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"Dom Quixote" - Desenho em bico de pena de Gustavo Doré. |
O mundo das letras
hispânicas comemorou em 2005 os quatrocentos anos da primeira edição de
Dom Quixote de la Mancha. E comemora, neste ano, os quatrocentos anos
da morte de Miguel de Cervantes Saavedra, autor da clássica obra.
Dom Quixote é um marco
sinalizador dos valores fundantes da alma ibérica. Pretendo fazer, neste
ensaio, uma aproximação à imortal novela, do ponto de vista do que ela é para
um leitor hispano-americano que assumiu a cultura brasileira e que escreve em
português. Porque Dom Quixote fala ao homem brasileiro contemporâneo, em que
pese o clima de mediocridade reinante, ao ensejo do populismo desvairado e
iletrado que tomou conta do país. Não são poucos os que, por desconhecimento ou
incúria, ignoram a mensagem cervantina. Começarei por este último ponto.
Decidi-me a fazer este
balanço da grande obra, movido por um fato que me impactou muito, no início de
2005. Em curso de especialização na área da psicologia educacional, dado para
professores e outros profissionais na cidade de Juiz de Fora, mencionei, numa das
minhas aulas, a figura de Dom Quixote como modelo da que Weber denominou de
“ética da convicção”,
justamente porque o Cavaleiro da Triste Figura vivenciou até as últimas
conseqüências o ideal de agir movido pelas próprias convicções, custasse o que
custasse e sem enxergar os efeitos dos atos praticados. Dom Quixote, dizia eu,
sedimentou na cultura ibérica o ideal de comportamento cavalheiresco, que age
em função da honra e dos ideais de justiça, mesmo que no cumprimento da sua
missão apareça como deslocado no tempo e seja avaliado pelos seus concidadãos
como louco varrido.
Qual foi a minha
surpresa quando, ao findar as aulas, uma professora, aluna do mencionado curso,
apareceu com um belíssimo presente: a edição completa de O Engenhoso
Fidalgo Dom Quichote de la Mancha (com a grafia francesa, que denota a
antigüidade da publicação, sem data), impressa na Oficina das Artes Gráficas no
Porto para a Editora Lello & Irmão, a partir da tradução realizada pelos
viscondes De Castilho e De Azevedo, com desenhos de Gustavo Doré, gravados por
H. Pisan. Os dois volumes, belamente encadernados, em papel de luxo e com
dimensões de 37,5 X 29,5 centímetros, fariam as delícias de qualquer livreiro
de antiquário, não fosse o estado deplorável em que se encontravam: as capas,
parcialmente destruídas pelo fogo e a quase totalidade das páginas coladas,
devido à providencial água que foi jogada sobre elas, para apagar as chamas,
que teriam, certamente, consumido a bela obra. A história que me contou a
professora foi verdadeiramente estarrecedora: a diretora do colégio estadual,
onde ela lecionava, decidiu fazer uma faxina na biblioteca, condenando à
fogueira os livros inúteis, entre os quais a imortal obra de Cervantes. Como eu
tinha falado de Dom Quixote nas aulas, a minha aluna decidiu salvar os livros
da total destruição, e solicitou à funcionária que lhe desse os volumes, tendo
a diretora aquiescido, com as seguintes palavras: “pode levar, não têm
serventia, iam ser queimados mesmo!”.
“Não têm serventia, iam
ser queimados mesmo!” A frase ficou martelando na minha cabeça, enquanto eu
colocava os volumes ao sol, no meu escritório, para secar a umidade que tinha
colado as páginas e que ameaçava desfigurar os belíssimos quadros de Doré.
Durante dois meses cuidei deles, antes de encaderna-los novamente. Hoje,
repousam na prateleira de honra da minha biblioteca. Enquanto sarava as feridas
causadas nos livros pela incúria e a ignorância dessa diretora de colégio e
agradecia à minha aluna pela ação salvadora, pensava: a Inquisição ainda
continua a queimar a nossa memória cultural! Decidi-me, portanto, a não deixar
passar em brancas nuvens os quatrocentos anos de Dom Quixote,
escrevendo estas linhas que, certamente, distribuirei entre os meus alunos.
Dividirei a minha
exposição em quatro itens: I - A Morada Vital de Cervantes: a Espanha de
início do século XVII. II - Dom Quixote, herói libertário. III - A
Espanha cervantina, Realidade que se converte em Mito. IV - Dom Quixote, modelo
de herói moderno.
I –
A Morada Vital de Cervantes: a
Espanha de início do século XVII.
Ortega afirmou: “Yo soy yo y mi
circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”.
Tentar compreender as circunstâncias da obra cervantina equivale a
entender a personalidade de Cervantes, no que tange à sua inserção no mundo.
Ora, a principal circunstância com que se deparou o autor foi a Espanha do
século XVII. Centremos a atenção, inicialmente, em alguns fatos da vida de
Cervantes que, entrelaçados à história do período, deixaram a marca da
circunstância espanhola nos seus escritos.
1)
A
circunstância familiar.
O nosso autor nasceu em 29 de setembro de
1547, em Alcalá de Henares, filho de Rodrigo Cervantes, modesto cirurgião e de
Leonor Cortinas. Tratava-se de uma família de origem fidalga que entrou em
depressão econômica. Miguel foi o quarto de sete filhos. Em 1551, Rodrigo de
Cervantes fixou residência em Valladolid, tentando melhorar a sorte econômica
da família, sem que, contudo, tivesse sucesso, pois, por causa de dívidas não
pagas, foi posto na cadeia durante vários meses, tendo-lhe sido confiscados os
bens. Ao que tudo indica, o jovem Miguel cursou os seus primeiros estudos no
Colégio dos Jesuítas de Valladolid.
Em 1556, a família
Cervantes estabeleceu-se em Madri, onde Miguel assistiu ao Estudo da Vila,
dirigido por Juan López de Hoyos, conhecido catedrático de gramática. Em 1569,
o jovem Miguel teve de fugir à Itália, em decorrência do fato de ter ferido a
um cidadão chamado Antonio de Sigura. Iniciava assim, o nosso autor, uma vida
cheia de aventuras, que passaram a constituir uma das margens do rio do seu
viver, sendo a outra o ofício de escritor, que Cervantes desempenhará com
genialidade, não ficando preso à vida social dos salões, mais indo fundo, na
tentativa de intuir e dar conta dos abismos da alma humana, a partir da
cotidianidade. Em Roma, pôs-se ao serviço do cardeal Giulio Acquaviva. Em 1571,
sentou praça como soldado da companhia do capitão Diego de Urbina, tendo
participado da batalha de Lepanto, em que os turcos foram derrotados, em 7 de
outubro, pelo exército cristão chefiado por Dom João de Áustria. Miguel de
Cervantes destacou-se pela sua coragem na mencionada batalha, tendo combatido
adoentado. Recebeu várias feridas, uma das quais lhe inutilizou a mão esquerda.
