Num momento em que, no Brasil, se abre novamente a porta para uma campanha presidencial e, no contexto da atual turbulência que tomou conta do cenário político, em decorrência principalmente da discussão massiva das questões políticas via redes, vale a pena trazer ao debate alguns conceitos básicos. Qual é o papel que, no atual cenário, têm os militares? A questão, a meu ver, tem de ser aprofundada à luz de uma avaliação crítica e serena do que foi o ciclo militar no seio da cultura política brasileira.
Com o intuito de contribuir ao debate, publico neste espaço trabalho por mim elaborado em 2014. A conjuntura política não mudou essencialmente, embora os fatos imediatos tenham se sucedido com uma rapidez estonteante ao ensejo da Operação Lava-Jato, mas sem alterar os princípios à luz dos quais fiz o balanço do período histórico a que se refere a minha análise. (Este artigo foi publicado inicialmente pela Revista do Clube da
Aeronáutica no número correspondente ao mês de Março de 2014, com o título: “O
ciclo militar no contexto da tradição cientificista brasileira”). Faço aqui uma atualização do mesmo. [1]
Introdução
Há cinquenta e três anos eclodia a intervenção militar de
64. Embora cogitada inicialmente como uma correção de rumo na desastrada
ladeira por onde tinha enveredado o populismo janguista (na trilha das “intervenções
salvadoras” típicas da nossa tradição republicana), o regime castrense terminou
durando mais do que se imaginara inicialmente e acabou por desgastar as Forças
Armadas, em governos de força que se estenderam ao longo de duas décadas. Este é um período suficientemente longo como para
imprimir num país diretrizes novas e, também, para cometer erros conjunturais e
estratégicos.
Ora, ambas as coisas precisam ser analisadas, notadamente no
ambiente universitário, que deve ser, nas sociedades hodiernas, o celeiro de
idéias novas, bem como o filtro por onde passam os acontecimentos à luz crítica
da razão, a fim de que, com esse patrimônio de ilustração, se beneficiem as
gerações futuras. No caso da avaliação do regime militar, não foi isso,
exatamente, o que aconteceu no Brasil. As Universidades, especialmente as
públicas, controladas a partir da abertura democrática pela esquerda raivosa,
terminaram fazendo da memória de 64, ato indiscriminado de repúdio aos
militares e às diretrizes por eles traçadas, fazendo com que uma cortina de
fumaça terminasse pairando sobre essa importante etapa da nossa vida
republicana.
As coisas não mudaram com a chegada dos esquerdistas
ao poder, notadamente no ciclo do lulopetismo. A criação, pelo governo,
da “Comissão da Verdade” visando a uma “omissão da verdade”, e que colocava sob
os holofotes a repressão praticada pelo Estado sem, no entanto, relembrar nada
do terrorismo praticado pela esquerda radical, revelava que pouco se
progrediu nesse terreno. A finalidade
prevista com a tal comissão era clara: torpedear a “Lei de Anistia”, que abriu as
portas para a volta dos exilados e que firmou o início da abertura democrática.
Gostaria de destacar
três coisas nesta introdução. Falemos inicialmente dos desacertos de 64. A
grande falha consistiu, a meu ver, no viés autoritário do regime militar,
decorrente do fato de que os profissionais das armas não estão habilitados para
a chefia do Estado, toda vez que são preparados, como lembrou com propriedade o
saudoso amigo Paulo Mercadante (1923-2013) em Militares e civis: a ética
e o compromisso , para defender com
coragem e eficiência os interesses soberanos da Nação, à luz da ética de
convicção weberiana, que se caracteriza pela fidelidade aos princípios, sem que
haja preocupação com o resultado da ação. Falta aos nossos homens de armas a
sensibilidade da ética de responsabilidade, que exige que o governante calcule,
nas decisões tomadas, as conseqüências que decorrerão para a comunidade, sendo
esta, segundo Weber, a ética dos políticos.
Em segundo lugar,
anotaria mais este ponto: por formação, os militares estão preparados para
gerir a unanimidade decorrente da hierarquia e da obediência do profissional
das armas. Afinal de contas, ninguém realiza assembléias no front, quando as
balas silvam sobre as cabeças dos soldados. Eles cumprem as ordens dadas pelos
seus comandantes, sem discussão. Ora, a política é o reino do dissenso, em
decorrência da nossa natureza racional essencialmente dialética, condição já
apontada por Aristóteles (384 a. C. – 322 a. C.) na sua Política. A organização
da comunidade politicamente estruturada deve ser pensada como construção de
consensos a partir do dissenso, não como eliminação pura e simples deste. Esse
é o difícil trabalho dos homens públicos, que precisam se armar de dose
infinita de paciência, a fim de conciliar os interesses dos seus representados,
os cidadãos que votaram neles.
Adiantando-me ao que
tratarei no último item desta análise, anoto sumariamente os aspectos
positivos do regime de 64: a intervenção militar evitou que os comunistas
tomassem o poder instaurando uma ditadura do proletariado, com o banho de
sangue que isso provocaria num país de dimensões continentais como o Brasil. A
opinião pública sabe que o que a extrema esquerda buscava era isso. O Brasil
não teve a sua “República das FARC”, com que se debateu até os dias de hoje o
governo colombiano, depois de meio século de guerra, graças à corajosa
intervenção das Forças Armadas, notadamente do Exército, que aniquilou a possibilidade
de um território controlado pelos terroristas, sendo esta a finalidade
perseguida pela guerrilha do Araguaia. Jovens e inexperientes militantes foram
criminosamente colocados na linha de fogo pelas lideranças comunistas. Este
aspecto, aliás, foi esquecido pela tal “Comissão da Verdade”.
