Pode-se estabelecer
uma periodização que abarque os principais momentos da evolução das idéias
filosóficas na América Latina,[1] se
atendermos ao critério formulado por Miguel Reale e Antônio Paim, consistente
em reconhecer que a criação filosófica decorre, na modernidade, mais da
discussão de problemas do que da formulação de perspectivas ou da construção de
sistemas.[2]
Efetivamente, a meditação
filosófica na América Latina obedeceu à discussão de determinados problemas,
que dominaram ao longo dos seguintes períodos: 1 - o colonial, 2 - o da
independência das metrópoles européias (até 1830, aproximadamente), 3 - o da
consolidação das instituições republicanas (na América espanhola), ou imperiais
e republicanas (no Brasil), até fins do século XIX e 4 - o correspondente ao
século XX.
1 - Período colonial. Estende-se de 1492, data da descoberta da América, até fins
do século XVIII. Nele, a problemática filosófica marcante, na meditação
latino-americana, corresponde ao chamado por Luís Washington Vita de “saber de
salvação”. Este consiste na formulação de uma antropologia e de uma ética à luz
da perspectiva transcendente,[3]
concebida no contexto dogmático da Segunda Escolástica espanhola e portuguesa,
pautada cartorialmente pela “Ratio Studiorum” (1598) que, no sentir de Fidelino
de Figueiredo, constituiu uma autêntica “alfândega cultural” sobre o mundo
ibero-americano. Representantes desse período foram, no contexto brasileiro,
Nuno Marques Pereira, autor no século XVIII do Compêndio narrativo do peregrino
da América e do lado hispano-americano o frade Alonso de la Vera Cruz,
que elaborou, em meados do século XVI (1554), na Real e Pontifícia Universidade
do México (criada em 1551), o primeiro Tratado de Filosofia na América.
Outros autores hispano-americanos de nomeada no século XVI foram os padres
Bartolomeu de Ledesma, Pedro Ortigosa, Antonio Rubio, Antonio Arias, Alfonso
Guerrero, Jerónimo de Escobar, Juan Martínez de Ripalda, etc., que no ensino
universitário desenvolveram, no México e na Nueva Granada, as teses
fundamentais da Segunda Escolástica.
Ponto central da
meditação filosófica do período era a justificativa da evangelização dos
aborígenes, no contexto da mais ampla ação de conquista predatória desfraldada
pelos Impérios espanhol e português. Isso não impediu, no entanto, que críticas
fossem endereçadas pelos pensadores do período à cupidez dos conquistadores,
que contrariava o direito consuetudinário castelhano e as Leis de Índias,
merecendo serem lembradas aqui as consignadas nos Sermões do padre Antônio
Vieira e nos escritos do padre Bartolomé de Las Casas.
2 - Período correspondente à Independência. Um problema básico é o relativo à
fundamentação das lutas em prol da libertação dos novos países em face das
antigas metrópoles. Três fontes teóricas passaram a inspirar a meditação
latino-americana do período no terreno político: a da Segunda Escolástica, que
no tocante à discussão dos fundamentos da soberania popular, alicerçava-se na
obra De
legibus ac de Deo legislatore (1613) do jesuíta espanhol Francisco Suárez; a do democratismo formulado
nas obras de Jean-Jacques Rousseau, A origem da desigualdade entre os homens (1753)
e Do
contrato social (1762), que inspiraram amplamente a Revolução Francesa;
por último, a do governo representativo tematizado por John Locke no seu Segundo
tratado sobre o governo civil (1689) e pelos ideólogos anglo-americanos
autores de O Federalista (1787).