Pela bravura demonstrada recebeu um prêmio especial de Dom Juan de Áustria. No
prólogo à Segunda Parte do Quixote, Cervantes manifestou o
orgulho que sentia por ter participado da mencionada gesta, com as seguintes
palavras: “Se as minhas feridas não resplandecem aos olhos de quem as mira, são
estimadas, pelo menos, por aqueles que sabem onde se ganharam; que o soldado
melhor parece morto na batalha, do que livre na fuga; e tanto sinto isto que
digo, que, se agora me propusessem e facilitassem um impossível, antes quisera
ter estado naquela peleja prodigiosa, do que são das minhas feridas sem lá me
ter achado. As cicatrizes que o soldado ostenta no rosto e no peito são
estrelas que guiam os outros ao céu da honra, e ao desejar justo louvor”.
Regressava o bravo
soldado Miguel de Cervantes à Espanha, com cartas de recomendação de Dom Juan
de Áustria e do Duque de Sessa, quando, em 26 de setembro de 1575, perto de
Cadaqués, na Costa Brava, a Galera Sol, em que viajava, foi rendida pelos
turcos, que o levaram preso junto com o seu irmão Rodrigo. Achavam os meliantes
ser o jovem soldado gentil-homem de peso, dados os documentos encontrados com
ele. Por esse motivo, conduziram-no a Argel, como escravo do pirata grego Dali
Mamí, que passou a exigir grossa soma de dinheiro pela sua libertação e a do
seu irmão. Durante cinco longos anos o nosso autor ficou refém dos turcos em
Argel. O jovem Cervantes revelou-se no seu cativeiro homem corajoso e de ação,
tendo quatro vezes arriscado a vida em respectivas tentativas de fuga, sem
sucesso, mas se declarando sempre responsável pelas falidas empresas, a fim de
livrar os seus companheiros de aventura de qualquer culpabilidade perante os
intransigentes e crudelíssimos seqüestradores, que castigavam com o empalamento
esse tipo de delito. A coragem demonstrada por Miguel foi de tal monta que
surpreendeu aos chefetes muçulmanos, que, sem lhe aplicar a mortífera pena, o
entregaram à autoridade mor, o bey de Argel, um tal de Azán Bajá, que cogitava
levá-lo como escravo a Istambul. Depois de três anos de cativeiro, a família
conseguiu o dinheiro exigido pelos seqüestradores para libertar os dois irmãos.
Mas, na hora do pagamento, os criminosos subiram o preço e Miguel preferiu que
o seu irmão Rodrigo fosse libertado, tendo ele permanecido em cativeiro por
mais dois anos. Por fim, em 19 de setembro de 1580, frei Juan Gil (da ordem
religiosa dos Trinitários, que se dedicavam a resgatar cativos), conseguiu
pagar o resgate exigido de 500 escudos. Em dezembro de 1580, Cervantes
reunia-se com a sua família em Madri. A vivência do cativeiro em Argel
influenciou fortemente na escrita de Dom Quixote, como testemunha
a famosa “História do Cativo” (relatada nos capítulos 39 a 41 da Primeira Parte).
Pouco tempo permaneceu
o jovem liberto na capital espanhola, pois o encontramos em Lisboa já no ano
seguinte. Ali se trasladou Cervantes, buscando algum emprego na corte de Felipe
II (1527-1598), que tinha reunido na sua cabeça as coroas de Espanha e
Portugal. Contratado pelos funcionários régios, foi-lhe encomendada uma missão
secreta em Oran, aproveitando os conhecimentos que tinha da Argélia, obtidos ao
ensejo do seu cativeiro. Em 1582, o nosso escritor solicitou à Corte um emprego
que tinha ficado vacante nas Índias, sem que tivesse obtido sucesso na sua
pretensão. Era a primeira vez que Cervantes tentava a sorte no Novo Mundo. Por
esse tempo teve relações amorosas com Ana Villafranca de Rojas, provavelmente
de origem portuguesa, com quem teve uma filha de nome Isabel de Saavedra. Em
dezembro de 1584, Miguel casou em Esquivias, cidadezinha da região de La
Mancha, com a jovem Catalina de Salazar y Palacio. Entre 1581 e 1583, o nosso
autor escreveu a sua primeira obra literária de consideração, La Galatea
(publicada em Alcalá de Henares em 1585).
Entre 1587 e 1600,
Cervantes fixou residência em Sevilha e exerceu o cargo de Comissário de
Abastos, a serviço da Armada espanhola. Em 1588 ocorreu a destruição da “Armada
Invencível”. O irrequieto e incipiente escritor buscava mais estabilidade
financeira e, em 1590, solicitou novamente ao Rei Felipe II um emprego nas
Índias. A resposta da Coroa, para bem das letras castelhanas, foi negativa e
lacônica: “Busque por acá em qué se le haga merced”. Se tivesse embarcado para
a América, talvez o nosso autor não teria passado apenas de mais um aventureiro
a buscar o enriquecimento rápido na caça ao El Dorado. Em decorrência de
problemas contáveis surgidos no seu emprego de Comissário de Abastos, Cervantes
ficou preso durante algumas semanas em 1592. Problemas semelhantes o
conduziriam novamente à cadeia em Sevilha, em 1597. A estas repetidas detenções
aludia Cervantes, quando afirmava que Dom Quixote tinha sido
gerado no cárcere.
Encontramos ao nosso
autor, em 1603, instalado em Valladolid, para onde Felipe II tinha transferido
a Corte. Tendo falecido recentemente Ana Villafranca, a sua filha Isabel de
Saavedra passou a viver com o pai, Cervantes, e sua família. Em setembro de
1604, Miguel obteve o privilégio real para publicar a primeira parte de Dom
Quixote. Mas as circunstâncias sociais não eram favoráveis à
tranqüilidade do escritor. Pouco antes de ser publicada a obra, em junho de
1605, ele e a sua família viram-se envolvidos numa situação difícil: foi
assassinado, em frente à residência de Cervantes, o cavalheiro Dom Gaspar de
Ezpeleta. O nosso autor e os seus familiares, que eram totalmente inocentes,
foram recolhidos à prisão durante as averiguações policiais, por ordem de um
juiz corrupto, que pretendia com isso desviar as atenções do verdadeiro
criminoso, um escrevente amigo seu. Sofria o genial escritor as agruras do
Estado patrimonial espanhol, tão bem caracterizado por Octavio Paz como “El
ogro filantrópico”, de quem
os famintos cidadãos esperam um emprego, mas de quem temem toda crueldade, como
a praticada com Cervantes por um magistrado injusto.
A respeito da
traumática prisão do nosso autor e de seus familiares, escreveu Martín de
Riquer: “A detenção deve ter durado apenas um dia; mas, nas declarações no
processo sobre o caso, fica suspeita a moralidade do lar do escritor, no qual
entravam cavalheiros de noite e de dia. Viviam com Cervantes a sua mulher, as
suas irmãs Andréa e Magdalena, Constanza, filha natural de Andréa, e Isabel,
filha natural do escritor. Em Valladolid chamavam-nas, despectivamente, ‘Las
Cervantinas’; e no processo, entre outras coisas, descobrem-se amores
irregulares de Isabel com um português”. A
ineficiente e corrupta magistratura, de um lado, e a preconceituosa sociedade
formada nos preceitos contrarreformistas, de outro, encarregavam-se, cada uma a
seu modo, de excluir o genial escritor do convívio civilizado. Dessa situação
dará testemunho Cervantes, de maneira irônica, ao olhar com desdém para esse
grande palco em que tinha se convertido a Espanha de começos do século XVII. A
vingança do nosso autor consistirá em fazer evanescer essa tosca realidade,
convertendo-a em sonho: tal será uma das mágicas de Dom Quixote,
como terei oportunidade demonstrar mais adiante.
