A obra de Expedito Carlos Stephani Bastos: Blindados no Brasil: um longo e árduo aprendizado, Volume I (Bauru: Taller Comunicação; Juiz de Fora: UFJF/Defesa, 247 páginas, 2011), que tive a honra de prefaciar, vem deitar os alicerces para um estudo sistemático desse aspecto do pensamento estratégico brasileiro, ligado a uma específica política de Estado na parte concernente ao nosso parque bélico, no relativo a blindados. Não conheço uma obra de tal envergadura na produção bibliográfica brasileira.
Envergadura que é de mão dupla: em primeiro lugar, do ângulo do acúmulo de dados técnicos apresentados acerca da evolução dos nossos blindados, desde os modelos importados no inicio do século XX, até os que foram sendo construídos, a partir dos anos 30, num processo que se acelerou no ciclo pós 64. A respeito, é só o leitor prestar atenção aos capítulos que são desenvolvidos ao longo da obra: eles historiam, com detalhe, todos os modelos de blindados, importados, reformados ou construídos inteiramente em solo nacional, desde os pioneiros 12 carros de combate Renault FT-17, importados em 1921, até os blindados utilizados hodiernamente pelas Forças Armadas nas operações de paz (ENGESA EE-9 Cascavel e EE-11Urutu, o AVIBRÁS 4x4 Guará, o PIRANHA III C 8x8, etc.).
Em segundo lugar, a envergadura da obra é também conceitual e se estende até os pressupostos mesmos do pensamento estratégico. Expedito Carlos Stephani Bastos não deixa lugar a dúvidas, no concernente à necessidade que o Brasil tem, hoje, de fixar políticas de Estado que abranjam a aquisição-modernização e produção do nosso parque bélico e de colocar essas políticas no contexto, mais amplo, de uma moderna concepção estratégica, acorde com o desideratum da Nação brasileira, enquadrando esse esforço no contexto das nossas tradições. A respeito, Expedito Bastos escreve, na Introdução à obra: “Dessa forma, convido-vos a uma viagem no tempo, para ler e refletir sobre o assunto, ousando compreender como chegamos a esse nível de desenvolvimento e como não soubemos preservá-lo, voltando hoje a adquirir blindados de segunda mão, oriundos da Europa e dos Estados Unidos, quando, muitas das vezes, tínhamos um projeto nacional que, em alguns casos, era superior ao que vinha (e vem) sendo adquirido. Por fim, acredito que ainda haja tempo para uma retomada rumo a uma independência tecnológica em alguns setores, o que geraria conhecimento, empregos e melhoraria nossa balança comercial. Entretanto, é preciso que tenhamos uma visão estratégica de longo prazo, que crie uma política de estado e não de governo, como temos visto e que tanto tem nos atrapalhado, visto que precisamos enxergar os próximos cinqüenta anos e não apenas os próximos quatro” (p. 12-13).
O grande problema com que o Brasil se defronta para pensar e formular uma estratégia de Estado, na qual se insira a renovação do nosso parque bélico (incluindo aí o desenvolvimento de tecnologia própria) é, a meu entender, de ordem cultural. Radica essa problemática no que Oliveira Vianna denominava (em Instituições políticas brasileiras) de “complexo de clã”. Não temos espírito público. Atrelados estamos, desde as nossas origens, à tacanha perspectiva de clãs e patotas, sendo que a visão nacional dos problemas nos escapa, no espaço e no tempo. Espacialmente, ficamos confinados no horizonte estreito da defesa exclusiva dos interesses pessoais e de amigos e apaniguados. Se a nossa patota está bem, que se lasque o Brasil! Na perspectiva do tempo, limitamos os nossos projetos a programas quadrienais de governo, desinteressando-nos pelo que havia antes e o que virá depois. Claro que essa característica não é apenas nossa, sendo que ela constitui o grande problema que afeta às nações de cultura ibérica ou herdeiras dela. Já o grande Ortega y Gasset se queixava, no início do século passado, de que os espanhóis só tinham a perspectiva do seu “quarto de bandeiras”, ou seja, do seu time ou patota (em Espanha invertebrada). Traduzia esse espírito com a frase: “Ande yo caliente y ríase la gente!” - Não fomos dotados, na América Latina, por conta dessa negativa herança ibérica, da perspectiva do bem público. Nesse contexto de particularismo doentio, fenece o patriotismo.
Cabe perguntar se nada de positivo terá havido no nosso panorama estratégico. Obviamente, seria injusto fazer tal afirmação. Houve, ao longo da história quadrisecular do Brasil, momentos e períodos de grande significação estratégica, a começar pela ação dos que Oliveira Vianna denominava, no Império, de “homens de mil”, ou seja, aquela geração de estadistas que, formada ao redor do Imperador, pensou o Brasil grande por cima de rivalidades locais ou interesses clientelísticos.