No que tange à
economia, o Brasil transformou-se, ao longo do ciclo militar, em país
industrializado. Consolidou-se a indústria petroleira e desenvolveu-se a
petroquímica, bem como a siderurgia e a fabricação de maquinaria pesada. A
engenharia brasileira deu um grande salto para frente, com as obras públicas
que pipocaram pelos quatro cantos do território nacional. Acelerou-se, por
outro lado, a indústria bélica (em que pese o fato da falta de continuidade de
uma política para o setor, como tem sido analisado oportunamente por Expedito
Bastos, do Centro de Pesquisas Estratégicas da UFJF). Efetivou-se, com o
fantástico desenvolvimento das telecomunicações e com a política de abertura de
estradas, a denominada por Oliveira Vianna (1883-1951) de “circulação
nacional”, unindo ao centro nevrálgico do poder as regiões mais afastadas e
ligando estas às mais importantes áreas metropolitanas. O regime militar tinha
um propósito, em que pese o viés autoritário evidentemente criticável. Mas
hoje, trinta anos após os governos militares, carecemos de um projeto
estratégico que nos indique para onde irá o país nas próximas décadas. Esse é o
grande desafio: costurarmos uma proposta estratégica, no contexto da democracia
que conquistamos, superando o vezo tutorial que empanou o regime de 64.
Mas isso só
poderá ser feito se identificarmos, de forma pertinente, as origens
culturológicas em que ancorou o regime modernizador ensejado pelos militares
nos anos sessenta do século passado. Para isso, projetarei o ciclo de 64 sobre
o pano de fundo da nossa tradição cientificista. Anotemos, de entrada, que o
fenômeno do cientificismo consiste em identificar a racionalidade com um
determinado estágio da ciência (o correspondente à sua dimensão aplicada), que
passa a ser considerado como absoluto, pelo fato de ter sido colocado a serviço
do Estado. Tal fenômeno, no seio da cultura luso-brasileira, encontrou
formulação inicial no ciclo pombalino. A aritmética política apregoada
pelo marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello (1699-1782),
constituiu o arquétipo que inspirou, nos dois séculos subsequentes, os mais
destacados processos modernizadores sofridos pela sociedade brasileira. Afinal
de contas, como frisa Antônio Paim, “O positivismo brasileiro tornou-se o
desdobramento natural da tradição cientificista iniciada sob Pombal. Mais que
isto: transformou-se no fundamento doutrinário do autoritarismo republicano e
paulatinamente enquadrou o marxismo a partir de 1930. Encarado com essa amplitude,
tem uma posição marcante em nossa cultura há cerca de dois séculos” .
Pretendo
identificar os cinco momentos fundamentais através dos quais se manifestou o
fenômeno do cientificismo na nossa cultura. Tais momentos são os seguintes: 1)
a aritmética política pombalina; 2) a geometria política de frei
Caneca (1774-1825); 3) o poder legitimado pelo saber dos positivistas
ilustrados e dos castilhistas; 4) o equacionamento técnico dos problemas
de Getúlio Vargas (1883-1954) e da segunda geração castilhista; 5) a engenharia
política do general Golbery do Couto e Silva (1911-1987). Concluirei
mostrando a atualidade do cientificismo brasileiro e os riscos que dele
decorrem para a plena modernização da sociedade.
1) A
aritmética política pombalina
Na segunda metade do
século XVIII consolidou-se, em Portugal, a corrente filosófica do empirismo
mitigado, que se caracterizava por uma forte critica à segunda escolástica
e ao papel monopolizador que os jesuítas exerciam no ensino, bem como pela
tentativa em prol da formulação de uma concepção de filosofia que se
identificasse com a ciência aplicada.
Duas obras inspiraram
essa corrente de pensamento: Instituições lógicas do italiano
Antonio Genovesi (1713-1769) e
o Verdadeiro método de estudar de Luiz António Verney (1713-1792).
O empirismo
mitigado foi formulado e desenvolveu-se no contexto mais amplo das reformas
educacionais do marquês de Pombal, que visavam a incorporar a ciência aplicada
ao esforço de modernização despótica do Estado português. No entanto, ao responder
a uma problemática formulada a partir das necessidades do Estado absolutista e
não de uma perspectiva que tivesse como centro o homem, o empirismo mitigado
não conseguiu dar uma resposta satisfatória aos problemas da consciência e
da liberdade, mesmo porque reduziu, de forma simplória, a filosofia à ciência e
esta à ciência aplicada. Essa corrente empolgou, no entanto, importantes
segmentos da intelligentsia brasileira a partir da vinda da corte
portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808.
A geração de homens
públicos que organizou as primeiras instituições de ensino superior era de
formação cientificista pombalina. Entre eles, convém mencionar a D. Rodrigo de
Souza Coutinho, conde de Linhares (1755-1812), que em 1810 organizou a Real
Academia Militar do Rio de Janeiro.
Podemos sintetizar nos seguintes pontos a aritmética política formulada
por Pombal nas suas observações secretíssimas: a) o Estado empresário,
com o auxílio da ciência aplicada, garante a riqueza da nação; b) o Estado, com
o auxílio da ciência aplicada, garante a ordem política e a moral dos cidadãos;
c) o Estado, ainda com o auxílio da ciência aplicada, garante a formação da
elite burocrático-técnica de que precisa.
