Como o conde Saint-Simon, Comte era consciente de que lhe estava incumbida uma missão providencial. Em que pese o fato de apenas nos últimos doze anos da sua vida, a partir de 1845, ele ter feito uma síntese, visando interpretar a sua missão em termos religiosos, desde cedo entendeu que o seu trabalho estava ligado indissoluvelmente ao esforço para salvar a sociedade da anarquia em que tinha mergulhado após a Revolução Francesa, mediante a adoção de um novo sistema orgânico de pensamento. Eis o que o jovem filósofo escrevia em 1822, no seu opúsculo intitulado: Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade [in: Comte, Opúsculos de filosofia social, tradução de Ivan Lins e João Francisco de Souza, Porto Alegre: Globo; São Paulo: Edusp, 1972, p. 56]:
“A única maneira de pôr termo a esta tempestuosa situação, detendo a anarquia que invade dia a dia a sociedade, reduzindo, por fim, a crise a simples movimento moral, é determinar as nações civilizadas a deixarem a direção crítica a fim de tomarem a direção orgânica, convergindo todos os seus esforços para a formação de um novo sistema social, meta definitiva da crise, e para a qual é simplesmente preparatório tudo quanto se tem feito até o presente. Tal é a primeira necessidade da nossa época. Este, também, em resumo, o alvo geral de meus trabalhos e a finalidade particular deste escrito, que tem por objetivo pôr em jogo as forças que devem impelir a sociedade do novo sistema”.
O fato de Comte ter proposto diretamente não a institucionalização da sociedade industrial, mas uma mudança mental (que ele denominava de abandono da direção crítica), levou ao rompimento com Saint-Simon. Comte não aceitava que o seu mestre, nesse período, deixasse em segundo plano a reforma teórica do conhecimento e se dedicasse à formação da nova elite industrial e científica. Comte, porém, conservou idêntica a inspiração salvadora que lhe incutira Saint-Simon.
Comte, como Saint-Simon, percorreu duas etapas na sua evolução filosófica: a primeira, ligada à valorização da ciência e de uma proposta educativa decorrente dela; a segunda, alicerçada na valorização do sentimento, que encontrou eco na Religião da Humanidade, formulada em 1845. Os escritos do autor serão mencionados ao longo da exposição do seu pensamento.
O principal escrito de Comte, que espelha a primeira etapa (educativa) da sua obra é o Curso de Filosofia Positiva (6 volumes, 1830-1842). A mais importante obra do segundo período (religioso-político) é o Sistema de Política Positiva (1851-1854).
Em 8 pontos poderíamos sintetizar as linhas mestras do pensamento e da influência filosófica de Augusto Comte:
1) Pregação da regeneração social a partir da reestruturação do saber e da mente humana; esta idéia foi sistematizada entre 1819 e 1845. Comte concretizou esta primeira parte do seu pensamento nas seguintes obras: Separação geral entre as opiniões e os desejos (1819), Sumária apreciação do conjunto do passado moderno (1820), Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade (1822), Considerações filosóficas sobre as ciências e os cientistas (1825), Considerações sobre o poder espiritual (1826), Exame do tratado de Broussais sobre a irritação e a loucura (1828), Curso de Filosofia Positiva (6 volumes, 1830-1842), Tratado elementar de Geometria analítica (1843) e o Discurso sobre o espírito positivo (1844). A Humanidade, segundo Comte, passou por três estados, ao tentar conceber a realidade do mundo e da vida. Esses três estados, ou atitudes espirituais foram o teológico (em que dominam as forças sobrenaturais e se exprime nos mitos), o metafísico (caracterizado pela crítica vazia e pela desordem espiritual, fruto do liberalismo) e o positivo (que supera as explicações insuficientes do mundo, mediante a substituição das hipóteses religiosas ou metafísicas pelas leis científicas).