O pioneiro dessa façanha, certamente, foi, no início do século XIX, o grande Silvestre Pinheiro Ferreira, o fiel ministro da Guerra de Dom João VI, que pensou os alicerces do que seria o primeiro plano estratégico para o nosso país (nas Cartas sobre a revolução do Brasil e no Manual do cidadão num governo representativo). Era possível pensar o Brasil como um corpo que garantiria, para si mesmo, tudo que fosse necessário para se consolidar como potência no contexto das nações da sua época. Para tal, far-se-ia necessário duas coisas: pensar o país como totalidade, não como particularidade, e, a seguir, formatar a nação dentro dessa visão, mediante uma sólida educação cívica e a construção dos mecanismos do governo representativo que garantissem o exercício da liberdade. Dessa magna tarefa deveria se incumbir o Soberano e a elite de homens que o secundavam na missão de construir o Estado.
Já no decorrer do Segundo Reinado, a partir do movimento do Regresso e do Ato Adicional (1841), a presença atuante de uma elite de homens públicos, formados ao redor de dom Pedro II e que constituíram a elite de homens de 1000, tornou possível fazer surgir, num contexto de cultura patrimonialista e privatizante, o ideal do bem público e, a partir daí, construir o sentimento de Nação, num amplo processo de Paidéia política. Esses homens de 1000 - frisa Oliveira Vianna em Instituições políticas brasileiras - caracterizavam-se pela sua "inata vocação ao bem comum da Nação" e eram "homens que aborreciam a avareza (...) como os da vocação mosaica. Conselheiros, senadores, ministros, altos dignitários da Coroa, eles passaram pela administração (di-lo a história do Império) nutridos do sentimento do seu dever público, impregnados do desejo de bem servir ao país, colocando os interesses da Nação e o cumprimento das suas obrigações cívicas acima dos seus interesses pessoais e de família, e mesmo de partido. Todos eles timbravam - como os cavalheiros do antigo regime - em morrer pobres e de mãos limpas. Todos eles eram trabalhados pelo fogo dessas preocupações, dessas absorventes preocupações do patriotismo e do serviço público”.
Manifestação desse espírito e dessa magna tarefa estratégica de construir um país forte, no contexto internacional, deixou-nos o visconde de Uruguai, Paulino Soares de Sousa, no seu Ensaio de Direito Administrativo, onde lemos as seguintes palavras: "Na viagem que ultimamente fiz à Europa não me causaram tamanha impressão os monumentos das artes e das ciências, a riqueza, força e poder material de duas grandes nações: a França e a Inglaterra, quanto os resultados práticos e palpáveis da sua administração. Os primeiros fenômenos podemos nós conhecê-los pelos escritos que deles dão larga notícia. Para conhecer e avaliar os segundos não bastam descrições. Tudo ali se move, vem e chega a ponto com ordem e regularidade, quer na administração pública, quer nos estabelecimentos organizados e dirigidos por companhias particulares. Nem o público toleraria o contrário. As relações entre a administração e os administrados são fáceis, simples, benévolas e sempre corteses. Não encontrava na imprensa, nas discussões das câmaras, nas conversações particulares essa infinidade de queixas e doestos, tão freqüentes entre nós, contra verdadeiros ou supostos erros, descuidos e injustiças da administração, e mesmo contra a justiça civil e criminal. A população tinha confiança na justiça quer administrativa, quer civil, quer criminal. E é sem dúvida por isso que a França tem podido suportar as restrições que sofre na liberdade política" .
O visconde regressou da sua viagem à Europa com o firme propósito de pensar as instituições que garantissem, no Brasil, o exercício da liberdade, a fim de consolidar um Estado que tivesse respeitabilidade e força no contexto internacional. Esse era o seu imperativo categórico, que o distanciava da pura teoria e da pura prática. Eis a forma em que ele entendia o seu propósito: "Convenci-me ainda mais de que se a liberdade política é essencial para a felicidade de uma nação, boas instituições administrativas apropriadas às suas circunstâncias, e convenientemente desenvolvidas não o são menos. Aquela sem estas não pode produzir bons resultados. O que tive ocasião de observar e estudar produziu uma grande revolução nas minhas idéias e modo de encarar as coisas. E se quando parti ia cansado e aborrecido das nossas lutas políticas pessoais, pouco confiado nos resultados da política que acabava de ser inaugurada, regressei ainda mais firmemente resolvido, a buscar exclusivamente no estudo do gabinete aquela ocupação do espírito, sem a qual não podem viver os que se habituaram a trazê-lo ocupado".
