Dois autores abordaram no século XIX, do ângulo do pensamento social, a problemática da pobreza: Karl Marx (1818-1883) y Alexis de Tocqueville (1805-1859). Ao passo que o primeiro elaborou o arquétipo interpretativo socialista (banindo a livre iniciativa e apregoando o fim do capitalismo), o segundo construiu o arquétipo liberal (alicerçado na livre iniciativa e pressupondo conseqüentemente o capitalismo). O estudo da análise tocquevilliana acerca da pobreza ganha cada dia mais repercussão. É digna de menção, por exemplo, a recente versão inglesa da Mémoire sur le Paupérisme, realizada por Seymour Drescher, com introdução de Gertrud Himmelfarb [Tocqueville, 1997]. Pretendo, neste estudo introdutório aos escritos de Tocqueville sobre a pobreza, ilustrar rapidamente as fontes do pensamento social tocquevilliano, bem como expor de forma sumária os seus princípios.
Para cumprir com o meu objetivo, desenvolverei quatro itens: a problemática social na literatura, nas primeiras décadas do século XIX; a herança recebida por Tocqueville de Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830); a herança recebida por Tocqueville de François Guizot (1787-1874) e a questão da pobreza na ciência social tocquevilliana.
1) A problemática social na literatura, nas primeiras décadas do século XIX
Os romancistas de meados do século XIX elaboraram o que hoje conhecemos como "literatura de denúncia" contra a pobreza. Essa denúncia foi feita, na Inglaterra e na França, exagerando os aspectos negativos de ambas as sociedades, em que pese o fato de, sobre tudo no primeiro país, boa parcela da sociedade ter conseguido melhorar consideravelmente o seu nível de vida. A respeito deste evidente exagero, escreveu Gertrude Himmelfarb: "Os historiadores sempre usaram a ficção para ilustrar o espírito da época, geralmente num capítulo final eclético que contém fragmentos soltos da história intelectual, cultural e social que não podem integrar ao texto propriamente dito. Os historiadores que consideram esses fragmentos o coração dessa questão, podem-se sentir inclinados a reconhecer à ficção grande relevância, e tanto mais no estudo do início da era vitoriana, quando todo gênero de ficção, o romance social, como hoje é chamado, estava dedicado à questão social. Esse período, no entanto, quando o romance mais insistentemente se intrometeu na história, torna-se mais problemático W. O. Aydelotte exprimiu o interesse de muitos historiadores (e não apenas os da escola quantitativa com os quais ele se identificou) quando se queixou de que a informação oferecida por muitos romances era desigual, impressionista e inexata, e que se apoiar nos romances com o propósito de fazer história social era uma espécie de diletantismo que os historiadores fariam muito bem em evitar. Na melhor das hipóteses, os romances não revelariam os fatos da época, mas a mente do romancista, nem as condições sociais, mas as atitudes diante da questão social" [Himmelfarb, 1988: 469-470].
Essa atitude crítica parcial, no sentir de Himmelfarb, faz com que os romancistas terminem elaborando visões caricaturais da realidade social, exagerando os defeitos, omitindo os aspectos positivos, enfim, maquiando perversamente a realidade para com essa representação dar vazão ao seu sentimento negativo diante do mundo. Trata-se, evidentemente, mais de representações motivadas pelo sentimento, do que de um quadro racionalmente elaborado. Algo semelhante ao que acontece hoje em dia nos nossos países, quando jornalistas sedentos de fatos mirabolantes exageram na dose do dramatismo da nossa problemática econômica. Uma inocente fila diante de um caixa eletrônico em início de feriado, vira correria aos bancos face a uma quebradeira geral.
2) A herança recebida por Tocqueville de Benjamin Constant de Rebecque
Alexis de Tocqueville reagiu na sua obra contra o subjetivismo literário face à problemática social. Mas reagiu, também, contra a perda do sentido histórico por parte dos philosophes do século XVIII. O autor de A Democracia na América herdou dos seus mestres, os doutrinários, a preocupação com a objetividade na apreensão da realidade histórica. Já Benjamin Constant de Rebecque tinha alertado para o peso que possuem as nossas representações de hoje nas ações futuras. As grandes desgraças acontecidas na França durante o Terror jacobino, inspiraram-se em boa medida numa falsa idéia proposta ao público pelos philosophes, pouco sensíveis a uma realidade rotineira e opaca, e muito mais interessados em vender as suas brilhantes idéias. "A ambição dos escritores do momento, frisava Constant, (...) consiste em parecer mais convencidos do que ninguém da opinião dominante. Eles olham de que lado se precipita a multidão, para então correr apressadamente e se colocarem à frente. Eles acham que assim conseguirão a glória de terem causado o impulso que os movimenta. Esperam que os consideremos como os inventores daquilo que imitam e, posto que correm fatigados diante da turma que alcançaram, parecerão os guias desta, quando, na verdade, ela nem sequer percebe a sua existência" [Constant, 1997: 30].
Ora, como vende mais uma idéia simples do que a complexidade de concepções que tratam de refletir os múltiplos ângulos da vida, os intelectuais do século XVIII carregaram as tintas sobre a simplificação das idéias claras e distintas. Tocqueville herdou de Benjamin Constant a sua desconfiança em relação ao vício de escrever para ter, como diríamos hoje no Brasil, ibope. O intelectual, para ambos os autores, tem fundamentalmente responsabilidade com a pesquisa e a divulgação da verdade. O que o distingue do político profissional é justamente isso. Este anda preocupado com o resultado que decorrerá da sua ação. Tocqueville desenvolve uma forte crítica a esse vício, quando se referiu, na Democracia na América, ao fatalismo em que incorrem os historiadores que escrevem nos séculos democráticos. A respeito, frisava: "Se essa doutrina da fatalidade, que tem tantos atrativos para aqueles que escrevem a história nos tempos democráticos, passando dos escritores a seus leitores, penetrasse assim em toda a massa de cidadãos e se apoderasse do espírito público, pode-se prever que logo paralisaria o movimento das sociedades novas e reduziria os cristãos a turcos. Direi mais: que semelhante doutrina é particularmente perigosa à época em que nos encontramos; nossos contemporâneos acham-se muitíssimo inclinados a duvidar do livre-arbítrio, porque cada um deles sente-se limitado por todos os lados pela sua fraqueza, mas ainda atribuem de boa vontade força e independência aos homens reunidos em corpo social. É necessário que nos guardemos de obscurecer essa idéia, pois se trata de restabelecer a dignidade almas e não de completar a sua destruição" [Tocqueville, 1977: 377].
