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quinta-feira, 26 de julho de 2018

TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO, MARXISMO E MESSIANISMO POLÍTICO



A contribuição do Dr. Fernando Flora á análise crítica do lulopetismo na obra: O sujeito oculto (São Paulo: Editora Arvore da Vida, 2015, 96 p.) que tive a honra de prefaciar, é de capital importância nos tempos de messianismo político que vivemos. Lembremos que o PT teve dois pais: o movimento sindical e a “esquerdigreja”, denominação dada, com muito acerto, pelo embaixador Meira Penna, a essa vigarice que tomou conta da Igreja Católica no Brasil ao longo das décadas de 70 e 80 do século passado, denominada de “teologia da libertação”, uma aproximação entre cristianismo e marxismo, da qual saíram chamuscados, certamente, os católicos. Os fiéis viram transformadas as missas em assembleias sindicais. E a fé foi para o brejo nesse tumulto de ideias que os marxistas habilmente introduziram nas pregações dos padres ligados à tal teologia.

Ao ensejo da formulação de uma "Teologia dos Pobres" ou "Teologia da Libertação", surgiu na América Latina, uma "Filosofia da Libertação", que se singulariza porque parte, à maneira medieval, dos pressupostos básicos do discurso teológico, para arrazoar ao redor deles. Configura-se, assim, o tradicional modelo da Philosophia Ancilla Theologiae, que caracterizou às grandes sínteses do século XIII, mas que acompanhou, também, à filosofia pensada ao ensejo da Segunda Escolástica. Diríamos que não houve mudança de paradigma: o hodierno discurso filosófico que se pretende mais latino-americano, o Libertador, é fiel à velha tradição de filosofar à sombra da teologia.

O tema acerca do qual versa a Filosofia da Libertação também não é novo: a questão da pobreza. Essa problemática, de caráter eminentemente moral, vem sendo objeto de reflexão desde o século XIX. Os doutrinários franceses, notadamente Guizot, debruçaram-se sobre ela, bem como a geração posterior, cujo mais importante representante na França seria Tocqueville [cf. Vélez, 1998 e 1999]. Mas não somente seria discutida a mencionada problemática do ângulo liberal. Também aprofundaram nela autores de outras tendências como Saint-Simon e Augusto Comte. Na França do final do século XIX aparece uma importante contribuição metodológica com a escola de Le Play: a problemática da pobreza precisa ser discutida à luz de uma delimitação clara da mesma, utilizando o método monográfico. Essa será a perspectiva que passará a influenciar nos autores brasileiros como Sílvio Romero e os demais teorizadores do chamado "culturalismo sociológico". Na Inglaterra, à época de Tocqueville, a questão ganhou grande relevo com Stuart Mill, os Fabianos e os primeiros ideólogos do Labour Party. A reflexão de Marx insere-se no primeiro ciclo da meditação sobre a problemática, mais ou menos na mesma época em que Stuart Mill desenvolveu as suas análises.

Anotemos que a atualidade da discussão sobre a pobreza decorre da sua situação no terreno da moral: sempre será válido meditar sobre as questões relacionadas ao ideal da justiça, como expressão da nova realidade ontológica destacada pela cultura judaico-cristã: todos somos filhos de Deus, criados à sua imagem e semelhança. Se este é um princípio válido, por que as enormes disparidades sociais? Mais ainda: se o Cristianismo apregoa como mandamento fundamental o amor ao próximo, que sentido têm as injustiças sociais? A reflexão sobre a pobreza e o equacionamento desse problema possuem, portanto, grande apelo moral. Situa-se nesse contexto o valor do chamado décimo-primeiro mandamento, que teria sido explicitado por Marx: Não explorarás o trabalho alheio.

Já desde os primórdios da discussão, apareceram claramente delineadas duas alternativas teóricas: de um lado, a daqueles que colocavam a questão em termos de uma multiplicidade de variáveis, sendo a econômica uma delas, mas sem pretender reduzir as outras a ela (trata-se de uma alternativa multidisciplinar e aberta) e, de outro lado, a alternativa dos autores que absolutizavam a variável econômica, pretendendo reduzir toda a análise da pobreza a essa perspectiva. Um exemplo da primeira alternativa seria a forma em que os doutrinários e Tocqueville abordaram a questão. Um exemplo da segunda alternativa seria a forma em que Marx formulou o seu materialismo histórico, para, a partir de uma perspectiva em que as relações de produção eram consideradas como a base de todo o edifício social, passar a discutir e equacionar o problema da pobreza em termos estritamente econômicos.

