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quinta-feira, 19 de setembro de 2019

MESSIANISMO POLÍTICO EM TEMPOS DE INCÊNDIOS FLORESTAIS


Viver para outro! O indivíduo não é quase nada, a sociedade é quase tudo. A vida social reduz-se a uma cooperação; o único fim do poder central é comandar e ajudar todos os homens a pensar em todos os homens, mesmo apesar deles. O homem não é homem senão na medida em que participa da comunidade. Mas esse panteísmo social não implica somente premissas indemonstradas e indemonstráveis; termina por se opor à sua finalidade suprema, por se opor ao bem dos homens” (Giovanni Papini, 1881-1956)

As palavras do grande Giovanni Papini, que o escritor italiano escreveu se referindo a Augusto Comte (1798-1857), projetam muita luz sobre o descalabro que é, nos dias que correm, o fenômeno do Messianismo Político. "Salvemos o Planeta, mesmo que à custa da liberdade dos indivíduos e da diversidade das instituições! Mesmo que à custa da pluralidade das Nações". Essa parece ser a palavra de ordem que pretende acabar com os incêndios florestais. Como o tema tem muito a render nos próximos dias ao ensejo da Assembléia Geral da ONU, quero lembrar, aqui, algumas coisas fundamentais sobre essa invenção francesa que é o Messianismo Político de Henri-Claude de Saint-Simon (1760-1825), mestre de Augusto Comte

J. L. Talmon fez uma completa caracterização do messianismo político na sua clássica obra intitulada Messianismo Político[1] . A influência do saint-simonismo, do ponto de vista político, teve ampla repercussão em autores tão variados quanto Augusto Comte, Michelet, Mazzini e o próprio Marx.

Um profundo sentimento apocalíptico empolgava ao conde Saint-Simon (1760-1825), que entrevia o nascimento de uma religião universal que impusesse a organização pacífica da sociedade. Este é um trecho que revela claramente tal sentimento: "Isto é o que dizemos sem dilação: os dias das soluções incompletas chegaram ao fim. É necessário dirigir-se resolutamente em direção do bem geral. É a verdade na sua totalidade o que deve ser salientado perante as circunstâncias atuais: é chegado o momento da crise. Essa crise profetizada por muitos dos textos do Antigo Testamento e para a qual, durante muitos anos, têm-se preparado as sociedades bíblicas, é a crise cuja existência acaba de demonstrar a instituição da Santa Aliança, união fundada nos mais generosos princípios de moralidade e religião. Esta é a crise que os judeus esperaram desde quando, expulsos do seu país, têm andado errantes, vítimas de perseguições, sem jamais renunciar à esperança de ver o dia em que os homens conviveriam como irmãos. Finalmente, essa crise tende diretamente ao estabelecimento de uma religião autenticamente universal e a impor a todos uma organização pacífica da sociedade".[2]

Saint-Simon encarava, dessa forma autenticamente messiânica, a crise sofrida pela sociedade francesa após a Revolução de 1789. Diante da desagregação ensejada pelo Jacobinismo e o Terror, o filósofo apresentava-se como peça-chave para a redenção, não somente da França, como de toda a Humanidade. A respeito, escreve Talmon[3]: "Estava convencido de ser um Napoleão da ciência e da indústria, pela promessa que lhe fez Carlos Magno, durante um sonho que teve quando esteve preso na cadeia de Luxemburgo em 1774, de que conseguiria tanta glória como filósofo, quanto o seu famoso antecessor tinha alcançado nas artes da guerra e do governo (...)".

O conde Saint-Simon assistiu passivamente à Revolução Francesa como observador arguto, em que pese o fato de ter sido eleito, em 1790, como presidente da Assembleia Eleitoral da sua comuna, o que motivou a renúncia ao título de nobreza. Anos atrás, o jovem nobre tinha participado como voluntário do exército que, sob o comando do general Lafayette, tinha ajudado os revolucionários americanos a proclamar a Independência das treze colônias, em 1776.