É bem verdade que as
idéias do liberalismo anglo-americano não penetraram diretamente no universo
latino-americano, sendo definitiva a ação e o pensamento dos denominados doutrinários
franceses (Royer Collard e François Guizot, notadamente), bem como dos
precursores destes (Henry-Benjamin Constant de Rebecque e Madame de Staël),
como destacou, com muita propriedade, o pensador espanhol José Ortega y Gasset.[4]
Os prolegómenos das
lutas de independência na América espanhola foram animados, em boa medida, pela
meditação da Segunda Escolástica. Não há dúvidas quanto à inspiração em
Francisco Suárez, por exemplo, dos conjurados hispano-americanos do final do
século XVIII (nas revoltas dos denominados “comuneros” na Nueva Granada e
alhures), bem como dos “conjurados mineiros” no Brasil do mesmo período, dos precursores
da independência neo-granadina Camilo Torres e Antônio Nariño, ou das
reivindicações independentistas e libertárias do padre Hidalgo, no México.
Já os processos de
independência sofreram, paulatinamente, a influência quer do democratismo
rousseauniano (que constitui, por exemplo, o cerne do pensamento político de
Simón Rodríguez e do seu discípulo, o Libertador Simón Bolívar, bem como dos
liberais radicais brasileiros frei Caneca e Cipriano Barata), quer da teoria
lockeana do governo representativo (que animou, por exemplo, ao general
colombiano Francisco de Paula Santander e, principalmente, ao grande teórico
luso-brasileiro Silvestre Pinheiro Ferreira,
que formulou as bases da prática parlamentar do Império brasileiro, na
obra intitulada: Manual do cidadão num governo representativo, de 1834).
A discussão das bases
teóricas da libertação em face das metrópoles espanhola e portuguesa abrangeu,
no caso brasileiro, significativo trabalho teórico, em que estava presente uma
metafísica formulada em bases modernas, aberta à idéia de sistema (como é o caso
das Preleções
filosóficas de Silvestre Pinheiro Ferreira, de 1813). A filosofia deste
autor permitiu a superação do cientificismo embutido no empirismo mitigado, que
constituiu a doutrina imperante em Portugal no ciclo pombalino e no Brasil, nos
primórdios do século XIX. Já na América espanhola prevaleceu, no período, a
influência do utilitarismo de Jeremy Bentham, bem como a filosofia de Destutt
de Tracy que, junto com Condillac, foi adotado como texto oficial em Santa Fé
de Bogotá, a partir de 1825.
3 - Período de consolidação das instituições. Entre 1830 e o final do século XIX
formularam-se filosofias que permitiram a consolidação das novas instituições.
No Brasil, as principais contribuições foram as de Domingos Gonçalves de
Magalhães e Eduardo Ferreira França que, alicerçados no ecletismo
espiritualista de Maine de Biran e Victor Cousin, deitaram as bases
antropológicas para justificar o exercício da liberdade e fundamentar a idéia
de Nação no Segundo Reinado (1841-1889).
No contexto
hispano-americano, as instituições se consolidam parcialmente ao ensejo da
discussão da filosofia liberal, em contraposição ao democratismo rousseauniano
e ao tradicionalismo. Radicais como Ezequiel Rojas contrapõem-se, na Nueva
Granada, por exemplo, a liberais moderados como José Maria Samper ou a
tradicionalistas recalcitrantes como Sergio Arboleda. Ao contrário do que
aconteceu na América portuguesa, a América espanhola não conseguiu formular uma
filosofia que inspirasse a prática da representação e que permitisse dar estabilidade
às novas Repúblicas, que se esfacelaram em guerras civis sem fim.
Desenvolveu-se aguda discussão em torno ao binômio: herança ibérica - atraso, bem semelhante à efetivada, em Portugal,
pela Geração de 70, nas memoráveis Conferências do Cassino. Os principais
autores que tomaram parte nessa polêmica foram os chilenos Esteban Echeverría,
José Victorino Lastarria e Francisco Bilbao e os pensadores argentinos Domingo
Faustino Sarmiento e Juan Bautista Alberdi.
Mas seria o
positivismo, tanto no Brasil republicano (a partir de 1889), quanto na América
espanhola, a doutrina que inspirou a síntese filosófica que deu alicerce às
instituições, a partir de 1870. Os principais teóricos dessa corrente foram J.