Interessante é destacar que, ao ensejo da primeira forma de abordagem, surge, como resposta, um modelo de sociedade plural, em que são reconhecidas várias ordens de interesses, sem que se pressuponha que, para resolver a questão da pobreza, seja necessário reduzir a sociedade a uma única ordem de reivindicações. O modelo aqui postulado é o liberal. Paralelamente, ao ensejo da segunda forma de abordagem, surge uma sociedade entrópica, em que todos os interesses devem ser reduzidos (à maneira rousseauniana) a uma única ordem: a do bem público, com explícita eliminação dos interesses particulares.

Decorrente do centripetismo desenvolvido nas sociedades ibero-americanas pelo Estado Patrimonial, a abordagem da problemática da pobreza não percorreu, nas nossas culturas latino-americanas, o caminho liberal do reconhecimento de múltiplas variáveis, entre as que se inseriria a econômica. Paralelamente, a solução apontada não poderia ser a liberal, que apresentasse um modelo de sociedade plural, organizada em diversas ordens de interesses. A solução viria, de forma vertical, a partir da identificação de uma ordem única de interesses, os correspondentes a um vaporoso bem público, que historicamente correspondeu, nas nossas sociedades, à defesa dos interesses da nomenklatura manipulada pelos donos do poder. Solução de tipo rousseauniano, que foi explicitamente cultuada pelo Libertador Simon Bolívar e que ainda hoje emerge travestida de diferentes maneiras, sob as roupagens populistas do peronismo, do varguismo, do lulismo, do castrismo, do chavismo, do sandinismo, etc.

Inserida no arquétipo rousseauniano, a solução à problemática da pobreza não poderia deixar de ser apresentada nos moldes do messianismo político. Porque ele é da essência do pensamento político do filósofo de Genebra. A forma de equilibrar uma sociedade injusta, para Rousseau, seria muito simples: consistiria na identificação de todos os cidadãos com a vontade geral, que seria a expressão do predomínio, em todos os espíritos, do bem público. Seriam os puros os chamados a enquadrar a sociedade nesse marco de ferro. Esses puros, aliás, desenvolveriam as funções messiânicas de salvadores da pátria. Ora, a Teologia da Libertação emerge no contexto latino-americano, amarrada ao modelo do messianismo político moderno. Mas convém destacar um aspecto importante: como a versão mais completa de messianismo político que se consolidou no século XX foi a do marxismo-leninismo, a Teologia da Libertação passou a ser cooptada por esse viés teórico, que terminaria dando ao discurso libertador ampla conotação totalitária.

Em decorrência dessa particularidade, serão analisados, aqui, os singulares fenômenos do Messianismo Político e da Teologia da Libertação, a partir dos quais se formula a Filosofia Libertadora, sem que pretendamos, nestas páginas, abordar este último item, que mereceria abordagem independente.

Messianismo Político e Teologia da Libertação

J. L. Talmon fez uma completa caracterização do messianismo político na sua clássica obra intitulada Messianismo Político [Talmon, 1969]. a influência do saint-simonismo, do ponto de vista político, teve ampla repercussão em autores tão variados quanto Augusto Comte, Michelet, Mazzini e o próprio Marx.

Um profundo sentimento apocalíptico empolgava ao conde Saint-Simon (1760-1825), que entrevia o nascimento de uma religião universal que impusesse a organização pacífica da sociedade. Este é um trecho que revela claramente tal sentimento: "Isto é o que dizemos sem dilação: os dias das soluções incompletas chegaram ao fim. É necessário dirigir-se resolutamente em direção do bem geral. É a verdade na sua totalidade o que deve ser salientado perante as circunstâncias atuais: é chegado o momento da crise. Essa crise profetizada por muitos dos textos do Antigo Testamento e para a qual, durante muitos anos, têm-se preparado as sociedades bíblicas, é a crise cuja existência acaba de demonstrar a instituição da Santa Aliança, união fundada nos mais generosos princípios de moralidade e religião. Esta é a crise que os judeus esperaram desde quando, expulsos do seu país, têm andado errantes, vítimas de perseguições, sem jamais renunciar à esperança de ver o dia em que os homens conviveriam como irmãos. Finalmente, essa crise tende diretamente ao estabelecimento de uma religião autenticamente universal e a impor a todos uma organização pacífica da sociedade" [apud Talmon, 1969: 21].

Saint-Simon encarava, dessa forma autenticamente messiânica, a crise sofrida pela sociedade francesa após a Revolução de 1789. Diante da desagregação ensejada pelo Jacobinismo e o Terror, o filósofo apresentava-se como peça-chave para a redenção, não somente da França como de toda a Humanidade. A respeito, escreve Talmon [1969: 22-23]: "Estava convencido de ser um Napoleão da ciência e da indústria, pela promessa que lhe fez Carlos Magno, durante um sonho que teve quando esteve preso na cadeia de Luxemburgo em 1774, de que conseguiria tanta glória como filósofo, quanto o seu famoso antecessor tinha alcançado nas artes da guerra e do governo (...)".