É evidente que Tocqueville compartilha com os doutrinários a dupla preocupação de serem, ao mesmo tempo, pensadores e homens de ação. Mas essa dupla feição da ética (intelectual e política), não mata a honestidade intelectual: justamente porque o pensador segue a verdade sem interesses politiqueiros imediatistas, é que consegue se constituír em guia para a sua sociedade. Como destacou com propriedade Jean-Claude Lamberti [1983: 13], Tocqueville sedimentou desde muito cedo as verdades fundamentais sobre as quais elaboraria a sua obra e que inspirariam a sua ação política: o amor à liberdade e o horror à revolução. É justamente na medida em que ele se manteve fiel a essas duas convicções, que conseguiu se tornar um norte para a França pós-revolucionária. Em Tocqueville, como nos doutrinários, a ética intelectual pauta a ética política.
3) A herança recebida por Tocqueville de François Guizot
De outro lado, Tocqueville aprendeu de Guizot nas lições sobre a história da civilização européia que ouviu na Sorbonne, entre 1828 e 1830 [cf. Guizot, 1864], que somente haveria um caminho para compreender adequadamente os acontecimentos presentes da história francesa: se remontar até os fatos primordiais que os originaram, à luz do movimento de auto-aperfeiçoamento do espírito humano no seio da civilização ocidental. Essa constitui, aliás, a tese central da escola histórica iniciada por Guizot.
Há, para este pensador, fundamentalmente, como pano de fundo sobre o qual devem ser interpretados os atos humanos, uma realidade profunda que plasma o movimento do espírito: a história da civilização. Sobre esse fundo devem ser compreendidos os detalhes das culturas. Esse constitui o cerne da inspiração hegeliana de Guizot. É bem verdade que ele não recebeu essa influência diretamente do pensador alemão, mas a través da obra de Victor Cousin (1792-1867). Mas nem por isso o seu hegelianismo é menos verdadeiro. Na histoire de la civilisation en Europe [Guizot, 1864: 8-9] escreve a respeito e estadista francês: "A civilização é um (fato) geral, escondido, complexo, muito difícil, reconheço, de descrever, de narrar, mas nem por isso menos real, nem com menos direito a ser descrito e narrado. Pode-se levantar sobre esse fato um grande número de questões; pode-se perguntar, por exemplo, e de fato tem-se perguntado se ele era um bem ou um mal. Uns têm ficado frustrados; outros têm batido palmas. Pode-se perguntar se é um fato universal, se há uma civilização universal do gênero humano, um destino da humanidade, se os povos se transmitiram de século em século alguma coisa que não se perdeu, que deve ser acrescida, passar como um depósito e chegar assim até o final dos séculos. Da minha parte, estou convencido de que há, efetivamente, um destino geral da humanidade, uma transmissão do depósito da civilização, e, consequentemente, uma história universal da civilização a ser escrita. Mas, sem levantar questões tão grandes, tão difíceis de resolver, é evidente que, quando a gente se fecha num espaço de tempo e de lugar determinado, quando nos limitamos à história de um certo número de séculos ou de certos povos, nesses limites, a civilização é um fato que pode ser descrito, contado, que tem a sua história. Apresso-me a acrescentar que essa história é a mais grande de todas, que ela compreende todas as outras".
"Passar a França pós-revolucionária a limpo, sobre o pano de fundo da história da civilização", esse é o princípio que norteia a obra intelectual e política de Guizot. Essa era também a preocupação dos restantes doutrinários (Constant, Camille Jordan, de Broglie, Royer-Collard, Remusat, Serre, etc.), à cuja testa colocou-se indubitavelmente Guizot. O seu projeto político correspondia ao ideal de, como escreve Pierre Rosanvallon [1985: 26], "finalizar a Revolução, construir um governo representativo estável, estabelecer um regime garantidor das liberdades e fundado na Razão. Esses objetivos definem a tripla tarefa que se impõe a si mesma a geração liberal nascida com o século. Tarefa indissoluvelmente intelectual e política, que especifica um momento bem determinado do liberalismo francês: aquele durante o qual o problema principal é prevenir a volta de uma ruptura moral entre a afirmação das liberdades e o desenvolvimento do fato democrático. Momento conceptual que coincide com o período histórico (da Restauração e da Monarquia de Julho), no curso do qual essa tarefa está praticamente na ordem do dia e que se distingue, ao mesmo tempo, do momento ideológico, que prolonga a herança das Luzes, e do momento democrático, que se inicia depois de 1848 (...)".
Tarefa intelectual e política. Efetivamente, a essência da proposta de Guizot consiste em pensar as novas instituições que garantam, no plano político, o exercício da liberdade. Esse pensar as novas instituições não é ato de uma elite intelectual desligada da sociedade. É função de uma elite, sim, pensar os novos conceitos. Mas eles devem se espraiar pelo resto da sociedade. Guizot aposta num uso social da razão. A propósito, pergunta: "O que é necessário para que os homens possam fundar uma sociedade um pouco durável, um pouco regular?" - E responde: "É preciso, evidentemente, que tenham um certo número de idéias suficientemente desenvolvidas, para que convenham a essa sociedade, que respondam às suas necessidades, às suas relações. É preciso, além do mais, que essas idéias sejam comuns à maior parte dos membros da sociedade; enfim, que elas exerçam um certo domínio sobre as suas vontades e as suas ações" [Guizot, 1864: 81].
Essa tarefa político-pedagógica é pensada num pano de fundo histórico, inserindo as instituições políticas no contexto mais amplo do espírito do tempo. A função pedagógico-política do intelectual é fazer descobrir aos franceses a sua própria história. Guizot pretende cumprir esse papel em relação ao seu país, doutrinando as classes médias, as únicas que conseguiriam manter a unidade nacional, numa perspectiva de não privatização do poder por castas ou estamentos. O estadista francês estabelecia um estreito elo de ligação entre a conquista das liberdades individuais e a construção do Estado. Em relação a esse ponto, escreve Rosanvallon [1985: 199]: "A construção do Estado e o nascimento do indivíduo vão de mãos dadas: os dois se fundam sobre a destruição das ordens fechadas".
As obras de caráter histórico de Guizot têm como finalidade ensinar às classes médias essa sua importante missão de construir, na França, o Estado e a civilização. O líder dos doutrinários e primeiro representante da chamada escola histórica, "quer dar uma memória às classes médias, lhes restituindo a história" [Rosanvallon, 1985: 195]. A inserção da preocupação histórica como elemento essencial da tarefa dos intelectuais, formou parte do clima que se seguiu na França, e na Europa em geral, à Revolução Francesa. Ao passo que os philosophes do século XVIII, como frisamos, davam as costas ostensivamente à realidade, transformando o seu discurso numa abstração (Tocqueville aderiu em L'Ancien Régime et la Révolution a essa crítica), os doutrinários fazem questão de se definirem como homens do seu tempo, que buscam as raízes da própria sociedade na sua história. Tarefa de evidente inspiração hegeliana na qual Guizot, com insuperável maestria de sociólogo e de filósofo, elaborará as categorias dialéticas à luz das quais passou a ser entendida a problemática social no seio do Liberalismo francês. Guizot entende a sociedade européia numa dupla perspectiva: socio-política e cultural. Em ambos os contextos identifica a essência da realidade como fundamentalmente dialética.