Castela - La Mancha foi
o cenário para a composição e publicação de Don Quijote de la Mancha.
Esta austera região, situada na Meseta Castelhana e cujo centro é Madri,
constituiu o cenário da obra. Mas esse ambiente é complementado com outros
panos de fundo geográficos: a região de Valladolid, um pouco a noroeste, as
luminosas planícies andaluzas, ao sul, e a próspera região de Barcelona, ao
leste, onde Cervantes encenou a última parte da sua grande obra, encerrando ali
a terceira viagem de Dom Quixote. Julián Marías assim caracterizou esse entorno
que, certamente, inspirou a narrativa cervantina: “Valladolid, La Mancha,
Esquivias, Toledo, Madrid: estes serão os limites dos últimos anos de
Cervantes, a sua última experiência, a mais profunda e intensa, da Espanha. Sem
dúvida que o Quixote foi gerado e planejado, começou a ser
escrito em Andalucía; tomou corpo em La Mancha, em idas e vindas, talvez em
Esquivias, possivelmente em Argamasilla de Alba, el Toboso ou Campo de
Criptana. La Mancha forneceu o cenário, a pátria do Fidalgo, os horizontes
irreais, os campos desertos, as vendas incômodas e sem luxos, os sonhos
exaltados, a figura humaníssima do tosco e visionário Sancho, enlouquecido por
força da cordura. Castela rimava com a
hora de melancolia da Espanha declinante, que ainda era tudo mas que começava a
não sê-lo, que se recolhia e se trancafiava em si mesma, resguardada na sua
capa, sem querer enxergar aqueles que pareciam entrar naquilo que Saavedra
Fajardo chamou, poucas décadas depois, de ‘as loucuras da Europa’ (...)”.
Mas é certamente La
Mancha a pátria pequena do Quixote. A austera região que se
estende entre a Serra de Guadarrama, ao norte, a Serrania de Cuenca, ao leste,
os Montes de Toledo, ao oeste, e a Serra de Segura, ao sul, esse foi o marco
próximo da aventura quixotesco-cervantina. Os poeirentos caminhos que por
regiões inóspitas conduziam de Madri até Albacete, passando por Esquivias,
Aranjuez, Ocaña, Chinchón, Villatobas, Corral de Almaguer, Quintanar de la
Orden, Campo de la Criptana, Villamayor de Santiago e El Toboso, esse foi o
micro-cenário em que se desenvolveu a maior parte da história do Cavaleiro
da Triste Figura e que Cervantes percorreu inúmeras vezes nas suas
rotineiras viagens de Comissário de Abastos. Mas La Mancha foi uma lente
através da qual Cervantes contemplou as outras regiões que inspiraram a sua
magna obra. Constituiu a porta de entrada para esse mundo mágico em que o
grande escritor resumiu todas as suas viagens, as suas aventuras e os seus
amores.
Julián Marías exprimiu
bem a dimensão simbólica de La Mancha, no seguinte texto: “Cervantes olha
Castela com olhos que foram italianos, argelinos e, sobretudo, andaluzes. La
Mancha de Dom Quixote é tão Mancha, tão superlativa e unicamente
Mancha, porque é vista de dentro e de fora, ao mesmo tempo: de dentro, porque
Cervantes viveu cada canto, cada dobra, cada matiz dessa comarca, tão simples e
tão secreta ao mesmo tempo; de fora, porque La Mancha não é o mundo do autor,
mas somente uma das suas porções e, por isso, aparece com toda a sua figura bem
desenhada e definida, posta em relação com outras coisas, como uma unidade que
é observada isenta e fechada; La Mancha não é La Mancha sozinha; está situada –
ao menos idealmente – junto a outras terras, outras cidades, outra gente; é uma
comarca eleita, convertida em cenário, interpretada. A explicitação do caráter
manchego de Dom Quixote é justamente a conseqüência de ter sido
escrito o livro a partir de um horizonte muito mais dilatado, fazendo com que a
pupila, depois de traçar vários círculos, tenha vindo a pousar, como ave de
rapina, sobre essa comarca eleita, sobre esse lugar onde vão acontecer as mais
maravilhosas transfigurações imaginativas da realidade”.
Em 1606 a Corte
transladou-se de Valladolid para Madri, já sob o reinado de Felipe III
(1578-1621). Cervantes mudou-se para a nova capital. A sua filha Isabel casou e
as irmãs de Cervantes, Andréa e Magdalena, morreram, tendo-se reduzido a
família à esposa e à sua sobrinha Constanza. Na residência de Madri, o nosso
autor escreveu intensamente nos últimos anos de vida. A sua obra é fruto da
maturidade. Cervantes foi, sem dúvida, um escritor da Terceira Idade: as
principais criações apareceram, efetivamente, entre 1605, data da publicação da
Primeira parte de Dom Quixote, e 1616, ano de sua morte. Ou seja,
Cervantes compôs a parte principal da sua obra entre os 58 e os 69 anos de idade.
Em 1613 apareceram as Novelas Ejemplares; em 1614, Viaje
del Parnaso; em 1615, a Segunda Parte de Don Quijote de la Mancha
e as Comedias e Entremeses e, em 1617, postumamente, Persiles
y Sigismunda.
Quando Cervantes
preparava a edição da Segunda Parte do Quixote, apareceu,
publicado em Tarragona, em 1614, um livro intitulado Segundo Tomo del
Ingenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha. O autor escondia-se sob o
pseudônimo de Licenciado Alonso Fernández de Avellaneda, natural
de Tordesillas. Avellaneda era aragonês, frade dominicano e medíocre
compositor de comédias, segundo Cervantes deduziu a partir da análise do texto.
Tratava-se de uma continuação vulgar e pedestre da obra cervantina, feita para
opacar o brilho que o verdadeiro autor tinha alcançado com a publicação da
Primeira Parte. A ousada falsificação talvez tenha tido um motivo: a inveja dos
“escritores profissionais”, que não podiam tolerar o fato de alguém, como
Cervantes, não se considerar pertencente a essa tacanha confraria. A propósito,
escreve Julián Marías: “Cervantes, vizinho de Lope de Vega, mistura-se –sempre
um pouco de longe – na vida literária. Nunca foi um escritor profissional.
Os que eram tais nunca lhe perdoaram nem a sua modéstia, nem a sua
genialidade”.
Cervantes, como todos
os gênios, não se encerra na estreiteza de uma confraria, de uma ordem, ou de
um salão oficial. A sua genialidade rima com a liberdade absoluta do espírito,
com a criação de uma obra imortal projetada por duas grandes intuições: a
liberdade e a beleza. Onde se inspirou o nosso autor? Certamente na Itália e em
Andalucía, terras de luz, de liberdade, de beleza e de abertura à vida. Sobre
esse pano de fundo, o escritor castelhano desenha a tela da sua história, com
as cores difusas da terra manchega, tornada subtil pela poeira dos caminhos e
as névoas dos invernos de Castilla - La Mancha. A propósito deste ponto,
pergunta-se Julián Marías: “Quais são as duas invisíveis rédeas que governam a
atenção e o entusiasmo de Cervantes?” E responde: “Uma se chama liberdade; a
outra, beleza; sem tê-las presentes não se pode entender nada do que Cervantes
escreveu, muito menos o que quis dizer com isso”.