O conde Saint-Simon assistiu passivamente à Revolução Francesa como observador arguto, em que pese o fato de ter sido eleito, em 1790, como presidente da Assembléia Eleitoral da sua comuna, o que motivou a renúncia ao título de nobreza. Anos atrás, o jovem nobre tinha participado como voluntário do exército que, sob o comando do general Lafayette, tinha ajudado os revolucionários americanos a proclamar a Independência das treze colônias, em 1776.

A Revolução Francesa não foi, no sentir do filósofo, uma révolution régéneratrice, mas um espetáculo de destruição, de inútil debate e de desordem social. Frisava a respeito dessa situação crítica: "É a falta de idéias gerais o que nos tem levado à ruína; não poderemos renascer autenticamente senão com a ajuda de idéias gerais; as velhas idéias caíram (...) e já não é possível rejuvenescê-las. Precisamos de idéias novas (...), um sistema, quer dizer, uma forma de opinião que seja, por natureza, cortante, absoluta e exclusiva" [apud Talmon, 1969: 26].

Ao passo que Saint-Simon desconhecia o valor de heróis aos protagonistas da Revolução Francesa, considerava, pelo contrário, que Napoleão Bonaparte encarnava esse valor, não pelo fato de ter sido militar ou conquistador, mas por ter se firmado como "o chefe científico da Humanidade (...) e a sua cabeça política" [apud Talmon, 1969: 26], tendo legislado alicerçado em princípios racionais.

Saint-Simon preocupou-se por achar um princípio total que permitisse a explicação racional do universo. Nessa busca, terminou professando uma visão determinística do homem, que Talmon [1969: 27] tipificou assim: "O homem é como um pequeno relógio dentro de outro maior, o universo, do qual recebe a energia para movimentar-se. Saint-Simon sonhava com deduzir passo a passo as leis determinantes do universo em ordem de sucessão (...) para, no final, chegar às leis da organização social mediante a reconstrução prévia da inter-dependência do orgânico e do inorgânico, dos corpos fixos e dos fluidos, da matéria e do movimento". Nesse contexto, a sociedade é concebida como "verdadeira máquina organizada" ou como um "organismo" que, ao longo dos tempos, criou os seus próprios órgãos para se adaptar às diferentes situações. A unidade inteligível da História não é nem o Estado, nem a Nação, mas a Sociedade orgânicamente considerada. As suas forças e processos não são criação deliberada de ninguém, mas frutos do organismo social.

O essencial dos processos sociais é representado, no entanto, pelos sistemas filosóficos que seriam, assim, o principal mecanismo de adaptação do organismo social às diferentes épocas. Como frisa Talmon [1969: 30], todo sistema social é, assim "a aplicação de um sistema filosófico. A religião, a política, a moral, a instrução pública, não são mais do que reflexo e aplicação de um sistema de idéias, uma Weltanschauung (...)".

Dado o caráter orgânico da sociedade, a expressão dos sistemas de idéias corresponde, nas diferentes épocas históricas, a uma cabeça que pensa pelo todo social. Como frisa Bréhier [1948: II, 712], Saint Simon "é aristocrata demais para poder acreditar que o povo, em cujo favor trabalha, seja capaz de fazer alguma coisa em prol de sua renovação". Assim, é importante identificar aquele ator social a quem corresponderia a tarefa de explicitar o novo sistema de idéias, que regeneraria a sociedade após a Revolução Francesa.

Na formulação do plano salvífico da sociedade por parte de uma elite, o pensamento saint-simoniano percorreu duas etapas: uma cientificista e outra religiosa. Essa dupla feição é típica, aliás, de um discípulo de Saint-Simon: Augusto Comte, cuja obra oferece essa dupla vertente, de cunho cientificista e religioso/dogmático.

Na primeira fase da sua obra, Saint-Simon considerava que a elite pensante que presidiria como cabeça do corpo social, devia ser integrada pelos industriais, que figuravam à frente do sistema produtivo. A sua gestão na sociedade não se revestiria do caráter coercitivo das épocas anteriores, pois prevaleceria não a força, mas a razão das coisas. Todo o trabalho a ser feito consistiria, portanto, em explicar a cada um o lugar que devia ocupar no corpo da sociedade industrial. Saint-Simon salientava que, no sistema industrial, "os homens desfrutariam, com essa ordem de coisas, do mais alto grau de liberdade compatível com o estado de sociedade" [apud Talmon, 1969: 41].

