Este texto, escrito por mim em 1997, conserva atualidade quanto aos conceitos básicos nele contidos. Reproduzo-o aqui, levando em consideração que o pensamento filosófico acerca da bioética conta, entre meus leitores, com várias pessoas interessadas.
A cúpula mundial realizada em El Cairo, em
1994, sob os auspícios das Nações Unidas, com a finalidade de discutir os
problemas decorrentes da explosão populacional no limiar do novo milênio,
deixou claro, entre outras coisas, o peso que a variável ética passou a ter nas
hodiernas sociedades, especialmente nas coisas que dizem relação aos direitos humanos
básicos. Poderíamos afirmar, sem exagero, que o cerne das discussões havidas no
mencionado evento foi a problemática da bioética ou moral da vida humana. Os
direitos dos nascituros à vida, os direitos das mulheres sobre o seu próprio
corpo, os direitos de os Estados intervirem nas políticas de controle da
natalidade, os direitos de os casais adotarem esta ou aquela prática
contraceptiva, a problemática do aborto, etc., eis algumas das questões que
foram levantadas. A importância da bioética no mundo contemporâneo é evidente.
A importância do tema ficou patente para a
opinião pública brasileira, ao ensejo dos debates havidos no Congresso, no
decorrer de 2005, em relação à pesquisa com as células-tronco. Igrejas,
associações civis, pesquisadores, cidadãos comuns, blogs na internet, etc.,
externaram os seus pontos de vista. A posição das autoridades assinalou um
caminho importante: o da busca de consenso da sociedade a respeito desses
temas. Contudo, a participação da sociedade poderia ter sido mais ampla. Ainda
há, na opinião pública do país, uma boa dose de passividade para discutir esse
tema, bem como outros que dizem relação ao bem público. Houve progressos
significativos. No entanto, ainda há muita passividade. A finalidade desta
matéria é, justamente, dar subsídios teóricos aos nossos leitores, na internet,
para ilustrar a discussão a respeito da bioética.
Desenvolverei três pontos fundamentais:
conceitos básicos, principais correntes de pensamento bioético e reflexões em
face da realidade brasileira. Reconhecendo a complexidade do tema a ser
abordado, não tenho a pretensão de esgotá-lo ou de resolver as intrincadas
polêmicas a que ele dá lugar entre os estudiosos. Simplesmente, quero expor o
que os escolásticos chamavam de status quaestionis, ou estado da problemática a
respeito, do ângulo das várias teorias éticas existentes.
Conceitos básicos
Devemos distinguir, para começar, dois
conceitos fundamentais: moral e ética. Do ponto de vista do pensamento
culturalista brasileiro, A. Paim [1992: 21] descreve a primeira como “(...)
conjunto de regras de conduta admitidas em determinadas épocas, podendo ser, de
igual modo, consideradas como absolutamente válidas”. Já a ética é identificada pelo mencionado
autor como “(...) consideração abstrata” sobre a moral [Paim, 1992: 33],
seguindo, nesse ponto, o pensamento de Max Weber.
Uma outra distinção conceitual a ser feita é
a de moral individual e moral social. A primeira se centra no imperativo
categórico da consciência, que deve ser obedecida custe o que custar, sem
importar as conseqüências. É a dimensão do que Max Weber denominava de “moral
de convicção”, que não admite negociação, dando ensejo à moral do “sim, sim,
não, não” do Evangelho [cf. Weber, 1982]. A segunda, a moral social, consiste
no “mínimo moral” a ser exigido dos membros de uma comunidade nacional (ou da
comunidade internacional), para que se torne possível o convívio coletivo, com
respeito aos direitos humanos básicos. Como lembra, com muita propriedade, a
pensadora espanhola Adela Cortina [1989: 35], a moral social é expressão, hoje,
do princípio kantiano que traduziu, na modernidade, a dimensão absoluta da
pessoa, princípio que reza assim, conforme as palavras do próprio Kant: “(...)
O homem e, em geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não só
como meio para quaisquer usos desta ou daquela vontade: deve, em todas as suas
ações, não só nas dirigidas a si mesmo, mas (também), nas dirigidas aos demais
seres racionais, ser considerado ao mesmo tempo como fim” [apud Cortina, 1989:
35-36].
