Nunca é demais refletir sobre a forma em que os despotismos vão se apossando da vida de uma Nação. Especialmente, nestes tempos de lulo-petismo deslavado e cínico, que faz questão de deitar por terra as instituições, a fim de passar o rolo compressor do poder hegemônico sobre a legislação eleitoral e a decência política. É a conquista do poder a qualquer preço. Isso é o que está na ordem do dia.
Alertava para isso, recentemente, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em artigo publicado em 4 de abril, chamava a atenção para o fato de que a vitória da Dilma-PT vai transformar aliados em vassalos e atropelar a democracia. Frisava Fernando Henrique: “Por trás das duas candidaturas polares há um embate maior. A tendência que vem marcando os últimos 18 meses do atual governo nos levará, pouco a pouco, para um modelo de sociedade que se baseia na predominância de uma forma de capitalismo na qual governo e algumas grandes corporações, especialmente públicas, unem-se sob a tutela de uma burocracia permeada por interesses corporativos e partidários. (...) Especialmente de um partido cujo programa recente se descola da tradição democrática brasileira para dizer o mínimo. Cada vez mais nos aproximamos de uma forma de organização política inspirada num capitalismo com forte influência burocrática e predomínio de um partido. Tudo sob uma liderança habilidosa que ajeita interesses contraditórios e camufla a reorganização política que se está esboçando”.
O ex-presidente Fernando Henrique terminava o seu alerta destacando o risco do pensamento único que empolga ao lulo-petismo, e que tem como finalidade conduzir o país a uma forma perversa de absolutismo sindical. Frisava a respeito: “Agora, com as eleições presidenciais se aproximando, o que conta (para eles) é ganhar as eleições. Depois, a força do Executivo se encarregará de diluir eventuais resistências de governadores e parlamentares que se opuserem à marcha do processo em curso, e transformará os aliados em vassalos. O resultado será o mesmo: pouco a pouco, o pensamento único, agora sim, esmagará os anseios dos que sustentam uma visão aberta da sociedade e se opõem ao capitalismo de Estado controlado por forças partidárias quase únicas infiltradas na burocracia do Estado”.
Os clássicos do pensamento liberal também chamaram a atenção para esse fato, notadamente no caso da história francesa. Os liberais doutrinários (cujos precursores foram Madame de Staël e Benjamin Constant, sendo François Guizot a figura de prol), bem como os liberais que alargaram a temática da liberdade no âmbito democrático (sendo Tocqueville e Aron as figuras mais expressivas), sempre ficaram preocupados com essa avalanche do populismo por cima das instituições. Para eles, o povo francês, preso aos afãs da vida privada, poderia, em muitos momentos, abrir mão da liberdade e da luta na defesa da sua dignidade como Nação, em troca do bem-estar garantido pelo déspota de plantão. Mas, nesses instantes, os Franceses estariam se afastando do ideal republicano. O alerta valia, segundo Tocqueville, inclusive para o povo americano, tão sensível à conquista do bem-estar material. Para o autor de A Democracia na América, uma tentação que se desenharia sempre no horizonte da vida democrática americana era a de abrir mão da luta pela liberdade, em prol da manutenção do conforto.
A República, como lembrava Tocqueville, é o reinado tranqüilo do povo sobre si mesmo, o estreito laço que existe entre a Nação e as instituições. Já Jacques Necker (o pai de Madame de Staël, que foi Ministro das Finanças de Luís XVI) tinha se antecipado a essa concepção, quando frisava que a vantagem da representação política, na vida republicana, consiste no estreitamento de laços entre os cidadãos ativos e os seus Governantes. A propósito, escrevia: "Temo-lo já dito, a intervenção do povo na escolha dos homens públicos não é essencialmente necessária à bondade dessa escolha, nem é uma garantia disso. E pode ser possível que se chegasse ao mesmo objetivo de forma igualmente segura, sem colocar em movimento cinco milhões de Cidadãos ativos. A primeira utilidade da participação do povo na nomeação dos seus Magistrados, dos seus Legisladores, consiste em estabelecer uma ligação contínua, um vínculo mais ou menos estreito entre os Chefes do Estado e a massa inteira dos Cidadãos. Destruamos essa ligação, seqüestremos ao povo o único direito político que pode exercer, troquemos esse direito por algo semelhante, adotando uma simples ficção, e não haverá mais República, ou ela só existirá no papel" [Necker, Últimas perspectivas de política e finanças, 1802].
Madame de Staël considerava que o despotismo bonapartista, que terminou desaguando na entronização de Napoleão como Imperador em 1804 ia se anunciando, como o longínquo furacão que antecipa a sua força destrutiva com uma estranha agitação do ar percebida por animais e aborígines. Esse sentimento, que crescia com o passar do tempo, era o de uma tirania à espreita, que se aproximava passo a passo, galgando progressivamente o poder e ameaçando a liberdade e a dignidade moral. A respeito, escrevia: "Como jamais consegui pensar em nenhum interesse político desvinculado do amor à liberdade, cada dia eu estava mais aflita com a revolução de 18 Brumário (de 1802), cada dia eu apreendia mais um traço de arrogância ou de astúcia naquele que se apossava gradualmente do poder. Refletia comigo mesma para tentar combater, na medida do possível, o sentimento que me dominava, mas ele renascia sempre, apesar de mim. Eu via se aproximar a tirania, ora a passos de lobo, ora com a cabeça erguida, mas parecia-me que, de uma hora para outra, estaríamos mais oprimidos e que, bem cedo, toda a vida moral estaria encadeada" [Madame de Staël, Dez anos de exílio, 1813].