Cervantes morreu em 22
de abril de 1616, na sua casa situada na Calle del León, em Madri. O corpo do
escritor foi enterrado no convento das Trinitárias Descalzas, na Calle de
Cantarranas (hoje Calle Lope de Vega). Talvez o traço que melhor pode
caracterizar a personalidade de Cervantes é o do amor a uma liberdade de tipo
estóico, que não ambiciona riquezas, mas que se satisfaz na honradez e que,
paradoxalmente, muito deseja da vida. É um meio-termo entre a razão da austera
Castela e a vitalidade da luminosa Andalucía. É a expressão de uma aristocracia
de espírito, que não se verga perante interesses de qualquer índole. Mas que
não renuncia ao prazer da vida. O nosso autor exprimiu bem esse traço do seu
caráter, nestes versos:
Tuve, tengo y tendré los
pensamientos
Merced al cielo, que a tal bien
me inclina,
De toda adulación libres y
exentos.
Nunca ponga los pies por do camina
La mentira, la fraude y el
engaño,
De la santa virtud total ruina.
Con mi corta fortuna no me
ensaño,
Aunque por verme en pie, como me
veo,
Y en tal lugar, pondero así mi
daño.
Con poco me contento, aunque
deseo
Esse “desear mucho” é,
no nosso autor, o fio ao solo vital, ao amor, ao prazer, à amizade, ao desejo
de permanecer no coração dos seus leitores como mensageiro da graça, do
donaire, do jogo da imaginação. Na sua última obra, Persiles y Sigismunda,
assim se despedia aquele que sentia a sua existência chegar ao fim: “Adiós,
gracias; adiós, donaires; adiós, regocijados amigos; que yo me voy muriendo, y
deseando veros presto contentos en la otra vida”.
Com essas palavras, frisa Julián Marías, Cervantes resume a Espanha. Escreve a
respeito o citado autor: “Um homem que vai morrer, que sabe que vai morrer em
breve, e se despede. De que? Da graça, do donaire, do regozijo, da amizade; da
palavra, da conversação. Não é isso Espanha? Que pensa, com ilusão, com pressa,
na outra vida. Cuja última palavra, depois de tantos anos de infortúnios,
feridas, cárceres, cativeiro, pobreza e menosprezo, depois de tanto amor, tanta
beleza, tanta ilusão fresca e nunca murcha, é ‘contentos’. Não é isso Espanha?”
2) A circunstância espanhola.
A Espanha de finais do
século XVI e início do XVII começava a decair. Foi um processo lento, quase
imperceptível, que se estendeu por séculos, até a perda das últimas colônias,
Cuba e Puerto Rico, já no final do século XIX, mas que o gênio de Cervantes
intuiu, como esses aborígines da Indonésia que pressentem o longínquo tsunami
que avança, destrutor, a centenas de quilômetros de distância. O nosso autor
adivinhou a pendente por onde, lentamente, começava a descer o grande Império,
fechado na armadura contrarreformista.
Não podia ser feliz uma
Espanha cujo Imperador, Carlos V (1500-1558), optou por vir morar - e morrer –
como monge em El Escorial. Logo ele, Rei da Espanha e Imperador da Alemanha, em
cujos domínios jamais se punha o sol! Isso não no século XI, mas em pleno início
da modernidade, quando já a Renascença italiana tinha iluminado o mundo da
cultura com a maravilhosa arte de Botticelli (1445-1510), Rafael (1483-1520),
Miguel Ângelo (1475-1564), Fra Angélico (1387-1455), Caravaggio (1571-1610) e
Leonardo (1452-1519). E que na Espanha eclodiu com as madonnas de
Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682). E no momento em que Galileu (1564-1642)
abria novas perspectivas para a livre indagação sobre o cosmo. E após a
irreverente exclamação de Boccaccio (1313-1350) em Il Decamerone,
de que o prazer “non é pecato”. Não podia ser feliz um Reino cujo sucessor era
uma figura melancólica, com essa melancolia estampada no rosto dos Áustrias,
notadamente do soberano que regiu os destinos espanhóis nos tempos de
Cervantes, Felipe II, cuja preocupação fundamental consistiu em gerir
burocraticamente, à luz de um juridicismo tacanho, o legado patrimonial que lhe
colocara a História nas mãos, o maior Império que conhecera o mundo de então.
Não podia ser feliz um
povo ameaçado diuturnamente pela rude Inquisição, que fazia galas de perseguir
até a morte (e que morte!) qualquer um que ousasse se subtrair ao controle dos
teólogos d’El-Rei. Os tenebrosos Autos de Fé eram realidade na época de
Cervantes. Ainda estavam frescos na memória do genial escritor os quadros
horripilantes da condena e ulterior suplício do doutor Agustín de Casalla e
seus familiares, ocorrida em 21 de Maio de 1559. A respeito desse fato, escreve
Menéndez y Pelayo na sua Historia de los heterodoxos españoles: “A
Inquisição, encontrando bastante culpa em alguns dos processados, determinou
celebrar com eles um auto de fé mais solene do que quantos até então tinham
ocorrido na Espanha”. E
haja solenidade: Ao julgamento e condenação dos acusados compareceram,
ricamente vestidos de luto, os príncipes, as damas da corte e os membros do
Conselho de Castela, além, é claro, dos funcionários da Inquisição, dos
acusados e dos seus familiares.
Miguel de Cervantes
era, contudo, um patriota. Identificou-se de coração com o Império, com a luta
em prol da defesa da cristandade contra os muçulmanos. As feridas, recebidas na
batalha de Lepanto, foram sua grande honraria. Era fiel ao seu soberano. Mas,
ao mesmo tempo, tinha as suas reservas em face do Estado gerido como coisa
privada pelos funcionários reais. Desconfiava da autoridade. Também pudera! Não
foram poucos os maus tratos que dela recebeu, ao longo da vida. É bem certo que
esperou da Coroa, em não poucas oportunidades, uma função burocrática que lhe
permitisse viver decentemente. Mas só isso. Queria a independência de espírito.
Nunca pretendeu se tornar escravo das convenções sociais ou do fátuo rito dos
salões. Não era um Lope de Veja, escritor de sucesso que freqüentava a Corte.
Sempre aspirou à aurea mediocritas de uma vida de lar, tranqüila,
aprazível, em que pudesse viver os seus amores e amizades. E em que tivesse
tempo e disposição para escrever os seus divertimentos. Poderíamos afirmar que
o genial escritor acreditava no sucesso espanhol, na grandeza do Império. Mas,
essa convicção, aos poucos foi decaindo, até se transformar em melancolia,
pouco antes de morrer. Mais adiante, ao falar do espírito libertário de
Cervantes, voltarei sobre este ponto.
