1 - Quem são os intelectuais que pensaram o Brasil? Poderia citar nomes e obras?
Ricardo Vélez.- Ao longo da nossa história houve, em cada época, intérpretes do Brasil. No período colonial, por exemplo, temos a obra de Nuno Marques Pereira intitulada: Peregrino da América, que circulou ao longo do século XVIII. Nuno era um intérprete do Brasil colonial, preocupado com o que eram os principais problemas da época para os habitantes deste país: a exploração dos índios pelos portugueses, de um lado, e, de outro, as questões relativas à outra vida. Explico-me: assim como hoje todo mundo se preocupa em ter plano de saúde, no século XVIII era essencial, para as pessoas, ter garantida a salvação da sua alma. Daí a importância da assistência dos sacerdotes à população, notadamente na hora de partir desta para a outra vida. Todo mundo queria garantido o cantinho no céu, tendo pessoas que rezassem por ele na hora da morte e após. As irmandades eram espécies de “planos de saúde para a vida eterna”, garantindo aos seus membros enterro cristão pertinho da Igreja matriz, missas e orações freqüentes, etc. Minas Gerais conservou esse espírito: o Dr. Tancredo foi sepultado na Igreja da Irmandade a que ele pertencia, perto da Igreja de S. Francisco, em São João Del Rei.
Bom: em todas as épocas houve quem pensasse nos problemas existenciais do homem brasileiro. No século XIX, temos, no início, pouco antes da Independência, o grande pensador e homem público Silvestre Pinheiro Ferreira, que pensou as bases da nacionalidade nas suas Cartas sobre a revolução brasileira, bem como no seu Manual do cidadão num governo representativo. Ambas as obras debruçavam-se sobre o que deveria ser o pacto político da jovem nação que nascia à sombra da Coroa Portuguesa.
Em meados do século XIX aparece a obra do maior filósofo do Império, Domingos Gonçalves de Magalhães, que deitou as bases do que Hegel denominou de “Espírito do Povo” (Volkgeist). Duas obras foram representativas da meditação de Gonçalves de Magalhães, uma no terreno da filosofia, outra no campo da literatura, mas com um definido perfil de “paidéia” (educação para a cidadania): Fatos do espírito humano (ensaio filosófico), na qual traçava as linhas mestras do que seria uma antropologia do homem brasileiro, destacando os seus valores espirituais, e A confederação dos Tamoios (de teor literário), em que o autor, que foi professor de filosofia no Colégio Pedro II, ensinava, ao longo da narrativa que contava a organização de uma nação de indígenas, que não podia haver segurança para os indivíduos isolados, sem possuirem instituições políticas organizadas ao redor do Estado. Esta última obra formava parte, aliás, do conjunto de peças de teatro popular, em que o autor tratava de disseminar entre os brasileiros a idéia de Nação e de Estado.
Já para o final do século XIX, temos os Ensaios filosóficos do grande Tobias Barreto, um liberal republicano que criticava fortemente as instituições imperiais e a sua filosofia eclética. Tobias Barreto era um estranho kantiano, que viveu no interior nordestino e que escrevia um jornal em alemão, Brasilianische Zeitung (para cutucar com vara curta a nobreza pesudo-parisiense que vivia na capital imitando os salões da Cidade Luz). Ele foi o fundador da mais importante corrente de pensamento do século XIX, denominada de Escola do Recife, que deitou os alicerces para a nossa meditação do século XX, nos terrenos da Filosofia, do Direito e da Sociologia. Essa corrente, denominada pelos estudiosos de Culturalismo, tinha como base a meditação de Kant, bem como a crítica ao espiritualismo do século XIX, num contexto que valorizava a pesquisa científica da realidade social.
No século XX, destacaria duas figuras importantes: Miguel Reale (1910-2006) e Vicente Ferreira da Silva (1916-1963). Reale, continuador da meditação de Tobias Barreto, com a obra intitulada Experiência e Cultura deu embasamento filosófico à sua meditação jurídica (teoria tridimensional do direito), bem como a uma abordagem ampla do homem, num contexto teórico de base neokantiana, mas aberto, também, à dimensão do historicismo hegeliano, à filosofia dos valores (na trilha de Max Scheler), à problemática da experiência (incorporando a meditação de John Dewey), à questão das filosofias nacionais e à dimensão problemática da Filosofia (seguindo as pegadas de Nicolai Hartmann e Rodolfo Mondolfo). Reale é, segundo estudiosos brasileiros e estrangeiros, a máxima manifestação do Culturalismo, bem como o maior pensador em língua portuguesa do século XX.