Alfredo Pereira (Argentina), José Ingenieros (Uruguai), Enrique José Varona
(Cuba), Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Luís Pereira Barreto, Benjamin Constant
Botelho de Magalhães e Júlio de Castilhos (Brasil), Gabino Barreda, Justo
Sierra e Porfirio Díaz (México), González Prada (Peru), Lisandro Alvarado e Samuel
Darío Maldonado (Venezuela), os irmãos Lagarrigue (Chile) e Rafael Núñez
(Colômbia). Em geral, a versão do positivismo que prevaleceu na América Latina
foi uma heterodoxa mistura entre caudilhismo e comtismo, de que são
manifestações claras o castilhismo brasileiro e o porfirismo mexicano.
O final do século XIX
conheceu importante reação ao positivismo em vários países. Assim, encontramos
as contribuições de Tobias Barreto e Sílvio Romero (fundadores, no Brasil da
Escola do Recife), Coriolano Alberini e Alejandro Korn (Argentina), José
Vasconcelos e Antonio Caso (México), Alejandro O. Deustua (Peru), Fernando
González Ochoa e Danilo Cruz Vélez (Colômbia), etc. Em geral, essas reações
criticam, no positivismo, o seu conteúdo cientificista, bem como a feição
caudilhista dos regimes surgidos à sua sombra.
4 - Período correspondente ao século XX. Muito variadas são as correntes
desenvolvidas pelos pensadores latino-americanos neste período. Mais do que
mencioná-las exaustivamente, podemos fazer referência a alguns autores, bem
como aos problemas discutidos. A questão da fundamentação do conhecimento e da
liberdade numa perspectiva transcendental, herdeira do criticismo kantiano, foi
a tarefa de que se desincumbiu a Escola do Recife, no Brasil, no final do
século XIX. Tal vertente ensejou, na centúria subseqüente, a meditação
culturalista, corrente da qual os mais importantes expoentes são Miguel Reale,
Djacir Menezes, Antônio Paim, etc.
No contexto da
discussão acerca dos fundamentos transcendentes da pessoa, podemos destacar a
contribuição dada pelo argentino Francisco Romero. Tributário do vitalismo de Dilthey
e da axiologia de Scheler, Romero define a pessoa como “absoluta
transcendência”. Na trilha da tradição humanista ocidental, Daniel Cossío
Villegas assume, no México, a defesa de uma antropologia condizente com a
dignidade da pessoa, notadamente no que tange aos desdobramentos dessa
concepção no terreno político, com uma crítica bastante bem fundamentada à
tradição positivista e clânica do poder. Numa posição próxima à do culturalismo
de Miguel Reale, o pensador argentino Carlos Cossio é uma das principais
figuras hispano-americanas no terreno da filosofia do direito, especialidade em
que se destaca, outrossim, o mexicano Recasens Siches. Outros pensadores de
nomeada são os argentinos Risieri Frondizi, Angel Vasallo, Alberto Rougés,
Carlos Astrada, A. Sánchez Reulet, Rafael Virassoro, Eugenio Pucciarelli, etc.
No tocante à
fundamentação da idéia de pessoa numa perspectiva neotomista, podemos mencionar
os argentinos Arturo Derisi, Juan Sep0ich e Emílio Gourian; os brasileiros
Jackson de Figueiredo, Geraldo Van Acker, Urbano Zilles e Alceu amoroso Lima
(que adotou o pseudônimo de Tristão de Athayde); o chileno Clarence Finlayson e
os colombianos Rafael María Carrasquilla, Manuel José Sierra, José Vicente
Castro Silva, Francisco José González, Félix Henao Botero e Francisco Rengifo.
No terreno do
neopositivismo sobressaem, no Brasil, as figuras de Pontes de Miranda e
Leônidas Hegenberg. Filosofias espiritualistas são formuladas pelo brasileiro
Farias Brito e pelo colombiano Luis López de Mesa. O existencialismo
heideggeriano inspira, de outro lado, a perspectiva hermenêutica do pensador
português, radicado em Brasília, Eudoro de Souza, do brasileiro Vicente
Ferreira da Silva, do peruano Wagner de Reyna e do colombiano Carlos Bernardo
Gutiérrez.