A Revolução Francesa não foi, no sentir do filósofo, uma révolution régéneratrice, mas um espetáculo de destruição, de inútil debate e de desordem social. Frisava a respeito dessa situação crítica: "É a falta de idéias gerais o que nos tem levado à ruína; não poderemos renascer autenticamente senão com a ajuda de idéias gerais; as velhas idéias caíram (...) e já não é possível rejuvenescê-las. Precisamos de idéias novas (...), um sistema, quer dizer, uma forma de opinião que seja, por natureza, cortante, absoluta e exclusiva."[4]

Ao passo que Saint-Simon desconhecia o valor de heróis aos protagonistas da Revolução Francesa, considerava, pelo contrário, que Napoleão Bonaparte encarnava esse valor, não pelo fato de ter sido militar ou conquistador, mas por ter se firmado como "o chefe científico da Humanidade (...) e a sua cabeça política,"[5] tendo legislado alicerçado em princípios racionais. Saint-Simon preocupou-se por achar um princípio total que permitisse a explicação racional do universo. Nessa busca, terminou professando uma visão determinística do homem, que Talmon[6] tipificou assim: "O homem é como um pequeno relógio dentro de outro maior, o universo, do qual recebe a energia para movimentar-se. Saint-Simon sonhava com deduzir, passo a passo, as leis determinantes do universo em ordem de sucessão (...) para, no final, chegar às leis da organização social mediante a reconstrução prévia da interdependência do orgânico e do inorgânico, dos corpos fixos e dos fluidos, da matéria e do movimento". Nesse contexto, a sociedade é concebida como "verdadeira máquina organizada" ou como um "organismo" que, ao longo dos tempos, criou os seus próprios órgãos para se adaptar às diferentes situações. A unidade inteligível da História não é nem o Estado, nem a Nação, mas a Sociedade organicamente considerada. As suas forças e processos não são criação deliberada de ninguém, mas frutos do organismo social.

O essencial dos processos sociais é representado, no entanto, pelos sistemas filosóficos que seriam, assim, o principal mecanismo de adaptação do organismo social às diferentes épocas. Como frisa Talmon,[7] todo sistema social é, assim, "a aplicação de um sistema filosófico. A religião, a política, a moral, a instrução pública, não são mais do que reflexo e aplicação de um sistema de idéias, uma Weltanschauung (...)". Dado o caráter orgânico da sociedade, a expressão dos sistemas de idéias corresponde, nas diferentes épocas históricas, a uma cabeça que pensa pelo todo social. Como frisa Bréhier,[8] Saint Simon "é aristocrata demais para poder acreditar que o povo, em cujo favor trabalha, seja capaz de fazer alguma coisa em prol de sua renovação". Assim, é importante identificar aquele ator social a quem corresponderia a tarefa de explicitar o novo sistema de idéias, que regeneraria a sociedade após a Revolução Francesa.

Na formulação do plano salvífico da sociedade por parte de uma elite, o pensamento saint-simoniano percorreu duas etapas: uma cientificista e outra religiosa. Essa dupla feição é típica, aliás, de um discípulo de Saint-Simon: Augusto Comte (1798-1857), cuja obra oferece essa dupla vertente, de cunho cientificista e religioso/dogmático.

Na primeira fase da sua obra, Saint-Simon considerava que a elite pensante que presidiria, como cabeça, o corpo social, devia ser integrada pelos industriais, que figuravam à frente do sistema produtivo. A sua gestão na sociedade não se revestiria do caráter coercitivo das épocas anteriores, pois prevaleceria não a força, mas a razão das coisas. Todo o trabalho a ser feito consistiria, portanto, em explicar a cada um o lugar que devia ocupar no corpo da sociedade industrial. Saint-Simon salientava que, no sistema industrial, "os homens desfrutariam, com essa ordem de coisas, do mais alto grau de liberdade compatível com o estado de sociedade".[9]

Em que pese o fato do caráter irreversível da sociedade industrial, Saint-Simon considerava que o seu advento deveria ser induzido por outra elite esclarecida: os savants positifs, a cuja frente ele próprio se colocava. O papel deles consistiria em preparar a grande revolução que seria a passagem da sociedade tradicional para a industrial. Saint-Simon previa "uma ação que, por sua natureza, é brusca e cortante, pois esta transformação tende a modificar subitamente os hábitos intelectuais assumidos pelo espírito público".[10]  Contudo, não fica confirmado esse caráter aparentemente violento da revolução, quando Saint-Simon entra a explicitar a forma em que deverão proceder os savants positifs na efetivação da mesma. O papel deles é eminentemente persuasivo, não violento, devendo limitar-se a mostrar aos reis, povos, aristocracias e governos a inevitabilidade do advento do sistema industrial, cujo caráter construtivo será também explicado. Assim advirá a sociedade industrial.