Antônio Paim destaca que o modelo mais
importante de moral social é, na modernidade, o consensual. Em relação à
natureza e ao papel que a moral social consensual desempenha no mundo
contemporâneo como fundamento da ordem civil e política, Paim escreve: “
dizendo relação às relações entre as pessoas, a moral social deve encontrar
fundamentos laicos, válidos para todos, inclusive aos que não acreditam em
Deus. Apenas os crentes irão inseri-la num contexto mais amplo, vinculando o
cumprimento dos seus preceitos às suas crenças religiosas. Precisamente essa
circunstância é que estabelece uma distinção entre moral individual e moral
social. Embora devam coincidir quanto aos princípios, nos marcos de determinado
contexto cultural, diferenciam-se nitidamente quanto à fundamentação. A moral
social de tipo consensual, sendo válida para todos, não pode repousar em
ditames dessa ou daquela religião ou em doutrinas que se proponham tão somente
contrapor-se a enunciados, de caráter religioso. Vale dizer: a religião deixa
de servir como referencial, tomado positiva ou negativamente” [Paim, 1992: 23].
Isso não significa, de forma alguma, negar o
fato de que a moral ocidental repousa sobre duas colunas: a tradição religiosa
judaico-cristã, no seio da qual emergiu o conceito de pessoa, e a tradição
helenística, em cujo contexto se aperfeiçoou o ideal do lógos racional. Apenas é bom lembrar que a partir
do século XVIII, com Kant, a moral ocidental ganhou uma formulação estritamente
racional, com a transposição, para o terreno do imperativo categórico (que manda tratar a pessoa como fim e não
como meio), do mandamento cristão da caridade [cf. Paim, Prota, Vélez, 1988,
I].
Os problemas debatidos hodiernamente pela
bioética situam-se, sem dúvida, no terreno da moral social, tanto pela feição
consensual e racional dos seus postulados, como pela evidente relação que têm
com o convívio das pessoas em sociedade. O termo bioética foi criado nos Estados Unidos, na década de
1960, para designar a “área das questões éticas relacionadas com a vida”, ou as
“aplicações da biologia e da medicina à vida humana” [Cabral, 1989: I,
686-687]. Para enfatizar esta segunda acepção, os autores europeus utilizam o
termo “ética biomédica”. O campo de atuação da bioética tem-se ampliado consideravelmente,
em decorrência dos avanços científicos e tecnológicos ocorridos nas últimas
décadas, no terreno da genética e da fetologia. A fim de estudar e discutir os
problemas surgidos nesse campo têm sido criadas, em vários países, instituições
especializadas na análise dessa problemática. As principais delas são as
seguintes: Institute of Society, Ethics and Life Science -- mais conhecido como Hastings Center
--; o Center of Bioethics do Instituto Kennedy, da Universidade de
Georgetown; o Centre d’Études de Bio-Éthique, da Universidade de Louvain, na Bélgica; o Centro de San Cugat, em Barcelona; o Centre de Sèvres, em Paris, etc. Paralelamente, algumas
instituições científicas tradicionais, como a Pontifícia Academia de
Ciências do Vaticano.
No que tange às instituições organizadas
especificamente para responder às questões jurídicas involucradas nas
discussões sobre problemas de bioética foi criado na França, em 1983, o Comité
Consultatif National d’Éthique pour les Sciences de la Vie et de la Santé, com a finalidade de “emitir pareceres
sobre os problemas morais suscitados pela investigação nos domínios da
biologia, da medicina e da saúde” [Cabral, 1989: I, 687]. O Conselho da Europa,
por sua vez, promoveu a redação, por uma comissão interdisciplinar, de uma
série de recomendações aos Estados membros, no que tange às providências
jurídicas a serem adotadas no terreno da bioética.
Principais correntes de pensamento bioético
Quatro são as mais importantes correntes de
pensamento que, na atualidade, pretendem dar fundamento teórico à bioética: a
norte-americana, a alemã, a espanhola e a vaticana. Destacarei, seguindo as
linhas mestras da exposição de Diego Gracia, os principais autores que as
inspiram, bem como as suas teses fundamentais [cf. Gracia, 1991: 81-122].
Corrente Norte-Americana.
Os autores de maior nomeada são: A. R. Jonsen e S.
Toulmin [1988], J. D. Arras [1990] e R. Rorty [1983]. As teses fundamentais
desta corrente são as seguintes:
1)
A
racionalidade humana é assaz limitada e, em decorrência disso, nunca pode
esgotar a realidade.