O ambiente cultural da
Espanha setecentista, policiado pela que Fidelino de Figueiredo denominava de
“alfândega cultural” dos Áustrias ,
estava mais próximo do princípio que o nosso Luís Washington Vita chamou de
“Saber de Salvação” ,
alicerçado na convicção medieval de que “o Homem é um vil bicho da terra e um
pouco de lodo”. Cervantes
prenunciou o declínio ibérico, fatalmente ligado à idéia contrarreformista do
rebaixamento da natureza humana. E o fez simbolicamente, na melancolia que
afetou ao seu herói, no final da Segunda Parte de Dom Quixote,
“melancolia que lhe causara o ver-se vencido” .
Estado de espírito que não era apenas de Felipe II e de Dom Quixote, mas que
afetou também a um homem público da altura do conde-duque de Olivares
(1587-1645), o poderoso ministro de Felipe IV (1605-1665). Ao cair em desgraça,
em 1643, Olivares fez publicar um folheto em que confessava que tinha
fracassado no seu trabalho modernizador da economia e do Estado espanhol, e
afirmava que quem tinha vencido era Richelieu (1585-1642), que soube encarnar a
Raison d’État, ao passo que ele, Olivares, tinha permanecido fiel ao
modelo da ética da honra, ditado pelos princípios religiosos. Traçando um
paralelo entre ambos os ministros todo-poderosos, escreve o historiador John
Elliott: “Richelieu chegou ao poder de uma França esgarçada pelo cisma e
devastada pelas rebeliões. Após sua morte, deixou um país pacificado e
convertido em árbitro da Europa. Olivares tinha herdado, ao contrário, uma
Espanha poderosa e tranqüila, que deixou então num estado deplorável e sem que
tivesse sido conquistada uma parcela mínima de território suplementar”.
A respeito, escreve
Julián Marías: “Imaginem o que significa que um político caído em desgraça, que
perdeu o poder, no seu escrito justificativo reconheça que fracassou, reconheça
que o seu rival venceu, mas que agiu de acordo com a moral e a religião. Isso
ilustra o que se entendia na Espanha, ainda em meados do século XVII, pela
política; definitivamente, é um ato quixotesco também”.
Isso quase cinqüenta anos depois de Francisco Suárez (1548-1617) ter publicado De
Legibus ac Deo Legislatore,
que deitava os alicerces para a modernização do Estado, num contexto claramente
antropocêntrico e aberto à soberania popular. Espanha, em definitiva, se
afastava da modernidade, refugiava-se no espírito contrarreformista e perdia, paulatinamente,
a vontade de imperar e de viver. A decadência era um fato nascido no interior
do próprio mito da grandeza ibérica. O mito da Espanha grande morreu, como
destaca Francovich, “por dentro”.
Quando se sedimentou, na
alma espanhola, o mito da queda, traduzido na convicção da decadência do
Império? Julián Marías situa esse momento em meados do setecentos. Eis as suas
palavras a respeito: “Mais tarde, já bem entrado o século XVII, muito depois da
morte de Cervantes, surgirá o conceito de decadência (...). O curioso do caso é
que há um momento na Espanha, talvez lá por volta de 1640, em que se começa a
interpretar todo fracasso como decadência; às vezes ocorre algo muito ruim e no
dia seguinte algo muito bom, mas, no entanto, desliza-se no ânimo dos espanhóis
a idéia de que se entrou em decadência”.
II –
Dom Quixote, herói libertário.
Cervantes encarnou o liberalismo
telúrico ibérico, que aflora em outras figuras dessa cultura. Após os
estudos de Alexandre Herculano, Américo Castro, Martínez Marina, Ots Capdequí,
Fidelino de Figueiredo, Sampaio Bruno, etc., ficou claro que a tradição liberal
é, na Península Ibérica, mais antiga que a vertente patrimonialista e
absolutista, que veio se inserir na história dos povos espanhol e português
como realidade adventícia, posterior a essa inicial aspiração a um
individualismo estóico e libertário. A tradição contratualista visigótica deu
expressão a essa velha tendência independentista (belamente expressa nos Fueros
Aragoneses), e foi o ponto central das dores de cabeça de conquistadores
alienígenas, como Napoleão Bonaparte (1769-1821). O Imperador dos Franceses
começou o seu rápido declínio quando decidiu invadir os confins da Ilha
européia, a Península Ibérica e a Rússia. Defrontou-se com a tremenda capacidade
de sobrevivência e o patriotismo do povo russo e com a particular heroicidade
da sociedade espanhola, capaz de lutar até o último homem em prol da defesa da
sua independência e da liberdade. Os quadros de Goya que retratam os
fuzilamentos de 1812 dão prova dessa capacidade de luta heróica dos ibéricos
contra o invasor estrangeiro.
Se há um traço que marca
a personalidade de Dom Quixote, esse é a defesa incondicional que o herói
cervantino faz da liberdade. O ponto essencial do seu programa caveleiresco é a
ética da honra, que se centra na defesa da liberdade individual. Liberdade de
ir e vir, liberdade de não ser importunado pelos burocratas do rei, liberdade
de amar e de folgar com os amigos, liberdade para os cativos, liberdade das
amarras contra-reformistas expressas no direito filipino e nos preconceitos
inquisitoriais.
A defesa incondicional da
liberdade, tal é o leitmotiv do belo discurso que Cervantes põe em boca
de Dom Quixote, no Capítulo LVIII da Segunda Parte da obra. Eis as palavras do
herói cervantino quando deixa o palácio dos Duques, após ser tratado por estes
com todas as delicadezas e afagos da alta nobreza: “A liberdade, Sancho, é um
dos dons mais preciosos, que aos homens deram os céus; não se lhe podem igualar
os tesouros que há na terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma
forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é
o maior mal que pode acudir aos homens. Digo isto, Sancho, porque bem viste os
regalos e a abundância que tivemos neste castelo, que deixamos; pois no meio
daqueles banquetes saborosos, e daquelas bebidas nevadas, parecia-me que estava
metido entre as estreitezas da fome; porque os não gozava com a liberdade com
que os gozaria, se fossem meus; que as obrigações das recompensas, dos
benefícios e mercês recebidas, são ligaduras que não deixam campear o ânimo
livre. Venturoso aquele a quem o Céu deu um pedaço de pão, sem o obrigar a
agradece-lo a outrem que não seja o mesmo Céu!”
Comentando o discurso de
Dom Quixote, escreveu Mário Vargas Llosa o seguinte texto, em que destaca a
inspiração liberal do nosso herói: “Recordemos que o Quixote pronuncia esta
louvação exaltada da liberdade ao partir dos domínios dos anônimos duques, onde
foi tratado a corpo de rei por esse exuberante senhor do castelo, a encarnação
mesma do poder. Mas, nos afagos e mimos de que foi objeto, o Engenhoso Fidalgo
percebeu um invisível espartilho que ameaçava e rebaixava a sua liberdade, porque
os não gozava com a liberdade com que os gozaria, se fossem meus. O
pressuposto desta afirmação é que o fundamento da liberdade é a propriedade
privada, e que o verdadeiro gozo só é completo se, ao desfrutar, uma pessoa não
vê recortada a sua capacidade de iniciativa, a sua liberdade de pensar e de
agir. (...) Não pode ser mais claro: a liberdade é individual e exige um mínimo
de prosperidade para ser real. Porque quem é pobre e depende da dádiva ou da
caridade, nunca é totalmente livre”.