No terreno da história da cultura, o pensador francês considera que a civilização européia é fruto do confronto entre dois princípios que se contrapõem dialéticamente: o da liberdade e o da ordem. O primeiro, identificado com o legado dos bárbaros, cujo élan era constituído por uma liberdade selvagem, vizinha da anarquia; o segundo princípio, identificado com a ordem imposta pelo Império Romano e pelas instituições herdadas, dele, pela Igreja. Em relação a este ponto, Guizot [1985: 82-83] escreve: "(...) Devemos aos Germanos o sentimento enérgico da liberdade individual, da individualidade humana. Ora, num contexto de extrema grosseria e ignorância, esse sentimento é o egoísmo em toda a sua brutalidade, em toda a sua insociabilidade (...). A Europa tratava de sair desse estado (...). Restavam, aliás grandes ruínas da civilização romana. O nome do Império, a lembrança dessa grande e gloriosa sociedade, agitavam a memória dos homens, dos senadores das vilas sobre tudo, dos bispos, dos sacerdotes, de todos os que tinham a sua origem no mundo romano. Entre os bárbaros mesmos, ou entre os seus ancestrais bárbaros, muitos tinham sido testemunhas da grandeza do Império; tinham servido nas suas legiões, eles o tinham conquistado. A imagem, o nome da civilização romana impunha-se-lhes; eles sentiam a necessidade e imitá-la, de reproduzi-la, de conservar alguma coisa dela. Nova causa que os deveria puxar para fora do estado de barbárie (...)".
Esses dois princípios, o da liberdade e o da ordem, constitutivos da civilização européia, precisaram, no entanto, de uma força que os amalgamasse numa experiência histórica concreta. O pensador francês acha que essa foi a missão dos grandes homens, que apareceram providencialmente, como é o caso de Carlos Magno. Em relação a esses importantes atores da história humana, frisa Guizot [1864: 84]: "(...) Há homens aos quais o espetáculo da anrquia e da imobilidade social golpeia e revolta, que são sacudidos por esses fatores como se se tratasse de um fato ilegítimo, e que são invencivelmente possuídos pela necessidade de mudar esse fato, de colocar alguma regra, algum princípio geral, regular, permanente, no mundo observado por eles. Poder terrível, amiúde tirânico, e que comete mil iniqüidades, mil erros, pois é acompanhado pela fraqueza humana; poder, no entanto, glorioso e salutar, pois ele imprime à humanidade, pela mão do homem, uma forte sacudida, um grande movimento".
No terreno sócio-político, Guizot considera que a realidade da Europa é constituída pela luta de classes. Nada mais alheio, para ele, à realidade política da França e da Europa, do que o sonho utopista dos que achavam que seria possível uma espécie de entropia política, como se as relações sociais pudessem ser reduzidas a uma única ordem de interesses. Mas, ao mesmo tempo, o pensador francês é consciente de que a época é a das classes médias, as únicas capazes de dotar a França de instituições livres e estáveis, superando os excessos da revolução e do absolutismo. Ora, essas classes médias identificam-se, na França da Restauração e do Reinado de Luís Filipe, com a burguesia. Esta deve acordar e despertar a sua consciência de que se trata de uma classe chamada a garantir a unidade francesa, fazendo frente à dissolução do Terror e ao anacronismo do Absolutismo bonapartista. Eis aí formulado claramente o conceito de consciência de classe. Sem dúvida nenhuma que Marx fez uso desse arcabouço conceptual (luta de classes, consciência de classe, classe habilitada para exercer o domínio na sociedade). Plekhanov, aliás, tinha destacado esse ponto, com rara probidade intelectual que reconhecia ser Marx herdeiro de um liberal-conservador na formulação dos seus conceitos sociológicos chaves. Guizot considera-se o profeta dessa situação histórica, o pregoeiro da nova ordem de coisas, de uma política alicerçada no conceito de luta de classes, e de uma burguesia que é chamada à responsabilidade histórica, indelegável, de garantir o exercício da liberdade, mediante a criação de instituições que, salvaguardando a ordem, possibilitem o amadurecimento da civilização européia. O pensador francês atribui à burguesia o papel de pregoeira da Verdade histórica.
A burguesia, no sentir de Guizot, deveria garantir as instituições que alicerçam o exercício da liberdade, mediante a organização da representação. Ela consiste, cumulativamente, na luta em prol dos interesses de classe e na tentativa de, mediante a explicitação desses interesses no terreno do discurso, dar ensejo à racionalidade social, que é fruto do entrechoque das opiniões. Desse processo dialético emerge o conceito de representação. Esta seria considerada, quando estabelecido o domínio da burguesia mediante esse processo de explicitação, como a média da opinião.
No que tange à discussão da problemática da pobreza, Guizot e os doutrinários ficaram a meio caminho. O que interessava a eles era conseguir a estabilidade política, mediante a ação construtiva de um ator (as classes médias) que garantisse o progresso sem cair no extremo revolucionário. É bem verdade, como testemunha Rosanvallon [1985: 255-262], que à época de Luís Filipe já havia um razoável desenvolvimento da estatística e da preocupação de aplicá-la ao conhecimento da problemática social. Esse foi o intuito, por exemplo, que inspirou os múltiplos concursos desenvolvidos pela Academia de Ciências Morais e Políticas, bem como as propostas dos higienistas, que pretendiam elaborar uma sintomatologia da doença social. Mas, em decorrência talvez do hegelianismo que empolgava a Guizot, a sua preocupação irá cada vez mais se polarizando ao redor da idéia fixa de manter a ordem, custe o que custar. Isso produziu, no mais importante expoente dos doutrinários, o paradoxal efeito de uma perda gradual de contato com a problemática social e uma guinada conservadora no seio do seu liberalismo, até ser colocado definitivamente fora do poder pela Revolução de 1848.
Tocqueville reagirá contra essa perda de sentido histórico do seu mestre doutrinário, e é exatamente no contexto dessa reação que o jovem pensador elaborará as suas análises acerca da problemática da pobreza. A Revolução Francesa, no seu modo de entender, tinha um ideal bom: a conquista da liberdade no seio da democracia. Era necessário reavivar esse ideal, purificando-o da herança absolutista e jacobina. A atitude dos doutrinários deve ser criticada, justamente pelo fato de pretenderem encerrar as conquistas da Revolução, na gaiola de ouro de um conservadorismo que beneficiava unicamente um dos atores: a burguesia. A luta deveria ser travada para garantir a todos os franceses a justa conquista da liberdade.
