Em março de 2001, seis meses antes dos ataques terroristas aos Estados Unidos ocorridos em setembro desse ano, pronunciei a palestra cujo texto reproduzo neste post, no Instituto de Geografia e História Militar do Rio de Janeiro. Embora passados 17 anos, o tema central da minha exposição continua válido e poderá verter luz sobre a nossa atual conjuntura. Hoje, como em 2001, os temas da Globalização, do Terrorismo, do papel essencial das Forças Armadas nesse contexto, permanecem atuais. Aproveito a oportunidade para render tributo à memória de dois saudosos amigos: o general Carlos de Meira Mattos e o coronel Luiz Paulo Macedo Carvalho.
Não há rupturas radicais na
história humana. Os processos de mudança, mesmo os mais ousados, anunciam-se
nas tendências do presente. Assim aconteceu, por exemplo, com a Revolução
Francesa, que pretendia ser uma ruptura definitiva com o fio da história, tendo
dado ensejo, ao contrário, como todos sabemos após as críticas análises de Tocqueville
em O
Antigo Regime e a Revolução [Tocqueville, 1989: 67-70], a mais um
capítulo da longa história do absolutismo, que constitui a nota caraterística
das instituições da França desde o início da modernidade. Algo de muito
semelhante aconteceu, no início do século XX, com a Revolução Bolchevique na
Rússia, que ensejou uma reedição do velho czarismo, o mais acabado modelo de
patrimonialismo conhecido na Europa, como foi ilustrado detalhadamente por Karl
Wittfogel na sua clássica obra O Despotismo Oriental [Wittfogel,
1977] e por Milovan Djilas no livro intitulado A Nova Classe [Djilas,
1958].
Não farei aqui exercício de
profetismo em relação às perspectivas que se descortinam para o Brasil no
contexto internacional, neste início de século, embora a ele seja a imaginação
humana fortemente tentada em conjunturas muito significativas como o fim de um
milênio. Pelo contrário, tratarei de desenhar um mapa das tendências que estão
vigentes e que herdamos do século que ora finda. Partindo do pressuposto formulado
no século XIX pelos liberais franceses (Madame de Staël, Royer Collard,
Constant de Rebecque, François Guizot, Alexis de Tocqueville) no sentido de que
a dupla tendência ao progresso e à democracia constitui, desde o século XIX, o
pano de fundo da história de longo curso da civilização ocidental, colocarei a
questão nos seguintes termos: quais são as perspectivas que se desenham para o
mundo e para o Brasil, no terreno da completa realização do ideal democrático e
da conquista do desenvolvimento, neste início de milênio? [cf. Staël, 1998:
28-29; Guizot, 1864: 3-64; Tocqueville, 1977] A indagação tem, aliás,
fundamento na própria tradição militar brasileira, haja vista que Democracia e Desenvolvimento constituem dois dos objetivos nacionais
permanentes, assinalados pela doutrina
da Escola Superior de Guerra.
Pretendo mostrar que o
principal obstáculo que se ergue contra a realização desse duplo ideal são, na
atual conjuntura brasileira e internacional, os conflitos, que podem chegar a
constituir uma espécie de muro intransponível, capaz de barrar o acesso ao gozo
pleno da democracia e do desenvolvimento a amplas camadas da população, no
nosso país e alhures, para não falar da exclusão de países inteiros, como acontece hoje no continente africano. Esse problema
é sentido, de forma crescente, tanto no mundo desenvolvido quanto nos países em
vias de desenvolvimento. Na França, por exemplo, constitui hoje preocupação
central da sociedade, às voltas com minorias culturais agressivas, que não
foram assimiladas pelo sistema sociocultural estabelecido. Algo semelhante
ocorre na Alemanha e nos Estados Unidos, sociedades abastadas que vêm com
crescente preocupação a ascensão de grupos neonazistas, que pretendem excluir
estrangeiros e minorias étnicas do convívio civilizado, ou nas quais aparecem,
com freqüência, (como no caso dos atiradores americanos a esmo) indivíduos que
pretendem aniquilar a sociedade à sua volta, que é enxergada unicamente como
perigosa fonte de competição e instabilidade. No Brasil, os conflitos sociais,
na versão irracional da violência que paira sobre nossas cabeças, constituem o
pesadelo que assombra a todos, sem que consigamos enxergar uma saída confiável
para o mal.
Esses conflitos, com o
potencial de violência que nos assusta, têm contribuído em muito para baixar a
qualidade de vida na nossa sociedade. Lembremos as palavras do velho filósofo
inglês Thomas Hobbes, no Leviatã: "Tudo aquilo que é
válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o
mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra
segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua
própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu
fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem
uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções
confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de
grande força, não há conhecimento da face da terra, nem cômputo do tempo, nem
artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, (prevalece) um
constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária,
pobre, sórdida, embrutecida e curta" [Hobbes, 1974: 80].
Antes de particularizar as
formas de conflito com que se defronta a nossa sociedade no contexto
internacional, é necessário destacar um dado fundamental: o conflito não é
apenas uma variável social. É, inicialmente, um dado antropológico que expõe a
nossa herança genética, como lembra, com propriedade, Meira Penna: "O que
a antropologia está revelando é o passado animalesco do homem, um caçador
carnívoro cuja inteligência presumivelmente se desenvolveu durante centenas de
milhares de anos de expedições coletivas para enfrentar animais maiores e mais
ferozes. Um tal atavismo não é facilmente sobrepujado" [Penna, 2000: 6].
Mas o conflito deita raízes
ainda mais profundas na nossa essência humana. É, basicamente, uma tendência
ontologicamente enraizada no intimo da nossa natureza. Heráclito de Éfeso, um
dos filósofos pre-socráticos, tinha caracterizado o homem como conflito (pólemos), no século VI a. C. Na mesma
época, Parmênides lembrava que o ser humano é, na sua essência, como aliás os
outros entes no mundo, ser e nada (dokounta), porquanto não possui o
monopólio da existência [cf. Souza, 1989: 47-138]. Pode ser e não ser. Pode,
como no caso do feto que é eliminado após algumas semanas de vida, apenas ter
uma precária existência uterina. A
certeza da nossa finitude, apreendida pela razão e não aceita, constitui, no
ser humano individual, a raíz ontológica do conflito. “Sereis como deuses”,
teria dito a astuta serpente a Adão e Eva no paraíso. O cerne do pecado
original seria essa não aceitação da finitude humana. Pecado prometeico de
soberba ou de hybris.
A filosofia ocidental
mostrou um caminho construtivo para emergir da angústia da própria finitude: a
partir de Sócrates, a meditação filosófica apresenta-se como sofia libertadora das angustiantes
cadeias da nossa precariedade existencial. A Religião, desde as mais remotas
épocas da história humana, já tinha aberto uma porta para dar vazão, no plano
da crença, a essa problemática. A solução religiosa continua a ter plena
validade e é interessante observar o renascer das diversas religiões neste início
de milênio. Mas a Filosofia constituiu sempre a resposta, do ângulo racional,
para a finitude. Na modernidade, os filósofos da cultura, após Pufendorf [cf.
Hell, 1986: 26-46], tentaram definir os contornos desse espaço humano que nos abre caminho à perspectiva da imortalidade
nas grandes criações do espírito, na aventura intelectual. Estão aí os
imorredouros trabalhos de Platão, Aristóteles, Averróis, S. Tomás de Aquino,
Ockham, Descartes, Hume, Kant, Hegel, Scheler, Tobias Barreto, Vicente Ferreira
da Silva, Miguel Reale e tantos outros. Somos pó, mas podemos aspirar às
estrelas mediante o nosso conhecimento e a nossa grandeza moral. Sempre que a
humanidade se distanciou dessa forma construtiva de lidar com a sua finitude,
mergulhou no sem-sentido de uma violência niilista. Não é por acaso que no curto século vinte, para lembrar a
expressão cunhada por Eric Hobsbawm [1995], após ter renunciado à
transcendência religiosa e à transcendentalidade da criação cultural, o
pensamento europeu entrou em parafuso existencial e proclamou, alto e bom som,
a morte de Deus e do homem.