Apesar do papel de liderança atribuído por Saint-Simon aos savants positifs, aos poucos foi reconhecendo, na segunda fase da sua obra, a necessidade de alicerçar o comportamento coletivo harmônico numa base mais ampla do que a pura ciência, a fim de abranger os sentimentos humanos, que jogam um papel tão importante na conduta dos homens. Saint-Simon procurou, assim, forças mais profundas numa religião vital. Achou que o fator religioso desempenhava um papel de primeira ordem na organização social. A propósito, escrevia o filósofo: "A religião tem servido e servirá sempre como base da organização social (...). A humanidade tem atravessado crises científicas, morais e políticas, sempre que a ideologia religiosa tem experimentado algum câmbio".[11] E dedicou a última parte da sua vida à procura desse embasamento religioso para a sociedade industrial.

Cinco características básicas podemos assinalar para a religião saint-simoniana, que o filósofo denominou de “cristianismo geral e definitivo”:

A – Ela deve dar aos homens a Weltanschauung estreitamente tecida, “que ofereça, ao mesmo tempo, um quadro do universo e um código de vida criado para pôr o crente no lugar que lhe corresponde no seio da ordem universal”.[12]

B – Essa religião é indissociável do fator político e social, porquanto é o alicerce dele. Portanto, não cabe divisão alguma entre poder espiritual e temporal, entre Igreja e Estado.

C – A vivência religiosa, ao fazer-nos sentir dependentes de alguma realidade objetiva, exterior a nós mesmos, impede a dominação egoísta de uns pelos outros, bem como os conflitos de interesses.

D – Essa religião vital será o cristianismo revitalizado, mediante a incorporação de todos os avanços científicos e a sua identificação total com o impulso construtivo da classe produtora, substituindo as ideias metafísicas e as esperanças transcendentes por ideias sociais e assumindo o encargo de “melhorar prontamente a situação moral e física da classe mais numerosa (...) e evitar que os ricos e poderosos continuem tiranizando os pobres”.[13]

E – O novo cristianismo será vivido por uma nova Igreja, que deve tomar a iniciativa a fim de que o sistema industrial dê seus frutos, mediante a mobilização dos cientistas, dos artistas e dos industriais, para que elaborem planos que desenvolvam ao máximo a inteligência e a produtividade. Cabe, portanto, à Igreja realizar pacificamente a transição ao regime industrial, dissuadindo os pobres do emprego da violência contra os ricos ou o governo e, paralelamente, mediante a persuasão aos ricos, aos artistas, aos sábios e aos industriais de que “os seus interesses são, em essência, os mesmos que os da massa do povo; de que pertencem à classe dos trabalhadores, ao mesmo tempo que são os seus chefes naturais”.[14]

Saint-Simon profetizava, assim, sobre o advento do “cristianismo geral e definitivo”: “O povo de Deus, o povo que recebeu revelações anteriores à vinda de Cristo; o povo mais universalmente estendido sobre a superfície da terra, soube sempre que a doutrina cristã fundada pelos padres da Igreja era incompleta. Tem profetizado, sempre, o advento de uma grande época, a que tem dado o nome de Reino do Messias; uma época em que a doutrina religiosa aparecerá em toda a generalidade de que é suscetível e regulará igualmente as ações do poder temporal e do poder espiritual; então toda a humanidade terá uma só religião e uma só organização (...). A imaginação dos poetas situou a idade de ouro no berço da espécie humana, entre a ignorância e a rusticidade dos primeiros tempos; é a idade de ferro, melhor, que deve relegar-se a esses dias. A idade de ouro da humanidade não está atrás de nós, mas diante, na perfeição da ordem social; nossos pais não a conheceram, mas os nossos filhos chegarão a ela algum dia; compete a nós abrirmos o caminho”.[15]