Considerada a obra
reformadora do marquês de Pombal, no âmbito da modernização que incutiu no seio
do Estado português, podemos avalia-la como a substituição da crença nas
tradições religiosas (até então mantidas ciosamente pela Igreja através das
Ordens religiosas e da Inquisição, e que exerciam as funções de sustentáculo do
poder patrimonial do monarca), pela crença na validade da ciência aplicada como
fundamento do Estado. Configurar-se-ia assim, sob Pombal, uma forma de
dominação patrimonialista modernizadora ou, em outros termos, uma modalidade de
despotismo esclarecido. Duas realizações destacaram-se no contexto da reforma
educacional pombalina: a reformulação da Universidade de Coimbra que, no sentir
de Hernani Cidade “foi verdadeiramente a criação de uma nova Universidade” e
a organização do Colégio dos Nobres de Lisboa (1761), que correspondeu à
exigência de dotar o Estado português de uma elite burocrático-técnica que
garantisse a sua modernização, como salientei anteriormente.
Teófilo Braga
(1843-1924) frisa que a idéia de criação do Colégio dos Nobres proveio do esclarecido
médico português António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), que tinha prestado
os seus serviços à Imperatriz da Rússia Ana Ivanovna (1693-1740), como médico e
pesquisador no Colégio dos Nobres de São Petersburgo. Em carta dirigida em 1759
ao ministro português, afirma o ilustre médico: “No ano de 1751 se estabeleceu
em Paris a Escola Real Militar (...). Em Dinamarca, em Suécia e em Prússia se
instituíram e conservaram Escolas militares semelhantes, instituídas depois de
poucos anos (...). Parece que Portugal está hoje quase obrigado não só a fundar
uma Escola Militar, mas a preferi-la a todos os estabelecimentos literários que
sustenta com tão excessivos gastos. O que se ensina e tem ensinado até agora
neles é para chegar a ser sacerdote ou jurisconsulto; e como já vimos acima não
tem a nobreza ensino algum para servir à sua pátria em tempos de paz nem de
guerra”.
Eis aqui, na enumeração
feita por Teófilo Braga, a lista das disciplinas que Ribeiro Sanches propunha
que fossem ensinadas no Colégio dos Nobres: línguas portuguesa, latina,
castelhana, francesa e inglesa; aritmética, geometria, álgebra, trigonometria,
seções cônicas,etc.; geografia, história profana, sagrada e militar; risco,
fortificação arquitetura militar, naval e civil; hidrografia e náutica; dança,
esgrima, manejo da espingarda, equitação e natação. E, além destas disciplinas,
filosofia moral, direito de gentes, direitos civil, político e pátrio; economia
política do Estado, agricultura geral, navegação e comércio. “Manifestamente – conclui
Teófilo – a fundação do Colégio dos Nobres em 1761 foi a realização prática
desse pensamento”.
A importância do
Colégio dos Nobres foi grande, porquanto constituiu o primeiro esboço da
Faculdade de Filosofia baseada no culto à ciência aplicada, que posteriormente
deitaria as bases para a reforma da Universidade. Referindo-se à sua proposta,
afirmava o médico Ribeiro Sanches que ali “está decretado o ensino da história
filosófica, da lógica, da geografia, da cronologia, da história, das matemáticas
elementares e transcendentais, da arquitetura civil e militar, da física geral
e da experimental, estudos públicos desconhecidos até agora em Portugal”. A
idéia cientificista, em síntese, surgira em Portugal, sob o marquês de Pombal,
na segunda metade do século XVIII, como alternativa modernizadora que
substituiu a crença na tradição religiosa sobre a qual até então assentava o
poder patrimonial do Estado. Em que pese o caráter modernizador da reforma
pombalina, em nada modificou o esquema concentrado do poder patrimonialista:
não surgira, então, da queda do absolutismo teocrático, um regime de democracia
representativa, como tinha acontecido na Inglaterra após a Revolução Gloriosa
de 1688. Apareceu, assim, como alternativa modernizadora, no seio da cultura
lusa, o despotismo ilustrado ou patrimonialismo modernizador,
que exerceu forte influxo no desenvolvimento do cientificismo no Brasil.
2) A
geometria política de frei Caneca (1779-1825)
Antônio Paim salienta
que as idéias fundamentais do cientificismo pombalino manifestaram-se, ao longo
do Império, no Brasil, em primeiro lugar através do radicalismo republicano de
frei Joaquim do Amor Divino Rabelo e Caneca, que sustentava poder-se organizar
a sociedade em bases puramente racionais. Esse intento modernizador, no
entanto, colidia frontalmente com a estrutura patrimonialista de cunho
tradicional do Império. Em segundo lugar, o cientificismo pombalino
manifestou-se na criação da Real Academia Militar (1810), cujo artífice foi um
ex-aluno da Universidade pombalina e do Colégio dos Nobres de Lisboa: dom
Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), conde de Linhares. A finalidade da
Academia consistia em garantir a formação científica de oficiais do Exército e
engenheiros. “O currículo da Academia – escreve Antônio Paim – e, através dele,
o ideário pombalino, seria preservado ao longo do Império. Outras influências
fizeram-se presentes, sobretudo nas Faculdades de Direito e Medicina, como de
resto na esfera política. Contudo, no estabelecimento que daria origem à Escola
Politécnica, mantinha-se o culto à ciência na mesma situação configurada pelo
marquês de Pombal, isto é, nutrindo a suposição de que é competente em todas as
esferas da vida social”.