O homem encontrou também, na
esfera produtiva, um caminho amplo para fazer deslanchar as suas energias e dar
vazão aos conflitos gerados pela finitude. A agressividade humana pode muito
bem se tornar criativa na empresa capitalista. A respeito, escrevia lorde John
Maynard Keynes: "A possibilidade de ganhar dinheiro e fazer fortuna pode
orientar certas inclinações perigosas da natureza humana para caminhos onde
elas se tornem relativamente inofensivas e, não sendo satisfeitas deste modo,
possam elas buscar uma saída na crueldade, na desenfreada ambição de poder e de
autoridade e ainda em outras formas de engrandecimento pessoal" [Keynes,
1983: 254]. Outro caminho para a superação dos conflitos ensejados pela
finitude humana foi constituído, já desde as origens da civilização, pela
dominação do homem sobre o homem, que constitui a essência da política. Não é a
toa que o máximo estudioso das formas de dominação, Max Weber, no seu ensaio
intitulado "A política como vocação", identificou o Estado como
"uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso
legítimo da força física dentro de determinado território" [Weber, 1993:
98]. O Estado seria, assim, a expressão do conflito aceito (e
institucionalizado) pelas comunidades humanas em todas as épocas.
Feita a ressalva
antropológica que acabo de formular (e que nos poupa de buscar soluções fáceis
à problemática em apreço, pois as raízes do conflito estão em nós), é
importante anotar que não se trata de banir os conflitos da face da terra, mas
de saber administrá-los. Eles formam parte da nossa finitude. A filosofia
liberal deixou isso muito claro, quando, a partir de Locke [cf. 1965: 361-394],
passou a elaborar uma concepção da sociedade política como luta em prol da
defesa dos interesses materiais do indivíduo. Na organização parlamentar
pensada pelo pai do Liberalismo clássico, não se tratava de banir os conflitos
entre as classes, mas de fazer com que se pudesse negociar entre eles, a fim de
permitir o convívio de todos. A democracia representativa estruturou-se
justamente como forma de permitir a negociação entre interesses materiais
diferentes, organizados em partidos políticos, com representação nas duas casas
do Parlamento.
Passarei a analisar as
principais tendências conflituosas que se desenham, no plano social, neste
começo da nova era que temos o privilégio de viver. Coloquemos novamente a
questão enunciada atrás: quais são as perspectivas que os conflitos opõem à
realização do ideal democrático e do desenvolvimento, no século que ora começa?
Recordemos que no plano internacional os conflitos estão presentes entre as
nações. Após o fim da Guerra Fria, a perspectiva dos conflitos diversificou-se
até o ponto de que alguns estudiosos falam de uma simultânea desideologização e
banditização daqueles. O Holocausto Nuclear, que foi o risco mais forte sentido
pela Humanidade no século XX, não aparece, de imediato, no começo do Novo
Milênio, como perigo iminente. O mundo se homogeneizou e os dois Blocos que
protagonizaram a Guerra Fria dissolveram-se no predomínio difuso da
globalização capitalista.
Sete grandes tendências de
conflitos desenham-se, a meu ver, no horizonte do mundo globalizado, neste
início de século: 1) o Fundamentalismo; 2) o Narco-terrorismo; 3) o
Patrimonialismo; 4) o Neonazismo, 5) as Guerras pelos Recursos Naturais, 6) as
Guerrilhas Comerciais e 7) a Banditização dos Conflitos. Analisemo-las
detalhadamente. Na parte final da minha exposição, destacarei o papel que têm as
Forças Armadas no Brasil em face desses reptos.
O Fundamentalismo
Não há dúvida de que o
Fundamentalismo será uma das causas mais relevantes de conflitos contra o
convívio democrático e o desenvolvimento no século XXI. A essência dele é esta:
só é aceita a forma purista de opção religiosa adotada pelos membros da seita
radical; qualquer opção diferente deve ser aniquilada sem contemplações, pois é
considerada um pecado imperdoável. No caso dos fundamentalistas islâmicos, a
saída é a eliminação de quem se opuser, no seio do país, ao seu domínio
absoluto. Isso aconteceu no Irã dos Aiatolás, no totalitarismo fundamentalista
dos Talibãs no Afeganistão, ou no terrorismo deflagrado pelos xiitas no Oriente
Médio e na Argélia. No caso dos suicídios coletivos apregoados por seitas
radicais, a auto-eliminação dos membros do grupo trata de impedir a sua
contaminação com um mundo irremediavelmente perdido. Para o fundamentalista só
pode haver uma democracia válida: a da unanimidade ao redor do mesmo credo.
Democracia pluralista é, portanto, uma contradição inaceitável.
Para mostrar a força que o
Fundamentalismo tem hodiernamente, podemos lembrar uma série de atos
terroristas praticados, pelo mundo afora, ao longo da última década, por
fanáticos. Por exemplo, o atentado de Oklahoma, nos Estados Unidos, perpetrado
por extremistas wasp e que causou
inúmeras vítimas civis; o atentado contra a sede da Sociedade Israelita em
Buenos Aires, praticado por muçulmanos radicais; os suicídios coletivos
patrocinados nos Estados Unidos e em países europeus por seitas milenaristas;
os atentados contra embaixadas americanas na África, ao longo de 1998, de
autoria intelectual do fanático Bin Laden; os vários atentados praticados na
França pelos ativistas muçulmanos da GIA; os atos terroristas deflagrados na
Argélia contra a população civil pelos fundamentalistas islâmicos; o terrorismo
dos fanáticos Talibãs, de que é vítima a população do Afeganistão; a onda
terrorista que sacudiu Moscou, patrocinada pelos nacionalistas chechenos e que
deu ensejo à brutal onda repressiva do governo russo contra a população civil
de Grosni e outras cidades da Chechênia; os atentados com gás sarin em Tókio,
provocados por fanáticos religiosos; o assassinato do premiê israelense Iszhak
Rabin, perpetrado por um judeu radical; os constantes atos terroristas
praticados em Israel por fundamentalistas islâmicos ou judeus ultra-ortodoxos,
com a finalidade de fazer ruir o processo de paz (a eleição de Ariel Sharon
revela, hoje, a força destes elementos reacionários); os inúmeros atentados
cometidos por extremistas na Índia e no Paquistão, etc.
O panorama não parece mudar,
no sentido de um arrefecimento do Fundamentalismo. O regime iraniano pode
evoluir, caso fracasse a atual onda liberalizante, até formas de exercício do
poder total. De outro lado, podem surgir novos governos radicais islâmicos,
especialmente na Ásia e na África. O advento dos xiitas ao poder na Argélia,
por exemplo, parece uma questão de tempo. O período de ditadura militar e o
posterior processo de re-democratização têm retrasado, não eliminado o risco
desse desfecho. Na América Latina, é previsível um crescimento do
Fundamentalismo islâmico no presente século, a partir do aumento da imigração
de cidadãos do Oriente Médio para países como Brasil, Paraguai e Argentina. Por
outro lado, é de se prever uma radicalização dos movimentos independentistas de
inspiração islâmica, nas antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central. A força
com que Moscou tem castigado os rebeldes chechenos, deixa ver a preocupação dos
russos perante essa alternativa. Nem os Estados Unidos parecem livres do
fantasma fundamentalista no novo século, tanto do ponto de vista do radicalismo
das seitas wasp, quanto do ângulo do
já tradicional Fundamentalismo islâmico. A recente criação de uma polícia
especializada em ações anti-terroristas, deixa ver que os americanos vêm essa
questão com crescente preocupação. Notadamente, se levarmos em consideração que
terroristas possam ter acesso ao armamento nuclear ou a outros tipos de
tecnologia de destruição massiva, como as armas químicas. O medo da Humanidade
com esse tipo de ameaça certamente não se limita ao perigo representado por
Saddam Hussein. O século XXI conhecerá, infelizmente, novas ameaças.