4) A questão da pobreza na ciência social tocquevilliana
Tocqueville elaborou as suas reflexões face aos problemas da sociedade industrial, em dois escritos de 1835, intitulados "Memória sobre a pobreza" e "Segundo artigo sobre a pobreza", que foram redigidos para a Sociedade Acadêmica de Cherbourg e que integram os seus "Escritos Acadêmicos". Na edição das Obras de Tocqueville, [Primeiro volume, 1991], preparada por André Jardin, Françoise Mélonio e Lise Queffélec, outros dois ensaios de Tocqueville foram escolhidos: o "Discurso à Academia Francesa" de 1842, sobre a história da França e o "Discurso à Academia de Ciências Morais e Políticas" de 1852, sobre a ciência política. A finalidade desses "Escritos Acadêmicos" era, segundo aponta Françoise Mélonio [1991, I: 1626] discutir "como estruturar a sociedade moderna, aglutinando os cidadãos desunidos, que a hierarquia de privilégios do Antigo Regime não organizava mais".
Antes de iniciar o desenvolvimento do pensamento tocquevilliano acerca da pobreza, convém fazer uma breve aclaração acerca do momento em que o pensador francês passou a integrar os mencionados Institutos. Tocqueville foi eleito para a Academia de Ciências Morais e Políticas em 1838, aos 32 anos de idade. Em 1841, após o sucesso obtido com a publicação dos dois volumes de La démocratie en Amérique, foi eleito para a Academia Francesa. Em relação ao significado que teve para o nosso autor a sua participação na vida intelectual das Academias, escreve Françoise Mélonio [Tocqueville, 1991, I: 1626]: "Com o correr dos anos, as duas Academias converteram-se para ele num viveiro de amizades e de relações políticas ou eruditas úteis e, sob o Segundo Império, Tocqueville chegou à convicção de que essas instituições (...) constituíam, de ora em diante, toda a sua vida social e o último refúgio onde ele poderia livremente intercambiar os seus pensamentos com os liberais banidos do poder".
Tocqueville analisa o problema da pobreza num duplo contexto: no da fisiologia social de Cabanis, Bichat, Pinel, Vicq D'Azyr, Saint-Simon, etc. [cf. Rosanvallon, 1985: 22; Mélonio, 1993: 33 seg.] e no da escola histórica de Constant/Guizot. É bem verdade que o nosso autor supera qualquer pretensão cientificista. Mas utiliza o símil do corpo enfermo (do qual deve ser feita uma anámnese histórica), para fazer alusão à problemática social. Referindo-se ao fenômeno na Inglaterra, por exemplo, o nosso autor escreve: "(...) a pobreza, essa praga horrenda e imensa, que contaminou um corpo cheio de força e de saúde" [Tocqueville, 1991, I: 1174].
Fiel ao arquétipo epistemológico que acabamos de mencionar, Tocqueville analisa a problemática da pobreza em três etapas: sintomatologia, tratamento errado e tratamento certo.
a - Sintomatologia da pobreza
Em relação à primeira etapa, Tocqueville aponta um fato paradoxal: esta doença somente é visível em organismos fortes. As nações que caminham rumo à modernidade, como a Inglaterra e a França, apresentam o contraste entre geração de riqueza e pobreza, contraste que não é visível onde a pobreza é a norma e a riqueza a exceção, como na Espanha ou em Portugal. O nosso autor dedica especial atenção ao estudo da doença na Inglaterra, país que conseguiu desenvolver os recursos econômicos de forma a permitir à maioria dos seus cidadãos a conquista de uma vida confortável e segura. Um sexto da população britânica, no sentir de Tocqueville, é marginalizada pela pobreza. Mas justamente por estar a maioria dos cidadãos em situação de conforto econômico, a marginalidade do proletário é mais visível entre os ingleses do que na própria França.
Eis o paradoxo apontado, nas palavras de Tocqueville [1991, I: 1135]: "Os países que parecem os mais miseráveis são aqueles que, na realidade, possuem menos indigentes e nos povos onde admiramos a opulência, uma parte da população é obrigada a viver às custas das doações da outra". Particularizando a situação em relação ao povo ao britânico, escreve o nosso autor a seguir: "Percorrei os campos da Inglaterra; sentir-vos-eis transportados ao Éden da civilização moderna. Estradas magnificamente conservadas, frescas e limpas vivendas, grandes rebanhos percorrendo as verdes pradarias, camponeses cheios de força e de saúde, a riqueza mais deslumbrante que se poderia observar em algum lugar do mundo, a simples fartura mais requintada do que em qualquer outro país, por todas partes a aparência de cuidado, de bom trato e de lazer, um ar de prosperidade universal que se respira na mesma atmosfera e que faz vibrar o coração a cada passo: tal parece a Inglaterra à primeira vista do viajante. Penetrai agora no interior das comunas; examinai os registros das paróquias, e descobrireis com inexprimível atordoamento que a sexta parte dos habitantes deste reino florescente vive às custas da caridade pública" [Tocqueville, 1991, I: 1155].
No que tange à França da sua época, Tocqueville destaca que acontece algo semelhante: percebe-se mais a pobreza ali onde houve maior desenvolvimento. A respeito, o nosso autor escreve: "A média dos indigentes da França (...) é de um pobre para cada vinte habitantes. Mas nota-se enormes diferenças entre as várias partes do reino. O departamento do Norte que é sem dúvida o mais rico, o mais povoado e o mais desenvolvido em todos os campos, conta perto de uma sexta parte da sua população que recebe o apoio da caridade pública. Na região de la Creuse, o mais pobre e o menos industrializado de todos os nossos departamentos, somente se conta um indigente para cada cinqüenta e oito habitantes. Nessa estatística, a Mancha é indicada como possuindo um pobre para cada vinte e seis habitantes" [Tocqueville, 1991, I: 1156].
No sentir de Tocqueville, não haveria uma causa única para esse fenômeno. Ele decorreria, melhor, da condição do progresso das sociedades humanas. Por isso, para melhor entender essa dinâmica social, o nosso autor parte para um breve resumo da história do Ocidente, da forma em que emergiram as modernas sociedades face às expectativas do progresso material e do conforto.
Na medida em que os homens superam o estágio primitivo da luta pela sobrevivência e se fixam à terra, passam a acumular um supérfluo que lhes permite satisfazer outras necessidades menos imediatas. Para o pensador francês não há dúvida de que o processo de construção da civilização distancia os homens, progressivamente, do estado de natureza [Tocqueville, 1991, I: 1157].
O surgimento da aristocracia feudal na Europa Ocidental deu-se como efeito desse princípio fundamental. Os bárbaros, que invadiram o Império Romano no final do século IV, buscavam algo mais do que satisfazer as suas necessidades primárias de sobrevivência: procuravam se apropriar do poder e das vantagens que lhes oferecia uma civilização mais adiantada, a representada pelos colonos do Império, que tinham, no entanto, perdido as virtudes másculas da luta em defesa dos seus territórios, por força da acomodação à vida agrícola. Os Bárbaros deram ensejo a uma sociedade desigual, em que uma nova aristocracia tomou posse do poder e da propriedade predial, e das vantagens que ela oferecia. "A vitória, escreve Tocqueville [1991, I: 1158], colocou nas mãos dos Bárbaros não somente o governo, mas também a propriedade das heranças territoriais. O cultivador, de possuidor virou rendeiro. A desigualdade passou ao terreno das leis; ela se converteu num direito após ter virado fato".