A liberdade apregoada e
defendida por Dom Quixote, é a que hodiernamente chamamos de liberdade
negativa. Trata-se de uma liberdade não adjetivada, liberdade primária de
ir e vir, essa liberdade que estimulou as revoltas espanholas, portuguesas e
ibero-americanas, nas denominadas “conjurações”, seja dos comuneros
espanhóis do século XVI, seja dos nossos conjurados neo-granadinos ou mineiros
de fins do século XVIII. Ora, a liberdade primária defendida pelos conjurados
latino-americanos é a de pensar e agir, a de não serem taxados os cidadãos sem
prévia negociação com a Coroa. A propósito disto, afirma Vargas Llosa: “Que
idéia da liberdade se faz Dom Quixote? A mesma que, a partir do século XVIII,
far-se-ão na Europa os chamados liberais: a liberdade é a soberania de um
indivíduo para decidir a sua vida sem pressões nem condicionamentos, em
exclusiva função de sua inteligência e vontade. Quer dizer, o que vários
séculos mais tarde um Isaias Berlin definiria como liberdade negativa, a
de estar livre de interferências e coações para pensar, se exprimir e agir. O
que reside no coração dessa idéia de liberdade é uma desconfiança profunda em
face da autoridade, dos desaforos que pode cometer o poder, qualquer poder”.
Essa liberdade negativa é
também defendida por Sancho Panza. Em face das complicadas tarefas de
governador da Insula Barataria, o fiel escudeiro prefere a vida simples de quem
se contenta com o trabalho manual e o alimento na hora certa; prefere essa
vidinha aos luxos da corte e à complicada ritualística da governança, que lhe
exige, entre outras coisas, entrar em combate com incômoda armadura que lhe
impossibilita os movimentos, levar uma surra monumental dos inimigos fictícios
e se submeter à famélica dieta prescrita pelos médicos, a fim de manter as
aparências estetizantes do palco da política. Eis o discurso com o qual Sancho
dispõe-se a justificar a sua saída do poder, para desfrutar a simples liberdade
dos filhos de Deus: “Abri caminho, senhores meus, e deixai-me voltar à minha
antiga liberdade; deixai-me ir buscar a vida passada, para que me ressuscite
desta morte presente. Eu não nasci para ser governador, nem para defender ilhas
nem cidades dos inimigos que as quiserem acometer. Entendo mais de lavrar, de
cavar, de podar e de pôr bacelos nas vinhas do que de dar leis ou defender
províncias nem reinos. Bem está São Pedro em Roma; quero dizer: bem está cada
um, usando do ofício para que foi nascido. Melhor me fica a mim uma fouce na mão, do que um
ceptro de governador; antes quero comer à farta feijões, do que estar sujeito à
miséria de um médico impertinente, que me mate à fome; e antes quero
recostar-me de Verão à sombra de um carvalho, e enroupar-me de Inverno com um
capotão, na minha liberdade, do que deitar-me, com a sujeição do governo, entre
lençóis de Holanda, e vestir-me de martas cevollinas. Fiquem Vossas
Mercês com Deus, e digam ao duque meu senhor que nasci nu, nu agora estou, e
não perco nem ganho; quero dizer: que sem mealha entrei neste governo, e sem
mealha saio, muito ao invés do modo como costumam sair os governadores de
outras ilhas; e apartem-se, deixem-me, que me vou curar, pois suponho que tenho
arrombadas as costelas todas, graças aos inimigos que esta noite passearam por
cima do meu corpo”.
Dom Quixote, herói
libertário. Mas, também, cavaleiro andante que luta em prol da justiça.
Encontramos, na escala axiológica do herói cervantino, o culto insofismável a
esses dois valores: liberdade, mas também justiça (que hoje denominaríamos de democracia,
no sentido de igualdade perante a lei e ausência de privilégios). Dom Quixote,
como fará Alexis de Tocqueville três séculos mais tarde, bate-se por um
liberalismo que concilia defesa da liberdade e defesa da justiça/igualdade.
O liberalismo telúrico quixotesco é, como o de Tocqueville, um liberalismo
social.
O Cavaleiro da Triste
Figura, embora reconheça a legitimidade dos poderes constituídos, desconfia
dos seus excessos. Numa Espanha presidida pelo Estado patrimonial dos Áustrias,
Dom Quixote fica com um pé atrás, em face da autoridade. Ela, como nos
subúrbios das grandes cidades brasileiras ou no nosso sertão, somente se fazia
presente, na Espanha cervantina, para tornar mais difícil a vida do
desprotegido cidadão. Quando os poderosos extrapolam os seus privilégios,
utilizando uma legislação que, como a filipina, privilegiava quem tivesse
recursos contra os que não tinham nada, o herói cervantino não duvida em favor
de quem vai empunhar as suas armas: em defesa dos fracos. Isso acontece, por
exemplo, quando Dom Quixote desafia o poderoso Juan Haldudo, que está açoitando
um dos seus empregados que lhe extraviou uma ovelha. Dom Quixote intervém,
lança em riste, obrigando o rude senhor a parar com a injusta punição.
A respeito desse
episódio, afirma Vargas Llosa: “Como neste, a novela está cheia de episódios em
que a visão individualista e libérrima da justiça conduz o temerário fidalgo a
desacatar os poderes, as leis e os usos estabelecidos, em nome do que para ele
é um imperativo moral superior”. A atitude libertária de Dom Quixote chega até
os limites da anarquia, quando o herói descobre que a autoridade exercida em nome
d’ El-Rei simplesmente escraviza sem contemplação e sem discernimento, em que
pese o fato de os delitos terem sido já expiados pelos condenados, que são
conduzidos para completar a sua pena nas galés. Ao libertar os doze cativos
(entre eles o famoso meliante Ginés de Passamonte), Cervantes coloca em boca do
seu personagem um alerta contra o excessivo rigor da autoridade: “porque dura
coisa me parece o fazerem-se escravos indivíduos, que Deus e a Natureza fizeram
livres”.
Dom Quixote desconfia da
autoridade, mas quer, ao mesmo tempo, o mundo em ordem. Ora, a paz social
deveria ser obra dos indivíduos chamados por uma vocação especial – os
cavaleiros andantes – a pôr ordem nas coisas humanas, sem que fosse necessário
atribuir essa tarefa aos burocratas d’El-Rei, que certamente vão utilizar a
parcela de poder que receberam para escravizar os seus semelhantes. Cervantes
apela para uma aristocracia da ordem, que se contraponha ao exercício da
autoridade régia. A respeito, escreve Vargas Llosa: “O Quixote não acredita que
a justiça, a ordem social, o progresso sejam funções da autoridade, mas obra de
indivíduos que, como os seus modelos, os cavaleiros andantes, e ele mesmo,
tenham chamado a si a tarefa de tornar menos injusto e mais próspero o mundo em
que vivem. Isso é o cavaleiro andante: um indivíduo que, motivado por uma
vocação generosa, lança-se pelos caminhos a buscar remédio para tudo aquilo que
anda mal no planeta. A autoridade, quando aparece, em lugar de lhe facilitar a
tarefa, torna-a difícil”.
III –
A Espanha cervantina, Realidade que se converte em Mito.