O Narco-terrorismo
Esta constitui a forma mais
recente e mais latino-americana de conflito contra o convívio democrático e o
equilibrado desenvolvimento das sociedades. O Narco-terrorismo, na forma em que
foi concebido e organizado por Pablo Escobar, na Colômbia dos anos 80,
deflagrou uma guerra sem quartel contra todo aquele que se opusesse ao negócio
da droga. Constitui o Narco-terrorismo uma forma extremadamente agressiva de
patrimonialismo selvagem, que privatiza tudo em função da atividade criminosa.
A sociedade civil, as instituições governamentais, o direito, a religião, tudo
deve ser cooptado pela empresa do tráfico. O Narco-terrorismo pressupõe uma
estrutura rigorosamente piramidal do poder, estando na cúpula o chefão dos
chefões, o capo di tutti capi. Mas,
diferentemente da máfia italiana, deixa de ser uma organização familiar, para
constituir uma autêntica empresa multinacional, com rigorosa distribuição de
funções e aplicação racional dos bilhões de dólares ganhos nas múltiplas
transações. O Narco-terrorismo é, outrossim, uma máquina de guerra, com
exércitos a seu serviço, como testemunha o atual conflito colombiano, em que a
Narco-guerrilha e os Para-militares cooptaram os barões da coca e da heroína.
Os subversivos passaram a financiar as suas atividades criminosas com os
bilhões de dólares que lucram com o comércio de estupefacientes. Os novos
chefões colombianos são os comandantes das FARC/ELN e dos Para-militares [CF.
Vélez, 2000a; 2000b; Guillermoprieto, 2000a; 2000b].
Para se ter uma idéia do
perigo que essas organizações armadas representam na América do Sul, em relação
ao convívio democrático e ao desenvolvimento, lembremos que o Presidente
Pastrana entregou às FARC, no início de 1999, uma área equivalente a 40 mil
quilômetros quadrados, situada no centro/sul do país. A partir dessa base
territorial ampla, os guerrilheiros organizaram um Estado subversivo, hoje
denominado de República das Farc, a
partir do qual deflagram golpes violentos contra o resto do território
colombiano, com a finalidade de alargar a sua área de dominação. Os serviços
secretos norte-americanos estão realizando um rigoroso monitoramento desse novo
Narco-Estado. Parte desse trabalho de inteligência foi divulgado pelos
jornalistas Steven Ambrus e Joe Contreras, da Revista Newsweek
[Ambrus/Contreras, 1999]. Saindo da zona
de distensão (nome eufemístico dado por Pastrana ao Narco-Estado), 3 mil
guerrilheiros atacaram 13 cidades do sul do país, na fronteira com a Venezuela
e com o Brasil, no final de outubro e início de novembro de 1999. A República independente das FARC preocupa
aos assessores de política internacional norte-americana, pois se trata
"de um novo Estado fora da lei, armado, perigoso e financiado com dinheiro
da droga, deitando raízes no coração da América do Sul". A zona
desmilitarizada, consideram os jornalistas, "converteu-se numa fortaleza a
partir da qual os 15 mil guerrilheiros das FARC podem lançar ataques ao longo
do país, armados com mísseis terra-ar e com milhares de fuzis de assalto recém
comprados da antiga Alemanha Oriental, contando, outrossim, com a sua própria
força aérea, pequena mas crescente". Segundo um general colombiano, as
FARC adquiriram pelo menos oito helicópteros e fontes de inteligência informam
que também compraram umas duas dúzias de mísseis terra-ar SAM-12. Essas mesmas
fontes revelaram que os guerrilheiros contrataram assessores militares da
Nicarágua e El Salvador, bem como terroristas chilenos e argentinos e
especialistas em explosivos iranianos. O artigo da Newsweek termina assim: "Com 37 pistas de
pouso à sua disposição dentro da zona desmilitarizada, os rebeldes oferecem
agora um serviço de correio rápido que transporta cocaína processada a qualquer
lugar do país".
O Brasil entrou,
infelizmente, no ciclo do narcotráfico da República
das FARC. Mencionemos, em primeiro lugar, o trabalho de relações públicas
que a narco-guerrilha realiza regularmente no nosso país, sem ser incomodada
[cf. Amorim, 2000: 4d] (como ficou patente na rápida libertação pela Justiça do
ex-padre representante das FARC em Foz do Iguaçu, bem como no Fórum Social
anti-Davos de Porto Alegre, onde os apelos à luta armada juntaram-se aos
protestos contra a Operação Colômbia e às arruaças anti-transgênicas do
ativista francês Bové, acompanhado pela liderança do MST) [cf. Caramel-Sévilla,
2001: 5]. Lembremos, em segundo lugar, que os meios de comunicação têm
divulgado, ao longo dos últimos meses, a cobertura que os guerrilheiros
esquerdistas colombianos dão ao conhecido traficante brasileiro Fernandinho
Beira-Mar, a fim de que lhes garanta a compra de armamento, através do
Suriname.
Isso para não falar do
crescente mercado da droga no nosso país, que já não é mais apenas corredor de
exportação de estupefacientes, mas que virou consumidor regular de maconha,
cocaína e crack. A violência nas grandes cidades brasileiras explodiu a partir
do momento em que a delinqüência comum juntou-se ao narcotráfico. Isso ficou
patente no Rio de Janeiro após os dois governos brizolistas, que tornaram os
morros santuários dos traficantes, impedindo a polícia de subir neles e estabelecendo
deliberadamente a confusão nos indicadores da criminalidade na cidade e no
Estado. Em São Paulo, a violência quintuplicou justamente ao ensejo da entrada
do crack no mercado de estupefacientes, com a conseqüente democratização do
consumo. O "Jornal Nacional" da Rede Globo de Televisão noticiava em
7 de junho de 1995, que havia na cidade 5.000 pontos de venda de crack, sendo
60% dos assassinatos motivados pelo consumo e comercialização de tóxicos. O
mesmo telejornal noticiava que de janeiro a junho desse ano tinha havido na
Grande São Paulo 21 chacinas e 3.000 assassinatos, sendo que 15 desses
massacres estiveram ligados diretamente ao narcotráfico.
O Patrimonialismo
O Patrimonialismo foi
definido por Max Weber como uma das formas mais antigas de despotismo, tendo-se
caracterizado como um Estado que surgiu não a partir da diversificação da
sociedade em classes que lutavam pela posse do poder (como os modernos Estados
europeus ocidentais), mas a partir da hipertrofia de um poder patriarcal
original, que alargou a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e
coisas extra-patrimoniais, passando a administrá-los como propriedade familiar
(patrimonial). Essa foi a origem do Estado na Rússia, na China, na Espanha, em
Portugal e, por tabela, na América Latina, como apropriadamente mostraram
Oliveira Vianna [1974], Raymundo Faoro [1958], Simon Schwartzman [1982],
Antônio Paim [1978], Meira Penna [1988], Vélez Rodríguez [1997], etc.
Séculos de cultura
patrimonialista levaram os países ibero-americanos a encararem a política como
luta entre os clãs pela posse do poder do Estado e, uma vez consolidado este, a
administrá-lo como botim orçamentário a ser distribuído entre amigos e
apaniguados, com exclusão de todos os outros, o que constitui, sem dúvida, uma
forma de violência, na medida em que a res
publica que deveria servir a todos, vira res privata ou coisa nossa, a serviço dos donos do poder e da sua clientela. Essa é a raiz peculiar da
violência na América Latina. Não fomos dotados, como outros povos, do sentido
do bem público. O nosso, como destaca Oliveira Vianna, é um individualismo
clânico ou insolidário, amadurecido em três séculos de poder latifundiário. O
patotismo, nos nossos países, sufocou o patriotismo. Fenômeno semelhante,
embora acrescido das práticas totalitárias do antigo sistema soviético,
enfrentam a Rússia e os demais países do antigo bloco comunista na Europa
Oriental. Fenômeno correlato acontece nas ex-colônias européias do sudeste
asiático, notadamente no Camboja e no Vietnã que, durante o período de
dominação comunista, sofreram com o fortalecimento totalitário das antigas
tendências privatizantes do poder do Estado. De outro lado, não esqueçamos que,
embora uma potência econômica emergente, a China não deixou de ser um Estado
Patrimonial, uma das mais acabadas formas do despotismo oriental estudadas por
Karl Wittfogel. Muito sangue correrá no século XXI por conta da tendência
privatizante dos donos do poder nos
vários países de tradição patrionialista. Poderiamos dizer que a corrupta feição
do Estado patrimonial, que visa à privatização do governo pelos clãs, foi a via
expressa que deu ensejo, na Colômbia, ao Narco-Estado e que torna possível esse
perigo no resto do continente, do México à Patagônia.