No contexto desse espírito público foram criadas e aperfeiçoadas as instituições imperiais, no seio das quais foi se burilando aprofundada visão estratégica, aliada ao funcionamento do governo representativo. Isso nos possibilitou, como país, mantermos a unidade continental e a paz interna, em que pese os ataques sofridos (lembremos o episódio da Guerra do Paraguai). O Brasil, na segunda metade do século XIX, era o país mais estável da região e conseguiu fazer frente, com audácia, tecnologia e patriotismo, ao grande repto da política internacional do momento, consistente no conflito mencionado, tendo derrotado, nele, o mais poderoso exército da América do Sul comandado por Solano López.
No século XX, encontramos dois momentos importantes de consolidação de políticas de Estado em matéria de estratégia: o longo ciclo getuliano, sendo que, nele, duas importantes figuras foram representativas, no terreno tecnológico e no mais amplo campo dos estudos sociológicos, respectivamente: Lindolfo Leopoldo Boekel Collor e Oliveira Vianna. Já no ciclo militar (1964-1985) sobressaíram os generais Golbery do Couto e Silva (no campo dos estudos estratégicos) e Carlos de Meira Mattos (no terreno específico da geopolítica). Em face da experiência imperial, os momentos estratégicos apontados adolesceram de séria limitação no terreno das instituições do governo representativo e do gozo das liberdades, tendo se configurado como regimes de autoritarismo modernizador, ou “autoritarismo instrumental”, como diz Wanderley-Guilherme dos Santos (em decorrência da herança positivista em que se sedimentaram as nossas instituições republicanas). Mas não resta dúvida acerca do alto valor estratégico, bem como do élan modernizador que os dois momentos representaram na nossa história no século passado.
Infelizmente, a estreiteza de visão tem dificultado a formulação de políticas públicas no terreno estratégico, no período recente da redemocratização brasileira. Por um movimento de retaliação contra o ciclo militar, as lideranças civis que tomaram o comando do Estado desde 1985 passaram a menosprezar a formulação de um pensamento estratégico. Isso conduziu, evidentemente, ao sucateamento do nosso parque bélico, bem como das empresas que tinham se consolidado nesse setor. O último ciclo, ao longo destes oito anos, entre 2002 e 2010, caracteriza-se por uma grande ambigüidade: por um lado, o Estado foi aparelhado pela militância política e sindical, com grave prejuízo para o funcionamento das instituições republicanas. Mas, de outro lado, foram colocados sobre o tapete do debate político, esboços para a formulação de uma política de Estado no relativo às questões estratégicas (contidos, notadamente, no “Plano Nacional de Defesa” – preparado pelo Ministério correspondente – e no Documento intitulado “Processo de Transformação do Exército 2015-2035” – da lavra do Estado Maior do Exército). Esses dois documentos têm suscitado o interesse e a discussão de vários segmentos da sociedade brasileira, dentro e fora das Forças Armadas.
Foi justamente para recuperar, no meio acadêmico, a memória dos fundamentos do Brasil grande, numa perspectiva estratégica liberal, que atrela a construção do Estado aos interesses da nação, de um lado e, de outro, aos imperativos tecnológicos e aos reptos do mundo globalizado, que foi criado, em 2005, o Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”. Ao comemorar os cinco anos de funcionamento, o Centro apresenta, hoje, um quadro integrado por 15 pesquisadores (8 pertencentes à UFJF e 7 a outras Universidades brasileiras e estrangeiras) e 10 estudantes da graduação e da pós-graduação da UFJF, com uma volumosa produção distribuída nas seguintes 7 linhas de pesquisa: estratégia empresarial, estratégias urbanas e cidadania, gestão do conhecimento e estratégia, história do pensamento estratégico e problemas estratégicos contemporâneos, mulheres sedução e poder, políticas públicas em saúde e defesa nacional e tecnologia militar, sendo que esta última linha está a cargo do vice-líder do Centro, Expedito Carlos Stephani Bastos. Como órgão de divulgação das pesquisas realizadas pelo Centro, foi criado, também em 2005, sob a coordenação do autor da obra que prefaciei, o Portal UFJF-Defesa (www.ecsbdefesa.com.br), que contabiliza aproximadamente 60 mil consultas por mês e que tem publicado mais de 1.700 artigos e ensaios, se constituindo, assim, no mais importante Portal do setor de estudos estratégicos na América Latina.
Em boa hora ocorre o lançamento da obra de Expedito Bastos: Blindados no Brasil: um longo e árduo aprendizado, que constitui, certamente, a mais significativa comemoração pelos cinco anos das realizações do Portal UFJF-Defesa, bem como do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”. A Universidade Federal de Juiz de Fora está de parabéns pelo fato de ter apoiado estas iniciativas.
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