Talvez Alexis de Tocqueville
tenha sido um dos pensadores sociais e homens de ação que realizou, de forma
mais completa, a dupla feição da ética estudada por Max Weber (ética de
convicção e de responsabilidade) [cf. Weber, 1972]. O pensador francês,
efetivamente, ancorou tanto numa quanto noutra. Tocqueville cultua o ideal da
ética de convicção quando reflete acerca do seu compromisso como intelectual.
Mas desenvolve, outrossim, interessante
conceito de ética de responsabilidade em relação à problemática da pobreza. É
meu propósito, neste breve trabalho, abordar ambos os aspectos mencionados para
caracterizar as suas linhas gerais, destacando que os dois integram o conceito
tocquevilliano de ética pública.. Desenvolverei, portanto, dois itens: 1) A
ética intelectual de Tocqueville, atrelada à defesa incondicional da liberdade;
2) A ética política de Tocqueville, alicerçada no princípio da benevolência.
Concluirei destacando a íntima relação existente entre as duas éticas
concebidas pelo pensador francês.
1) A ética intelectual de
Tocqueville, atrelada à defesa incondicional da liberdade.- O pensador francês
considerava que o seu primeiro compromisso como intelectual consistia no
esclarecimento e na divulgação da verdade histórica, que conduzisse à conquista
da liberdade para todos os franceses. Neste seu empenho não admitia negociação.
Daí as suas fortes críticas aos socialistas, aos bonapartistas, aos seus pares,
os nobres (que tinham ancorado numa proposta de volta ao Ancien Régime), e aos próprios doutrinários, seus mestres, que
tinham fechado as conquistas liberais na gaiola de ouro do formalismo jurídico
e do elitismo burguês. Destaquemos, de entrada, a forma toda peculiar em que
Tocqueville entende a democracia, como conquista
da liberdade por parte de todos.
Três pontos saltam à vista
na ética intelectual tocquevilliana: em primeiro lugar, a fundamentação das
suas convicções morais no cristianismo, do qual o nosso autor tira o princípio
fundamental de que todos os seres humanos possuem a mesma dignidade e,
portanto, podem aspirar aos benefícios da liberdade. Em segundo lugar, a solidariedade com os seus concidadãos, que
correm perigo de cair nas mãos do despotismo, em lugar de conquistar a almejada
liberdade. Em terceiro lugar, o dever de testemunhar a verdade histórica que o
nosso autor descobriu na sua viagem à América. Essa verdade histórica resume-se
na seguinte afirmação: a liberdade democrática é possível!.
No tocante ao primeiro
ponto, Tocqueville [1977: 329] escreve o seguinte: "Todos os grandes escritores da
Antigüidade faziam parte da aristocracia dos senhores, ou pelo menos viam essa
aristocracia estabelecida sem contestação ante os seus olhos; o seu espírito,
depois de se haver expandido em várias direções, achou-se, pois, limitado por
aquela, e foi preciso que Jesus Cristo viesse à terra para fazer compreender
que todos os membros da espécie humana eram naturalmente semelhantes e
iguais".
Em relação ao segundo ponto,
assim escrevia Tocqueville (em carta inédita a Orglandes, de 24/11/1834) [apud
Mélonio, 1993: 30]: "Eu creio que cada um de nós deve prestar contas à
sociedade, tanto dos seus pensamentos quanto das suas forças. Quando vemos os
nossos semelhantes em perigo, é obrigação de cada um ir em socorro deles".
Em relação ao terceiro
ponto, o dever de testemunhar a verdade histórica descoberta na América,
Françoise Mélonio [1993: 30-31] escreve: "Tocqueville regressa, pois, da
América, investido do dever de testemunhar. O primeiro volume da Démocratie, que publica em 1835,
recebe desse objetivo apologético os traços que fazem dele o breviário da
democracia moderna. A Démocratie
é uma obra de auxílio ao povo em perigo (...). Ora, há urgência. Na Europa, os tempos se aproximam do triunfo da
democracia. Tocqueville assume a postura de um São João Batista da democracia
clamando no deserto: acordai antes que seja tarde demais!; o movimento
democrático não é, ainda, suficientemente
rápido como para desistir de dirigi-lo. A sorte [das nações européias] está nas suas mãos, mas bem cedo lhes
escapa. E que não se diga que é tarde demais para tentar. Contra os
pregoeiros de desgraças, os resignados, Tocqueville faz um apelo aos franceses
para que, sem delongas, tomem o seu destino nas próprias mãos, a exemplo da
América. Como os profetas e os pregadores, Tocqueville argumenta com os riscos
que representa uma conversão tardia".