Em que pese o fato do caráter irreversível da sociedade industrial, Saint-Simon considerava que o seu advento devia ser induzido por outra elite esclarecida: os savants positifs, a cuja frente ele próprio se colocava. O papel deles consistiria em preparar a grande revolução que seria a passagem da sociedade tradicional para a industrial. Saint-Simon previa "uma ação que, por sua natureza, é brusca e cortante, pois esta transformação tende a modificar subitamente os hábitos intelectuais assumidos pelo espírito público" [apud Talmon, 1969: 43]. Contudo, não fica confirmado esse caráter aparentemente violento da revolução, quando Saint-Simon entra a explicitar a forma em que deverão proceder os savants positifs na efetivação da mesma. O papel deles é eminentemente persuasivo, não violento, devendo limitar-se a mostrar aos reis, povos, aristocracias e governos a inevitabilidade do advento do sistema industrial, cujo caráter construtivo será também explicado. Assim advirá a sociedade industrial.

Apesar do papel de liderança atribuído por Saint-Simon aos savants positifs, aos poucos foi reconhecendo, na segunda fase da sua obra, a necessidade de alicerçar o comportamento coletivo harmônico numa base mais ampla do que a pura ciência, a fim de abranger os sentimentos humanos, que jogam um papel tão importante na conduta dos homens. Saint-Simon procurou, assim, forças mais profundas numa religião vital. Achou que o fator religioso desempenhava um papel de primeira ordem na organização social. A propósito, escrevia o filósofo: "A religião tem servido e servirá sempre como base da organização social (...). A humanidade tem atravessado crises científicas, morais e políticas, sempre que a ideologia religiosa tem experimentado algum câmbio" [cit. por Talmon, 1969: 50]. E dedicou a última parte da sua vida à procura desse embasamento religioso para a sociedade industrial.


Teologia da Libertação e tradição despótica

A Teologia da Libertação, enquanto discurso teológico que pretende garantir a inserção da Igreja no mundo subdesenvolvido, ganhou muita atualidade no Brasil contemporâneo, na medida em que inspira a ação político-pastoral dos setores “progressistas”, identificados com as comunidades eclesiais de base. Embora existam interpretações que, de um lado, tentam desligar a Teologia da Libertação de qualquer identidade com o marxismo e analisam-na no contexto do discurso eclesiástico, reivindicando o seu caráter soteriológico [cf. Romano, 1979], ou que, de outro lado, embora reconhecendo alguma inspiração marxista, consideram ser possível a sua permanência no seio da teologia católica, mediante alguns ajustes que limassem as arestas ideológicas [cf. Lepargneur, 1979: 122], acho que a parcela mais agressiva e representativa dos teólogos libertadores aderiu explicitamente ao marxismo, sendo, assim, uma versão atualizada do Messianismo Político. O padre e poeta nicaragüense Ernesto Cardenal expressou, com clareza, essa adesão, em entrevista concedida em 1979 à revista soviética América Latina, ao relatar a sua atividade guerrilheira na comunidade de monges e camponeses, no arquipélago de Solentiname, no lago da Nicarágua: "Começamos a estudar o marxismo junto com os camponeses que estavam mais integrados conosco, especialmente com os jovens. E fomo-nos identificando com o movimento guerrilheiro da Nicarágua, com a Frente Sandinista de Libertação Nacional. E fomos descobrindo que as idéias cristãos originárias eram, em sua essência, revolucionárias, e que colocavam o problema da luta de classes, que o mundo estava dividido entre exploradores e explorados e que os explorados triunfariam sobre os exploradores e seria estabelecida na terra uma sociedade justa. E nos identificamos, então, com a luta do Movimento de Libertação da Nicarágua, e chegamos já praticamente a pertencer a esse movimento" [Cardenal, 1979: 178].

O exemplo de radicalização da comunidade de Solentiname expressa perfeitamente o fenômeno acontecido, no decorrer das décadas de 60 e 70, ao longo da América Latina: não foram as massas de cristãos as que, em primeiro lugar, fizeram a opção marxista. Foram os sacerdotes. E eles levaram à radicalização, posteriormente, as suas comunidades, ensejando, assim, o surgimento de uma nova forma de clericalismo. E na radicalização dos sacerdotes pesou muito a influência da revolução cubana e da mística revolucionária por ela difundida.

Para o padre Cardenal não existe dúvida de que o cristianismo é totalmente compatível com o marxismo, e de que a expressão dessa unidade é a Teologia da Libertação: "Nesses anos (da década de 70) -- frisa -- surgiu na América Latina o movimento chamado de Teologia da Libertação. Eu e os outros membros da minha comunidade em Solentiname percebemos que não havia nenhuma incompatibilidade entre o autêntico cristianismo do Evangelho e o marxismo. A partir de então começamos nós também a pertencer a esse grupo, já muito grande na América Latina, de cristãos marxistas. Isso também influenciou na minha poesia" [Cardenal, 1979: 180].