Vicente Ferreira da Silva foi, no sentir de Reale, “a maior vocação metafísica do Brasil”. Os seus diálogos filosóficos, bem como os seus ensaios são, hoje, referenciais para pensarmos o homem brasileiro no contexto da existência aberta ao mistério do Ser, relativizando as propostas puramente factuais daqueles que, de forma um tanto trêfega, pretendem que o ser humano seja apenas índice de desenvolvimento, ficha de militância política ou de produtividade, lhe negando qualquer outra dimensão. O filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002) tinha como uma das suas fontes para a Filosofia Hermenêutica a obra de Ferreira da Silva, conforme testemunho de um dos seus assistentes na Universidade de Heidelberg, o filósofo colombiano Carlos Bernardo Gutiérrez.
2. Essa linha de pensamento, dos chamados intérpretes do Brasil, surgiu na década de 1930? Por quê? Por que eles queriam entender quem somos, que país é esse?
R. V.- A linha dos denominados “intérpretes do Brasil” surge um pouco antes, na década de vinte. É fruto da tendência aberta pelos nossos pioneiros da reflexão social, no final do século XIX, Euclides da Cunha e Sílvio Romero. Nos anos vinte do século passado, acompanhando a crise que se instala a nível global com a Primeira Guerra Mundial, a sociologia vai ganhar força renovada com dois pensadores: Oliveira Vianna (Populações meridionais do Brasil) e Gilberto Freyre (Casa grande e senzala). A pergunta que esses autores se fazem é a seguinte: neste mundo do após-guerra tão conturbado, quem somos? Vem, a seguir, a plêiade de escritores que acompanha a Semana de Arte Moderna, que busca decodificar o Brasil do século XX, a fim de fazê-lo encontrar os caminhos da modernidade. Oliveira Vianna firma o método monográfico no estudo da nossa realidade, enquanto Gilberto Freyre parte para uma visão holística da sociedade rural brasileira em Casa grande e senzala, que complementa com uma obra posterior, Sobrados e Mucambos, em que aborda a sociedade urbana. São eles autores muito originais, que criaram os tipos ideais da nossa sociologia. Como não lembrar, por exemplo, uma tipologia tão brasileira como o “complexo de clã” (Oliveira Vianna)?
3. Por que hoje não há mais sujeitos que empreendem estudos amplos e complexos sobre o Brasil? Por que hoje os estudos se voltam para temas específicos? Poderia comentar?
R. V.- Em primeiro lugar, o nosso panorama cultural tornou-se complexo. Hoje ninguém arriscaria uma generalização, em face da sofisticação que alcançaram as ciências sociais e humanas, no terreno metodológico. Hoje, certamente, encontramos, no terreno destas, mais estudos monográficos sobre a nossa realidade. Mas, no campo da reflexão filosófica e da crítica cultural, encontramos obras de fôlego que pretendem dar uma olhada sobre a totalidade da nossa formação social. Cito três livros: O homem e os seus horizontes (Miguel Reale), Momentos decisivos da história do Brasil (Antônio Paim) e Em berço esplêndido (José Osvaldo de Meira Penna).
4. Há algum ponto em comum entre esses sujeitos que pensaram o Brasil? Por exemplo, teriam eles, quase todos, pensado o Brasil por meio da escravidão? Ou outro assunto em comum?
R. V.- Acho que o ponto comum entre todos esses pensadores é a abertura de perspectivas, seguindo o ensinamento de Sílvio Romero: em matéria de reflexão, em ciências humanas, não há monocausalismos. A temática da escravidão é própria de alguns estudiosos, que sob esse viés analisam o nosso século XIX, como faz Fernando Henrique Cardoso, por exemplo. Mas o fazem sem esquecer que há outras perspectivas através das quais podem ser estudados os fenômenos sociais. Já foi superada, felizmente, a tendência dos marxistas enragés, que tudo queriam analisar à luz do conceito monocórdio de luta de classes.
5. Qual desses pensadores é o seu predileto e por quê?
R. V.- Professo grande admiração por Miguel Reale. Concordo com a opinião dos estudiosos que o consideram como o maior filósofo em língua portuguesa do século XX. O grande mérito de Reale consiste em ter dado uma fundamentação firme, sob o ângulo da filosofia, às pesquisas no terreno da história das idéias. Ele firmou, num opúsculo intitulado A Filosofia de Kant no Brasil um método que hoje é valorizado pelo mundo afora. O método é simples: a filosofia, antes do que sistema, é discussão de um problema que preocupa ao pensador. Conseqüentemente, o método para estudar os autores consiste, primeiro, em averiguar qual era o problema que os preocupava para, em seguida, ver a forma em que o mencionado problema foi equacionado nas suas respectivas obras. A partir daí pode-se estabelecer elos e comparações entre os vários autores. É, como se pode ver, uma metodologia simples e que não prejulga acerca da obra de nenhum autor. Posso ser simpático ou não com as suas idéias. Mas, se aplico esse método, vou escutá-lo, deixá-lo falar, mesmo que eu não concorde com ele, ou mesmo que eu seja o seu fã.