A desigualdade é, aliás, a situação normal do gênero humano, na atual quadra da evolução da humanidade. O ideal da igualdade somente se encontra nas origens do homem sobre a terra, ou no final da espiral do progresso humano. A respeito, escreve o nosso autor: "(...) Se prestarmos atenção ao que acontece no mundo depois da origem das sociedades, descobriremos sem dificuldade que a igualdade somente se encontra em dois extremos da civilização. Os selvagens são iguais entre si, porque todos são igualmente débeis e ignorantes. Os homens muito civilizados podem virar todos iguais, porque todos possuem meios análogos para atingirem o conforto e a felicidade. Entre esses dois extremos encontra-se a desigualdade de condições: a riqueza, as luzes, o poder de uns, e a pobreza, a ignorância e a debilidade de todos os outros" [Tocqueville, 1991, I: 1159].
A sociedade feudal era, para Tocqueville, portanto, essencialmente desigual, dividida em duas classes ou categorias: a dos que cultivam a terra sem possuí-la e a dos que a possuem sem cultivá-la. Em que pese essa desigualdade surgem, no seio dessas classes tradicionais, com o correr dos séculos, novas necessidades presididas pelo desejo de conforto. Em relação a este ponto, escreve o pensador francês: "A medida que o tempo segue o seu curso, a população que cultiva a terra concebe gostos novos. A satisfação das mais grosseiras necessidades não a deixava contente. O camponês, sem abandonar o campo, quer se encontrar melhor alojado, melhor instalado; ele já pressente as doçuras do conforto e deseja procurá-las. De outro lado, a classe que vive da terra sem cultivá-la, alarga o círculo das suas satisfações; os seus prazeres são menos fastuosos, porém mais requintados e variados. Mil necessidades desconhecidas dos nobres da Idade Média vêm aguilhoar os seus descendentes. Um grande número de homens que viviam no campo e do cultivo da terra, abandona o torrão natal e encontra meios de subsistência trabalhando para satisfazer as novas necessidades que se manifestam. A agricultura, que era a ocupação de todos, não é agora mais do que a do maior número. Ao lado dos que subsistem dos produtos do campo sem trabalhar, surge uma classe numerosa que vive trabalhando por conta própria, mas sem cultivar a terra" [Tocqueville, 1991, I: 1167-1168].
Alicerçado na análise dessa seqüência histórica, Tocqueville formula o seguinte princípio: a humanidade progride, ao longo da sua história, no terreno do pensamento, dos desejos e do poder. Eis as palavras do nosso autor a respeito: "Cada século, escapando das mãos do Criador, vem desenvolver o espírito humano, estender o círculo do pensamento, aumentar os desejos, fazer crescer o poder do homem; o pobre e o rico, cada um na sua esfera, concebe a idéia de novas satisfações que os seus antepassados ignoravam. Para satisfazer essas novas necessidades, às quais o cultivo da terra não pode bastar, uma parcela da população deixa todos os anos os trabalhos dos campos para se dedicar à indústria" [Tocqueville, 1991, I: 1161].
O pensador francês ilustra, da seguinte forma, o desenvolvimento histórico do princípio do progresso humano, que acaba de ser mencionado, destacando o caráter relativo das necessidades humanas e o papel que a cultura exerce na definição destas: "O homem nasce com necessidades e produz necessidades. As primeiras advêm da sua constituição física, as segundas do costume e da educação. Tenho mostrado que na origem das sociedades os homens praticamente não tinham senão necessidades naturais, somente buscavam viver; mas na medida em que as satisfações da vida se estendem mais, eles desenvolvem o hábito de se dedicar a algumas delas, e estas terminaram por se converter em algo tão necessário quanto a própria vida. Mencionarei o uso do tabaco, pois este é um objeto de luxo que penetrou até nos desertos e que desenvolveu entre os selvagens um deleite artificial, que é necessário satisfazer a qualquer preço. O tabaco é tão indispensável aos indígenas quanto o alimento, e eles são tentados a recorrer à caridade pública se se sentirem privados desse prazer, como se lhes faltasse a comida. Eles têm, pois, uma causa de mendicidade desconhecida para os seus pais. Isto que falei do tabaco aplica-se a uma quantidade de objetos sem os quais não saberíamos viver uma vida civilizada. Quanto mais uma sociedade for rica, produtiva, próspera, mais os deleites da maioria são variados e permanentes; quanto mais os deleites forem variados e permanentes, mais eles se assemelharão, pela força do costume e do exemplo, às verdadeiras necessidades. O homem civilizado está, pois, infinitamente mais exposto às vicissitudes do destino do que o homem selvagem. Aquilo que somente afeta a este último de tempos em tempos e em algumas circunstâncias, pode afetar sem cessar e em circunstâncias ordinárias ao homem civilizado. Com o círculo de seus deleites ele alargou o círculo das suas necessidades e oferece um flanco maior aos golpes da fortuna. Daí decorre o fato de que o pobre da Inglaterra parece quase rico ao pobre da França, e este ao indigente espanhol. Aquilo que falta ao Inglês nunca foi objeto de posse do Francês. E isso acontece também na medida em que se desce na escala social. Nos povos muito civilizados, a falta de um monte de coisas causa a miséria. No estado selvagem, a pobreza não consiste senão em não ter o que comer" [Tocqueville, 1991, I: 1163-1164].
b - Tratamento errado da pobreza
Levando em consideração essa confusão que a cultura humana termina estabelecendo entre necessidades artificiais e essenciais, Tocqueville acha que o progresso da civilização leva, também, a que a sociedade busque aliviar as necessidades dos que se sentem carentes. "Os progressos da civilização, frisa a respeito o nosso autor [Tocqueville, 1991, I: 1164] não expõem somente os homens a muitas novas misérias; levam ainda a sociedade a aliviar misérias que, numa sociedade menos evoluída, ninguém sonharia em satisfazer. Num país onde a maioria está mal vestida, mal alojada, mal alimentada, quem pensa em dar ao pobre uma roupa limpa, um alimento fresco, uma moradia cômoda? Entre os Ingleses, onde o grande número, possuidor de todos esses bens, considera como um mal horrível não tê-los, a sociedade acha que deve socorrer os que estão privados desses bens, e cuida de desgraças que ela própria não descobriria em outras sociedades".
Essa tendência encontrou expressão na Inglaterra, pela primeira vez, na lei de Elizabeth I que dispunha a nomeação, em cada paróquia, de inspetores dos pobres (1601). Essa medida vinha responder à supressão, por Henrique VIII, de todas as comunidades dedicadas à caridade. Essa foi a remota origem da preocupação do governo inglês com a questão da pobreza, que nos países protestantes passou a ser responsabilidade do Estado, enquanto que no universo católico tradicionalmente foi incumbência da caridade privada [Tocqueville, 1991, I: 1164-1165].