Segundo Cardenal, quem formulou primeiro essa sintonia entre cristianismo latino-americano e revolução foi Che Guevara, ao afirmar que "quando os cristãos, na América Latina, fossem autenticamente revolucionários, a revolução seria inevitável". Sem dúvida, Guevara formulou e encarnou o modelo de mística revolucionária, sobrepondo os elementos da religiosidade popular do povo latino-americano ao arcabouço do messianismo político marxista. Para ilustrar essa afirmação, eis o trecho final da carta enviada por Che a Carlos Quijano, do semanário Marcha de Montevidéu, em que o líder guerrilheiro sintetizava a sua visão revolucionária nestes termos:

"Nós, os socialistas, somos mais livres porque somos mais plenos; somos mais plenos pelo fato de sermos mais livres. O esqueleto da nossa liberdade completa está formado, falta a substância protéica e a roupagem; criá-los-emos. a nossa liberdade e o seu fundamento cotidiano têm cor de sangue e estão cheios de sacrifício. O nosso sacrifício é consciente; quota para pagar a liberdade que construímos.  O caminho é longo e desconhecido em parte; conhecemos as nossas limitações. Faremos, nós mesmos, o homem do século XXI. Forjar-nos-emos na ação cotidiana, criando um homem novo com uma nova técnica. A personalidade  joga o papel de mobilização e direção, enquanto encarna as mais altas virtudes e aspirações do povo e não se afasta do caminho. Quem abre o caminho é o grupo de vanguarda, os melhores entre os bons, o Partido. A argila fundamental da nossa obra é a juventude: nela depositamos a nossa esperança e a preparamos para receber de nossas mãos a bandeira. Se esta carta balbuciante esclarece alguma coisa, cumpriu o objetivo com que a escrevo. Receba a nossa saudação ritual, como um aperto de mãos ou um Ave Maria Puríssima. Pátria ou morte! [Guevara, 1977: II, 383-384].

Os comentaristas soviéticos consideravam a Teologia da Libertação como um movimento progressista inspirado no marxismo, que ajudava às revoluções democráticas na América Latina. Valentina Andrónova, da Academia de Ciências da União Soviética, frisava, por exemplo, que o aspecto essencial da mencionada Teologia é a sua inspiração no marxismo, alicerçada no pressuposto de que cristianismo e marxismo são afins. "Os teólogos -- escrevia Andrónova -- consideram que se for tomado o melhor de um e de outro, essa fusão poderia levar a resolver eficazmente os problemas sociais. O cristianismo é portador de valores espirituais e morais; o marxismo comporta o princípio racional que oferece solução real e prática ao problema" [Andrónova, 1980: 47].

De outro lado, as comunidades eclesiais de base eram apresentadas por Andrónova como núcleos de protesto social da Igreja progressista, que ameaçavam a estabilidade do status quo na medida em que punham em prática os princípios da Teologia da Libertação. A grande extensão dessas comunidades seria expressão do seu potencial político. "As estatísticas -- frisava a comentarista soviética -- podem calcular o número das comunidades de base. Atualmente [final dos anos 70 do século passado][1] existem em cada país latino-americano, chegando a umas 150 mil. Somente no Brasil existem perto de 50 mil e abrangem um milhão de pessoas" [Andrónova, 1980: 48].

Em que pese essas considerações, os comentaristas soviéticos reconheciam, contudo, que a Teologia da Libertação não constituía uma teoria íntegra, em parte devido a que em sua elaboração participaram teólogos de formação diferente, tanto católicos quanto protestantes; a imprecisão e a confusão afetavam muitas vezes a utilização do conceito de luta de classes e, por último, a linguagem figurada de muitos desses teólogos terminava por confundir a claridade dos conceitos. Apesar dessas críticas, Andrónova salientava que a posição prática dos que formularam a Teologia da Libertação era cada vez mais conseqüente e mais firme, do ponto de vista da opção revolucionária [Andrónova, 1980: 46-47].

José Grigulévich, da Academia de ciências da URSS, expressou claramente o papel instrumental que representavam a Igreja progressista latino-americana e a Teologia da Libertação na estratégia de penetração soviética no continente: "A experiência destes quatro lustros ensina que, apesar de participar ativamente da luta popular contra as forças reacionárias, a Igreja não tem possibilidades para se converter em fator determinante do processo de mudanças na América Latina, à imagem e semelhança do Islã, que se tornou força reitora do dinamismo revolucionário iraniano (...). Isso é compreendido perfeitamente pelos comunistas que, alheios a um anticlericalismo ostensivo, têm promovido sempre uma política de colaboração com a Igreja e os católicos em prol da paz, da democracia e das mudanças sociais indispensáveis" [Grigulévich, 1980: 31].