Mas o cientificismo
pombalino, se bem é certo que manifesto no pensamento de
frei Caneca e no currículo da Real Academia Militar, não se restringiu,
contudo, a essas duas variáveis. Devido ao fato de a elite que fez a
Independência ter-se formado na Universidade pombalina, o cientificismo passou
a inspirar as instituições de ensino superior criadas no Brasil nas primeiras
décadas do século XIX. Esse cientificismo traduzir-se-ia no afã
profissionalizante que respondia às necessidades do Estado e no cultivo da
ciência aplicada, com banimento da pesquisa básica e do saber humanístico. Até
mesmo a formação do clero viu-se afetada pela maré cientificista-aplicada: o
Seminário de Olinda, fundado em 1800 pelo bispo Azeredo Coutinho (1742-1821) ,
deu grande importância ao conhecimento prático do meio brasileiro, num contexto
filosófico herdado de Luiz António Verney, que procurava o aspecto útil da
educação.
Não há dúvida quanto ao
caráter eminentemente profissionalizante e de serviço ao Estado que marcou as
instituições de ensino superior ou de cultura, ao longo do século XIX.
Além da Real Academia Militar, inspiraram-se nessa tendência a Real Academia de
Marinha (1808), os Cursos Médico-Cirúrgicos da Bahia (1808) e do Rio de Janeiro
(1809), os Cursos de Agricultura da Bahia (1812) e do Rio de Janeiro (1814), o
Gabinete de Química da Corte (1812) e a Cadeira de Química da Bahia (1817), a
Cadeira e Aula Prática de Economia Política (1808) entregue a José da Silva
Lisboa (1756-1835) visconde de Cairu, a Real Academia de Desenho, Pintura,
Escultura e Arquitetura Civil (1820), a Imprensa Régia (1808), o Museu Real
(1818), o Jardim Botânico (1810), a Biblioteca Pública (1810), a Missão
Artística Francesa (1816), etc. A tendência profissionalizante e de serviço ao
Estado, herdada da mentalidade pombalina, aproximava-se do modelo napoleônico
das Faculdades e das Hautes Écoles. A idéia de Universidade, como
instância de pesquisa científica desinteressada e de cultura superior,
simplesmente seria deixada de lado.
Voltemos a frei Caneca.
A sua menção aqui não é excludente, mas paradigmática. Ele encarnou, no meio
brasileiro, a mentalidade cientificista que vingou entre os que pretendiam a
independência de Portugal num contexto republicano. A crítica a esta posição
foi efetivada, do ângulo liberal e monárquico, por Silvestre Pinheiro Ferreira
(1769-1846), que inspirado em Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) e nos
publicistas alemães, considerava perfeitamente válida a idéia independentista,
mas preservando a Monarquia Constitucional e o Governo Representativo. Nesta última
vertente encaixam os estadistas do Segundo Reinado, denominados por Francisco
José de Oliveira Vianna (1883-1951) de “Homens de Mil”, aqueles que rodearam de
forma incondicional o Imperador e que fizeram emergir e consolidar as
instituições do governo representativo, na trilha do liberalismo doutrinário
formulado na França por Pierre-Paul Royer-Collard (1763-1845), Victor Cousin
(1792-1867) e François Guizot (1787-1874). Esses “Homens de Mil” romperam com o
cientificismo e deram ensejo à mais duradoura experiência de estabilidade
institucional que o Brasil jamais conheceu, entre 1841 (após o Ato Adicional e
o Regresso), até o final do Império, em 1889.
Essa variante da nossa
formação política foi formulada precursoramente, como já foi dito, por Silvestre
Pinheiro Ferreira, o estadista que ajudou dom João VI a dar o corajoso passo da
monarquia absoluta à constitucional e que pensou, numa perspectiva liberal,
pela primeira vez, o Brasil como projeto autônomo. Diríamos que o Segundo
Reinado deu ensejo a criativa experiência modernizadora de inspiração
liberal-doutrinária, que no entanto não vingou no período republicano,
polarizado pelo velho cientificismo pombalino, do qual frei Caneca foi
representante modelar. O velho cientificismo do despotismo ilustrado constituiu
o leito de procusto onde se deitou a filosofia positivista, que, como diria
posteriormente José Veríssimo (1857-1916), virou moda no Brasil republicano e
terminou polarizando as outras manifestações modernizadoras da vida pública
brasileira. O ideal republicano acalentado por frei Caneca inseria-se na trilha
do democratismo (à
maneira do setembrismo português), que entendia ser a nova ordem fruto
da imposição de mentes esclarecidas pelas matemáticas aplicadas sobre as massas
ignaras.
Eis a forma em que o
frade carmelita entendia o mundo e criticava o governo imperial, formulando ao
mesmo tempo a sua geometria política: “Pela geometria conhecemos
evidentemente a existência do Supremo Arquiteto do Universo; pela geometria
admiramos a sua infinita sabedoria no sistema da criação, e sua providência no
andamento regular da natureza; pela geometria domamos a fúria do oceano,
dirigimos a força dos euros, penetramos os abismos, e subimos aos astros;
ajustamos os impulsos do nosso coração com os ditames da reta razão;
proporcionamos os trabalhos às nossas forças, os remédios às moléstias, as
penas aos delitos, os prêmios às virtudes; pela geometria equilibramos os
movimentos das grandes massas das nações, regularizamos o valor dos povos e o
seu entusiasmo. Todas as coisas em que não entram a régua e o compasso da
geometria são desregradas e descompassadas, são monstruosas. Por falta de
geometria é que o nosso governo, não conhecendo a gravidade específica dos
negócios civis e políticos nem a relação deles entre si, não sabe equilibrar as
forças dos diversos agentes sociais, desencaixa dos seus lugares as molas da
sociedade, vai quebrá-las e reduzir tudo a poeira”.