A loucura de Dom Quixote,
longe de ser esconjurada no decorrer da narrativa cervantina, termina
contaminando a obra. Os fatos reais passam a uma segunda dimensão e tornam-se
fantasia. Para curar a loucura do herói, todos os que o rodeiam, a começar pelo
bacharel Sansón Carrasco, assumem um papel de ficção, a fim de, a partir desta,
convencer o imaginoso manchego a largar a cavalaria andante. Ora, acontece o
contrário: todos passam a viver a ficção quixotesca, o que termina dando à obra
cervantina um inegável caráter contemporâneo. Trata-se de uma ficção continuada
à la Jorge Luis Borges, ou à la Macondo: o furacão caribenho varre o mundo real
e o transporta para a dimensão da fantasia, em que todos os sonhos valem. Dom
Quixote sai vencedor: todos passam a compartilhar a loucura da fantasia. Até o
prosaico Sancho começa a acalentar o sonho como a melhor dimensão da realidade,
ao se tornar governador da Insula Barataria.
A respeito dessa dimensão
fantástica da obra, escreveu Vargas Llosa, justamente destacando a
contemporaneidade de Dom Quixote: “O grande tema de Dom Quixote de la
Mancha é a ficção, a sua razão de ser e a forma como ela, ao se
infiltrar na vida, vai modelando-a, transformando-a. Assim, o que parece a
muitos leitores modernos o tema borgiano por excelência – o de Tlön,
Uqbar, Orbis Tertius – é, na verdade, um tema cervantino que, séculos depois,
Borges ressuscitou, imprimindo-lhe um selo pessoal. A ficção é um assunto
central da novela, porque o fidalgo manchego que é o seu protagonista foi tirado
de lugar (...) pelas fantasias dos livros de cavalarias e, acreditando que
o mundo é como o descrevem as novelas de Amadises e Palmerines, lança-se ele em
busca de umas aventuras que viverá de forma exemplar e sofrendo pequenas
catástrofes. Ele não tira dessas más experiências uma lição de realismo. Com a
inamovível fé dos fanáticos, atribui a encantadores perversos que as suas
façanhas tornem sempre a se desnaturar e a se tornarem falsas. No final,
termina se saindo com a sua. A ficção vai contaminando o vivido e a realidade
vai gradualmente se acomodando às excentricidades e fantasias de Dom Quixote”.
Cervantes brinca com a
fantasia. Os personagens da Segunda Parte de Dom Quixote leram o
Primeiro Volume da obra e aceleram o processo de tornar a realidade ficção.
Isso se dá a partir do capítulo 31 da Segunda Parte, com a aparição dos famosos
duques sem nome, que desdobram a cotidianidade em fantasias teatrais; quando
encontram as figuras de Dom Quixote e Sancho são literalmente seduzidos pela
irrealidade destes e tomam carona no seu sonho. É então quando, no castelo dos
duques, a vida vira ficção, fantasia, jogo. Existe exemplo mais claro de
realismo mágico? Nesse brincar com a fantasia, Cervantes coloca num ponto de
vista evanescente o narrador da história, ou melhor, os narradores desta. Quem
são esses narradores? São dois: o misterioso Cide Hamete Benengeli, que não é
lido diretamente, em virtude do fato de o seu manuscrito se encontrar escrito em
árabe. O segundo é um narrador anônimo, que por vezes fala em primeira pessoa,
mas que o faz usualmente do ponto de vista omnicompreensivo de quem fala em
terceira pessoa. Este segundo narrador traduz ao espanhol e comenta a narrativa
do primeiro.
A respeito deste
artifício, escreve Vargas Llosa: “Esta é uma estrutura de caixa chinesa: a
história que os leitores lemos está contida dentro de outra, anterior e mais
ampla, que só podemos adivinhar. A existência desses dois narradores introduz
na história uma ambigüidade e um elemento de incerteza sobre aquela outra
história, a de Cide Hamete Benengeli, algo que impregna as aventuras de
Dom Quixote e Sancho Panza de um sutil relativismo, de uma áurea de
subjetividade, que contribui de forma decisiva a lhes dar autonomia, soberania
e uma personalidade original”.
Nesse sumir a realidade
na aventura da ficção literária, Cervantes genialmente se insurge contra o
gênero de “Livros de Cavalarias”, substituindo o descomunal dos seus dragões,
anões, serpentes, terras exóticas, gigantes, castelos aquáticos (óbvios demais,
por exemplo, na narrativa de Chrétien de Troyes), pela crescente evanescência
do universo humano na perspectiva da loucura dos personagens principais, que
toma de assalto a razão de todos os outros e dos próprios leitores. Valha, a
respeito, a acertada observação de Martín de Riquer, no seu estudo intitulado Cervantes
y el Quijote: “O certo é que Cervantes propôs-se satirizar e parodiar
os livros de cavalarias, a fim de acabar com a sua leitura, que ele considerava
nociva, e que, segundo demonstra a bibliografia, conseguiu plenamente o seu
propósito, pois depois de publicado o Quixote diminuem de forma
extraordinária, até desaparecerem totalmente, as edições espanholas de livros
deste gênero”.
Cervantes, nessa genial
aventura da imaginação, consegue libertar os Livros de Cavalaria do ambiente de
passado em que tinham mergulhado, ao fazer do Cavaleiro da Triste Figura um
modelo ético a ser seguido pelo homem moderno. Trata-se de um ideal prometeico
que torna o herói fonte irradiadora de amor incondicional, tomando o lugar que
o Deus-Amor ocupava no Cristianismo. No amor incondicional pela sua dama, o
herói supera a morte e se projeta para a eternidade. A propósito, escreve com
muito bom senso San Tiago Dantas, nesse seu magnífico ensaio intitulado Dom
Quixote, um apólogo da alma ocidental: “Pois Cervantes, segundo penso,
concebeu o Dom Quixote para extrair a Cavalaria da forma
histórica em que vivera, e da ingênua literatura fabulosa em que agonizava, e
para lhe assegurar uma ressurreição no mundo dos símbolos. Todo o Quixote
prova que a perenidade da Cavalaria não está nas suas exterioridades, mas no
molde espiritual invisível, que, depois de se haver modelado sobre ela, se
separou de seu corpo transitório. Eis porque a novela cervantina pode ser
implacável com a Cavalaria e os Livros de Cavalaria, para os quais aponta o
caminho da morte, ao mesmo tempo em que o espírito e a ética da Cavalaria
entram pela sua mão no clima da vida eterna”.
IV –
Dom Quixote, modelo de herói moderno.
Terminarei a minha
aproximação à obra cervantina ressaltando este aspecto que faz de El
Quijote o precursor da literatura moderna, assim como Descartes
(1596-1650) é o precursor da filosofia moderna com o seu Discurso do
Método. A essência da modernidade pode ser condensada na seguinte
idéia: o homem descobre a perspectiva antropocêntrica e faz de si próprio o
centro do cosmo. Ora, nesse antropocentrismo prometeico e iconoclasta, o homem
ousa representar Deus à sua imagem e semelhança. A melhor expressão dessa
ousadia a encontramos na Renascença Italiana. Não é, por acaso, o belo afresco
de Miguel Ângelo, na Capela Sixtina, o símbolo desse “fazer Deus à sua imagem e
semelhança?” Não é, como lembrava Ortega, a alma da Renascença, esse instituir
uma religião eminentemente teândrica, ao redor da “Imitação de Cristo?” O Deus
absconditus das Catedrais Góticas tinha ficado submerso nas sombras do
Mistério, ausente no sentimento que Rudolf Otto identificou como o numinoso.