Oliveira Vianna destacou,
com rara objetividade, o fundo cultural em que repousa o patrimonialismo
brasileiro e ibero-americano: o complexo
de clã, caracterizado por ele da seguinte forma: "Em toda essa
psicologia da vacuidade ou ausência de motivações coletivas da nossa vida
pública, há um traço geral que só por si bastaria para explicar os outros
aspectos (...). Este: a tenuidade ou fraqueza da nossa consciência do bem
coletivo, do nosso sentimento da solidariedade social e do interesse público.
Esta tenuidade ou esta pouca densidade do nosso sentimento do interesse
coletivo é que nos dá a razão científica de que o interesse pessoal ou de
família tenha, em nosso povo - no
comportamento político dos nossos homens públicos -, mais peso, mais força, mais importância
determinante do que as considerações do interesse coletivo ou nacional. Este
estado de espírito tem uma causa geral (...), e esta razão científica é a
ausência da compreensão do poder do Estado como órgão do interesse público. Os
órgãos do Estado são para estes chefes de clãs, locais ou provinciais, apenas
uma força posta à sua disposição para servir aos amigos e aos seus interesses,
ou para oprimir os adversários e os interesses destes" [Vianna: 1974: I,
297]
Teremos chance de vermos
diminuída a agressividade do patrimonialismo entre nós, no século que se
inicia? Tudo leva a crer que a tarefa será dificílima, haja conta das profundas
raízes que o Estado patrimonial deitou nas nossas crenças e valores. Se bem é
certo que na última década houve um esforço no sentido de des-patrimonializar o
Estado, tornando-o uma entidade enxuta e eficiente a serviço da sociedade, no
entanto é necessário reconhecer que ainda é muito forte, no Brasil, a estrutura
do Estado patrimonial. A nossa classe política, de um lado, ainda se alimenta
das práticas do nepotismo e da festança com o dinheiro público. Lembremos as
reações iradas de prefeitos e vereadores contra a nova lei de Responsabilidade
Fiscal. E o nosso Parlamento, que deveria representar os interesses dos
cidadãos em face do Estado, tornou-se, nos últimos meses, a arena para a
disputa despudorada pelas presidências da Câmara e do Senado, num jogo bruto de
vale-tudo [Cf. Gomes, 2001]. Se vivo fosse, o caudilho gaúcho Júlio de
Castilhos veria confirmada a sua frase: "O regime parlamentar é um regime para
lamentar". Lamentável que isso aconteça, quando sabemos que somente com o
reforço e a moralização do Poder Legislativo haverá no Brasil autêntica
representação. A alternativa é a cooptação, perigoso caminho que conduz à
sovietização e que tem sido seguido, infelizmente, por partidos de esquerda tão
importantes quanto o PT [cf. Paim, 2000a].
De outro lado, as reformas
que deveriam ser feitas para democratizar o Estado (reforma tributária, reforma
político-partidária, reforma administrativa, reforma previdenciária, controle
da Petrobrás pela sociedade), ou ficaram a meio caminho, sendo obstaculizadas
sistematicamente por uma oposição insensível ao bem público, ou simplesmente
foram empurradas com a barriga, como foi o caso da reforma tributária ou da Petrobrás,
campeã internacional de agressão ao meio-ambiente e da elaboração de ficções
contáveis que escondem o verdadeiro preço do petróleo por ela extraído. Além
disso, a implantação de um ensino básico de boa qualidade, que atenda a todos
os brasileiros, garantindo a educação para a cidadania, não tem conseguido os
resultados esperados. Não foi resolvida a questão da formação de professores,
embora hoje contemos com tecnologias (como o ensino on-line), que barateariam
enormemente a massificação para o universo docente de cursos de graduação e
pós-graduação. Recursos escassos ainda são mal geridos, carregando-os para o
ineficiente e caro sistema federal de ensino superior, onde certamente faz
falta um processo de reformas profundas, que cobre de quem pode pagar, para que
os menos favorecidos possam estudar de graça. Do ensino público universitário
gratuito beneficiam-se as classes média-alta e alta, deixando do lado de fora
quem não conseguiu pagar ensino básico privado de boa qualidade. De nada
adiantam as bravatas do ministro da Educação em face dos dados apresentados
pelo Banco Mundial, se é um fato que o nosso sistema de ensino superior ainda
atende a uma elite econômica e teima em ficar assim. O caminho para sairmos do
atraso passa pela educação básica de boa qualidade para todos e pela abertura
das opções profissionalizantes ou de ensino superior aos brasileiros capazes de
estudar, desmontando os privilégios sócio-econômicos.
O século XXI assistirá,
certamente, à consolidação do maior Estado patrimonial do extremo-oriente, a
República Popular da China, como uma das potências econômicas e políticas do
mundo. Com raro pragmatismo (de que carecem as nossas esquerdas tupiniquins),
os comunistas chineses estão conseguindo dar passos definitivos rumo à completa
modernização de seu país. Como frisava o jornalista Carlos Tavares de Oliveira,
"encerrou a China o ano, o século e o milênio deixando estabelecidas
sólidas bases para reconquistar, no futuro não muito distante, a hegemonia
perdida a partir do século XVI" [Oliveira, 2001]. Ainda segundo o citado
autor, "o ciclo histórico da fantástica recuperação da milenar nação
asiática começou exatamente na metade do século passado, com a chegada ao poder
do líder comunista Mao Tsé-Tung, em 1950, que eliminou os resquícios da
retrógrada dinastia imperial da minoria manchu, além de expulsar as forças
colonialistas japonesas e o exército contra-revolucionário de Chiang Kai-Chek.
Quase 30 anos depois, em 1979, o vice-primeiro ministro Deng Xiao-Ping,
ex-exilado em Paris, comandava uma nova revolução, esta de origem pacífica, mas
que alterou radicalmente não só as estruturas econômicas, mas também os
próprios costumes da população. Porém, o lado positivo do antigo sistema -
quanto à educação, saúde e assistência social -
não só foi mantido como até aperfeiçoado".