3) O poder legitimado pelo saber
dos Positivistas Ilustrados e dos Castilhistas
O positivismo teve no Brasil quatro manifestações
diferentes: a ortodoxa, a ilustrada, a política e a militar. A corrente
ortodoxa teve
como principais representantes Miguel Lemos (1854-1917) e Teixeira Mendes
(1855-1927), que em 1881 fundaram a Igreja Positivista Brasileira com o
propósito de fomentar o culto da “Religião da Humanidade” proposta por Augusto
Comte (1798-1857) no seu Catecismo positivista. A corrente
ilustrada teve
como principais representantes Luiz Pereira Barreto (1840-1923), Alberto
Sales (1857-1904), Pedro Lessa (1859-1921) e Ivan Monteiro de Barros Lins (1904-1975).
Defendia o plano proposto por Comte na primeira parte da sua obra, até 1845, antes
que formulasse a “Religião da Humanidade”, e que poderia ser resumido
assim: o positivismo constitui a última etapa (científica) da evolução do
espírito humano, que já passou pelas etapas teológica e metafísica e que deve
ser educado na ciência positiva, a fim de que surja, a partir desse esforço
pedagógico, a verdadeira ordem social, que foi alterada pelas revoluções
burguesas dos séculos XVII e XVIII. A corrente política do positivismo teve
como maior representante Júlio de Castilhos (1860-1903)
que redigiu, em 1891, a Constituição para o Estado do Rio Grande do Sul,
que começou a vigorar nesse mesmo ano.
Segundo essa Carta, as funções legislativas ficavam
em mãos do Executivo (o Presidente do Estado sulino), passando os outros dois
poderes públicos (Legislativo e Judiciário) a girar ao redor do governo.
Segundo Castilhos, deveria ser invertido o dogma comteano de que à educação
moralizadora seguiria pacificamente a ordem social e política: o Estado forte e
centralizador arrumaria a casa, para depois educar compulsoriamente os cidadãos
na nova mentalidade, ilustrada pela ciência positiva. Esta corrente teve maior
repercussão do que as outras três, devido ao fato de ter obedecido à tendência
cientificista de que se impregnou o Estado consolidado pelo marquês de Pombal,
e também porque respondia aos apelos do caudilhismo gaúcho. Assim, as reformas
autoritárias de tipo modernizador que o Brasil experimentou ao longo do século
XX deram continuidade à mentalidade castilhista do Estado forte e tecnocrático.
Esse modelo consolidou-se na obra de um seguidor de Castilhos: Getúlio Vargas
(1883-1954). Aconteceu com o Castilhismo algo semelhante ao que ocorreu no
México com o Porfirismo: cooptou a retórica positivista como ideologia
estatizante e reformista, contra as velhas lideranças liberais e conservadoras.
A corrente militar positivista
teve como principal representante Benjamin Constant Botelho de Magalhães
(1836-1891), professor da Academia Militar e um dos chefes do movimento
castrense que derrubou a Monarquia em 1889. Esta corrente estruturou-se de
forma semelhante à ilustrada, adotando as teses comteanas anteriores a 1845.
Mas a feição política que a partir da proclamação da República passaram a ter
progressivamente as intervenções “salvadoras” dos militares foi aproximando o
seu cientificismo do modelo castilhista. É assim como, a partir de 1930, os
militares positivistas passam a agir em consonância com as propostas
tecnocráticas getulianas. A idéia comteana de que “o poder vem do saber”, se
bem é certo que inspirou as várias correntes do positivismo, encontrou, como
vimos, mais acabada formulação de parte dos positivistas ilustrados e dos
Castilhistas. A partir de 1874, quando da Academia Militar foi segregada a
Escola Politécnica, os ideais cientificistas do comtismo encontraram nela
terreno propício. Passou-se a cultuar a visão classificatória absoluta das
ciências feita pelo filósofo francês. O
dogmatismo positivista defrontou-se, no entanto, no próprio seio da Escola
Politécnica, com críticos sistemáticos como Otto de Alencar (1874-1912) e
Amoroso Costa (1885-1928), que expuseram a insuficiência do comtismo como
filosofia das ciências.
4) O equacionamento técnico dos
problemas de Getúlio Vargas
A manifestação mais acabada do cientificismo
brasileiro foi obra de Getúlio Vargas, que realizou a união definitiva das duas
vertentes modernizadoras: a castilhista e a proveniente da Academia Militar e
da Escola Politécnica. “Qual a contribuição de Vargas ao Castilhismo? -
Pergunta Antônio Paim. E responde: - Indicaria, de um modo geral, que consistiu
no empenho em transformar as questões políticas em problemas técnicos”. O
próprio Getúlio expressou esse propósito em discurso pronunciado em 4 de maio
de 1931. Estas são as suas palavras: “A época é das assembléias especializadas,
dos conselhos técnicos integrados à administração. O Estado puramente político,
no sentido antigo do termo, podemos considera-lo atualmente entidade amorfa
que, aos poucos, vai perdendo o valor e a significação. Creio azado o ensejo
para o cancelamento de antigos códigos e elaboração de novos. A velha fórmula
política, patrocinadora dos direitos do homem, parece estar decadente. Em vez
do individualismo, sinônimo de excesso de liberdade, e do comunismo, nova
modalidade de escravidão, deve prevalecer a coordenação perfeita de todas as
iniciativas, circunscritas à órbita do Estado, e o reconhecimento das
organizações de classe, como colaboradoras da administração pública”.