2) A ética política de
Tocqueville, alicerçada no princípio da benevolência.- O pensador francês elaborou a sua concepção
de uma ética política, ao discutir a problemática da pobreza na sociedade
européia da sua época. As suas reflexões a respeito estão contidas em dois
escritos de 1835, intitulados "Memória sobre a pobreza" e
"Segundo artigo sobre a pobreza", que foram redigidos para a Sociedade Acadêmica de Cherbourg e que
integram os seus "Escritos Acadêmicos". Na edição das Obras de Tocqueville [primeiro volume, 1991], preparada por
André Jardin, Françoise Mélonio e Lise Queffélec, outros dois ensaios de
Tocqueville foram escolhidos: o "Discurso à Academia Francesa" de
1842 sobre a história da França e o "Discurso à Academia de Ciências
morais e políticas" de 1852, sobre a ciência política. A finalidade desses
"Escritos Acadêmicos" era, segundo aponta Françoise Mélonio [1991: I,
1626] discutir "como estruturar a sociedade moderna, aglutinando os
cidadãos desunidos, que a hierarquia de privilégios do Antigo Regime não
organizava mais".
Tocqueville analisa a
problemática da pobreza no contexto mais amplo da ciência social da época,
inspirada na fisiologia social de
Cabanis, Bichat, Pinel, Vicq d'Azyr, Saint-Simon, etc. [cf. Rosanvallon, 1985:
22; Mélonio, 1993: 33 seg.; Vélez-Rodríguez, 1997c: 22-45]. É bem verdade que o
nosso autor supera qualquer pretensão
cientificista, deixando de render tributo, portanto, ao vício do
historicismo. Mas utiliza o símil do corpo enfermo, para se referir à
problemática social. Em relação ao mencionado fenômeno na Inglaterra, por
exemplo, o nosso autor escreve: "(...) o pauperismo, esta enorme e
horrível chaga em um corpo vigoroso e saudável" [Tocqueville, 1991: I,
1174].
Fiel ao arquétipo epistemológico
mencionado, Tocqueville analisa a
problemática da pobreza em três etapas: sintomatologia, tratamento errado e
tratamento certo. Em relação à primeira etapa, o pensador francês destaca um
fato paradoxal: essa doença somente é visível em organismos fortes. As nações
que caminham rumo à modernidade, como a Inglaterra e a França, apresentam o
contraste entre geração da riqueza e pobreza, contraste que não é visível onde
a pobreza é a norma e a riqueza a exceção, como na Espanha ou em Portugal. O
nosso autor dedica especial atenção ao estudo da doença na Inglaterra, país que
conseguiu desenvolver os recursos econômicos de forma a permitir à maioria dos
seus cidadãos a conquista de uma vida
confortável e segura. Um sexto da população britânica, no sentir de
Tocqueville, é marginalizada pela pobreza. Mas justamente por estar a maioria
dos cidadãos em situação de conforto econômico, a marginalização do proletário
é mais visível entre os ingleses do que na própria França.
No que tange à França da sua
época, Tocqueville destaca que acontece algo semelhante: percebe-se mais a
pobreza ali onde houve maior desenvolvimento. A respeito, o nosso autor
escreve: "A média dos indigentes na França (...) é de um pobre para vinte
habitantes. Mas grandes diferenças são observáveis entre as diferentes partes
do mesmo reino. O departamento du Nord, que é com certeza o mais rico, o mais
populoso e o mais desenvolvido, sob todos os pontos de vista, tem cerca de um
sexto de sua população como dependente da caridade. Em Creuse, o mais pobre e
menos industrial de nossos departamentos, existe apenas um indigente para cada
cinqüenta e oito habitantes. Ainda de acordo com esta estatística, La Manche
está listado como tendo um indigente para cada vinte e seis habitantes". [Tocqueville, 1991: I, 1156].