Incomodava particularmente a Madame de Staël a retórica bonapartista, composta por um discurso populista alicerçado na ameaça das armas. A Revolução de 1789 tinha nivelado a Nação francesa, quebrando os elos entre as antigas ordens, e era mais fácil agora ao futuro amo da Europa tomar posse daquela. Em relação a esse ponto, ela escrevia: "A Revolução tinha feito tabula rasa em face de Bonaparte e ele só tinha raciocínios para combater, espécie de arma com a qual ele se sentia muito à vontade e à qual ele opunha, quando lhe convinha, uma espécie de imbróglio veemente, que parecia muito lúcido com o auxílio das baionetas, nas quais ele poderia se apoiar" [Dez anos de exílio].
De forma semelhante a Chateaubriand, Madame de Staël reconhecia um único ponto positivo na administração napoleônica: aumentou as riquezas da França. Mas a finalidade é que era ruim: isso foi conseguido para melhor o déspota se apossar do que era de todos! A respeito, frisava a ilustre escritora: "O que havia de evidente era, de longe, a melhora das finanças e a ordem restabelecida em muitas áreas da administração. Napoleão era obrigado a passar pelo bem da nação para chegar à desgraça dela. Era preciso que ele juntasse as forças da nação, a fim de melhor se servir delas para a sua ambição pessoal" [Dez anos de exílio]. De positivo, o déspota só tinha a aparência. Se buscava aumentar a riqueza da França, era para melhor roubar os cidadãos mediante o confisco e os impostos esmagadores. A sua norma de comportamento era a negação da ética e se pautava unicamente pela vontade de poder, esmagando a dignidade das pessoas. "O seu grande talento consiste em amedrontar os fracos e tirar proveito dos homens imorais. Quando ele encontra a honestidade em algum lugar, poder-se-ia dizer que os seus artifícios sofrem um grande desconcerto, como quando o diabo é derrotado nas suas maquinações mediante o signo da cruz" [Dez anos de exílio].
Uma vez submetidos os mais diretos colaboradores na cúpula do poder, só restava ao déspota escravizar o resto da Nação. Como? De forma semelhante a como Max Weber considerava que se reforça o poder do governante nos Estados patrimoniais: destruindo sistematicamente todo sentimento de dignidade presente na sociedade. A respeito, escrevia Madame de Staël: "O exército político de Bonaparte compunha-se de trânsfugas dos dois partidos (monarquistas e republicanos). Uns lhe sacrificavam as suas obrigações para com a família dos Bourbons e os outros o seu amor à liberdade. Em todos os casos, não deveria estar presente, em seu reinado, uma forma independente de pensar, pois ele podia ser o rei dos interesses, mas jamais o das opiniões e, pela sua situação, assim como pelo seu caráter, ele sufocava, ao mesmo tempo, tudo que houvesse de nobre na realeza e na república, pois aviltava igualmente nobres e cidadãos. Quando todo o seu estabelecimento constitucional foi completado, um grande homem pronunciou acerca dessa ordem de coisas uma dessas palavras que ecoam pelos séculos afora: É uma monarquia - frisou Pitt (primeiro ministro inglês) - à qual só faltam a legitimidade e os limites. Ele poderia acrescentar que não havia monarquia verdadeiramente legítima senão aquela que tem limites" [Dez anos de exílio].
O Imperador antecipou-se, aliás, aos grandes comunicadores do século XX, ao encarar a nação como massa que poderia ser formatada de acordo com as informações (certas ou erradas, pouco importava), que lhe fossem repetidas dia e noite. Certamente Bonaparte ficaria ao lado de Goebbels nessa empresa, como o precursor deste. A respeito deste ponto, escreveu Madame de Staël: “O sistema de Bonaparte consistia em avançar mês a mês, passo a passo, na carreira do poder. Ele fazia espalhar com estardalhaço decisões que gostaria de tomar, a fim de sondar e ir preparando, desse modo, a opinião pública. De ordinário, preferia que se carregasse a tinta nas decisões que pretendia tomar, a fim de que, quando estas se tornassem concretas, aparecessem como mais brandas ao público do que se temia” [Dez anos de exílio].
Não pode haver glória legítima, no sentir de Madame de Staël, que não seja legitimada pela moral. A propósito, frisava: "A moral fornece os fundamentos sobre os quais a glória pode se levantar e a literatura, independentemente da sua aliança com a moral, contribui ainda, de maneira mais direta, à existência dessa glória, nobre estímulo de todas as virtudes públicas" [Acerca da Literatura considerada em suas relações com as instituições sociais, 1800]. Destaquemos, de passagem, que encontramos, aqui, a essência da posição romântica: o valor da literatura consiste no seu poder de elevar a moral de um país.
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