2) Regeneração social a partir de uma ação teórica e educadora dos savants positifs, que se sobrepõe à organização prática da sociedade pelos industriais e que enseja uma classificação das ciências. A incumbência teórica cabe, portanto, aos sábios (denominados por Comte, como fizera seu mestre, de savants positifs), enquanto que os trabalhos práticos são de responsabilidade dos industriais. Essa divisão de funções alicerçava-se, segundo o pensador, no atento estudo da marcha da civilização e mostra que a anarquia mental precedeu e produziu a temporal. No seu ensaio intitulado: Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade, o filósofo frisava: “Há absoluta necessidade de separar os trabalhos teóricos da reorganização social, adequada à nossa época, dos trabalhos práticos; isto é, faz-se mister conceber e executar os que se referem ao espírito da nova ordem social, ao sistema de idéias gerais que lhe deve corresponder, isoladamente dos que têm por objetivo o sistema de relações sociais e o modo administrativo que das mesmas deve resultar”. A fim de deitar os alicerces para a reorganização mental, base da mudança social, o nosso pensador passou a elaborar uma rigorosa classificação das ciências alicerçada na observação dos fenômenos, mas com a preocupação de encontrar, como suporte deles, uma rede de leis imutáveis, sendo que cada ramo do conhecimento organizaria uma série determinada de fenômenos, o que facilitaria a previsão de eventos. As ciências classificam-se de acordo com a maior ou menor simplicidade de seus correspondentes objetos. Segundo a complexidade crescente, a classificação por Comte proposta era a seguinte: matemáticas, astronomia, física, química, biologia e sociologia. A totalização do saber somente se consegue na sociologia. Ela constitui, frisa o filósofo, “um sistema verdadeiramente indivisível, onde toda decomposição é radicalmente artificial, tudo se relacionando com a Humanidade, única concepção completamente universal”. Comte distingue entre estática e dinâmica social: a primeira estuda as condições constantes da sociedade e a segunda as leis do seu progressivo desenvolvimento. A idéia básica da estática é a ordem e a da dinâmica o progresso.
3) Dimensão messiânica da regeneração social. É palpável, na obra de Comte, o caráter salvífico dos trabalhos teóricos que devem ser empreendidos pelos savants positifs, com vistas a regenerar a sociedade em crise, mudando a mentalidade das pessoas. Só um espírito superior ou homem de gênio (como se considerava a si próprio Augusto Comte) e os sábios ou cientistas positivos (seus colaboradores) conheciam o caminho para salvar a sociedade da crise em que afundava. A sua missão obedecia a um destino inexorável, que era identificado com a marcha natural da civilização humana, de que eles eram conscientes, chefiados, evidentemente, pelo homem de gênio. A respeito, frisava o filósofo: “Todos os homens que exerceram uma ação real e durável sobre a espécie humana, quer no temporal, quer no espiritual, foram guiados e sustentados por esta verdade fundamental, que o instinto ordinário do gênio lhes faz entrever, embora não estivesse ainda estabelecida por uma demonstração metódica”.
4) Ignorância, por Comte, da história da filosofia ocidental. Na sua posição de líder dos sábios que deveriam educar a sociedade no método positivo, o nosso pensador considerava que a única luz que o deveria guiar seria a sua própria intuição, bem como o estudo do processo evolutivo da espécie humana. Para nada serviria o aprendizado da filosofia tradicional, que simplesmente era considerada, grosso modo, como pertencente à confusa metafísica liberal, a ser superada no terceiro estado da Humanidade, o científico. No prefácio pessoal ao Curso de Filosofia Positiva frisava Comte o seguinte, destacando a sua ignorância em relação aos clássicos da filosofia moderna: “Jamais li, em língua alguma, nem Vico, nem Kant, nem Herder, nem Hegel, etc.; somente conheço suas diversas obras através de algumas relações indiretas e de certos resumos demasiado insuficientes. Quaisquer que possam ser os inconvenientes dessa negligência voluntária, estou convencido de que muito contribuiu para a pureza e a harmonia de minha filosofia social”. Essa auto-suficiência em matéria de pensamento, bem como o dogmatismo que o acompanha, foram as razões que levaram Sílvio Romero a afirmar, no seu ensaio intitulado O Positivismo em suas idéias capitais [in: Obra Filosófica, Rio de Janeiro: José Olympio / São Paulo: Edusp, 1969, p. 314]: “O Positivismo é uma coisa perigosa e deve ser combatido com seriedade”.
