Trabalhadores insatisfeitos põem fogo nas instalações do canteiro de obras da usina hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, em meados de Março de 2011 |
Está a se efetivar, por estes tempos, o maior processo de entropia republicana da nossa história. O fenômeno poderia ser ilustrado com a frase, um tanto esquisita, do prefeito de São Paulo, quando falou da formação de novo partido, mais ou menos nos seguintes termos: não é uma organização nem de direita, nem de esquerda, nem de cima, nem de baixo. A frase do prefeito lembra a paradoxal definição que do ser fazia o pré-socrático Heráclito de Éfeso: não é nem quente nem frio, nem branco, nem preto, nem alto, nem baixo. Ao passo que a definição heraclitiana ficou nas névoas da metafísica grega, o significado da afirmação de Kassab é relativamente simples de ser desvendado: trata-se da ressurreição do velho “centrão”, criado na era Sarney para fazer as delícias de políticos de carreira e burocratas de plantão, que não queriam largar o osso das benesses oficiais. Todo mundo com o governo, ninguém contra, que não somos de ferro!
Gravíssima situação que faz lembrar o pesadelo antevisto por Tocqueville, para as democracias, efetivado pela onipotência da maioria, banida como desserviço à pátria a presença de qualquer oposição, mesmo que esta se traduza em singelos protestos veiculados pela mídia. É a síndrome chavista da “vontade geral” pura e simples, encarnada no líder, e que impede que a sociedade se expresse livremente pela boca dos seus representantes. É a perversa tendência à anulação de qualquer signo de insatisfação da sociedade através da imprensa livre, protagonizada, ao longo da última década, pelo casal Kirschner, nesse tango de mau gosto de um passo pra frente e dois pra trás, em que ficou enredada a democracia argentina. Felizmente as coisas não chegaram ainda, no Brasil, ao extremo da entropia total, dada a presença, no Congresso, de vozes que se erguem contra essa tendência. Mas que a força do rolo compressor oficial está em andamento, não há dúvida. O mostrengo mostrou as suas garras ao ensejo da recente visita do presidente americano ao Brasil, quando os policiais cariocas deram tratamento à margem da lei aos jovens que protestavam no centro do Rio, ou no atentado de que foi vítima conhecido blogueiro, que se caracterizou por criticar as políticas do governo fluminense. Ensaios de intimidação e de prepotência que em nada ajudam à vida democrática e à defesa dos direitos humanos, tão badalada pela atual presidenta.
Felizmente, para todos nós, a sociedade brasileira é mais complexa do que imagina a vã sabedoria oficial. O episódio acontecido semanas atrás no canteiro de obras de hidrelétrica de Jirau, e que se estendeu como rastilho de pólvora por outros cenários do PAC II, está a revelar que os estrategistas do governo se esqueceram de combinar os movimentos desenvolvimentistas com a própria sociedade, pior ainda, com os trabalhadores dos canteiros. A insatisfação é clara e não poupou as lideranças peleguizadas ao redor da CUT. Estas ficaram em palpos de aranha para dar uma explicação à sociedade, acerca dos violentos protestos dos operários nos canteiros administrados pelo PT e coligados. O rolo compressor não conseguiu abafar os reclamos trabalhistas. Nem conseguirá, com certeza, esconder as perdas que a economia do país terá com a indevida intervenção do governo na gestão da Vale do Rio Doce, que está sendo obrigada, com a defenestração do anterior presidente, a praticar políticas econômicas nada rentáveis e atentatórias contra os interesses dos acionistas.
Caberia indagar, a esta altura dos acontecimentos, onde está a “herança maldita” de que tanto falava Lula ao longo dos seus dois mandatos-palanque. Hoje, certamente, essa herança não seria identificada com o “neoliberalismo” de FHC que garantiu as privatizações (que desoneraram o tesouro e aumentaram o ingresso de dinheiro nas arcas oficiais), tendo efetivado o saneamento das contas públicas com a promulgação da lei de responsabilidade fiscal. A perversa herança é constituída, hoje, pelo reforço à tendência estatizante presente no coração do governo, pelas mãos do lulismo e do petismo na versão castilhista que, ensaiada na década passada nos pagos gaúchos, tornou-se atuante, em nível nacional, nos atuais momentos, por força da identificação do núcleo duro do poder com essa tendência tresloucada. Porque a inflação não está voltando, quase descontrolada, às prateleiras da economia, não pela mão do saudoso controle do gasto público, mas justamente turbinada pela megalomania lulista do “nunca antes na história deste país” e pelo carnaval de bolsas e subsídios oficiais pagos a eleitores pobres, ongueiros irresponsáveis, burocratas corruptos, companheiros e até a países “amigos”, como se tem revelado na recente revisão dos preços da energia vendida ao Paraguai. Tanta gastança tem preço. E essa “herança maldita” afetará os bolsos de quem sempre sai perdendo na história do nosso republicanismo patrimonialista: o contribuinte.
A presidenta Dilma irá em breve em visita oficial à China. Tomara que a mandatária se inspire no realismo político do mandarinato e coloque definitivamente nos trilhos do bom senso as nossas relações internacionais, loucamente polarizadas no ciclo lulista pelo viés ideológico que tudo deforma. O Brasil perdeu, no caminho dessa megalomania vácua e irresponsável, a oportunidade de conquistar, com o apoio dos grandes, a cadeira no conselho de segurança da ONU, bem como a liderança na Unesco e na Organização Mundial do Comércio. O Itamaraty precisa voltar ao seio da tradição do Barão do Rio Branco, que fez com que os nossos representantes lá fora fossem sempre vistos com respeito porque “não improvisavam”, mas punham em prática políticas diuturnamente amadurecidas na análise estratégica do mundo e das necessidades do país.