2)
Conseqüentemente, as tradicionais metafísicas
que pretendiam dar um fundamento último e unitário à concepção humana, são
inviáveis.
3)
São
inviáveis, também, as éticas metafísicas.
4)
Só restam, portanto, as éticas procedimentais.
5)
O procedimento a ser seguido na solução dos
conflitos éticos é o denominado de “moral triangulation”, em que os juízos éticos prováveis são
formulados perante todas as circunstâncias que concorrem nas situações
concretas, levando em consideração as perspectivas e os interesses de todos os
implicados.
6)
Aa solução
dos conflitos não se alcança mediante a simples aplicação de axiomas morais formulados apriori pela ética
teórica, mas pelo critério convergente de todos os homens (ou, ao menos, dos
mais prudentes e sábios), expresso na forma de máximas práticas de atuação.
Corrente Alemã.
Os principais autores são: Jürgen Habermas [1984,
1987, 1989, 1990] e Karl Otto Apel [1985]. As teses fundamentais desta corrente
são as seguintes:
1)
A ética é
inseparável da história concreta de cada sociedade ou cultura. A experiência
histórica tem demonstrado aos europeus que a opinião das maiorias não é,
sozinha, um procedimento adequado para a tomada de decisões morais.
2)
É necessário fundar a moral sobre algo superior
à simples racionalidade estratégica ou tática, que possui por objeto a defesa
dos interesses de um grupo determinado de pessoas.
3)
Só há um meio para fundar uma ética
procedimental: levar em consideração os interesses de todos os implicados na
decisão, ou seja, os interesses gerais da Humanidade, que Habermas denomina de
“comunidade ideal de comunicação”.
4)
Um sistema social e político como o democrático
só será perfeito quando levar em consideração a dignidade de todos os homens,
sem excluir ninguém, ou seja, quando tornar realidade a “comunidade ideal”
apontada.
5)
No que tange especificamente à bioética, deve-se
evitar todo pacto estratégico de interesses puramente particulares, em prol de
uma consideração mais ampla, na qual estejam representados todos os implicados
os quais, no fim das contas, se identificam com toda a Humanidade presente e
futura.
Corrente Espanhola.
Os principais autores são: Diego Gracia [1989,
1990, 1991], Pedro Laín Entralgo [1961] e Xavier Zubiri [1944, 1963, 1982]. As
teses fundamentais desta corrente, tributária do neokantismo, do pensamento de
José Ortega y Gasset, da filosofia hermenêutica (Heidegger) e da fenomenologia
husserliana, são as seguintes:
1)
O conteúdo
formal da ética é trans-histórico ou transcendental; os conteúdos materiais da
moral, não. Por isso evoluem ao longo do tempo.
2)
O apriori, no
terreno da ética, identifica-se com duas variáveis: esboços e sistema de
referência de qualquer esboço possível. Os esboços são as máximas morais
transmitidas pela cultura -- como, por exemplo, os Dez Mandamentos --. O sistema de referência de qualquer esboço
possível é o imperativo categórico, que nos impele a agir respeitado a
realidade da pessoa como fim, não apenas como um meio.
3)
O esboço
moral será tanto melhor quanto mais se ajustar ao sistema de referência.
4)
O esboço
bioético ideal é constituído pelos princípios da Não-maleficência e da Justiça, que se relacionam diretamente com o princípio geral de que todos os
seres humanos devem ser tratados com igual consideração e respeito; por essa
razão, aliás, esses princípios não dependem diretamente da vontade das pessoas.
5)
Os
princípios bioéticos da Autonomia e
da Beneficência estão submetidos aos
princípios da Não-maleficência e da Justiça, como o bem particular está submetido ao
bem comum; eu posso e devo perseguir o meu bem particular, mas também devo, em
caso de conflito, antepor o bem comum ao próprio bem particular.
6)
Os quatro
princípios mencionados ordenam-se em dois níveis hierárquicos que podemos
chamar, respectivamente, de Nível 1 e
Nível 2. O primeiro, o Nível 1, é
constituído pelos princípios da Não-maleficência e da Justiça, e o Nível
2 pelos de Autonomia e Beneficência.