A proposta modernizadora e autoritária de Vargas em
30, é certo, não foi obra exclusiva do líder são-borjense. Houve, de um lado, a
marcante colaboração da segunda geração castilhista, na qual ressalta como
figura de prol Lindolfo Boeckel Collor (1889-1942), primeiro ministro do
Trabalho, Indústria e Comércio, idealizador da política trabalhista e
estrategista da Plataforma da Aliança Liberal. De outro lado, houve a participação dos
mineiros, sob a liderança de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (1870-1946), que
ensejaram os aspectos liberalizantes da Plataforma. Houve, também, a influência
de Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), cuja obra Populações
meridionais do Brasil foi lida por Getúlio quando da sua passagem pelo
Parlamento, entre 1923 e 1926. Referir-me-ei em detalhe, logo mais, a esta
influência. O líder são-borjense mitigou, na leitura do sociólogo fluminense, o
seu acirrado castilhismo, dosando-o com uma concepção sociológica arejada e
completando esta visão com aspectos da sociologia saint-simoniana (que Getúlio
conhecia bem), e que se aproximava da realidade social como se se tratasse de
um ser vivo.
A contribuição de Lindolfo Collor foi decisiva: sob
sua inspiração, os Castilhistas deixaram o provincianismo gaúcho, para pensarem
o Brasil numa dimensão nacional, superando o vezo do coronelismo familístico.
Lindolfo Collor foi, igualmente, responsável pela elaboração dos aspectos
estratégicos da Aliança, que abarcavam uma clara proposta de modernização do
país, levando em consideração as variáveis econômicas, políticas, militares,
trabalhistas, educacionais, etc. Esta proposta de modernização foi concebida no
contexto de um estrito centralismo, que conferia ao Executivo soma incalculável
de poderes. A principal finalidade do Poder Central era, para Collor, garantir
o progresso do país e a unidade da nação.
O esforço modernizador e autoritário de Vargas, ao
passo que levava até às últimas conseqüências o preconceito castilhista contra
a classe política (“o regime parlamentar – diziam os castilhistas – é um regime
para lamentar”), deitava os alicerces para o fortalecimento definitivo do
Estado brasileiro e o surgimento da tecnocracia como o seu sustentáculo,
materializando assim o ideal do patrimonialismo modernizador pombalino, de
organizar a sociedade e o Estado sobre uma base científica. “Todo o esforço de
Vargas – afirma Antônio Paim - vai consistir em criar organismos onde as
questões de alguma relevância passem a ser consideradas do ângulo técnico.
Amadurecido o ponto de vista dos técnicos, a instituição deve assegurar a
audiência dos interessados. O governo não se identificará com qualquer das
tendências em choque, porquanto exercerá as funções de árbitro”.
Vale a pena
destacar que o esforço modernizador de Vargas encontrou na obra de Francisco
José de Oliveira Vianna forte apelo para descobrir a perspectiva nacional dos
problemas. O contato de Vargas com o pensamento do sociólogo fluminense deu-se
ao ensejo da sua passagem pelo Congresso Nacional, como chefe da bancada
gaúcha, ao longo da década de 20 do século passado. Essa influência, mais a
experiência parlamentar, terminaram por burilar a personalidade pública do
jovem advogado dos pagos gaúchos, que terminou se convertendo em estadista
sensível aos problemas nacionais, não apenas às reivindicações regionais. Um
ponto da sociologia de Oliveira Vianna ficou claro para Getúlio: não há
monocausalismos em ciências sociais. Para bem compreender o Brasil, far-se-ia
necessário desenvolver estudos monográficos, à maneira apregoada por Sílvio
Romero (1851-1914), autor em quem Oliveira Vianna fartamente se inspirou.
Destarte, Vargas conseguiu fazer a crítica à visão
unilateral de inspiração positivista e desenvolver uma perspectiva sociológica
mais ampla, para compreender a problemática nacional. No tocante à
administração do Estado, a lição de Oliveira Vianna era clara: são necessários
conselhos técnicos que abarquem a variada gama de problemas nacionais. Sem
eles, qualquer administração não passaria de amadorística. É claro, contudo,
que Getúlio não chegou a desenvolver uma concepção tecnocrática e liberal do
Estado. Ancorou numa perspectiva tecnocrática autoritária, com os Conselhos
Técnicos iluminando a ação todo-poderosa do Executivo, sem referência ao
Parlamento (que na visão getuliana precisava ser simplesmente esvaziado). Vargas materializou o princípio do encaminhamento
técnico dos problemas, nos principais campos da administração pública e da
política. No terreno educacional, por exemplo, promoveu o consenso dos técnicos
através da Associação Brasileira de Ensino. No âmbito da política salarial,
chegou à adoção, por parte do governo, de mecanismos técnicos, mediante a
criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio; surgiu assim uma
legislação abrangente que possibilitou a organização da Justiça do Trabalho e
dos sindicatos como peças dessa engrenagem.
No campo legislativo, depois de
fechado o Congresso em 1937, realizou-se ampla experiência de legislação
atendendo a critérios técnicos, com a formação de comissões especiais para
elaborar leis e decretos, no terreno do ministério da Justiça e dos Estados. O
princípio do encaminhamento técnico dos problemas manifestar-se-ia, finalmente,
no campo econômico, no fato de ter sido atribuído ao Estado a missão primordial
de promover a racionalidade econômica, que implicava – segundo a tradição
castilhista e à luz do intervencionismo autoritário apregoado por Aarão Reis
(1856-1936) – crescente
papel tutelar do governo na economia. Esse intervencionismo, que tornava
realidade o ideal pombalino do Estado empresário, teve como principais
manifestações a criação da Siderúrgica de Volta Redonda, a ingerência do poder
público na negociação da moeda estrangeira, a consolidação da centralização das
emissões pelo Banco do Brasil, a criação da Superintendência da Moeda e do
Crédito, precursora do Banco Central, a criação do Conselho Federal de Comércio
Exterior e a constituição, no interior desse Conselho, de uma Comissão Especial
para estudar o problema do aço.