Em relação à segunda etapa
na discussão da problemática da pobreza (o tratamento errado da mesma),
Tocqueville chama a atenção para a confusão que a cultura humana termina
estabelecendo entre necessidades artificiais e essenciais. O nosso pensador
considera que o progresso da civilização leva, também, a que a sociedade busque
aliviar as necessidades dos que se sentem carentes. "O progresso da
civilização - frisa a respeito [Tocqueville, 1991: I, 1164] - não apenas expõe
os homens a muitas infelicidades inéditas: ele também faz com que a sociedade
amenize as misérias que são totalmente desconhecidas nas sociedades menos
civilizadas. Em um país onde a maioria tem vestimentas ruins, habitações de má
qualidade, pouco alimento, quem pensaria em dar roupas limpas, comida saudável
e habitação confortável aos pobres? A maioria dos ingleses, tendo todas essas
coisas, considera a ausência delas um problema terrível; a sociedade crê estar
destinada a ajudar aqueles que não possuem tais confortos, e a curar os males
que não são sequer reconhecidos como tais em outros lugares".
Essa tendência encontrou
expressão na Inglaterra, pela primeira vez, na lei de Elizabeth I que dispunha
a nomeação, em cada paróquia, de inspetores dos pobres (1601). Essa medida
vinha responder à supressão, por Henrique VIII, de todas as comunidades
dedicadas à caridade. Essa foi a remota origem da preocupação do governo inglês
com a questão da pobreza, que nos países protestantes passou a ser
responsabilidade do Estado, enquanto que no universo católico tradicionalmente
foi incumbência da caridade privada [Tocqueville, 1991: I, 1164-1165].
Tocqueville é claro na sua
crítica à forma estatal da caridade: para ele, toda medida contra a pobreza,
alicerçada numa estrutura burocrática permanente, produz a preguiça social. O
nosso autor se antecipava profeticamente das dificuldades encontradas pelo Welfare State na erradicação da pobreza.
Eis as palavras de Tocqueville em relação ao tópico em apreço: "Qualquer
medida que estabeleça a caridade legal de forma permanente e lhe dá uma forma
administrativa cria, com isto, uma classe ociosa e preguiçosa, que vive às
custas da classe trabalhadora e industrial. Isto, pelo menos, é a conseqüência
inevitável, senão o resultado imediato. Ela reproduz todos os vícios do sistema
monástico, mas não os altos ideais de moralidade e religião que em geral
estavam associados a eles. Tal lei é uma semente ruim plantada no solo da
estrutura legal. Assim como na América, as circunstâncias podem prevenir que a
semente tenha um rápido desenvolvimento, mas não podem destrui-la, e se a
geração atual escapar à sua influência, o bem-estar das gerações seguintes será
devorado " [Tocqueville 1991: I, 1170].
Tocqueville formula os
elementos básicos do que poderíamos chamar de princípio da beneficência na ética pública, quando apresenta as
suas soluções, na terceira etapa da discussão da problemática da pobreza. O nosso pensador parte da
definição moral do princípio da beneficência. Esse princípio alicerça-se numa
espécie de imperativo categórico: deve poder se aplicar universalmente e as
suas conseqüências devem estar de acordo com a moral.. Eis as suas palavras a
respeito: "Obviamente não quero pôr em julgamento a beneficência, que é
uma das virtudes mais naturais, belas e sagradas. Mas penso que não existe
nenhum princípio, por melhor que seja, cujas conseqüências possam ser todas
consideradas boas. Ela deveria ser uma virtude humana e sensata, não uma
inclinação fraca e irresponsável. É necessário fazer o que for mais útil a quem
recebe, e não o que mais agrada ao doador; fazer o que melhor atende as
necessidades da maioria, e não o que é a salvação de poucos. Apenas desta forma
posso conceber a benevolência. Qualquer outra forma seria a representação de um
instinto ainda sublime, mas não mais me parece digna de receber o nome de
virtude" [Tocqueville, 1991: I, 1177-1178].