Depois da morte de Saint-Simon, em 1825, os seus discípulos prosseguiram na instauração do “nouveau christianisme”. Talmon frisa que os integrantes da Igreja saint-simoniana “consideravam-se uma comunidade de apóstolos, uma reprodução daquela reduzida confraternidade que, uns mil e oitocentos anos antes, formou-se em Jerusalém, com uma missão análoga e um futuro semelhante ante eles (...)”.[16] Os discípulos estavam plenamente convencidos do caráter messiânico de Saint-Simon. Eis as palavras que pronunciou o principal deles, o matemático e banqueiro francês Olinde Rodrigues (1795-1851), logo após o enterro do mestre: “(...) O mundo tem esperado um salvador (...):Saint-Simon apareceu. Orfeu e Numa organizaram os trabalhos materiais e Jesus Cristo o esforço espiritual. Saint-Simon organizou a empresa religiosa e, portanto, tem dado forma a uma síntese de Jesus e Moisés. No futuro, Moisés será a cabeça do culto, Jesus Cristo a do dogma e Saint-Simon a da religião, quer dizer, o Papa”.[17]

O “Nouveau Christianisme” apregoado por Saint-Simon deita raízes na “Religião Civil”, que o filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) propôs na última parte da sua obra Do contrato social (1762).[18] Partindo do fato da desigualdade humana criada pela sociedade, que Rousseau explica no seu livro A origem da desigualdade entre os homens (1753),[19] o filósofo destaca que só no surgimento de uma Religião Civil que unifique as mentes e as vontades ao redor do Estado, poderá ser conseguida a ordem social e política. Como o próprio Rousseau reconhece, ele é inspirado, em parte, pela proposta do poder único e indivisível em mãos do Estado, que Thomas Hobbes (1588-1679) tinha formulado um século atrás no Leviatã (1651),[20] para superar o estado de “guerra permanente” ou de insegurança coletiva.

Rousseau explica assim a natureza da “Religião Civil” proposta: “Existe, pois, uma profissão de fé puramente civil, cujos artigos o soberano está incumbido de fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade, sem os quais seria impossível (alguém) se tornar bom cidadão o sujeito fiel (...)”. E, um pouco mais adiante, o filósofo caracteriza assim o cerne dogmático da nova religião: “Os dogmas da religião civil devem ser simples, em pequeno número, enunciados com precisão sem explicações nem comentários: a existência da divindade poderosa, inteligente, benfeitora, previdente e providente; a vida futura; a felicidade dos justos; a punição dos malvados; a santidade do contrato social e das leis; eis os dogmas positivos. Quanto aos dogmas negativos, eu os reduzo a um só, a intolerância: ela pertence aos cultos que temos excluído”.[21]

A utilidade da “Religião Civil”, assim entendida, é muito grande, segundo Rousseau. Eis as suas principais aplicações, visando à estabilidade do poder e à unidade social: sem que o soberano possa obrigar ninguém a crer nos sentimentos de sociabilidade apregoados pela nova religião, pode, contudo, “(...) banir do Estado quem não  acreditar neles; pode bani-lo, não como ímpio, mas como antissocial, como incapaz de amar sinceramente as leis e a justiça, e de sacrificar a sua vida à necessidade, na prossecução do seu dever. Se alguém, depois de ter reconhecido publicamente esses mesmos dogmas, se conduz como se não acreditasse neles, seja punido com a morte; ele terá cometido o maior dos crimes, terá mentido perante as leis”.[22] [Rousseau, 1966: 179].

A pretensão rousseauniana e saint-simoniana de buscar a unidade da sociedade sob a direção de um poder total, espiritual e temporal, é o nascedouro do totalitarismo hodierno. Por paradoxal que possa parecer – como frisou Talmon na sua obra As origens da democracia totalitária,[23] o totalitarismo ínsito no messianismo político surgiu, não porque a filosofia da Religião Civil “(...) rejeitasse os valores do século XVIII do individualismo liberal, mas porque, desde o começo, mantinha perante eles uma atitude perfeccionista demais. Fez do homem um ponto absoluto de referência. O homem tinha de ser libertado, mas não só das suas limitações históricas. Todas as tradições existentes, as instituições estabelecidas e as ordenações sociais, tinham de ser derrubadas e refeitas, com o único propósito de garantir ao homem a totalidade dos seus direitos e liberdades. Era necessário libertá-lo da sua dependência (...)”. Esse esforço de libertação à la Rousseau implicou historicamente duas coisas: em primeiro lugar, a declaração de um estado de guerra provisório contra tudo aquilo que impedisse a libertação humana, e em segundo lugar, “(...) um esforço por reeducar as massas, até que houvesse homens capazes de querer livremente e com plena vontade o seu verdadeiro querer”.[24]