7)
O primeiro
é próprio da “ética de mínimos”, e o segundo da “ética de máximos”. Aos mínimos
morais podemos ser obrigados desde fora, enquanto que a ética de máximos
depende sempre do próprio sistema de valores, ou seja, do próprio ideal de
perfeição e felicidade que nos tenhamos proposto.
8)
O Nível
1 constitui a “ética do dever” e o 2.
Corrente Vaticana.
Está representada, fundamentalmente, pelo
pensamento filosófico de Karol Wojtyla, Papa João Paulo II, recentemente
falecido, um dos mais destacados representantes da chamada “Escola de Cracóvia”.
Alicerçado numa metafísica de inspiração neo-tomista o cardeal Wojtyla
assimilou parcialmente, na sua concepção da ética cristã, elementos
provenientes da fenomenologia e da axiologia de Max Scheler.
O pensamento ético de João Paulo II
encontra-se sistematizado na obra intitulada Max Scheler e a Ética Cristã
[Wojtyla, 1982]. Estas são as suas teses fundamentais:
1)
Os valores
éticos estão subordinados, nas fontes reveladas da ética cristã, à relação
religiosa da pessoa humana com Deus. Os valores morais objetivos estão em
relação real com Deus, como bem supremo na ordem ética, como perfeição suprema.
2)
Mediante o bem moral de seus próprios atos, o homem
entra em relação não com alguma abstrata “altíssima perfeição ética”, mas com o
Deus pessoal. O mal moral, conseqüentemente, nos afasta de Deus.
3)
No entanto, o objeto próprio dos atos do homem,
considerados do ponto de vista ético, não é o mesmo Deus, mas o valor moral de
tais atos; os valores éticos constituem, por si mesmos, os fins da ética e não
podem ser tratados como meios para outros fins.
4)
O caráter religioso da ética cristã estende-se
também ao problema do mérito. Há bens sobrenaturais que constituem o prêmio ao
bem moral; há, também, um mal que constitui a pena para o mal moral que realiza
o homem. Todo ato humano adquire, portanto, graças ao seu valor moral objetivo,
um sentido de mérito. Na medida em que o homem é causa eficiente dos valores
morais, nessa medida merece os bens ou os males na ordem sobrenatural.
5)
Posto que o prêmio sobrenatural aos atos bons é
incomensuravelmente superior a estes (entes apenas naturais), somente através
da graça podem assumir força meritória as ações moralmente boas.
Reflexões em face da realidade brasileira
As discussões em torno da bioética, como se
pode observar a partir da enumeração das instituições especializadas no estudo
do tema, bem como da descrição das correntes de pensamento que acaba de ser
feita, circunscrevem-se apenas a alguns países.
Há, na América Latina, hoje, uma carência muito grande de debates a
respeito. As causas para esse fenômeno são variadas.
Em primeiro lugar, pode ser mencionada a
tradição da moral contra-reformista, que influiu no surgimento das culturas
nacionais dos vários países latino-americanos e que era tributária de um modelo
de “moral social vertical”, definido exclusivamente pela hierarquia
eclesiástica.
Em segundo lugar, pode ser identificada a
mentalidade positivista nos terrenos jurídico e das ciências, profundamente
enraizada nas Faculdades de Direito e Medicina, que levava a dispensar qualquer
debate, no seio da sociedade, sobre questões éticas. Tudo seria resolvido pela
ciência do Direito ou pela Medicina, sem precisar enxergar uma ordem de valores
morais independentes do saber positivo.
Em terceiro lugar, pode ser mencionada a
orientação academicista (quando não puramente ideológica) dos programas de
filosofia existentes nas Universidades. No caso brasileiro, a moda da filosofia
analítica praticamente castrou a disciplina filosófica de qualquer interesse
pelos problemas sociais, sendo entendida unicamente como análise científica de
textos, sem nenhum vínculo com a realidade circundante.
Em quarto lugar, deve ser mencionada a
tradição centralista e paternalista dos Estados patrimoniais ibero-americanos,
que sempre enxergaram as pessoas a eles submetidas como eternos menores de
idade, que precisavam ser tutelados. Esse paternalismo tutelar, em países como
a Colômbia, passou a ser exercido pela Igreja Católica com apoio do Estado.