O sagrado-absolutamente-outro falava pouco para o homem da Renascença, que
reinventa a experiência do mundo. Era necessário encarnar Deus no mundo,
fazê-lo partilhar da nossa humanidade, era preciso trazer o céu para cá
embaixo, torná-lo objeto da experiência humana. Não é essa a síntese da Divina
Comédia de Dante (1265-1321)? É possível, sim, viajar pelo além, como
quem descobre Novos Mundos. Esse é o roteiro essencial da metáfora do genial
precursor florentino do quatrocento, que imagina Paraíso, Purgatório e
Inferno a partir da perspectiva histórica da sua cidade.
Pois bem: Cervantes
apropria-se dessa perspectiva antropocêntrica e ergue um ideal ético para o
homem moderno: o da pessoa-amor, que ama incondicionalmente e que, ao redor
desse amor-doação constrói o seu mundo, ou melhor, faz evanescer o mundo real
na névoa da metáfora continuada da loucura quixotesca. A fonte (neo-platónica e
judaica) que inspira esta perspectiva heróica é indubitável, e é o próprio
autor quem a identifica no prólogo do Quixote, onde Cervantes escreve:
“Se vos meterdes em negócios de amores, com uma casca de alhos que saibais da
língua toscana topareis em Leão Hebreu, que vos encherá as medidas”. O
filósofo judeu-espanhol, falecido na Itália em 1535, foi, com a sua clássica
obra Diálogos de Amor, a voz inspiradora da loucura amorosa de
Dom Quixote. Um pouco mais adiante, o mesmo pensador inspiraria um outro gênio
do século XVII, o filósofo luso-holandês Baruch Espinosa (1632-1677). Intuiu
com propriedade o genial Unamuno essa reviravolta ontológica, quando, na sua Vida
de Don Quijote y Sancho, escreveu: “Dom Quixote amou a Dulcinea com
amor acabado e perfeito, com amor que não corre atrás do deleite egoísta e
próprio; entregou-se a ela sem pretender que ela se entregasse a ele. Lançou-se
ao mundo a conquistar glória e louros, para ir logo depositá-los aos pés da sua
amada”.
Nesse ato prometeico de
criar um novo homem a partir da vontade de amar, ou como diz Ortega nos seus Estudios
sobre el amor, no seio do “enamoramiento”, Cervantes antecipa o Kant
(1724-1804) da Fundamentação da metafísica dos costumes com a sua
ética do dever, emergente das profundezas subjetivas da liberdade
transcendental, e prenuncia o Schopenhauer (1788-1860) de O mundo como
vontade e representação. Cervantes supera, de outro lado, as duas
formas de amor moderno desenvolvidas ao redor do Doutor Fausto e de Don Juan.
Efetivamente, o Doutor Fausto, na versão belamente perenizada por Goethe
(1749-1832), é movido por uma paixão titânica que tudo dissolve e que, como
frisa San Tiago Dantas, “é infiel, pois em meio às satisfações perfeitas do
amor, no peito do homem titânico medra o desejo de libertar-se”. O
herói cervantino supera, outrossim, o modelo do amor de Don Juan Tenório que,
no sentir de Unamuno, ter-se-ia dedicado a seduzir com a mirada a sua dama, a
fim de “possuí-la e saciar nela o seu apetite, não mais do que por amor a
gozá-la e apregoá-lo; Dom Quixote, não. Dom Quixote não foi de galã a El Toboso
a enamorá-la, mas saiu ao mundo a fim de conquistá-lo para ela”.
Uma última observação:
nessa doação incondicional à amada, Dom Quixote supera as vicissitudes do amor,
liberta-se por completo dos seus limites. O herói cervantino conquista a plena
liberdade. Nas palavras de San Tiago Dantas, “Assim como se liberta da constante
e fatal sedução da aventura amorosa, Dom Quixote se liberta do ciúme. A entrega
amorosa, sobretudo a entrega que ainda não conseguiu se satisfazer, isto é, ser
recebida pela pessoa amada, assume um sentido unilateral que acaba por
assemelhá-la ao Ser Divino”.
Como Sancho estranhasse o
fato de Dom Quixote ordenar a todos aqueles que libertava que fossem se
prostrar diante da amada Dulcinea, o Cavaleiro da Triste Figura o repreendeu
com as seguintes palavras: “Que néscio e que simplório que és! (...). Pois tu
não vês que tudo isso redunda em sua maior exaltação? Porque deves saber, que
nestas nossas usanças de cavalaria é honra grande ter uma dama bastantes
cavaleiros andantes que a sirvam, sem que os pensamentos deles se abalancem a
mais do que unicamente servi-la só por ser ela quem é, sem aguardarem outro
prêmio de seus muitos e bons desejos senão o ela contentar-se de os aceitar por
cavaleiros seus”.
Essa incondicional dedicação do herói à
amada, foi interpretada pelo realista Sancho como uma entrega em mãos do
Absoluto. Eis a forma em que o singelo escudeiro interpreta a louca paixão do
seu senhor, aproximando-a da doação total de inspiração evangélica: “Essa coisa
já eu ouvi em sermões: que se há-de amar a Deus por si só, sem que nos mova a
isso esperança de glória, nem medo de castigo”.
Entrega absoluta à amada
que constitui a técnica do heroísmo quixotesco. “O herói, – frisa San Tiago
Dantas – confia em Deus e em si mesmo, conserva a alma isenta de mescla e da
satisfação de apetites, mas ainda lhe falta o meio de agir, a técnica. Essa
técnica é, afinal, a essência do heroísmo quixotesco; podemos defini-la como o
dom de si mesmo. Entregar-se a si mesmo, fazer do próprio ser um simples
mediador da obra que tem diante dos olhos, desaparecer nessa obra, consumir-se
e enterrar-se nela como a semente no solo, eis o savoir faire do
cavaleiro, eis o que o Quixote nos ensina, do primeiro ao último dos seus
instantes”.
Não será essa lição de
desprendimento heróico e de idealismo, o exemplo de que mais precisamos, nós
brasileiros, sumidas as nossas instituições nas baixas e putrefatas águas da
corrupção generalizada e do clientelismo rasteiro, nesta hodierna etapa da
cultura patrimonialista, que tudo coloca a serviço de interesses clânicos e
mesquinhos? Hoje, como ontem, O Quixote representa – repitamos
aqui as palavras de Ivan Tourgueneff (1818-1883) – “ante todo a fé; a fé em
algo eterno, imutável, na verdade, naquela verdade que reside fora do eu, que
se não entrega facilmente, que quer ser cortejada e à qual nos sacrificamos,
mas que acaba por se render à constância do serviço e à energia do sacrifício”.
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e Política: duas vocações. (Prefácio de Manoel T. Berlinck; tradução de
Leônidas Hegenberg e Octany Silveira da Costa).
9a. Edição. São Paulo: Cultrix, 1993.