Esse estado de guerra e esse esforço educador (cuja parte essencial seria a difusão da nova religião) justificariam a utilização da compulsão por parte de uma elite, que suspenderia a liberdade e manteria o estado de guerra, enquanto houvesse alguma oposição e a sociedade não fosse plenamente unificada. O Jacobinismo foi, na França, a primeira manifestação dessa violência solapada no projeto libertador do filósofo de Genebra. A evolução desse projeto de dominação total é o totalitarismo do século XX, cuja única meta consiste, como frisa Hannah Arendt, na “total dominação do homem” e cujos pressupostos são a existência de uma única autoridade, um único estilo de vida, uma ideologia em todos os países e em todos os povos do mundo. Assim, o expansionismo totalitário é a consequência imediata da dimensão universalista e avassaladora da religião salvadora, que leva a elaborar uma “ideologia total” incompatível com uma concepção matizada e não dogmática da sociedade, segundo anota Martin Seliger.[25] No fundo de todo esse processo “libertador” subsiste uma concepção filosófica determinística e materialista do homem. Claude Polin escreve a respeito que “(...) a questão última que suscita o fato totalitário é a das causas dessa alienação, a incapacidade do homem para discernir mesmo em si próprio as provas de sua espiritualidade”. [26]

O mundo português não permaneceu alheio ao influxo do messianismo político de cunho rousseauniano e saint-simoniano. A geração intelectual de Teófilo Braga (1843-1924), Oliveira Martins (1854-1894), Antero de Quental (184201891), Eça de Queirós (1845-1900), etc., foi fortemente influenciada por essa tendência. Baste-nos mencionar, por exemplo, o ensaio de Antero intitulado: Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX.[27]

Esse influxo da Religião Civil como meio para garantir a estabilidade política, vingou ao longo da América Latina no decorrer do século XIX, deitando os alicerces culturais para a adoção, no século XX, de novas formas de messianismo identificadas com as ideologias totalitárias, ou próximas delas. Nos países em que se desenvolveu a tradição positivista, como no México, no Brasil e no Chile, o messianismo político percorreu o caminho das “ditaduras científicas”, com todo um embasamento religioso-dogmático; tal é o caso, por exemplo, do Castilhismo gaúcho ou do Porfiriato mexicano. Nos restantes países hispano-americanos vingou uma mistura entre a tendência rousseauniana à religião civil e a secular tendência do Estado patrimonial espanhol a se alicerçar na tradição religiosa católica. Só assim podemos explicar o fato de um liberal de orientação rousseauniana como o Libertador Simón Bolívar (1783-1830) ter preferido substituir o utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832) pelo apoio do clero e das tradições religiosas, como fundamento da estabilidade política.[28]

A rápida difusão, ao longo das últimas décadas, da teologia da libertação, que é uma ideologia totalizante visando à redenção do homem latino-americano das cadeias da dependência, mediante a implantação da ditadura do proletariado, é uma prova da tremenda força que ainda tem entre nós o messianismo político. Não é difícil explicar a dimensão messiânica dessa tendência libertadora que conta, aliás, com os seus apóstolos e os seus santos. O seguinte trecho do escritor colombiano Plinio Apuleyo Mendoza é bem expressivo a respeito: “(...). Mais do que na Europa, talvez, as Universidades são fábricas de sonhos, ghettos da inconformidade, na América Latina. Quando saímos daí, acordamos para a realidade de um mundo que concede poucas opções. Alguns conservam essa intransigência e essa ingenuidade vertical da adolescência, esse rigor, esse fervor: Camilo (Torres), o Che Guevara, por exemplo. Incapazes de ceder no plano dos princípios, transladam à política o seu sentido ético, sublimam-no na vocação revolucionária e morrem quase sempre, são sem remédio aniquilados. Representam a nova versão de Cristo e seus apóstolos (...)”.[29]