Em quinto lugar, no caso específico do
Brasil, há um fator de ordem cultural que age como causa de peso na manutenção
dessa passividade: desenvolveu-se na nossa cultura, a partir das reformas
pombalinas no século XVIII, a idéia de que ao Estado (ilustrado pela ciência
aplicada e presidido pelo déspota esclarecido), cabe a responsabilidade de
garantir a riqueza da Nação e de que ele é a instância que garante a ordem
social e política, bem como a moralidade dos cidadãos [cf. Paim, 1978]. À luz
desse cientificismo, que prepararia, entre nós, o ambiente para a adoção do
conceito de ditadura científica, notadamente no contexto da tradição
castilhista-getuliana, que foi a que terminou prevalecendo no país, ao Estado
competiria equacionar tecnicamente todos os problemas da sociedade. Daí a pensar
que o Estado seria a instância moralizadora, só há um passo. E foi o que, sem
dúvida, aconteceu no Brasil ao longo dos últimos sessenta anos. Passamos a
esperá-lo tudo do Estado, inclusive o equacionamento da moral social [cf.
Penna, 1988; Vélez, 1980].
No terreno específico do tema que nos
interessa, o Estado brasileiro entregou inicialmente (nas décadas de 70 e 80 do
século passado) às agremiações profissionais de médicos a delicada
responsabilidade de se pronunciarem em matéria de bioética e de fixar
parâmetros comportamentais a respeito. É evidente o risco decorrente, para a
sociedade, desse tipo de solução, pois os colegiados médicos brasileiros têm-se
caracterizado pelo seu espírito corporativo e pela excessiva complacência
diante das falhas dos seus membros. Felizmente os debates bioéticos ganharam
mais espaço no nosso país, ao longo dos anos 90 do século passado e no que vai
corrido deste século.
Muito caminho deveremos percorrer se
quisermos que a nossa sociedade tenha uma base sólida sobre a qual possam ser
formuladas as normas procedimentais que têm relação com a bioética. O primeiro
passo será, certamente, suscitar o debate no seio da sociedade, em relação à
“ética de mínimos” ou moral social, seja nas universidades, nas associações
profissionais, nos sindicatos, nas igrejas, nos partidos políticos, no
congresso nacional, etc. O segundo passo consistirá em discutir, à luz da moral
social básica, as questões relativas à preservação da vida humana, ou seja, a
problemática da bioética. Estas questões relacionam-se com a sociedade como um
todo e não podem ficar em mãos exclusivamente do Estado ou de uma corporação
profissional. O terceiro passo consiste na análise de problemas morais
concretos relativos à vida humana, por parte de médicos e demais profissionais
da saúde, ao nível das “comissões de ética” que já existem am alguns hospitais.
É digno de menção, neste campo particular, o trabalho desenvolvido, nas últimas
três décadas junto aos hospitais paulistas, pelo padre e pensador francês Hubert
Lepargneur, o autor que tem publicado mais títulos dedicados às questões de
bioética no Brasil.
No terreno da discussão de problemas
contemporâneos de bioética, é bastante ilustrativa a proposta metodológica
apresentada pelo Dr. Diego Gracia. Alicerçado no arcabouço conceitual que
mencionei atrás, ao me referir à corrente espanhola, o Dr. Gracia propõe quatro
passos metodológicos, conducentes a dar embasamento moral à tomada de uma
decisão médica, diante de um caso determinado. Esses passos são os seguintes:
a) o sistema de referência moral (ontológico), em que são levadas em
consideração duas premissas, uma ontológica (“o homem é pessoa e, enquanto tal,
possui dignidade e não preço”) e outra ética (“enquanto pessoas, todos os
homens são iguais e merecem igual consideração e respeito”); b) o esboço moral
(deontológico), que abarcaria duas preocupações: com os princípios da Não-maleficência e da Justiça e com os da Autonomia e da Beneficência; c) a experiência moral (teleológica), que
indaga pelas conseqüências objetivas e subjetivas e d) a verificação moral, que
abarca três passos: “contrastar o caso com a regra, tal como está expressa no esboço”, “ver se é possível justificar,
nesse caso, uma exceção
das diversas correntes de bioética atrás
expostas, certamente poderíamos tomar elementos valiosos, na tentativa em prol
de elaborarmos um pensamento próprio a respeito, que levasse em consideração as
características culturais do nosso povo. O marco epistemológico e ontológico
aberto por Miguel Reale, no terreno do Culturalismo, (de “ontognosiologia”