A tentativa de equacionar o problema da pobreza pelo caminho da caridade pública ligada ao Estado, produziu um efeito paradoxal, num país de tradição protestante como a Inglaterra: passou a valorizar uma ética do não-trabalho e da irresponsabilidade, num contexto em que se valorizava exatamente o contrário. Tocqueville [1991, I: 1167-1168] escreve a respeito: "Tendo o pobre um direito absoluto ao auxílio da sociedade, e encontrando em todas partes uma administração pública organizada para lhe fornecer esse auxílio, vê-se logo renascer e se generalizar, num país protestante, os abusos que a Reforma tinha reprochado com razão a alguns países católicos. O homem, como todos os seres organizados, sente uma paixão natural pela ociosidade. Ele tem, contudo, dois motivos que o induzem ao trabalho: a necessidade de viver e o desejo de melhorar as condições de existência. A experiência tem provado que a maior parte dos homens não podem ser suficientemente estimulados ao trabalho senão pelo primeiro desses motivos e que o segundo somente motiva uma minoria. Ora, uma instituição caritativa, aberta indiscriminadamente a todos aqueles que sentem necessidade, ou uma lei que dê a todos os pobres, qualquer que seja a origem de sua pobreza, um direito ao auxílio público, arrefece ou destrui o primeiro estímulo e somente deixa intacto o segundo (...)".
Tocqueville é claro na sua crítica à forma estatal da caridade: para ele, toda medida contra a pobreza, alicerçada numa estrutura burocrática permanente, produz a preguiça social. O nosso autor se antecipava profeticamente das dificuldades encontradas hoje pela administração pública americana, no que tange à erradicação da pobreza, mediante a intervenção assistencialista do Estado. Eis as suas palavras a respeito deste tópico: "Toda medida que alicerça a caridade legal sobre uma base permanente e que lhe confere uma forma administrativa, cria pois uma classe ociosa e preguiçosa, que vive às custas da classe industrial e trabalhadora. Essa é, senão o seu resultado imediato, pelo menos a sua conseqüência inevitável. Ela reproduz todos os vícios do sistema monástico, menos as altas idéias de moralidade e de religião que amiúde vinham se juntar a ele. Uma lei semelhante é um germe venenoso, depositado no seio da legislação; as circunstâncias, como na América, podem impedir o germe de se desenvolver rapidamente, mas não chegam a destruí-lo, e se a atual geração escapa à sua influência, ele devorará o bem-estar das gerações no futuro" [Tocqueville, 1991, I: 1170].
De outro lado, o nosso autor elenca as perniciosas conseqüências que tal legislação enseja, do ângulo existencial. A respeito, frisa Tocqueville [1991, I: 1171]: "Não há nada que, em geral, eleve e sustente mais alto o espírito humano do que a idéia de direitos. Encontra-se na idéia do direito alguma coisa de grande e de viril, que tira à demanda o seu caráter suplicante, e coloca aquele que pede no mesmo nível do que aquele que atende a petição. Mas o direito que o pobre tem de receber a assistência da sociedade possui esta caraterística particular, que consiste no fato de que em lugar de dignificar o coração do homem que exerce esse direito, o rebaixa. Nos países onde a legislação não abre caminho a semelhante recurso, o pobre, ao se dirigir à caridade individual, reconhece, é verdade, a sua situação de inferioridade face ao resto dos seus semelhantes; mas reconhece isso em segredo e por um tempo limitado. Mas no momento em que o indigente está inscrito na lista dos indigentes da sua paróquia, ele pode, sem dúvida, reclamar com segurança o auxílio. Ora, o que é a obtenção desse direito, senão a manifestação autêntica da miséria, da fraqueza, da imoralidade daquele que é beneficiado por ele? Os direitos ordinários são reconhecidos aos homens, em virtude de alguma vantagem pessoal adquirida por eles sobre o seu semelhante. O direito à assistência pública é, porém, concedido em razão de uma inferioridade reconhecida. Os direitos ordinários destacam e explicitam a vantagem alegada, enquanto que o direito à assistência pública coloca à luz do dia a inferioridade apontada e a legaliza".
O nosso autor é mais rigoroso ainda: considera que não há nada a esperar de quem foi corrompido pela caridade pública. "O que se pode esperar de um homem, frisa Tocqueville [199, I: 1172], cuja posição não pode melhorar, pois perdeu o respeito dos seus semelhantes, que é a condição primeira de qualquer progresso; cuja sorte não poderia ser pior, pois tendo-se reduzido à satisfação das necessidades mais prementes, está seguro de que elas serão sempre satisfeitas? Que reação resta à consciência e à atividade humanas, num ser assim acanhado por todos os lados, que vive sem esperança e sem temor, pois conhece o porvir como faz o animal, porque ignora as circunstâncias do destino, reduzido, como ele, ao presente e ao que o presente pode oferecer de satisfações ignóbeis e passageiras a uma natureza embrutecida?"
Não estranha, face a estes raciocínios, o duro julgamento que o nosso autor faz da assistência estatal na Inglaterra: os pobres, dependentes dela, viraram selvagens. A respeito, escreve Tocqueville [1991, I: 1173-ll74]: "Lide todos os livros escritos na Inglaterra sobre a pobreza; estudai as pesquisas ordenadas pelo Parlamento britânico; acompanhai as discussões que tiveram lugar na Câmara dos Lordes e na dos Comuns sobre essa difícil questão; uma única queixa ressoará nos vossos ouvidos: deplora-se o estado de degradação em que caíram as classes inferiores desse grande povo! O número dos filhos naturais aumenta sem cessar; o dos criminosos cresce rapidamente; a população indigente se multiplica sem medida; o espírito de previsão e de poupança é cada vez mais alheio ao pobre; enquanto que no resto da nação as luzes se expandem, os costumes se morigeram, os gostos viram mais delicados, os hábitos mais polidos, - ela, a população carente, permanece imóvel ou melhor, regride; dir-se-ia que retrocede em direção à barbárie e, colocada no meio às maravilhas da civilização, parece se aproximar, pelas idéias e pelas inclinações, do homem selvagem!".