Os mais importantes
historiadores contemporâneos das idéias são os brasileiros Antônio Paim, Luís
Washington Vita, Miguel Reale, Armando Correia Pacheco, João Cruz Costa e Jorge
Jaime de Souza Mendes; os argentinos Juan Carlos Torchía Estrada e Arturo
Andrés Roig; os mexicanos José Gaos, Leopoldo Zea e Antonio Ibargüengoitia
Chico; o uruguaio Arturo Ardao; o boliviano Guillermo Francovich; os peruanos
Augusto Salazar Bondy e Francisco Miró Quesada; o equatoriano Francisco Olmedo
Llorente; os venezuelanos Ernesto Mayz Vallenilla e Angel J. Capelletti e os
colombianos René Uribe Ferrer, Cayetano Betancur e Jaime Jaramillo Uribe.
Faltam, no entanto,
estudos abrangentes sobre a história do pensamento filosófico na América
Latina, terreno no qual vale a pena mencionar três realizações importantes: em
primeiro lugar, a clássica obra do espanhol José Ferrater Mora, intitulada: Diccionario
de Filosofia,[5] na qual
os autores ibéricos e ibero-americanos são estudados no seio da tradição
filosófica universal; em segundo lugar, o magno esforço realizado, nos Estados
Unidos, a partir de 1986, pelo estudioso de origem espanhola José Luis Gómez
Martínez, ao redor do Projeto Ensayo Hispânico[6], que foi
desenvolvido, a partir dos anos 80 do século passado, na Universidade de
Georgia. Não podemos deixar de mencionar, para terminar, a significativa
realização editorial efetivada em língua portuguesa sob a coordenação de
Antônio Paim, Francisco da Gama Caeiro e outros pesquisadores da Universidade
Católica Portuguesa, na Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia,[7] que
analisa o pensamento filosófico dos autores ibéricos e ibero-americanos no
contexto da história da cultura ocidental.
[1]
Este trabalho constitui versão ampliada do verbete “Filosofia na América
Latina”, que escrevi para a Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia
(sob a coordenação de Antônio Paim, Francisco da Gama Caeiro e outros), que foi
publicada em Lisboa, pela Editora Verbo, entre 1989 e 1992 (5 volumes).
[2]
Cf. REALE, Miguel. A Filosofia de Kant no Brasil.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1951. PAIM, Antônio. O estudo do pensamento
filosófico brasileiro. 1ª. Edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1979.
[3] A
perspectiva transcendente (formulada por Platão e sistematizada por
Aristóteles) consiste num ponto de vista último do conhecimento, que parte do
pressuposto de que a razão humana é capaz de atingir a coisa em si, ou a
substância do real. Distingue-se da perspectiva transcendental (formulada por
Hume e Kant), que parte do pressuposto de que a razão humana somente tem acesso
aos fenômenos, não à substância das coisas. Cf. a respeito, PAIM, Antônio, História
das idéias filosóficas no Brasil, 4ª edição, São Paulo: Convívio, 1984,
Capítulo I.
[4] GUIZOT, François. Historia de la civilización en Europa. (Prólogo de José Ortega y Gasset. Tradução
ao espanhol de Fernando Vela). 3ª edição em espanhol. Madrid: Alianza Editorial,
1990.
[5]
FERRATER Mora, José. Diccionario de Filosofía. Madrid:
Alianza Editorial, várias edições, 4 volumes.
[6]
As pesquisas feitas pela equipe internacional de estudiosos do pensamento
ibérico e ibero-americano aparecem no Portal do Projeto “Ensayo Hispánico”, no
seguinte endereço: WWW.ensayistas.org.
[7]
PAIM, Antônio; CAEIRO, Francisco da Gama; CHORÃO, João Bigotte et alii. Enciclopédia Luso-Brasileira de
Filosofia. Lisboa/São Paulo: Editora Verbo, 1989-1992, 5 volumes.
Ótima contribuição. Acrescentaste a matriz hispânica à nossa evolução luso-brasileira.
ResponderExcluirOBRIGADO, SELVINO, PELA TUA AVALIAÇÃO! GRANDE ABRAÇO
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