denomina o pensador paulista esse marco), certamente seria um pano de fundo
adequado para pensar a bioética, num contexto em que sejam levadas em
consideração as variáveis do imperativo categórico da moral, bem como as
questões relativas à preservação da vida, num contexto mais amplo de
reconciliação do homem com a natureza, e superando os excessos do
cientificismo. Esse marco foi assim colocado por Reale, na sua magna obra Experiência
e Cultura:
“Talvez não haja exagero na afirmação de que um dos
problemas fundamentais de nosso tempo consiste em elaborar uma teoria da
consciência que possa ser, concomitantemente, teoria da experiência, numa
tentativa de conquistar ou reconquistar mais viva correlação entre natureza e
cultura e, de maneira particular, entre ciências da natureza e ciências do
homem. Num mundo tão ameaçado, como o nosso, pelos riscos desencadeados pelo
progresso científico e tecnológico, quando as orgulhosas conquistas do saber
positivo contrastam violentamente com inesperados retornos a formas de
barbárie, compreende-se que se tenha tornado angustiante a busca de relações
mais concretas entre ciência e consciência, objetividade e experiência num
contexto global, ainda que se deva considerar superado qualquer propósito de descobrir
o mistério da vida e do cosmos. Essa questão prende-se, como é intuitivo, a
tormentosas perguntas sobre o significado da cultura no processo geral da
experiência humana, o que, desde logo, demonstra a inviabilidade de uma Teoria
do Conhecimento que se pretenda constituir unilateralmente, a partir de
qualquer modelo particular de ciência, por mais comprovados que sejam os seus
êxitos na explicação dos fatos que enuncia” [Reale, 1977: 13].
Na trilha da proposta aberta pelo pensador
paulista, Leonardo Prota tem estimulado o debate ao redor do tema da bioética,
primeiro no Curso de Especialização em Filosofia da Universidade Estadual de
Londrina, entre 1982 e 2002 [cf. Siqueira / Prota, 2000] e, a seguir, no Centro
de Estudos Jusfilosóficos Miguel Reale, fundado por ele na Faculdade de Direito
do Norte do Paraná, em Apucarana, em 2003. Esse seria um exemplo prático de
como pode ser estimulado o debate bioético no Brasil atual. Mas ainda faltaria
ser consolidado, entre nós, um Centro de referência internacional de pensamento
bioético, como os existentes na Europa ou nos Estados Unidos. Outra experiência
concreta de reflexão bioética é a realizada, no programa de doutorado em
filosofia da Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, pelo núcleo de estudos
zubirianos integrado por José Fernández Tejada e Antônio Tadeu Cheriff dos
Santos [cf. Tejada, 1998 e 2000; Santos, 2005].
Talvez estejam mais próximas da nossa visão de
mundo as correntes espanhola e vaticana. Mas a tentativa de elaborarmos uma
base bioética própria implicaria, em primeiro lugar, na existência de centros
de estudo que estivessem atualizados no tocante a esses debates. Seria
desejável, por exemplo, que não somente as universidades, mas também as
igrejas, os colegiados médicos e outras instituições ligadas à saúde,
participassem desses estudos.
Uma iniciativa louvável no nosso meio foi a
recente integração do Grupo de Advogados Católicos, do qual participa, no Rio
de Janeiro, o jurista Célio Borja. Muito tempo perdeu, entre nós, a Igreja Católica,
em anos recentes, com as vácuas discussões da famigerada “teologia da
libertação”, que foi elaborada a partir de conceitos tirados do marxismo, hoje
totalmente ultrapassados, além de ferirem frontalmente o caráter transcendente
da fé. O resultado dessa aventura foi o afastamento de setores significativos
da sociedade do seio da Igreja. O Papa João Paulo II, na sua primeira visita ao
Brasil, no início da década de 80 do século passado, não duvidou em enfatizar a
volta à evangelização como a tarefa básica da Igreja no Brasil, tarefa que
deveria estar encaminhada, segundo o Papa, à formação da consciência moral dos
fiéis.
Termino esta exposição lembrando uma outra
condição necessária, para que a nossa sociedade possa chegar à formulação da
moral social: a educação para a cidadania. Sem equacionarmos esse problema,
teremos muitos habitantes deste país alheios à participação cidadã.
Infelizmente, essa questão não foi ainda equacionada no Brasil, sendo o ensino
básico um funil que exclui boa parte das crianças que nele entram. Mas este
seria assunto para uma outra oportunidade.
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