Podemos, a esta altura, formular uma pergunta, que surge espontaneamente do exame dessa mútua atração entre um fenômeno tão tipicamente latino-americano como a Teologia da Libertação e o marxismo: quais foram as razões histórico-culturais que fizeram do mundo ibero-americano caldo de cultura apto para que nele vingasse essa síntese de messianismo político? Tentemos, embora a grandes traços, esboçar uma resposta.

Na Península Ibérica, como também na Rússia, desenvolveu-se uma experiência de absolutismo ensejada pelo despotismo oriental. Ao passo que essa experiência deu-se na Rússia em decorrência da invasão tártara no século XIII e da influência bizantina, na Espanha e em Portugal apareceu a partir da invasão e da dominação árabes, fenômeno que se estendeu de 710 a 1490. Como acertadamente anota Alexandre Herculano na sua História de Portugal [1914: II, 19-20], durante todo esse período a minoria cristã, que se refugiu nas montanhas do norte, sofreu uma forte influência da cultura e dos hábitos políticos dos sarracenos, tendo esquecido os costumes medievais de desconcentração de poderes e chegando a imitar os procedimentos centralizadores dos califas. Isso era explicável pela superioridade técnica e cultural dos muçulmanos sobre a nobreza visigótica. Os príncipes herdeiros de Portugal, desde Afonso Henriques (1109-1185), foram influenciados por essa maré centralizadora e despótica.

Se de um lado é certo que os efeitos desse despotismo foram o progresso econômico e urbanístico da Hispania sarracena, de outro lado não é menos certo que essa experiência contribuiu para a difusão da cultura árabe, particularmente no que diz respeito ao papel destinado à religião, no contexto social. Esse papel, segundo mostrou Wittfogel, é claro no contexto do despotismo oriental, e consiste na utilização da variável religiosa para reforçar o poder absoluto do Estado. A respeito, escreve este autor: "Diferentemente da sociedade européia feudal, na qual a maior parte dos chefes militares (os barões feudais) não estavam ligados aos seus suseranos senão por frágeis laços e um contrato, e na qual a religião dominante era independente do governo secular, (no seio do despotismo hidráulico) a religião dominante estava estreitamente ligada ao Estado" [Wittfogel, 1977: 127].

É fora de dúvida que tanto Espanha quanto Portugal, após a expulsão dos árabes, conservaram a tendência para a utilização dos fatores culturais (entre eles, o religioso), como elementos que garantissem a estabilidade do Estado. Fidelino de Figueiredo, no seu ensaio intitulado As duas Espanhas, explica bem como o Império espanhol sob a dinastia dos Áustrias, no século XVI, utilizou os fatores científico-religioso-jurídicos para consolidar um modelo absoluto de dominação.

Quanto à utilização do fator religioso, frisa Fidelino: "Entretanto, Carlos V fora eleito Imperador da Alemanha, em sucessão do seu avô, arrogara-se o título de majestade e simbolizara numa águia a amplitude nova e ambiciosa da sua política. Esmagada a resistência dos comuneros, estava fundado o Império germano-espanhol. Mas era necessário atribuir-lhe algum conteúdo espiritual, porque o que mais estreita os homens é o dinamismo propulsor duma ação em comum. As rivalidades com a França e a Inglaterra eram escopo muito limitado. Deveria ser alguma coisa de maior prestígio, e mais promotora de energias combativas. É a reforma religiosa, explodindo, que sugere esse conteúdo unificador: a defesa da fé católica sob a bandeira do espírito da contra-reforma que, em breve, também acharia no ambiente espanhol um dos seus instrumentos essenciais. E a velha herança romana do imperialismo sobre o alicerce de um pensamento único, nunca esquecida nos séculos medievais e avivada na Renascença, realiza-se pelo consórcio do império espiritual do pensamento único, que era o papado, com o império militar do mando único, que era a dinastia austríaca" [Figueiredo, 1959: 76-78].

A herança do despotismo oriental da Espanha estendeu-se à dinastia borbónica, cujo regalismo era, segundo Fidelino de Figueiredo, mais absorvente que o dos Áustrias, tendo chegado a realizar uma centralização absoluta [cf. Figueiredo, 1959: 112-113]. Da herança despótica oriental não fugiu Portugal que viu consolidar, sob a dinastia de Avis (1385-1580), os alicerces do Estado patrimonial [Cf. Faoro, 1958: I, 33 seg.]. A irrupção de Portugal na modernidade, obra do Marquês de Pombal (1699-1782), consolidou mais ainda a centralização de poderes no Estado, bem como a fundamentação deste na ciência e na religião oficiais [cf. Paim, 1978].