Efetivamente, o gigante do
extremo-oriente caminha a passos largos rumo à completa modernização da sua
economia. Sob o curioso rótulo de "economia de mercado com caraterísticas
chinesas", conseguem-se índices de crescimento não atingidos por nenhum
outro país. As cifras e as realizações são realmente impressionantes e poderiam
ser resumidas nos seguintes itens: a) Crescimento anual do produto interno
bruto da ordem de 8,2%. b) Desenvolvimento equilibrado da produção nos mais
variados setores, abrangendo agricultura, comércio e indústria. c) Adoção de um
esquema de eficiência e produtividade na reforma agrária, mediante o contrato
de responsabilidade (que assegura a produção e venda livre da colheita e que
levou a China a quebrar todos os recordes no setor, com safra de cereais em
torno de 460 milhões de toneladas, o dobro dos Estados Unidos, utilizando
apenas 7% da área agricultável). d) Excepcional produtividade de frutas, tendo
atingido o recorde mundial de 59 milhões de toneladas anuais. e) Crescimento acelerado
de 6% anual na produção de carne, aves, ovos e frutos do mar; nesse setor,
aliás, a China já exerce liderança mundial. f) Notável avanço tecnológico no
terreno da irrigação, aproveitando a água do mar para o cultivo de vários
produtos competitivos no mercado internacional, como trigo, arroz e soja. Vale
a pena lembrar, em relação a este ponto, que a China já conseguiu irrigar, com
a nova tecnologia, 300 mil hectares de planícies litorâneas. g) Crescimento expressivo
do comércio exterior, que atingiu já a meta de 474 bilhões de dólares anuais,
levando a China a ocupar o 4º lugar no ranking internacional, logo depois dos
Estados Unidos, Alemanha e Japão. h) Abertura ao capital internacional
(ingressaram na China, só no ano passado, 40 bilhões de dólares, chegando nas
últimas duas décadas a um total de 662 bilhões, atrás apenas dos Estados Unidos
na esfera mundial). Só para estabelecermos uma comparação com o Brasil, 400
multinacionais instaladas na China respondem por 47% das exportações, enquanto
no nosso país a participação estrangeira nas vendas externas não chega a 20%.
i) Investimento maciço na infra-estrutura portuária: a China conta hoje com
dois dos dez maiores portos do planeta: Xangai (o 3º em volume mundial de
carga) e Hong Kong (líder mundial na movimentação de contêineres). j) Liderança
mundial na fabricação de contêineres: são produzidos na China 70% do total
universal. k) Liderança mundial também no que tange ao volume de reservas
cambiais (273 bilhões de dólares) [cf. Oliveira, 2001].
Os interrogantes quanto à
completa modernização da China ficam por conta da variável política. A
Humanidade não esqueceu "a longa marcha na noite" do marxismo de Mao,
que produziu entre 6 e 10 milhões de vítimas, justificando a caraterística de Despotismo Oriental apontada por
Wittfogel [1977; cf. Margolin, 1977: 503 seg.; Bobin, 2001: 1]. De outro lado,
na era do pós maoísmo, ainda lembramos o massacre da Praça da Paz Celestial, de
1989, como nódoa que empanou o espetacular desenvolvimento chinês no final do
século passado. Não há dúvida de que o processo modernizador que se solidifica
no campo econômico está sendo acompanhado por profundas mudanças nos terrenos
político e cultural. Parece que os chineses tivessem enveredado por trilha
semelhante à empreendida pela liderança brasileira na redemocratização, e que
se poderia definir como "abertura ampla e gradual", ou, como frisa
Jean-Louis Margolin, "as reformas pós-maoístas têm privilegiado a
economia, mas a política não tem sido esquecida. Tudo (começando com as
transformações econômicas) caminha no sentido de uma emancipação da sociedade e
de uma limitação do poder arbitrário" [Margolin, 1997: 590].
Mas, e no plano das relações
internacionais? Uma China desenvolvida alargará a sua influência estratégica,
certamente, sobre o Indico e o Pacífico. Como vê o Ocidente desenvolvido hoje
essa perspectiva? Muito provavelmente os estrategistas tirarão da gaveta a
fórmula que foi vigente no século XVII: será possível uma duradoura aliança
entre o secular Império do Oriente e as Potências do Ocidente, graças a
semelhanças culturais, no terreno ético religioso, entre o cristianismo (na
versão protestante-calvinista) e o budismo/confucionismo chinês. Ambas as
tradições (eminentemente pragmáticas), são abertas ao monoteísmo e à ética do
trabalho e da riqueza. Essa aliança permitiria superar o inimigo comum de
chineses e ocidentais desenvolvidos: o Islã. Este arrazoado não é novo e já
tinha sido cogitado, na época das Cruzadas, pelo rei São Luís da França, tendo
sido retomado pelo filósofo e estrategista Gottfried Wilhelm Leibniz no século
XVII [cf. Didier, 2000: 11-68; Leibniz, 1994: 61-138; Cook-Rosemont, 1994:
1-44]. O que parece claro é que o antigo
Império Imóvel começou a caminhar, a
passos agigantados, rumo à modernização social e econômica, para perplexidade
dos que acreditaram, com Hegel, que na China "Nenhum progresso pode
ocorrer" [cf. Peyrefitte, 1997: 7].
Para finalizar este item
sobre o Patrimonialismo, mencionemos o problema das guerras tribais africanas,
que ceifaram a vida de milhões de seres humanos nas últimas décadas do século
XX, e que constituem um risco que se pode catalogar no capítulo do
Patrimonialismo, na sua versão mais arcaica, a privatização tribal do poder. A problemática
que tem ensejado essa forma de violência no Continente africano ainda não foi
equacionada e, certamente, haverá muitos conflitos desse gênero no século que
ora se inicia. A questão é particularmente preocupante, na medida em que as
potências mundiais parecem ter chegado à conclusão de que têm mais a perder do
que a ganhar na mediação dessas guerras numa região relativamente isolada do
Globo, como aconteceu na Somália. Intervenções militares high tech, como as que os aliados da OTAN gostam de fazer, é coisa
difícil de se pensar nas primitivas aldeias africanas. Tudo leva a crer que os
cidadãos desses países serão entregues à própria sorte nas orgias de
intolerância e sangue que caracterizam as guerras tribais.
O Neonazismo
Entendida esta tendência
como a tentativa de organizar um Estado excludente de determinadas etnias e/ou
culturas, podemos anotar que esse risco não desapareceu com o final da Segunda
Guerra Mundial e a derrota do Eixo. O que aconteceu na Bósnia e, mais
recentemente em Kosovo e no Timor Leste, indica que a tendência à exclusão
étnica e/ou cultural é um risco concreto para o convívio democrático no século
que se inicia, tanto do ponto de vista de países inteiros (como a Albânia, por
exemplo), como do ângulo da luta política nos países ocidentais, em decorrência
da consolidação de partidos e grupos neo-nazistas na Europa Ocidental e nos
Estados Unidos. A problemática da exclusão sistemática de etnias e culturas
aparece também no Continente asiático, em decorrência da não solução do problema
da integração de minorias historicamente perseguidas como os curdos e os
tibetanos.
Em relação ao ressurgimento
do perigo neonazista, alertava em 1996 o professor Michel Wieviorka, do Centro
de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris: "O racismo e o
anti-semitismo haviam-se esfumado com a formação de estruturas políticas
nacionais que criavam, sobretudo para a educação, as condições da modernização
econômica e da industrialização, da expansão e da integração cultural. Hoje
essas estruturas se desintegram, a economia se internacionaliza e mais parece
se opor à nação do que nela se fundamentar; as instituições se enfraquecem; o
racismo, a xenofobia e o anti-semitismo voltam então a se expandir nas
sociedades que cada vez têm mais dificuldade para articular os valores da razão
e do progresso econômico aos da especificidade, sobretudo cultural e
nacional" [Wieviorka, 1996: 13].
No nosso país, em que pese a
tradição de democracia racial que nos caracteriza, grupos neo-nazistas têm
aparecido em várias cidades, apregoando a exclusão social de minorias raciais
ou sociais. Há no fundo disso uma mistura de ignorância, intolerância e
neocolonialismo, uma vez que esses esquemas são importados da Europa ou dos
Estados Unidos. Há um mecanismo psicológico que reforça essa odiosa tendência:
a tentativa a justificar os próprios fracassos, atribuindo-os aos que têm
aparência diferente. Esse foi um dos perversos mecanismos que permitiram a
rápida ascensão de Hitler na Alemanha, nas décadas de 20 e 30 do século passado.
O mesmo mecanismo parece estar presente também na atual organização de grupos
neo-nazistas, integrados geralmente por jovens provenientes da antiga Alemanha
Oriental. Somente um amplo trabalho de educação poderá prevenir os nossos
jovens para não caírem nessa simplória cilada.