5) Concepção determinística do homem, num contexto dogmático. Em Comte, como em Saint-Simon, o plano salvífico da sociedade deveria se desenvolver no seio de uma visão determinística do homem, segundo a qual a ação humana não valeria senão na medida em que se exercesse “no sentido da força da civilização”, “quando se propõe a operar mudanças impostas por essa força. A ação é nula, ou pelo menos efêmera, em qualquer outra hipótese” [Comte, Plano dos trabalhos científicos para reorganizar a sociedade]. Ora, em que consistiria essa “força da civilização” e o seu sentido de desenvolvimento? A resposta é, no mínimo, nebulosa, porquanto somente espíritos geniais, como Comte, teriam acesso a ela. Em termos científicos, de avaliação da “credibilidade” da hipótese levantada, torna-se impossível auferir a validade da mesma, em virtude do fato de que somente espíritos privilegiados teriam acesso a essa secreta realidade. Tratar-se-ia, portanto, de um conhecimento hierático, para iniciados. A questão da liberdade, quando considerada em si mesma, sem referência ao contexto da marcha da civilização, é um problema metafísico. Só tem sentido falar da ação do homem quando ela está inserida no seio do processo supraindividual. Em termos comteanos, será mais livre aquele que se entregar mais conscientemente ao processo impessoal da evolução da realidade. Inspira-se Comte, aqui, no modelo rousseauniano, que apregoava a entrega total do indivíduo em mãos da vaporosa “vontade geral”, que o obrigava a se despir dos seus interesses materiais e o libertaria. Mas, cabe perguntar, de novo: onde se encontra esse processo (“contexto da marcha da civilização”, “vontade geral”), como fazer para o indivíduo mergulhar nele? A resposta estaria unicamente num lugar: no pensamento do filósofo de Montpellier e dos seus sequazes. Trata-se, portanto, de uma questão dogmática, que se situa nas vizinhanças da religião revelada.
6) Complementação do determinismo comteano na Religião da Humanidade, proposta pelo pensador a partir de 1845. Em duas obras Comte partiu para esta última fase do seu pensamento filosófico: Sistema de política positiva (1851-1854) e Catecismo Positivista (1852). Considerava o filósofo que a ação regeneradora dos savants positifs e dos industriais somente tocava a razão dos indivíduos, deixando intocado o terreno dos sentimentos, onde ainda se alojaria o egoísmo. A fim de superar este entrave, que dificultava a plena eclosão da Civilização, seria necessário plantar, nos indivíduos, sentimentos de filantropia e de generosidade, que abrissem o caminho para a prática de virtudes altruístas, que conduzissem a Sociedade à sua plena manifestação racional. Para isso, o pensador sistematizou a sua Religião da Humanidade, motivado, na sua existência pessoal, pela paixão platônica que desenvolveu por Clotilde de Vaux (1815-1846). John Stuart Mill (1806-1873), na sua obra: Comte e o positivismo, [Buenos Aires: Aguilar, 1972], explicitou claramente a finalidade que o filósofo perseguia com a sua Religião da Humanidade: garantir a unidade e a sistematização da vida humana. Idêntico propósito, aliás, tinha animado a Saint-Simon, ao formular o seu Novo Cristianismo. Sabe-se que foi Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) quem deu vida a essa proposta, com a sua Religião Civil. O homem livre realiza-se, no sentir de todos estes autores, mediante a negação da individualidade (e da liberdade nesse plano), na entrega incondicionada destes ao destino geral da Humanidade previsto pelos chefes da “religião civil” (rousseauniana, saint-simoniana ou comteana). É evidente a concepção totalitária de homem que emerge dessa visão de mundo. Se referindo à Religião da Humanidade, escreve Stuart Mill: “Comte é um homem intoxicado de moral. Para ele, qualquer questão se converte num assunto de moralidade e não é permitida nenhuma motivação, a não ser as da moralidade. A explicação disto achamo-la numa original peculiaridade mental, muito comum entre os pensadores franceses, mas na qual Comte tem-se distinguido sobre todos eles. Não poderia ter-se omitido na questão da chamada unidade. Por causa da Unidade, a religião resultou desejável aos seus olhos. Não no simples sentido de Unanimidade, mas num sentido mais amplo. Uma religião tem de ser alguma coisa mediante a qual se sistematize a vida humana” [Stuart Mill, Comte e o Positivismo, ob. cit., p. 158].
