
"War in Rio" do designer Fábio López, indicando as facções em pugna na atual guerra carioca (publicado em http://extra.globo.com/rio/fotogaleria/2007/3799/)
Poucos se lembram da propaganda da vodca Orloff, que era exibida na TV, no decorrer dos anos 80 do século passado. Um sujeito, bem vestido e com cara de quem está com tudo encima, olha para o espelho antes de sair de farra e se enxerga com cara de anteontem: olheiras enormes, semblante lastimável. Pergunta à imagem do espelho quem é, e ela responde: “Eu sou você, amanhã”. Desde essa época afirmo, em palestras e aulas pelo Brasil afora, que a Colômbia é, hoje, o Brasil de amanhã. As cenas da guerra carioca que assistimos pela TV ao longo dos últimos quinze dias e que vimos estampadas nos jornais, já foram vistas, há vinte e tantos anos trás, nas ruas de Medellín e Bogotá. Era a guerra do narcotráfico nas cidades colombianas, que estudioso francês caracterizava como “uma guerra contra a sociedade”.
Ora, o que está acontecendo no Rio é exatamente isso: uma guerra contra a sociedade. De um dos lados está o banditismo dos narcotraficantes e milicianos, que mantém refém boa parcela da população. Esse banditismo, nos surtos habituais de violência que acompanham ao narcovarejo dos morros, afeta já a todos os cariocas. De outro lado está a polícia, que se bem tem oficiais, delegados, praças e funcionários do bem, ainda não foi depurada da banda podre, que deixa morrer na calçada, por exemplo, um cidadão, assaltado no centro da cidade, como aconteceu com o fundador de grupo Afroreggae. No meio desse tiroteio está a cada vez mais indefesa e apavorada massa dos cidadãos e dos turistas, que não são poupados nem por bandidos nem por maus policiais.
O drama que se vive no Rio é o que sofrem, hoje, com intensidade cada vez maior, as cidades brasileiras. O combustível que alimenta toda essa barbárie é um só: o narcotráfico. O Brasil não é apenas, hoje, rota de processamento e exportação de narcóticos. É também consumidor. A espiral da violência urbana não será desmontada enquanto não for removida a causa que a alimenta: o narcotráfico e o consumo de entorpecentes.
Como pano de fundo de toda essa barbárie, temos um Estado gerido, nas suas instâncias federal, estadual e municipal, com critérios clientelistas que configuram a cultura do patrimonialismo. É claro que há pontos de racionalidade administrativa. Mas convenhamos que, ao longo dos últimos anos, a coisa piorou bastante. Instalou-se, no país, uma forma mafiosa de gestão da coisa pública, exacerbando o princípio que já formava parte do folclore político: “aos amigos, os cargos; aos inimigos, a lei”. Figuras que pareciam pertencer apenas aos tratados de sociologia, como a do “juiz nosso” e a do “delegado nosso”, tão bem retratados por Oliveira Vianna, voltam à cena com magistrados concedendo discutíveis liminares, favoráveis a clãs familiares e contrárias à liberdade de imprensa. O populismo em ascensão não tem hoje limites e reivindica não ser fiscalizado por ninguém. Tribunais de contas e leis de responsabilidade fiscal, que sejam colocados à margem! O único que interessa é o PAC do líder carismático e a aprovação das massas nos palanques. Movimentos ditos sociais obtêm carta branca para se apropriarem de patrimônio público e privado, só porque são “sociais”, ou seja, dizem agir em nome dos despossuídos contra as odiadas elites.
Com essas premissas, um Estado gerido como bem de família para favorecer amigos e apaniguados e um mercado de tóxicos cada vez mais agressivo, iremos, certamente, assistir a mais cenas de violência dessa guerra contra a sociedade. É possível fazer alguma coisa? Sim, com certeza. Mas as soluções são prementes e difíceis. É necessário, antes de tudo, resgatar o princípio da preservação do bem comum, e não apenas o dos amigos ou do Partido, como norma das ações de governo. E partir para uma estratégia de cunho nacional, não apenas local.
Torna-se imperioso estruturar um sistema de segurança que garanta o controle do Estado em relação ao que entra pelas nossas fronteiras. Não há policiamento efetivo na enorme fronteira seca do nosso país com os vizinhos. Nem há controle sobre os contêineres que entram pelos portos. Nem vigilância suficiente sobre as cargas que entram pelos aeroportos. Diante desse sistema de vigilância falido, fica muito fácil aos traficantes adquirirem, no exterior, os sofisticados armamentos com que derrubam helicópteros policiais. O governo federal somente se mobiliza quando os interesses de popularidade do presidente podem ser afetados. Ora, a segurança no Rio fica distante do teflon presidencial e os repasses de verbas para que a polícia carioca possa funcionar não são simplesmente feitos. Isso é um crime de omissão, diante da gravidade da situação pela que passa a outrora “cidade maravilhosa”.
As prisões de segurança máxima são uma piada. Beira Mar e outros mega traficantes administram desde eles os seus negócios e ordenam os crimes praticados pelas suas gangues. Vários diretores de importantes presídios, especialmente cariocas, têm sido assassinados a mando dos chefões. Seria bom que as autoridades visitassem o presídio de Segurança Máxima de Cômbita, na Colômbia, para que observassem como funciona. Se o país vizinho pode, no Brasil não são feitas as coisas por simples desleixo.
A Copa do Mundo de 2014 está já agendada no Brasil, e as Olimpíadas de 2016 serão realizadas no Rio. Se o patriotismo não mobiliza aos atuais governantes, pelo menos que façam o dever de casa por simples conveniência. Vai pegar muito mal, na folha de todos eles, um Brasil mergulhado em sangue que não consegue cumprir com os seus compromissos.