As Guerras pelos Recursos
Naturais
O século vinte conheceu, na
década final, a Guerra do Petróleo. As guerras pelos recursos naturais parece
que aumentarão no século XXI, notadamente pelo domínio da biodiversidade e da
água. A globalização econômica e a relativização das fronteiras nacionais
abrirão o caminho para que os blocos econômicos mais poderosos queiram
estabelecer um controle mais rigoroso sobre recursos naturais escassos,
marginalizando, em muitos casos, as nações menos poderosas. Isso constituirá um
grave risco para o convívio democrático no Planeta. Particularmente encarniçada
será a luta pela água potável, em regiões tradicionalmente carentes dela como o
Meio Oriente ou certas partes da África. No Brasil, é bem provável que
experimentemos uma pressão internacional crescente em relação à racionalização
da água e da biodiversidade, na Amazônia e no Pantanal. Isso sem contar com a
pressão que já exerce o narcotráfico para ocupar espaços nessas regiões. Um
esforço muito grande deveremos fazer no Brasil, para formularmos políticas
objetivas e responsáveis, adotando cada vez mais a idéia de desenvolvimento
sustentado e procurando avançar na pesquisa básica que nos possibilite
preservar a biodiversidade das nossas florestas [Cf. Paim, Prota, Vélez,
1999b].
A melhor forma de o Brasil
se habilitar para proceder à exploração racional dos seus recursos naturais,
num contexto de desenvolvimento auto-sustentado, consiste em elaborar um quadro
o mais completo possível desses recursos. Para isso, torna-se primordial que
não somente o Estado trabalhe, através das Universidades e Fundações, mas que
também seja chamada a participar desse trabalho a empresa privada, mediante a
elaboração e financiamento de projetos. O nosso esquema de pesquisa na área de
desenvolvimento rural e de recursos naturais é basicamente elaborado a partir
de instituições estatais como a EMBRAPA. Ora, a eficiência desses estudos
poderia ser multiplicada se o Estado contasse com a colaboração do setor
privado, como acontece em países que deram passos importantes na exploração
racional dos seus recursos naturais como o Japão, a Alemanha e os Estados
Unidos.
As Guerrilhas Comerciais
A maluca guerrilha comercial
entre o Canadá e o Brasil, ensejada pela proibição de comercializar nesse país
a carne brasileira com a desculpa do mal da vaca
louca, mostrou, mais uma vez, que em matéria de relações comerciais não há
amigos do peito, mas as coisas obedecem à lei da oferta e da procura e às
brigas por abocanhar fatias de mercado. É evidente que o nosso país passou a
ameaçar a tranqüilidade do negócio dos canadenses, no que se refere à
industrialização e venda de aviões de porte médio. A Bombardier e não a vaca louca
foi a causa da celeuma que azedou as relações entre os dois países. Mas do
episódio tiramos duas lições claras: em primeiro lugar, não adianta querer
agradar os outros passando por cima da lei: essa política é neocolonialista e
se volta contra nós mesmos. Foi isso o que aconteceu quando da libertação dos
seqüestradores de Abílio Diniz, cuja condenação por crime hediondo tinha transitado em julgado, seguindo todos os
passos indicados pelo nosso código penal e tendo sido garantido aos facínoras
amplo direito de defesa. Ora, o governo federal, num ato de bom-mocismo globalizante
em que intermediaram representantes da Esquerdigreja,
da CUT, do PT e dos soi disants
intelectuais progressistas, terminou liberando os bandidos, que passaram a
desfilar como heróis no Canadá e nos seus respectivos países de origem. Podemos
supor que a falta de respeito que os canadenses passaram a ter com o Brasil
decorre, em grande parte, dessa solução que conspurcou as nossas instituições
jurídicas.
Em segundo lugar, ficou
claro que o nosso país precisa se preparar para a guerrilha comercial da economia globalizada. Não poderemos competir
de igual para igual com nações poderosas, se o Estado é, no nosso país, o
primeiro obstáculo a ser superado. O Brasil ainda não se preparou tecnicamente
para defender as suas políticas comerciais em face dos outros países, no seio
da Organização Mundial do Comércio. A posição do Itamaraty é defasada a
respeito. Devemos ter mais agressividade no nosso comércio exterior,
aproveitando as brechas que a legislação internacional deixa para países em
vias de desenvolvimento. Convenhamos que nos Estados Unidos, Canadá, Alemanha
ou Japão, o Estado é instrumento de desenvolvimento e de incentivo à
comercialização dos produtos produzidos pelas respectivas empresas nacionais.
Em contraposição, como aponta o estudioso Thompson Motta, "o Brasil tem
hoje uma das cargas tributárias mais altas do mundo, atingindo valor acima de
cinqüenta por cento. Além dos tributos diretos sobre os lucros, o governo
tributa as empresas com cinqüenta e nove taxas e impostos. Torna-se necessária
e inadiável a adoção de medidas que fortaleçam a empresa nacional,
eliminando-se os fatores que afetam, de um lado, a capacidade de
autofinanciamento empresarial, e, de outro lado, a orientação dos fluxos de
poupança, tanto voluntária quanto compulsória. (...). Enquanto não se processar
uma profunda modificação no quadro governamental, seria importante a criação de
um Conselho Nacional de Política Industrial, como foi proposto ao governo pela
FIESP, em 1985, para definir e normalizar a política industrial do país"
[Motta, 1997: 62-63]. Se referindo ao cipoal de confusas normas e procedimentos
que emperram o comércio brasileiro, outro estudioso do assunto, o embaixador
Assis Grieco, frisava: "A comunidade exportadora procura, mormente, a
revisão de certos controles onerosos e demorados, causados pela falta de normas
reguladoras claras e de aplicação permanente, com margem a atrasos e corrupção
na fiscalização nos diversos níveis burocráticos" [Grieco, 1998: 4].
A Banditização dos Conflitos
Não há dúvida de que com a
queda do Muro de Berlim e a derrubada do Império Soviético, a guerra fria
chegou ao seu fim. Esse fato, de um lado, descongelou conflitos seculares que
tinham ficado presos sob a camada de gelo da bi-polaridade, especialmente na
Europa Oriental e nos Bálcãs. A série de confrontos surgidos, na última década,
na antiga Iugoslávia e em Kosovo, mostram a realidade dessa afirmação. A
unificação alemã mostrou de que forma o comunismo conseguiu manter numa redoma
de vidro, na Alemanha do Leste, antigas idéias nazistas, paradoxalmente
misturadas com a ideologia estalinista. De outro lado, o fim da guerra fria fez
ressurgir alhures a idéia dos regionalismos radicais e do separatismo. Eventos
dessa natureza têm-se observado na Espanha (com as reivindicações de bascos e
catalães), na França (com um ressurgimento da questão corsa, bem como do
separatismo bretão), na Inglaterra (com as reivindicações da Escócia em prol de
um Parlamento independente), da Irlanda do Norte (com o reaquecimento, no final
do século passado, da problemática do Ulster), na Rússia (com a questão
chechena), etc.
Mas o fim da guerra fria
colocou a descoberto, também, um fato que antes se mimetizava sob o véu da
bi-polaridade: antigas lutas que antes eram atribuídas a reivindicações
ideológicas, passaram a se tornar simples banditismo. O caso mais marcante é,
sem dúvida, o acontecido com a guerrilha colombiana. Cortada a mesada que o
Império Soviético passava aos insurgentes, estes voltaram-se simplesmente para
o narcotráfico como forma de financiamento das suas atividades, tendo adotado,
de outro lado, práticas abertamente criminosas, como o seqüestro regular de
cidadãos colombianos e estrangeiros. A Colômbia virou, destarte, paraíso de
seqüestradores. O número de pessoas seqüestradas chega hoje a 3.500. As
organizações guerrilheiras (FARC/ELN) financiam com o negócio da droga 60% dos
seus gastos, ao passo que os 40% restantes provém dos seqüestros. Calcula-se em
500 milhões de dólares anuais o montante dos ingressos da guerrilha colombiana.