A modernização do Estado português teve, aliás, elementos comuns ao processo empreendido pela Rússia czarista. Teófilo Braga salienta que a criação do Colégio dos Nobres de Lisboa, efetivada em 1761 para garantir a formação de uma elite esclarecida que servisse à primazia e à estabilidade do Estado na sociedade, proveio do médico de origem judaica Antônio Nunes Ribeiro Sanches, que tinha prestado serviços à Imperatriz da Rússia como conselheiro, médico e pesquisador no Colégio dos Nobres de São Petersburgo [cf. Braga, 1898: III, 350-351].

Em que pese o cientificismo professado por Pombal, o seu projeto modernizador considerava a variável religiosa como elemento essencial à consolidação política do Estado. A propósito, comenta Laerte Ramos de Carvalho: "Na defesa dos interesses da sociedade a política pombalina procurou furtar-se aos termos do dilema Sacerdócio-Império porque, pela força das condições históricas, tentou construir, de acordo com o apoio do próprio clero português, excetuados os jesuítas, a república que, dentro do espírito do absolutismo, se tornara a preocupação dos teóricos mais avançados do tempo. A religião, na mentalidade que então predominava, era o esteio da ordem civil, o tribunal que, ao resguardar a pureza da fé, resguardava, ao mesmo tempo, os interesses mais legítimos do poder temporal. O homem natural pertence tanto à religião quanto aos seus parentes e pátria: somente na união cristã, que não lisonjeia os interesses desnaturalizantes da Igreja, sem pátria e sem fronteiras, pode a sociedade civil viver e prosperar. Não se pretendia propriamente a consagração, tão no gosto do radicalismo cismontano, do aforismo - non respublica est in ecclesia, sed ecclesia in respublica - mas uma tentativa de conduzir, numa harmonia de interesses, conjuntamente, a República e a igreja pelo caminho do progresso material e espiritual da nação lusitana" [Carvalho, 1978: 48-49].

Os Estados surgidos na América Latina após os processos de independência das metrópoles espanhola e portuguesa, herdaram do despotismo ibérico fortes tendências centralizadoras e burocráticas, das quais formou parte a tentativa de utilizar os fatores religiosos, científicos e jurídicos como elementos da estabilidade política, num contexto absolutista. Esse centralismo burocrático, aliado à tendência a considerar o poder como instância patrimonial de quem o detém, levou à atrofia da cultura, segundo um ensaísta como o argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), que escrevia: "Um espanhol ou um americano do século XVI deve ter afirmado: existo, logo não penso". E considera que tal cidadão não viveria se tivesse a desgraça de pensar. Para Sarmiento, o cerne dessa situação é o despotismo ibérico, fortemente alicerçado no elemento religioso: "Filipe II -- escreve -- é a concentração do princípio maometano-espanhol da unidade de crenças. Ele, e não o Papa, funda a Inquisição (...). Sem Maomé não haveria Inquisição na Espanha (...). O Papa conservou sem fogo a Inquisição. Porém, só na Espanha e com ex-maometanos (...) podiam ser levantados altares ao canibalismo, à aversão à velha (bruxa) que conservaram os selvagens". Essa é, segundo Sarmiento, a mentalidade herdada pelos hispano-americanos. E conclui: "O terror está em nós" [cit. por Zea, 1976: 113-114].

A tendência à utilização do fator religioso manifestou-se como uma constante da cultura latino-americana, com variadas formas de clericalismo a serviço dos interesses políticos [cf. Vélez, 1978: 85 seg.]. Não estranha, assim, a tremenda força de propostas messiânico-políticas, a serviço de um projeto de dominação despótica, como a Teologia da Libertação.

Os russos compreenderam perfeitamente o valor do elemento religioso na América Latina. Herdeiros -- como nós -- de longa tradição despótica oriental, convertida, ao longo do século XX, para eles, em sistema totalitário, souberam utilizar o fator religioso como ponta de lança para a penetração soviética no continente latino-americano. E estimularam, até a queda do Império da URSS, a difusão da Teologia da Libertação.

Antes da reunião do CELAM em Medellín (1968), a Teologia da Libertação deitava raízes nos esforços de alguns padres ativistas por aderirem à dialética marxista, como instrumento-chave para a análise socio-política da realidade latino-americana. Esse esforço iniciou-se, a nível continental, após a eclosão da revolução cubana, a partir de 1960. Nesse amplo trabalho de doutrinação engajaram-se os movimentos católicos como o MIIC (Movimento Internacional de Intelectuais Católicos, que editava a revista Víspera em Montevidéu), a JUC (Juventude Universitária Católica que editava, com o auxílio material e intelectual do MIIC, farto material de conscientização marxista no meio universitário latino-americano), a JEC (Juventude Estudantil Católica), a JOC (Juventude Operária Católica), os Movimentos de Profissionais Católicos que, através do método da revisão de vida, foram conscientizados pelos sacerdotes e pela elite intelectual (representada principalmente pela liderança do MIIC) acerca da necessidade da utilização da dialética marxista como instrumento de reflexão-ação.