Do messianismo saint-simoniano poder-se-ia afirmar o que Giovanni Papini (1881-1956) escreveu acerca da doutrina regeneradora de Augusto Comte, inspirada, aliás, nas ideias de seu mestre Saint Simon: “Viver para outro! O indivíduo não é quase nada, a sociedade é quase tudo. A vida social reduz-se a uma cooperação; o único fim do poder central é comandar e ajudar todos os homens a pensar em todos os homens, mesmo apesar deles. O homem não é homem senão na medida em que participa da comunidade. Mas esse panteísmo social não implica somente premissas indemonstradas e indemonstráveis; termina por se opor à sua finalidade suprema, por se opor ao bem dos homens”.[30]

BIBLIOGRAFIA
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[1] TALMON, J. L. Mesianismo político, la etapa romántica. (Tradução ao espanhol de Antonio Gobernado). México: Aguilar, 1969.
[2] Apud TALMON, J. L. Mesianismo político, la etapa romántica. Ob. Cit., pg. 21.
[3] TALMON, J. L. Mesianismo político, la etapa romántica. Ob. Cit., p. 22-23.
[4] Apud TALMON, J. L. Mesianismo político, la etapa romántica. Ob. Cit., p. 26.
[5] Apud TALMON, J. L. Mesianismo político. Ob. Cit., p. 26.
[6] TALMON, J. L. Mesianismo político. Ob. Cit., p. 27.
[7] TALMON, J. L. Mesianismo político. Ob. Cit., p. 30.
[8] BRÉHIER, Émile. Historia de la filosofía. (Tradução ao espanhol de D. Náñez). 3ª edição. Buenos Aires: Sudamericana, 1948, 2º volume, p. 712.
[9] Apud TALMON, J. L. Mesianismo político, ob. Cit., p. 41.
[10] Apud TALMON, J. L. Mesianismo político. Ob. Cit., p. 43.
[11] Cit. Por TALMON, J. L. Mesianismo político. Ob. cit., p. 50.
[12] TALMON, Mesianismo político. Ob. Cit., p. 53.
[13] Cit. Por TALMON, J. L. Mesianismo político. Ob. Cit., ibid.
[14] Cit. Por TALMON, J. L. Mesianismo político, Ob. Cit., ibid.
[15] Cit. Por TALMON, J. L. Mesianismo político. Ob. Cit., p. 53-54.
[16] Cit. Por TALMON, J. L. Mesianismo político. Ob. Cit. P. 55
[17] Cit. Por TALMON, J. L. Mesianismo político. Ob. Cit., ibid.
[18] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. (Chronologie et Introduction par Pierre Burgelin). Paris: Garnier Flammarion, 1966, cf. ch. VIII “De la religion civile”, p. 170-180.
[19] ROUSSEAU, Jean-Jacques. El origen de la desigualdad entre los hombres. (Tradução espanhola de Coloma Lleal), México: Grijalbo, 1972.
[20] HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. (Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). São Paulo: Abril Cultural, 1973, 1ª edição, coleção Os Pensadores, vol. XIV.
[21] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. Ob. Cit., p. 179.
[22] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. Ob. Cit., p. 179.
[23] TALMON, J. L. Los Orígenes de la democracia totalitária. (Tradução espanhola de Manuel Cardenal Iracheta). México: Aguilar, 1956, p. 272.
[24] Cit. Por TALMON, J. L. Los Orígenes de la democracia totalitaria. Ob. Cit., p. 173.
[25] SELIGER, Martin. Ideology and Politics.  London:  George Allen & Unwin, 1976, p. 144.
[26] POLIN, Claude. L´Esprit totalitaire. Paris: Sirey, 1977, p. 361.
[27] QUENTAL, Antero de. Prosas. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1923-1931, vol. III.
[28] Cf. ARCINIEGAS, Germán. Latin America, a Cultural History. (Translated from Spanish by Joseph Mac Lean). New York: Alfred A. Knopf, 1968, p. 381 seg. Cfr. Também: MORALES Benítez, Otto.  Muchedumbres y banderas. 2ª ed. Bogotá: Plaza y Janés, 1980, p. 84 segs. SÁNCHEZ Vásquez, Adolfo. Rousseau em México. México: Grijalbo, 1969.



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