A seguir, o nosso autor
discute se a solução da problemática da pobreza mediante a aplicação do
princípio da beneficência, pode-se dar pelo caminho da caridade veiculada pela
iniciativa individual. Tocqueville não duvida em reconhecer a utilidade dessa
modalidade de ação social; mas pensa que é insuficiente para equacionar o
problema da pobreza.. Em relação a este ponto, o nosso autor escreve: "Resta-nos,
então, a caridade individual. Ela produz apenas bons resultados. Sua fraqueza
mesma é uma garantia quanto a conseqüências perigosas. Ela atenua a miséria,
mas não produz nenhuma outra. No entanto, quando contemplada à luz do
desenvolvimento progressivo das classes industriais, bem como de todos os males
que a civilização traz junto com o bem inestimável que produz, a caridade
individual parece bastante ineficaz. Ela era suficiente na Idade Média, quando
o entusiasmo religioso deu-lhe uma enorme energia, e quando era mais fácil de
ser realizada; mas seria ela hoje insuficiente, estando tão enfraquecida e
carregando um fardo tão pesado? A caridade privada é um poderoso agente que não
deve ser desprezado, mas seria imprudente depender dela. Ela é apenas um dos
meios" [Tocqueville, 1991,: I, 1179].
O pensador francês examina,
a seguir, se o caminho para o equacionamento da problemática da pobreza seria o
da associação das pessoas caridosas. Esse tipo de solução, ao regularizar os
auxílios, poderia dar à beneficência individual mais atividade e maior poder.
Tocqueville não deixa de reconhecer a enorme utilidade da colaboração entre
este tipo de ação e a "caridade pública", ministrada pelo Estado.
Mas, além de reconhecer a fragilidade de soluções necessariamente temporárias,
que se organizam nos momentos das grandes calamidades, considera que a
"esmola do Estado" deve ser tão passageira, tão instantânea e tão
imprevisível quanto as calamidades que busca remediar [Tocqueville, 1991: I,
1178].
O nosso pensador enxerga uma
solução mais larga. Trata-se da formulação de uma política social que abarque
três grandes aspectos: educação dos pobres, estímulo à propriedade fundiária
dos camponeses e estímulo à poupança dos operários das indústrias. A finalidade
dessa política social consistiria em estabelecer um equilíbrio entre a produção
de bens e o seu consumo, a fim de evitar as distorções causadas no mundo
moderno pelo sistema produtivo.
A propósito deste ponto,
escreve Tocqueville [1991: I, 1180]: "Depois de considerar curar males,
não seria útil tentar preveni-los? Existiria uma maneira de impedir o
deslocamento da população, de forma que os homens não deixem o campo e venham
para a indústria na cidade antes que tenha esta a capacidade de suprir suas
necessidades? Poderia a riqueza total de uma nação continuar a crescer sem que
uma parte dos trabalhadores amaldiçoe a prosperidade que eles mesmos produzem?
Seria possível estabelecer uma relação mais exata entre a produção e o consumo
de bens manufaturados? Seria possível ajudar as classes trabalhadoras a poupar
o fruto de seu trabalho, o que lhes permitiria esperar uma reviravolta em sua
sorte em épocas de calamidade pública, sem que morram?"
No fundo da proposta
tocquevilliana há três convicções de profunda fé liberal: em primeiro lugar, é
possível, mediante uma inteligente legislação, criar os mecanismos
institucionais que permitam corrigir os desvios do sistema produtivo, a fim de
torná-lo mais justo, de acordo com o ideal democrático; em segundo lugar, a
legislação deve atender à educação do homem, que é o meio adequado para lhe
permitir desenvolver a sua inteligência; em terceiro lugar, a legislação
deve-se voltar, também, para a democratização da propriedade, que é o meio
através do qual os pobres podem recuperar a dignidade perdida, a sua liberdade,
a fim de que se integrem produtivamente à sociedade moderna.
Em relação à educação, frisa
Tocqueville: "Entendo (...) a caridade pública como abrir escolas para os
filhos dos pobres a fim de fornecer gratuitamente à inteligência os meios de
adquirir, mediante o trabalho, os bens do corpo". Já no que tange à
legislação que democratize a propriedade, o nosso pensador destaca dois tipos
de medidas: umas, dirigidas ao homem do campo, a fim de evitar o êxodo rural; outras,
dirigidas ao operariado urbano, a fim de estimular, nele, o sentido de
responsabilidade, mediante o desenvolvimento da poupança.