O cientificismo que acompanhou a evolução do Estado
patrimonial modernizador brasileiro entre 1930 e 1954, pode ser ilustrado com
os seguintes fatos: a) a emergência da idéia e da prática de planejamento,
entendido como conjunto de técnicas destinadas a assegurar a consecução de
determinadas metas, no campo da racionalização da economia; esse fato
manifestou-se a partir dos trabalhos da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos
(1951-1953), reunida no decorrer do último mandato de Getúlio. b) A criação do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) em 1952, que constituiu o
elemento catalisador das novas técnicas e que permitiu o teste da sua eficácia
nos anos 50. No BNDE formou-se a primeira geração de tecnocratas treinados para
efetivarem a racionalização da economia, sob a intervenção do Estado. O
ulterior Programa de Metas de Juscelino Kubitschek (1902-1976) veio reforçar
essa racionalização da economia, decorrente da adoção da idéia de planejamento.
O governo de João Goulart (1918-1976) poderia ser caracterizado – segundo a
apreciação de Antônio Paim -
como “autêntico acerto de contas do patrimonialismo tradicional com o segmento
modernizador”. Nele, os setores não modernizados (classe política e burocracia)
tentaram frear o processo de racionalização econômica em curso, mediante o
esvaziamento do BNDE.
5) A engenharia
política do general Golbery do Couto e Silva (1911-1987)
O golpe de 64 e os vinte anos de regime de exceção
que se seguiram podem ser caracterizados, do ponto de vista da evolução do
cientificismo no Brasil, como a volta aos critérios da racionalidade econômica
através da intervenção autoritária do Estado e da plena adoção, para isso, da
idéia de planejamento. Assim, o modelo de Estado patrimonial-modernizador instaurado
por Getúlio em 30 teve a sua continuidade com o golpe de 64, especialmente após
a reforma administrativa de 1967, que enfeixou nas mãos da elite
tecnocrático-militar a formulação da alta política nos terrenos econômico e
social, com a marginalização e ulterior cooptação da classe política.
Após vinte anos de governo tecnocrático-militar, o
quadro resultante lembrava bastante o modelo pombalino de despotismo
esclarecido: hipertrofia do Poder Executivo (que passou a legislar pelo caminho
autoritário do decreto-lei, marginalizando o Legislativo); gigantismo do
Estado-empresário, que fez crescer descontroladamente o setor estatal da
economia (as empresas estatais passaram de aproximadamente 100 em 1964 para 480
no final do governo Geisel); aceleração do ritmo da inflação (decorrente do
paternalismo estatal em face das empresas públicas e privadas improdutivas);
desrespeito às liberdades dos cidadãos e criação de privilégios que passaram a
beneficiar minorias. A respeito deste último aspecto, escreveu o jurista
Ricardo Lobo Torres: “Entre nós a ruptura (do princípio da imunidade em
benefício do cidadão) se deu no regime autoritário inaugurado em 1964, que,
apropriando-se do discurso positivista pretensamente dotado de cientificidade,
(...) confundiu imunidade com isenção (...) (e enfraqueceu) as garantias do
mínimo existencial”. A
Constituição revogada, frisa o mencionado jurista, desrespeitou a justiça
social, ao conceder “indiscriminadamente subvenções e subsídios para a
burguesia e isenções para militares, juízes e deputados” e ao ferir, destarte,
“os privilégios do cidadão pobre, a quem pouco se concedeu”.
Do ângulo político, a herança mais negativa de 64
foi a desvalorização da representação a partir da dependência do Congresso em
relação ao Executivo. Após os generais gaúchos terem tomado em suas mãos o
controle do governo, ao ensejo da morte do marechal Castelo Branco (1897-1967),
a questão da representação passou a segundo plano, como se o espírito do castilhismo
tivesse revivido. A manifestação mais clara desse viés foi o Pacote de 13 de
Abril de 1977 promulgado pelo presidente Ernesto Geisel (1907-1996), que
ensejou o controle da representação pelo Executivo, com a criação dos senadores
biônicos e a adoção do voto indireto na eleição dos membros desta casa do
Congresso. De outro lado, a proporcionalidade da representação para a Câmara
dos Deputados passou a beneficiar aqueles Estados (os menos desenvolvidos da
Federação, como os do Nordeste) que dependiam mais dos favores do Executivo.
Mas o processo de modernização centrípeta e
autoritária não foi apenas uma política que se pôs em prática. Constituiu
também todo um conjunto de princípios que foram colocados em circulação
especialmente pela Escola Superior de Guerra. A respeito, salienta Antônio
Paim: “O pressuposto essencial da Escola tornou-se a promoção da racionalidade
na atuação do Estado. Semelhante objetivo é entendido como correspondendo à
velha aspiração da intelectualidade e da elite militar e consiste no empenho
decidido em prol da superação das deformações do Estado liberal”.
Ora, nessa tarefa assiste à elite tecnocrático-militar a capacidade de formular
os “objetivos nacionais permanentes”, que constituem imperativos morais que
pairam acima das discussões políticas. A legitimidade na formulação desses
objetivos é dada pela ciência, que pretensamente assiste aos formuladores dos
mesmos.
O mais importante teórico da modernização do Estado
brasileiro ao longo do ciclo militar foi, sem dúvida, o general Golbery do
Couto e Silva. Alicerçado na proposta de “autoritarismo instrumental” elaborada
por Oliveira Vianna ,
o general Golbery considerava que ao Estado forte e centralizador cabe promover
a participação política, orientada à consolidação do sistema democrático, que
deve chegar a se tornar “capaz de aperfeiçoar-se ainda mais, assegurando o
salutar usufruto das franquias individuais e coletivas e implantando o
exercício corrente e eficaz da atuação participativa de todos os cidadãos e
grupos sociais na tomada das grandes decisões de interesse da coletividade
nacional”.