6. Já ouvi dizer que há mais intelectuais que dizem o que não somos, do que aquilo que somos. Isso procede? Por quê?
R. V.- Bom, se a afirmação for interpretada como Ortega y Gasset fazia, entendendo “o que somos” como “eu e as minhas circunstâncias”, e, entre estas, elencarmos tudo quanto nos afeta física, psíquica e culturalmente, posso concordar com essa afirmação, no seguinte sentido: somos o que somos; mas, naquilo que somos, carregamos todas as nossas circunstâncias, incluindo aí a nossa carga genética, bem como a cultura que herdamos dos nossos ancestrais. Ora, é impossível alguém, ao falar de nós, dar conta de tudo quanto somos. Assim, quem fala de nós, diz algo de nós, mas não esgota o que somos. Nesse sentido, os intelectuais dizem o que não somos, ao não dizerem totalmente o que somos. A história é outra quando os intelectuais ficam imaginando o que não somos, por estarem interessados mais em outra realidade diferente na nossa, como aquele autor que escreveu um livro, dedicado ao estudo de um departamento de filosofia numa importante universidade, intitulado: Um departamento francês no ultramar. Como se fossemos apenas um apêndice cultural da França...Isso seria, pura e simplesmente, um caso explícito de colonialismo cultural...
7. Como o senhor pensa e entende o Brasil? Qual a sua visão de mundo do Brasil? Quais nossos problemas? E quais nossas soluções?
R. V.- Difícil dar uma resposta sucinta a essa pergunta. Talvez poderíamos perguntar: qual seria o problema que hoje afeta mais ao nosso projeto democrático? Aí eu responderia com Oliveira Vianna: o nosso complexo de clã. No Brasil, o patotismo sufocou o patriotismo. Temos mentalidade de torcida. A Cabeça do brasileiro (para citar a obra de um jovem pesquisador na área da antropologia, Alberto Carlos de Almeida) está voltada para os seus interesses familísticos. Ruim? Não. O problema é que as pessoas, neste país, só pensam nisso, excluindo a dimensão comunitária. O que o brasileiro não pode privatizar, levando para a sua casa, depreda: orelhão, ônibus, banco da pracinha... Precisamos mudar essa cabeça, mediante a educação para a cidadania e a formação humanística, que devem acontecer, a primeira, nas quatro primeiras séries do primeiro grau e, a segunda, no ensino secundário e na Universidade. O Brasil, no contexto dos BRICs (os emergentes: Brasil, Rússia, Índia, China) é o que está mais atrasado em matéria de educação para a cidadania. Entra governo, sai governo e o panorama é sempre o mesmo: descaso para com a dimensão cultural da educação básica. Não seremos nada no mundo globalizado de hoje se não formarmos a cabeça dos nossos cidadãos. E isso acontece na infância e na adolescência. Depois é tratar de corrigir o que já está deformado.
8. O brasileiro se interessa em pensar o Brasil? Por que? Poderia dar exemplos?
R. V.- Vou lhe contar uma história: sou o primeiro mestre formado em pensamento brasileiro, em 1974. E sou também o primeiro doutor formado em pensamento luso-brasileiro, em 1982. Os cursos em que me formei, o Mestrado em Pensamento Brasileiro da PUC do Rio (que tinha sido criado em 1972), e o doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro da Universidade Gama Filho (criado em 1979) foram, ambos, fechados por pressão da CAPES. Hoje, se você quiser estudar o Brasil no terreno das idéias e da história do pensamento, não tem, no país, onde estudar. Tem que ir para Portugal (onde há cursos de mestrado e doutorado que estudam a nossa cultura), ou para os Estados Unidos (onde, nos 150 centros existentes de estudos latino-americanos, há vários que se interessam pela cultura brasileira). Os nossos burocratas do MEC não se interessam. A CAPES não se interessa. Isso tem que mudar!Há, evidentemente, pessoas interessadas no estudo do pensamento filosófico brasileiro e nas questões relativas à cultura nacional. Mas essas pessoas, geralmente jovens que entram pela primeira vez na Universidade, logo são desestimulados pelos burocratas a serviço do colonialismo cultural. Nos 14 cursos de mestrado e doutorado em filosofia existentes no país estuda-se, hoje, com profundidade, a obra de autores estrangeiros: Kant, Hegel, Escola de Frankfurt, Pragmatismo norte-americano, etc. Mas não diga que você vai estudar um pensador brasileiro. O pessoal que dá bolsas, ou os burocratas que aprovam cursos torcem o nariz. Não gostam do Brasil!