Ser subversivo, aliás, é um bom negócio: cálculos da Fundação Milênio, com sede
em Bogotá, indicavam que um guerrilheiro ganha ao redor de 70 mil dólares
anuais, o que eqüivale a 40 vezes o que ganha um colombiano médio [cf. AFP,
1997].
Mas o banditismo não é apenas
uma propriedade dos guerrilheiros colombianos. Com as duas guerras mundiais e a
ulterior globalização, houve também uma progressiva universalização do crime,
de forma que a indústria ligada às ações à margem da lei cresceu
assustadoramente no mundo todo, como destacou Ralph Dahrendorf [1987: 11-46;
cf. Macedo, 2001: 3; Ceaux, 2001: 9], com motivo da síndrome denominada por ele
de "o caminho para a anomia". Este é, sem dúvida, um dos mais sérios
reptos para a civilização ocidental no início do novo milênio, especialmente se
levarmos em consideração a crescente utilização da tecnologia (como a Internet,
por exemplo) nas atividades delictivas [cf. Ilhesca, 1996: 17].
No Brasil, sentimos muito de
perto essa problemática, em primeiro lugar ao verificarmos a força cada vez
maior dos narcotraficantes não apenas nos morros, onde tradicionalmente
mandaram, mas também nas atividades econômicas convencionais, em decorrência do
processo de lavagem de dólares. Nas penitenciárias brasileiras é cada dia mais
notório o poder das gangues que as controlam, acuando as autoridades e, em
muitos casos, sobrepondo-se a elas, como nas recentes rebeliões em cadeia
ocorridas no Estado de São Paulo, estrategicamente controladas, via telefones
celulares, a partir das penitenciárias pelo autodenominado Primeiro Comando da
Capital, que já chegou à sofisticação de publicar código de conduta e anunciar
na mídia as suas próximas ações, deixando em evidência o despreparo das
autoridades e a ousadia e articulação dos bandidos. Na década passada
conseguiram se organizar no Estado de São Paulo cinco facções criminosas, que
contam com dinheiro proveniente de assaltos, intimidam aos demais detentos e
fazem chantagens à administração dos presídios. Note-se que esse processo se dá
não apenas no Brasil mas também, com aceleração crescente, em outros países
latino-americanos, como Argentina, Equador, Colômbia, México, etc.
A banditização dos conflitos
revela-se, em segundo lugar, na agressividade do MST, que já não constitui
apenas movimento de reivindicação válida de justiça social no campo, mas que se
configurou como organização à margem da lei, que abertamente desrespeita as
autoridades legitimamente constituídas, invade prédios públicos, faz reféns
entre os funcionários do INCRA e prepara as suas lideranças, de maneira
ostensiva, em táticas de acirramento de conflitos que hoje são postas
sistematicamente em prática pelos guerrilheiros colombianos, que conseguem
mobilizar verdadeiros exércitos de camponeses famintos para pressionar o
Estado. Para ninguém é mistério que o MST (financiado, aliás, por generosas
contribuições de ONGs internacionais), desenvolve amplo trabalho de doutrinação
marxista-leninista e de formação revolucionária na UNICAMP e outras
instituições educacionais públicas, tudo sob o olhar passivo das autoridades
[cf. Chaves, 1999a: 3; 1999b: 3; 2000: 3; Vélez, 2000a: 10-12; Vélez,
2000c: 4A].
A banditização dos conflitos
traduz-se, no cotidiano das pessoas, numa queda do nível de vida, associada ao
temor hobbesiano da morte violenta. A respeito, escreve Ubiratan Macedo:
"Locke já nos alertava sobre a importância da segurança como
responsabilidade pública, principal função do Estado na teoria democrática
(...). Um cidadão vitimado por um marginal não está interessado nos bons hospitais
e escolas públicas ou na eficiência da previdência social pública, e menos
ainda no prestígio e na segurança conferidos ao país pelas Forças Armadas.
Primeiro ele quer sua vida e sua integridade física e patrimonial protegidas, e
depois a execução de outras funções públicas" [Macedo, 2001: 3].
Diante da agressiva
realidade representada pela banditização dos conflitos, a sociedade brasileira
ainda não conseguiu formular uma clara e eficaz política de segurança pública.
Organizadas no contexto do espírito autoritário que prevaleceu na história
republicana, as nossas instituições policiais, assim como as judiciais, estão
defasadas e precisam de uma urgente modernização, acorde com os princípios da
vida democrática. Os estudiosos apontam, hoje, para o caminho da
profissionalização das forças policiais, a sua adaptação à complexidade do
mundo moderno mediante a multiplicidade e especialização das mesmas, criação de
uma agência nacional reguladora das polícias privadas, transformação das
guardas municipais das cidades maiores em polícia preventiva e ostensiva,
criação no ministério da Justiça de um centro de informações que sirva a todas
as polícias do país, reforço das organizações policiais de nível federal para
guardar as fronteiras, unificação das polícias rodoviária e ferroviária
federais, criação de uma polícia fazendária no ministério da Fazenda, criação
de uma polícia judiciária, etc. [cf. Macedo, 2001: 10-11]. Um erro grosseiro
que precisa ser evitado, consiste em atribuir às Forças Armadas funções policiais,
que se distanciam da sua missão constitucional de garantir a defesa externa do
país e proceder "à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa
de qualquer um destes, da lei e da ordem" (art. 142 da Constituição de
1988). Finalizando este item, valha o alerta dado pelo ex-deputado suíço Jean
Ziegler: "O crime organizado pode matar a liberdade" [Ziegler, 2001:
37].
Conclusão: o papel das
Forças Armadas em face dos reptos do século XXI
A melhor coisa que podemos
fazer em prol da segurança nacional é, sem dúvida, garantirmos educação básica
de qualidade para todos os brasileiros. Ela é o melhor antídoto contra o
neonazismo e demais ideologias segregacionistas. Ela é, de outro lado, o melhor
meio para superarmos os riscos do fundamentalismo e para acelerarmos a nossa
saída do patrimonialismo mediante a completa modernização da nossa economia e
das instituições políticas. Só com educação básica de qualidade tornaremos
possível a racional utilização dos nossos recursos naturais. Não se trata,
evidentemente, de fazer da educação básica a panacéia. Acontece que esse foi o
ponto esquecido pela liderança brasileira, ao longo das últimas décadas do
século XX. E essa carência fundamental está condicionando a nossa modernização
econômica, bem como o aperfeiçoamento das instituições democráticas [cf. Paim,
Prota, Vélez, 1999: 5, 7].
Feita essa observação
inicial, concluamos destacando quais seriam os aspectos a serem levados em
consideração pelas nossas Forças Armadas, em face do panorama que desenhei para
o século XXI. Não assinalarei medidas imediatas a serem tomadas. Destacarei,
melhor, qual deveria ser o espírito que, no meu entender, constitui a base para
tomar decisões estratégicas em face da problemática apontada.
Após as reformas iniciadas
pelo Marechal Castelo Branco e continuadas no governo Geisel (seguindo
provavelmente a trilha civilista aberta por Oliveira Vianna), parece que as
Forças Armadas no Brasil enveredaram definitivamente pelo caminho da
profissionalização [cf. Santos, 1991: 133-149. Vélez, 1997: 187-222]. No
entanto, de início não foi assim. O regime republicano tinha deixado um buraco
na nossa vida constitucional: acostumada a sociedade brasileira à prática da
representação e, no contexto dela, à existência de um Poder Moderador (porta-voz
dos interesses permanentes da Nação e que entraria como árbitro da disputa para
corrigir os desvios da representação, no momento em que os políticos se
desentendessem), parece que as Forças Armadas passaram a exercer esse tipo de
função moderadora, à margem evidentemente da Constituição escrita, mas não à
margem da política costumeira. É a conhecida tese de Alfred Stepan [1975].