A respeito do primeiro
aspecto, escreve Tocqueville [1991: I, 1183-1184]: "Considero que entre os
meios de dar aos homens os sentimentos da ordem da atividade e da economia, não
conheço um mais poderoso que o de lhes facilitar o acesso à propriedade
fundiária (...). O meio mais eficaz de prevenir a pobreza nas classes agrícolas é, pois, com certeza, a
divisão da propriedade fundiária. Essa divisão existe entre nós, na França, e
não devemos temer, pois, que se instalem, aqui, grandes e permanentes misérias.
Mas pode-se ainda melhorar muito o conforto dessas classes e tornar os males
individuais menos cruéis e mais raros. É dever do governo e das gentes de
bem trabalhar para que isso
aconteça".
O nosso pensador considerava
que, no que tange à divisão fundiária, o problema era muito grande na
Inglaterra, devido à concentração de terras em poucas mãos. Os camponeses
despojados das suas pequenas propriedades iam para as cidades engrossar o
exército de proletários. A expansão da pequena propriedade fundiária na França,
de outro lado, não foi obra da Revolução de 1789, mas ocorreu paulatinamente ao
longo dos séculos XVII e XVIII, como paradoxal efeito do desmantelamento
centralizador das instituições feudais. O nosso autor dedicou uma longa análise
ao fenômeno, na sua obra O Antigo
Regime e a Revolução [Tocqueville, 1988: 117-127; 211-227;
259-269].
No que tange à legislação
que deveria estimular no operariado urbano o sentimento de responsabilidade,
Tocqueville [1991: I, 1187] escreve: "A meu modo de ver, o problema a ser
resolvido é este: como encontrar um meio de dar ao operariado industrial, bem
como ao pequeno agricultor, o espírito e os hábitos da propriedade. Dois meios
principais apresentam-se: o primeiro (e a primeira vista o mais eficaz),
consistiria em estimular no operariado o surgimento de um interesse pessoal na
sua fábrica. Isso produziria, nas classes industriais, efeitos semelhantes aos
que enseja a divisão da propriedade fundiária na classe agrícola".
O nosso autor examina
detalhadamente como se poderia dar essa solução na França da sua época.
Considera que, embora ideal, a participação do operariado na gestão e nos lucros
das empresas é uma medida que, pela excessiva politização dos sindicatos, não
tem sido possível instaurar. Mas acha que, no futuro, mediante o amadurecimento da classe operária,
graças a um sindicalismo mais evoluído e ao desenvolvimento da instrução, será
possível chegar a esse tipo de participação, que tornaria o operário
efetivamente proprietário no seio das indústrias. Por enquanto, Tocqueville
considera que a solução é estimular a poupança, mediante uma adequada política
salarial e a criação de mecanismos financeiros que a tornem segura e atraente
aos trabalhadores. A respeito, o nosso autor frisa: "Posto que não é
possível dar aos operários um interesse de propriedade na fábrica, pode-se, ao
menos, facilitar-lhes, à sombra dos salários que retiram da fábrica, a criação
de uma propriedade independente. Favorecer a poupança sobre os salários e
oferecer aos operários um método fácil e seguro de capitalizar as suas
poupanças e de fazê-las produzir lucros, tais, são, pois, os únicos meios de
que a sociedade pode se servir, nos nossos dias, no esforço de combater os maus
efeitos da concentração das propriedades mobiliárias nas mesmas mãos, a fim de
dar à classe industrial o espírito e os hábitos da propriedade, que uma grande
porção da classe agrícola já possui. Toda a questão reduz-se, pois, a buscar os
meios que possam permitir ao pobre capitalizar e tornar produtivas as suas
poupanças" [Tocqueville, 1991: I, 1188].