A caridade pública produziu também outro mal aos pobres da Inglaterra: roubou-lhes a liberdade, tornado-os novamente servos da gleba. "A caridade legal, prossegue Tocqueville, não exerce uma menos funesta influência sobre a liberdade do pobre que sobre a sua moralidade. Isso se demonstra claramente: a partir do momento em que é uma obrigação estrita das comunas socorrer os indigentes, segue-se imediata e forçosamente esta conseqüência: que as comunas só devem socorrer os pobres domiciliados no seu território; é o único meio justo de igualar o ônus público emergente da lei (...). Ora, como num país onde a caridade pública está organizada, a caridade individual é quase desconhecida, daí resulta que aquele que é incapaz de ganhar a sua vida por causa das desgraças ou dos vícios, é condenado, sob pena de morte, a não deixar o lugar onde nasceu. Se ele daí se afastar, marcha para um país inimigo; o interesse individual das comunas, em outras circunstâncias mais poderoso e ativo do que a polícia nacional melhor organizada, denuncia a sua chegada, vigia os seus passos, e se ele deseja se fixar numa nova moradia, o delata à força pública que o reconduz ao lugar de partida. Pela legislação sobre os pobres, os Ingleses imobilizaram uma sexta parte da sua população. Eles fixaram-na à terra, como acontecia com os camponeses da Idade Média. A gleba forçava o homem a permanecer contra a sua vontade no seu lugar de nascimento; a caridade legal impede-o de querer se afastar dele (...).
O nosso autor é cético quanto as reformas que os Ingleses realizaram, na sua época, em relação à lei dos pobres (1834). O motivo do seu ceticismo é claro: a caridade legal nada resolve e tudo piora. Eis a sua conclusão a respeito: "Estou profundamente convencido de que qualquer sistema regular, permanente, administrativo, cuja finalidade seja assistir às necessidades do pobre, fará nascer mais misérias do que as que pode sanar, depravará a população que deseja assistir e consolar, reduzirá com o tempo os ricos simplesmente ao papel de funcionários dos pobres, acabará com as fontes da poupança, parará a acumulação de capitais, deterá o progresso do comércio, entorpecerá a atividade e a indústria humanas e terminará por conduzir a uma revolução violenta no Estado, quando o número dos que recebem esmola for quase do tamanho dos que a pagam e quando o indigente, não conseguindo tirar dos ricos empobrecidos o necessário para satisfazer as suas necessidades, achará mais fácil expoliá-los de uma vez por todas dos seus bens do que solicitar os seus auxílios".
c - Tratamento certo da pobreza
Tocqueville parte da definição moral do princípio de beneficência. Esse princípio alicerça-se numa espécie de imperativo categórico kantiano: deve poder se aplicar universalmente e as suas conseqüências devem estar de acordo com a moral. Eis as palavras do pensador francês a respeito: "Certamente estou longe de pretender colocar aqui em tela de juízo a beneficência que é, ao mesmo tempo, a mais natural, a mais bela e a mais santa das virtudes. Mas penso que não há princípio tão bom cujas conseqüências não possam ser todas admitidas como boas. Creio que a beneficência deve ser uma virtude máscula e fundada racionalmente, não um gosto frágil e irrefletido; que não se deve fazer o bem que mais agrada àquele que o faz, mas o mais verdadeiramente útil àquele que o recebe; não aquele que alivia da forma mais completa as misérias de alguns, mas aquele que serve ao bem-estar do maior número. Eu não saberia calcular a beneficência senão desta forma; compreendida num outro sentido, ela é ainda um instinto sublime, mas não merece a meu ver o nome de virtude" [Tocqueville, 1991, I: 1177-1178].
A seguir, o nosso autor discute se a solução da problemática da pobreza mediante a aplicação do princípio da beneficência, pode se dar pelo caminho da caridade veiculada pela iniciativa individual. Tocqueville não duvida em reconhecer a utilidade dessa modalidade de ação social; mas reconhece que é insuficiente para equacionar o problema da pobreza. Em relação a este ponto, o nosso autor escreve: "Resta, pois, a caridade particular; ela produz efeitos úteis. A sua própria fragilidade garante contra os seus perigos; ela alivia muitas misérias e não faz nascer outras. Mas, face ao desenvolvimento progressivo das classes industriais e a todos os males que a civilização mistura aos bens inestimáveis que ela produz, a caridade individual parece bem fraca. Suficiente na Idade Média, quando o ardor religioso lhe dava uma imensa energia, e enquanto a sua tarefa era menos difícil de cumprir, continuaria a sê-lo nos nossos dias, quando o fardo que ela carrega é pesado e no momento em que as suas forças são frágeis? A caridade individual é um agente poderoso que a sociedade não pode desprezar, mas no qual seria imprudente centrar todas as esperanças. Ela é apenas um dos meios e não poderia sê-lo exclusivamente" [Tocqueville, 1991, I: 1179].
O pensador francês examina, a seguir, se o caminho para o equacionamento da problemática da pobreza seria o da associação das pessoas caridosas. Esse tipo de solução, ao regularizar os auxílios, poderia dar à beneficência individual mais atividade e maior poder. Tocqueville não deixa de reconhecer a enorme utilidade da colaboração entre este tipo de ação e a "caridade pública", ministrada pelo Estado. Mas, além de reconhecer a fragilidade de soluções necessariamente temporárias, que se organizam nos momentos das grandes calamidades, considera que a "esmola do Estado" deve ser tão passageira, tão instantânea e tão imprevisível quanto as calamidades que busca remediar [Tocqueville, 1991, I: 1178].
O nosso pensador enxerga uma solução mais larga: a formulação de uma política social, que abarque três grandes aspectos: educação dos pobres, estímulo à propriedade fundiária dos camponeses e estímulo à poupança dos operários das indústrias. A finalidade dessa política social consistiria em estabelecer um equilíbrio entre a produção de bens e o seu consumo, a fim de evitar as distorções causadas no mundo moderno pelo sistema produtivo.
A propósito deste ponto, escreve Tocqueville [1991, I: 1180]: "(...) Após ter sonhado em aliviar os males, não seria útil buscar como preveni-los? Não seria possível impedir o rápido deslocamento da população, de tal forma que os homens não abandonem a terra e não se mudem para a indústria, senão quando esta possa responder mais facilmente às suas necessidades? A soma das riquezas nacionais não pode continuar a aumentar, sem que uma parte dos que produzem essas riquezas tenham que amaldiçoar a prosperidade que fazem nascer? É impossível estabelecer um relacionamento mais fixo e mais regular entre a produção e o consumo das matérias manufaturadas? Não se pode facilitar às classes operárias a acumulação da poupança que, nos tempos de calamidade industrial, lhes permita esperar, sem morrer, o retorno da fortuna?"
No fundo da proposta tocquevilliana há três convicções de profunda fé liberal: em primeiro lugar, é possível, mediante uma inteligente legislação, criar os mecanismos institucionais que permitam corrigir os desvios do sistema produtivo, a fim de torná-lo mais justo, de acordo com o ideal democrático; em segundo lugar, a legislação deve atender à educação do homem, que é o meio adequado para lhe permitir desenvolver a sua inteligência; em terceiro lugar, a legislação deve-se voltar, também, para a democratização da propriedade, que é o meio através do qual os pobres podem recuperar a dignidade perdida, o seu sentido de liberdade, a fim de que se integrem produtivamente à sociedade moderna.