Esse tipo de função vicária
produziu as denominadas "intervenções salvadoras" comandadas pelo que
o marechal Castelo Branco denominava de "espírito miliciano", ao
longo da República Velha, durante o período getuliano e até 64. A melhor
expressão da mentalidade que deu ensejo a esse tipo de intervenção, talvez
sejam as palavras de Juarez Távora, no início dos anos 30: "Nossa atitude
em política é a de quem observa um banquete. Quando o banquete for transformado
em rega-bofe, então entraremos com a espada moralizadora" [apud Torres,
1956: 181]. A última intervenção, no entanto, desgastou a Instituição Armada,
em decorrência da sua longa permanência no poder. Hoje parece relegado à
história esse tipo de intervencionismo na vida do país. A boa aceitação das
Forças Armadas, testemunhada pelas pesquisas de opinião ao longo dos últimos
anos, revela que a opinião pública apoia a feição profissional não
intervencionista em política.
O tenente-brigadeiro Murillo
Santos definiu a profissionalização seguindo a terminologia adotada por Samuel
Huntington, da seguinte forma: "O relacionamento correto (entre poder civil e militares) repousa
na profissionalização dos militares e a isto é que precisamente denomina de controle objetivo, isto é, aquela
situação em que as Forças Armadas têm atribuições claras, relacionadas à
defesa, dispondo de um corpo de oficiais rigorosamente profissionalizado.
(...). O verdadeiro controle civil é uma decorrência da maximização do
profissionalismo militar. (...) O corpo de oficiais altamente profissionalizado
encontra-se pronto para sustentar as aspirações de qualquer grupo civil que
exerça autoridade legítima no interior do Estado. Com efeito, este conjunto
define os limites do poder político dos militares sem referência à distribuição
do poder político entre os vários grupos civis" [Santos, 1991: 136-138].
Três passos, no meu
entender, são fundamentais, uma vez aceita a realidade do profissionalismo dos
militares e do controle objetivo destes pelo poder civil legitimamente
constituído: 1) Formulação de um pensamento estratégico; 2) Adoção de uma
estratégica nacional; 3) Unificação das Forças Armadas ao redor da estratégia
adotada.
1) Formulação de um pensamento estratégico. - Até o presente, essa foi
prerrogativa de instituições militares como a ESG, a Escola de Altos Estudos de
Política e Estratégia do Exército e as Escolas de Comando e Estado Maior das
três Armas. Reconheça-se que nessas instituições, especialmente na ESG, tem
sido tradição a presença do elemento civil. Mas ainda falta muito para que a
elite pensante brasileira se engaje, de forma sistemática, nesse trabalho de
reflexão. Tímidas são, por enquanto, as iniciativas civis a respeito. Na década
de setenta surgiu o Centro de Estudos Estratégicos do Convívio, em São Paulo,
que publicou, até início da década de 90, a revista Política e Estratégia. Na
trilha aberta por essa primeira experiência surgiu o Centro de Estudos
Estratégicos da Unicamp.
Mais recentemente foi criado
no Ministério da Ciência e Tecnologia o Centro de Estudos Estratégicos,
dirigido pelo diplomata Carlos Henrique Cardim e que publica em Brasília a
revista Parcerias Estratégicas, com o objetivo de contribuir para a
discussão de temas de importância estratégica na área de ciência e tecnologia.
Com o patrocínio do Ministério da Aeronáutica e sob a coordenação do
tenente-brigadeiro Murillo Santos, foram realizados, ao longo dos anos 80,
vários seminários sobre política e estratégia, com a finalidade de aglutinar
estudiosos civis do assunto [cf. Santos, 1991: 145]. Mas tudo isso ainda é
pouco, em face da complexidade da formulação de uma estratégia nacional no
mundo contemporâneo. As variáveis problemáticas por mim levantadas nesta
apresentação, constituem apenas a ponta do iceberg
dessa complexa realidade.
É evidente que a liderança
civil precisa ter clara a essência da política estratégica que deve ser
seguida. Num contexto de governo democrático-representativo, isso é
fundamental, pois são os representantes da nação os que no Parlamento aprovam o
orçamento para as Forças Armadas. Os nossos problemas decorrem ainda da não
suficientemente aprimorada representação (pois não contamos com distritos eleitorais
que atrelem o eleito ao eleitor) e os nossos partidos políticos ainda estão
muito submetidos a lideranças carismáticas. Seria necessário fortalecer a
representação para que houvesse um compromisso claro e honesto dos
representantes com os reais interesses do país.
O ideal, no que tange à
formulação de um pensamento estratégico, seria que se engajassem nesse esforço
múltiplos centros de reflexão (em Universidades públicas e privadas, bem como
em centros de pesquisa e nos institutos de estudos mantidos pelos partidos
políticos) para que, de forma continuada e sistemática, discutissem com as
instâncias acadêmicas já existentes nas Forças Armadas, a linha mestra de um
pensamento estratégico que consulte os interesses do país. Publicações
especializadas e de divulgação se encarregariam de difundir no seio da
sociedade essas propostas, a fim de ir gerando um consenso a respeito. Somente
assim garantir-se-ia a adoção de uma estratégia nacional.
2) Adoção de uma estratégia nacional. - Esta passaria fundamentalmente
pela discussão ampla no Congresso, no qual as instituições militares teriam
presença através dos assessores parlamentares na comissão correspondente e
também mediante propostas concretas apresentadas pelo Ministro da Defesa.
Tornaram-se rotineiras no parlamento brasileiro as discussões sobre orçamento
para as Forças Armadas, bem como sobre aspectos administrativos e
organizacionais das mesmas, no contexto da reforma do Estado. O esforço deveria
ser concentrado, no entanto, na formulação de uma estratégia que responda aos
interesses do país, num cenário cada vez mais globalizado e complexo. Como
definir uma estratégia de defesa clara para o Brasil, num contexto
internacional em que novos inimigos ameaçam a soberania nacional, como os hackers e os narcoguerrilheiros? Como
prevenir a defesa do nosso país, em face da sofisticação crescente dos
terroristas? Qual deve ser a prioridade estratégica da nossa Marinha de Guerra,
quando a ameaça imediata nas nossas costas e rios são as lanchas rápidas dos
narcotraficantes e contrabandistas de armas? As perguntas são múltiplas e
somente um debate aberto, amplo, feito com pessoas competentes, poderá ir
abrindo espaço para soluções verdadeiras.
3) Unificação das Forças Armadas ao redor da estratégia adotada. - A
criação recente do Ministério da Defesa certamente abriu a porta para a adoção
de uma estratégia unificada pelas nossas Forças Armadas. O que falta, a meu
ver, não decorre das estrutura das Forças Armadas, que têm sabido aprimorar a
sua organização em face dos novos reptos do país, reformulando currículos nas
Academias Militares, aperfeiçoando os mecanismos de recrutamento e inclusive
colaborando com a globalização das questões estratégicas, mediante a
participação eficiente e corajosa dos nossos militares nas missões de paz
organizadas pelas Nações Unidas, em que pese os cortes orçamentários que se
tornaram a regra nas últimas décadas.
Por isso enfatizo que o que
falta é a colaboração da sociedade brasileira como um todo, em primeiro lugar
mediante o engajamento dela nas questões que dizem relação à estratégia e
defesa, através da representação parlamentar e do estudo sistemático dessas
questões nas Universidades e centros de pesquisa. Termino citando o
tenente-brigadeiro Murillo Santos: "É preciso realidade e pragmatismo, é
preciso transparência e visualização, é preciso verdade e ação. Novas
estratégias decorrerão com objetividade e certeza, na medida em que mais se
aproximarem da realidade. Fiquemos nós, militares, somente com a Defesa, nosso mister e dever competente.
O que deve vir primeiro e com intensidade? O Submarino Nuclear, o carro de
combate Osório, os helicópteros, os nossos projetos aeronáuticos, os mísseis,
os navios aeródromos, todos para serem aplicados na defesa contra possíveis
inimigos, ou... a assistência às crianças, os livros escolares e a preservação
ambiental? Afinal, qual é o inimigo? A resposta deve ser de toda a
sociedade!" [Santos, 1991: 148-149].
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