Qual seria o mecanismo
financeiro ideal, na França, para estimular e gerir a poupança dos
trabalhadores? O nosso autor é cético quanto à possibilidade de o Estado
desempenhar a contento essa função, devido aos seus incontroláveis gastos e às
desgraças que a imprevidência do Leviatã tem causado na história do país. A
respeito, escreve: "Depois de cem anos, o Estado somente produziu, mais de
uma vez, a falência: o Antigo Regime a produziu, a Convenção também. Durante os
últimos cinqüenta anos o governo da França mudou radicalmente sete vezes e foi
reformado em muitas outras oportunidades. Durante esse período, os franceses
experimentaram 23 anos de guerra terrível e duas invasões quase totais do seu
território. É triste recordar esses fatos, mas a prudência exige que eles não
sejam esquecidos. Seria prudente, justamente num século de transição como o
nosso, num século polarizado, pela sua conjuntura histórica, por grandes
agitações (...) entregar nas mãos do governo, quaisquer que sejam a sua forma e
o seu representante atual, toda a fortuna de um tão grande número de
homens?"[Tocqueville, 1991: I, 1191].
O nosso autor apela para uma
solução original: reformar as caixas de poupança então existentes, de maneira
que fossem instituições de crédito descentralizadas, que possibilitassem a
aplicação do dinheiro arrecadado pela poupança dos trabalhadores, em obras que
beneficiassem as várias regiões [Tocqueville, 1991: I, 1194]. De outro lado, o
pensador francês propõe a criação de uma espécie de "banco dos
pobres" que substituísse os montepios, considerados por ele como
estabelecimentos graças aos quais o pobre é arruinado a fim de lhe garantir um
refúgio na sua miséria" [Tocqueville, 1991: I, 1195].
O perfil da instituição
bancária imaginada pelo nosso autor seria o seguinte: "Nesse sistema, a
administração receberia de um lado as poupanças e, de outro, dar-lhes-ia
aplicação. Os pobres que possuem dinheiro para emprestar o depositariam nas
mãos de uma administração que, mediante contrato garantido por penhor,
remetê-lo-ia aos pobres que teriam necessidade de empréstimo. A administração
não seria mais do que um intermediário
entre esses dois grupos. Na realidade, seria o pobre capitalizado ou
momentaneamente favorecido pela fortuna, quem emprestaria com juros a sua
poupança ao pobre pródigo ou em situação precária. Nada de mais simples, de
mais prático nem de mais moral do que tal sistema: as poupanças dos pobres,
administradas dessa forma, não poriam em risco nem o Estado nem os pobres
mesmos, pois nada há de mais seguro no mundo do que um empréstimo garantido por
penhor. Além do mais, esse seria um verdadeiro banco dos pobres, cujo capital
seria fornecido pelos próprios pobres" [Tocqueville, 1991: I, 1195].
Castelo de Tocqueville, na Normandia. (Fotografia do jornalista José Carlos de Lery Guimarães, janeiro de 1996. Álbum de família), |
Conclusão.- As duas dimensões da ética
no pensamento de Alexis de Tocqueville, a intelectual e a política, embora
tematizadas em contextos diferentes da sua obra, estão, contudo, profundamente
relacionadas. Diríamos que o ideal da ética política, materializado no
princípio da beneficência, torna-se possível unicamente mediante o cumprimento
do imperativo da defesa incondicional da liberdade para todos. O nosso
pensador, efetivamente, caracteriza o princípio da beneficência da seguinte
forma: fazer o bem mais verdadeiramente
útil àquele que o recebe, de forma que sirva ao bem-estar do maior número.
Ora, no pensamento tocquevilliano o bem mais radicalmente útil que se pode
conceber para alguém na sociedade consiste na conquista da liberdade. O
completo desenvolvimento do imperativo categórico da beneficência aponta, em
última instância, para essa finalidade. Trata-se de fazer aos excluídos da
sociedade da sua época, os proletários, o bem mais útil. Esse bem consiste, no
pensamento do nosso autor, em dotá-los dos meios que lhes possibilitem
reconquistar a dignidade perdida, alicerçada na liberdade. O proletário deve
ser estimulado, nas empresas, a ter algum interesse material, assim como o
homem do campo deve preservar as suas pequenas posses. Isso, basicamente,
porque a partir daí eles poderão reconstruir o ideal de luta pela liberdade. O
pensamento ético de Alexis de Tocqueville ancora, destarte, na mais pura
tradição liberal de Locke, Montesquieu, Jefferson e dos federalistas
americanos.
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