7) Cooptação, pela Igreja Positivista, dos menosprezados (mulheres e proletários), como auxiliares diretos do Poder Espiritual. Compreendida a Religião da Humanidade no sentido totalitário que acaba de ser exposto, Comte partiu para organizar a Igreja Positivista, à semelhança da estrutura presente na Igreja Católica, com Papa, Sacerdotes, Sacramentos, Santos, Culto e Excomunhões. A bizarra organização (que somente encontrou repercussão no Brasil, na Igreja Positivista, chefiada por Miguel Lemos e Teixeira Mendes) cooptou as mulheres e os proletários, abandonados, segundo Comte, pela Sociedade Ocidental, a fim de que, com a sua ajuda, o clero positivista conseguisse converter os indivíduos, do egoísmo para o altruísmo, a fim de que todos se entregassem, sem limites, à identificação coletiva com a ação redentora da Igreja Positivista. Somente assim seria possível a plena felicidade humana, numa espécie de paraíso terrestre, em que o objeto de culto não seria um Deus longínquo, mas a Humanidade Regenerada, simbolizada na maternal figura de Clotilde de Vaux (1815-1846), elevada aos altares da nova religião como símbolo do novo homem liberto totalmente do egoísmo. O filósofo tinha-se apaixonado por ela, depois de ter sido abandonado pela sua esposa Caroline Massin (1802-1877). As políticas de “incorporação do proletariado à sociedade”, presentes na Constituição castilhista de 1891, bem como na legislação trabalhista getuliana, de 1943, encontram na Religião Positivista o seu ponto de inspiração.
8) Significativa influência do Positivismo na América Latina. Embora a filosofia de Comte tivesse encontrado seguidores ilustrados (críticos do dogmatismo comteano) na Inglaterra com John Stuart Mill (1806-1873) e Herbert Spencer (1820-1903), e na França com Emile Littré (1801-1881), a parte religiosa do positivismo teve pouca ressonância, sendo Pierre Laffitte (1823-1903) o discípulo mais renomado no seio da cultura francesa. A influência do fundador do Positivismo foi mais marcante, no entanto, na América Latina. No Brasil, houve quatro grandes manifestações do comtismo: em primeiro lugar, a corrente do Positivismo Ilustrado, com Luiz Pereira Barreto (1840-1923), Pedro Lessa (1859-1921), Ivan Lins Monteiro de Barros (1904-1975), etc. Em segundo lugar, a vertente do Positivismo Militar, cujos mais importantes expoentes foram Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) e o Marechal Cândido Rondon (1865-1958). Em terceiro lugar, deve ser mencionada a corrente do Positivismo Religioso, que desaguou na Igreja Positivista Brasileira, organizada por Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927). Em quarto lugar, consolidou-se a vertente do Positivismo Político, que floresceu no Rio Grande do Sul ao ensejo da ditadura republicana de Júlio de Castilhos (1860-1903) e Borges de Medeiros (1863-1961), modelo autocrático que foi levado ao plano nacional por Getúlio Vargas (1883-1954), em 1930. No Chile, o Positivismo teve duas manifestações diferentes: a da Igreja Positivista, organizada pelos irmãos Lagarrigue: Jorge (1854-1894), Juan Enrique (1852-1927) e Luis (1864-1949) e a vertente do Positivismo Ilustrado, cujos expoentes foram Valentín Letelier (1852-1919) e José Victorino Lastarria (1816-1888). Na Argentina, o Positivismo ganhou apenas a dimensão Ilustrada com José Ramos Mejía (1849-1914), Agustín Alvarez (1857-1914), José Ingenieros (1877-1925) e Carlos Octavio Bunge (1875-1918). Na Colômbia, desenvolveu-se a vertente Ilustrada com Salvador Camacho Roldán (1827-1900), bem como a Política com Rafael Núñez (1825-1894). Por último, no México encontramos a variante Ilustrada, com Gabino Barreda (1818-1881) e José Yves Limantour (1854-1935), bem como a corrente Política, cujo grande representante foi o general Porfirio Díaz (1830-1915), que estabeleceu o modelo da “ditadura científica”.
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