia esse modelo. A duplicidade de "cartas de
navegação" somente se revelaria à opinião pública após a posse de Lula em
2003, mais concretamente depois da divulgação do affaire do
"mensalão", em 2005, e serviria sempre como uma espécie de chantagem
do partido sobre a opinião pública, com o governo ameaçando colocar na rua os
"movimentos sociais" para efetivar reformas radicais.
O que os
petistas procuravam, segundo a Carta de Olinda, era, em primeiro lugar, no
terreno econômico, instaurar um sistema produtivo de tipo socialista centrado
na intervenção direta do Estado como empresário. Isso implicava a escolha, por
cooptação, daqueles empresários que deveriam ser os "campeões de
bilheteria" e a aproximação direta do governo com o povão, mediante
políticas sociais distribuidoras de renda, mantendo numa espécie de limbo a
classe burguesa identificada como inimiga dos pobres. Ponto-chave das políticas
sociais petistas foi o programa Bolsa Família. Era a reedição do velho modelo
elaborado pelo Marquês de Pombal, na segunda metade do século 18, e que o
primeiro-ministro português recomendava pôr em prática no Brasil ao seu
sobrinho governador do Maranhão.
Nestes
dez anos de governo petista, observa-se que o partido sob o comando do Lula foi
se afastando aos poucos do programa social-democrático original expresso na
Carta ao Povo Brasileiro para se alinhar com a Carta de Olinda, num crescente
fortalecimento do Executivo sobre os demais poderes públicos e com um claro
estatismo na área econômica.
O
principal programa da área social, o Bolsa Família, se bem beneficiou 50
milhões de brasileiros pobres, tornou-os reféns da dádiva oficial, ao ter
ficado em segundo plano a geração de empregos que garantissem a continuidade da
saída da pobreza. A angústia vivida pelos beneficiários desse programa nas últimas
semanas, diante do boato de que o benefício seria cortado, revela a sua
precariedade. O mecanismo institucional que tornou possível financiar os
empresários cooptados foi o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES), com operações de financiamento pouco transparentes, que abrem a
porta ao desperdício do dinheiro público e à corrupção. O "mensalão"
revelou a face perversa do estatismo na área política, com o Executivo
comprando o apoio da base aliada num esquema de corrupção jamais visto. Foi
conferido um caráter mais político do que técnico a uma próspera estatal como a
Petrobrás, descapitalizando-a e afastando o País da autossuficiência
energética.
O que, no
fundo, inspirou os petistas não foi o reforço ao capitalismo, mas a construção
do que eufemisticamente se chama de "capitalismo de Estado", que, em
realidade, não é mais do que o reforço ao patrimonialismo, com a volta da
inflação. O PT busca tornar-se um partido hegemônico, constituindo-se, sob a
inspiração da filosofia gramsciana, como o "novo príncipe" da
política brasileira.
Em
conclusão: o Brasil passou a viver, na última década, uma espécie de
esquizofrenia política proveniente da duplicidade de programas em conflito,
adotados pelas duas cartas de navegação referidas. Um programa que conduziria
ao reforço do modelo social-democrático está sendo socavado por outro, de
índole declaradamente patrimonialista. Esse é o mal que, a meu ver, atrapalha
hoje em dia a administração petista.
* RICARDO
VÉLEZ RODRÍGUEZ É MEMBRO DO CENTRO DE PESQUISAS ESTRATÉGICAS ‘PAULINO SOARES DE
SOUSA’, DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA (MG), É PROFESSOR EMÉRITO DA
ECEME. E-MAIL: RIVE2001@GMAIL.COM.
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