Este seria o objetivo fundamental a ser alcançado.
Essa seria a essência da tarefa de construção ou de engenharia
política, que estaria garantida pela racionalidade que assiste ao Poder
Executivo, como diretor de todo o processo. Encontramos vigente na proposta de
Golbery, embora mitigado com os acenos democratizantes, o modelo modernizador
getuliano-pombalino, que apela para a ciência aplicada a serviço do Estado,
como fonte de legitimação do autoritarismo centrípeto. A democracia, para as
nações afetadas pelo complexo de clã (que conduz ao insolidarismo) e dispersas
na imensidão de grandes extensões continentais, somente poderia vir pelo amargo
caminho do Estado autoritário e centralizador. Esse é o caso do Brasil,
submetido a crises cíclicas de autoritarismo e excesso de tolerância (“sístoles
e diástoles do coração do Estado”). Tal é a lição de Golbery.
Conclusão
É muito forte a tradição cientificista brasileira. A
minha análise deteve-se, apenas, nos momentos em que ela se manifestou nos
terrenos político e econômico, mostrando como o regime militar se inseriu nesse
contexto. Mas outras variáveis também poderiam ser consideradas. A mentalidade
cientificista é marcante, por exemplo, no meio universitário, onde um difuso
culto à retórica científica, casado com a “vulgata marxista”, levou a que
muitos achassem que faziam ciência ao repetir apenas slogans ditados pelo
cientificismo de plantão, tendo sido banida a pesquisa básica e o estudo
aprofundado das humanidades.
No terreno político, ainda não foram superados os
riscos de enveredarmos por nova trilha de autoritarismo tecnocrático, dado o
acúmulo de poderes de que ainda goza o Executivo e os tropeços na modernização
da representação parlamentar. A medida provisória, emergente da
Constituição de 1988, tem-se revelado estatuto político de cunho autoritário
que, apesar dos dispositivos jurídicos para a sua limitação conferidos ao
Congresso nas últimas décadas, consegue ainda atravancar o trabalho legislativo
e dar tremenda volatilidade ao marco jurídico sobre o qual devem repousar as
instituições. A instabilidade institucional que afasta investidores encontra
nesse ponto, sem lugar a dúvidas, uma das suas causas mais poderosas. O Executivo
age, em não poucas oportunidades, como a “mula sem cabeça” de que falava, na
época do governo Collor, conhecido intelectual de esquerda.
As possibilidades desse tipo de instabilidade
aumentam, na medida em que parcela significativa do Partido atualmente no poder
continua pressa à visão retrógrada das denominadas “viúvas da Praça Vermelha”,
sendo acompanhada pelos defensores da Teologia da Libertação. O
risco maior, certamente, provém da fragilidade do nosso tecido social, que se
exprime, no terreno da política, na falta de uma autêntica representação. A
pobreza, o analfabetismo, o clientelismo, o desemprego crescente, são mazelas
que tornam a sociedade brasileira presa fácil dos cientificismos populistas.
As Forças Armadas brasileiras, que entre 1964 e 1985
protagonizaram a mais longa intervenção cientificista do período republicano,
parece terem-se afastado dessa visão, se levarmos em consideração o pensamento
de figuras de prol como o brigadeiro Murilo Santos e
o Almirante Mário César Flores ,
claros defensores da tese da profissionalização das mesmas e da sua inserção no
contexto de uma democracia moderna, em que os militares estão submetidos ao
poder civil legitimamente constituído.
Ao longo dos quase trinta anos que se passaram desde
o fim do ciclo militar, os nossos oficiais e soldados voltaram para a caserna, a
fim de defender o país de acordo com as diretrizes traçadas pela Constituição
de 1988. Respeitosos da Lei de Anistia, não questionaram a volta dos exilados,
entre os quais se encontravam antigos terroristas que assassinaram cidadãos
inermes ou membros das Forças Armadas e das Polícias estaduais. Têm
participado, com dedicação, eficiência e espírito patriótico, das missões de
paz em que o Estado brasileiro decidiu estar presente. Têm reconhecido e
servido fielmente aos governos civis legitimamente eleitos, sem considerações
ideológicas ou ressentimentos. Têm colaborado de forma desinteressada e pronta
nas ações humanitárias a que foram chamados, quer pela União, quer pelos
governos estaduais, em momentos de desgraças coletivas. Gozam os nossos
militares, por isso, de alta valoração no seio da opinião pública, nas diversas
enquetes efetivadas por institutos de pesquisa.
Mas a atitude dos civis não tem sido apropriada em
face das necessidades orçamentárias das Forças Armadas. Legislando à luz do
revide ideológico, os civis, no poder, têm cerceado os recursos que se faziam
necessários para a manutenção da tropa e o cabal cumprimento das missões
constitucionais assinaladas àquelas. O Exército, por exemplo, viu
contingenciados os recursos necessários para a implantação do SISFRON. Este
projeto permitiria a efetiva vigilância da nossa fronteira seca com os países
sul-americanos. A invasão do território brasileiro por traficantes de drogas e
de armas não tem sido estancada, em consequência desse descaso do governo. A
insensatez é mais gritante, se levarmos em consideração as quantias bilionárias
de dinheiro público que têm sido desviadas, ao longo da última década, em
programas sociais mal desenhados e em distribuição corrupta de benesses entre
amigos e apaniguados.
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