Em relação à educação, frisa Tocqueville [1991, I: 1178]: "Entendo (...) a caridade pública como abrir escolas para os filhos dos pobres, a fim de fornecer gratuitamente à inteligência os meios de adquirir, mediante o trabalho, os bens do corpo".
No que tange à legislação que democratize a propriedade, o nosso pensador destaca dois tipos de medidas: umas, dirigidas ao homem do campo, a fim de evitar o êxodo rural; outras, dirigidas ao operariado urbano, a fim de estimular, nele, o sentido de responsabilidade, mediante o desenvolvimento da poupança.
A respeito do primeiro aspecto, escreve Tocqueville [1991, I: 1183-1184]: "Assim, pois, não é a pobreza a que torna o agricultor imprevidente e desorganizado. (...), (mas) a ausência total de qualquer propriedade, a dependência absoluta do azar. Considero que entre os meios de dar aos homens os sentimentos da ordem, da atividade e da economia, não conheço um mais poderoso que o de lhes facilitar o acesso à propriedade fundiária (...). O meio mais eficaz de prevenir a pobreza nas classes agrícolas é, pois, com certeza, a divisão da propriedade fundiária. Essa divisão existe entre nós, na França, e não devemos temer, pois, que se instalem, aqui, grandes e permanentes misérias. Mas pode-se ainda melhorar muito o conforto dessas classes e tornar os males individuais menos cruéis e mais raros. É dever do governo e das gentes de bem trabalhar para que isso aconteça".
O nosso pensador considerava que, no que tange à divisão fundiária, o problema era muito grande na Inglaterra, devido à concentração de terras em poucas mãos. Os camponeses despossuídos das suas pequenas propriedades iam para as cidades, engrossar o exército de proletários. A expansão da pequena propriedade fundiária na França, de outro lado, não foi obra da Revolução de 1789, mas ocorreu paulatinamente ao longo dos séculos XVII e XVIII, como paradoxal efeito do desmantelamento centralizador das instituições feudais. O nosso autor dedicou uma longa análise ao fenômeno, na sua obra O Antigo Regime e a Revolução [Tocqueville, 1988: 117-127; 211-227; 259-269].
No que tange à legislação que deveria estimular no operariado urbano o sentimento de responsabilidade, Tocqueville [1991, I: 1187] escreve: "A meu modo de ver, o problema a ser resolvido é este: como encontrar um meio de dar ao operário industrial, bem como ao pequeno agricultor, o espírito e os hábitos da propriedade. Dois meios principais apresentam-se: o primeiro e o que a primeira vista parece mais eficaz, consistiria em dar ao operário um interesse na sua fábrica. Isso produziria, nas classes industriais, efeitos semelhantes aos que enseja a divisão da propriedade fundiária na classe agrícola".
O nosso autor examina detalhadamente como se poderia dar essa solução na França da sua época. Considera que, embora ideal, a participação do operariado na gestão e nos lucros das empresas é uma medida que, pela excessiva politização dos sindicatos, não tem sido possível instaurar. Mas acha que, no futuro, mediante o amadurecimento da classe operária, graças a um sindicalismo mais evoluído e ao desenvolvimento da instrução, será possível chegar a esse tipo de participação, que tornaria o operário efetivamente proprietário no seio das indústrias. Por enquanto, Tocqueville considera que a solução é estimular a poupança, mediante uma adequada política salarial e a criação de mecanismos financeiros que a tornem segura e atraente aos trabalhadores. A respeito, o nosso autor frisa: "Posto que não é possível dar as operários um interesse de propriedade na fábrica, pode-se, ao menos, facilitar-lhes, à sombra dos salários que retiram da fábrica, a criação de uma propriedade independente. Favorecer a poupança sobre os salários e oferecer aos operários um método fácil e seguro de capitalizar as suas poupanças e de fazê-las produzir lucros, tais são, pois, os únicos meios de que a sociedade pode se servir, nos nossos dias, no esforço de combater os maus efeitos da concentração das propriedades mobiliarias nas mesmas mãos, a fim de dar à classe industrial o espírito e os hábitos da propriedade, que uma grande porção da classe agrícola já possui. Toda a questão reduz-se, pois, a buscar os meios que possam permitir ao pobre capitalizar e tornar produtivas as suas poupanças" [Tocqueville, 1991, I: 1188].
Qual seria o mecanismo financeiro ideal, na França, para estimular e gerir a poupança dos trabalhadores? O nosso autor é cético quanto à possibilidade de o Estado desempenhar a contento essa função, devido aos seus incontroláveis gastos e ás desgraças que a imprevidência do Leviatã tem causado na história do país. A respeito, escreve: "Depois de cem anos, o Estado somente produziu, mais de uma vez, a falência: o Antigo Regime a produziu, a Convenção também. Durante os últimos cinqüenta anos, o governo da França mudou radicalmente sete vezes e foi reformado em muitas outras oportunidades. Durante esse período, os franceses experimentaram 23 anos de guerra terrível e duas invasões quase totais do seu território. É triste recordar esses fatos, mas a prudência exige que eles não sejam esquecidos. Seria prudente, justamente num século de transição como o nosso, num século polarizado, pela sua conjuntura histórica, por grandes agitações (...) entregar nas mãos do governo, quaisquer que sejam a sua forma e o seu representante atual, toda a fortuna de um tão grande número de homens? (...)" [Tocqueville, 1991, I: 1191].
O nosso autor apela para uma solução original: reformar as caixas de poupança então existentes, de maneira que fossem instituições de crédito descentralizadas, que possibilitassem a aplicação do dinheiro arrecadado pela poupança dos trabalhadores, em obras que beneficiassem as várias regiões [Tocqueville, 1991, I: 1194]. De outro lado, o pensador francês propõe a criação de uma espécie de "banco dos pobres" que substituísse os montepios, considerados por ele como "estabelecimentos com ajuda dos quais o pobre é arruinado a fim de lhe garantir um refúgio na sua miséria" [Tocqueville, 1991, I: 1195].
O perfil da instituição bancária imaginada pelo nosso autor seria o seguinte: "Nesse sistema, a administração receberia de um lado as poupanças e, de outro, dar-lhes-ia aplicação. Os pobres que possuem dinheiro para emprestar o depositariam nas mãos de uma administração que, mediante contrato garantido por penhor, remetê-lo-ia aos pobres que teriam necessidade de empréstimo. A administração não seria mais do que um intermediário entre esses dois grupos. Na realidade, seria o pobre capitalizado ou momentaneamente favorecido pela fortuna quem emprestaria com juros a sua poupança ao pobre pródigo ou em situação precária. Nada de mais simples, de mais prático nem de mais moral do que tal sistema: as poupanças dos pobres, administradas dessa forma, não poriam em risco nem o Estado nem os pobres mesmos, pois nada há mais seguro no mundo do que um empréstimo garantido por penhor. Além do mais, esse seria um verdadeiro banco dos pobres, cujo capital seria fornecido pelos próprios pobres" [Tocqueville, 1991, I: 1195].
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