Essa liderança intelectual instalou-se, inicialmente, no Paraguai, no Uruguai, na Argentina e no Chile, tendo-se deslocado posteriormente para o Peru (a partir de 1972) e a Colômbia, na medida em que ia crescendo a onda repressiva no Cone Sul. No Brasil, a tendência à radicalização seria representada pelo trabalho do padre Henrique Cláudio de Lima Vaz junto à comunidade universitária, o qual, ao longo da década de 60 do século passado, conseguiu formar na dialética marxista a elite que se radicalizaria na opção totalitária após 64 [cf. Paim, 1979: 118 seg.].

Nas últimas duas décadas do século XX, o foco mais ativo dessa elite intelectual radicalizada concentrou-se no norte do continente, na Colômbia, no México e na América Central. Em que pese o fato de no Brasil haver, na atualidade, boa parcela do clero e leigos influenciados pela teologia da libertação, a sua força não assumiu o grau de radicalismo que conduziu à luta armada na Colômbia, na Nicarágua, em El Salvador, na Guatemala, no México, etc. Do ponto de vista dos russos, a Teologia da Libertação foi um elemento valioso da luta no plano ideológico, toda vez que suficientemente vago em ambíguo do ângulo das propostas de governo, mas tremendamente dinâmico no sentido de motivar grandes massas de cristãos, para assumirem a revolução socialista como um compromisso heróico, deixando o comando do processo, certamente, em mãos de elementos treinados militar e políticamente. O que aconteceu na Colômbia talvez ilustre esse efeito estratégico. Em que pese a queda do Muro de Berlim e o fracasso do Império Soviético, os guerrilheiros das FARC e do ELN conseguiram mobilizar segmentos significativos da intelectualidade a partir de uma retórica libertadora que empolgou os católicos ativistas, sendo que hoje fica clara a opção eminentemente pragmática da liderança guerrilheira (que descambou para a criminalidade pura e simples), tendo sido deixados de lado ou sumariamente eliminados os líderes que ainda acreditavam numa Teologia Libertadora, após a morte do sacerdote guerrilheiro Manuel Pérez [cf. Rangel, 1999; Villamarín, 1996].

A Teologia que, na sua essência, consiste num discurso racional sobre a fé, não se compatibiliza com esse tipo de instrumentalização política, que se reduz à conquista violenta do poder para mudar as estruturas. A Teologia, como reflexão racional e sistemática sobre a fé religiosa, parte do pressuposto da aceitação da Revelação de Cristo, no caso da Teologia cristã. E o cerne dessa revelação é o seguinte: 1) Jesus-Cristo, Filho de Deus, encarnou-se, morreu e ressuscitou para salvar o homem; 2) a aceitação desse fato é graça de Deus, livremente aceita pelo homem, mas, afinal, graça, doação gratuita, que não é concedida a todos os homens (em outros termos, trata-se do reconhecimento da dimensão sobrenatural da fé); 3) a salvação consiste fundamentalmente no perdão dos pecados (que são pessoais e não anônimos ou coletivos) nesta vida, ou seja na conversão e na participação, após a morte, da vida eterna; 4) a salvação oferecida por Deus através de Jesus Cristo é universal, quer dizer, visa a todos os homens, os quais, mesmo que não tenham a graça da fé, podem se beneficiar dela, em virtude da sua retidão moral, quando tiverem procurado agir de acordo com a sua consciência; 5) o fato de possuir a graça da fé, produz no beneficiado obrigações morais e não privilégios: a obrigação moral básica do cristão consistirá no testemunho do amor a todos os homens. É lógico que a luta de classes apregoada pela praxe marxista nega frontalmente essa obrigação moral básica do cristão.

Bem no fundo da Teologia da Libertação encontramos uma fonte de inspiração tão antiga quanto o messianismo político que, se bem foi sistematizado no mundo moderno por Saint-Simon (1760-1825), é uma tentação tão velha quanto o próprio cristianismo. Não consistiu nisso, por acaso, o cerne das tentações sofridas por Cristo no deserto? E não foi essa, também, a pretensão que o Divino Mestre teve de combater repetidas vezes nos seus discípulos?

O projeto libertador que acalenta a Teologia da Libertação e que pretende erigir como tradição sagrada a luta revolucionária, vem ao encontro direto de outra tendência que, originada na Rússia comunista, fez da luta revolucionária e do modelo totalitário por ela imposto, uma religião cujas divindades seriam os arautos que apregoavam a nova fórmula salvadora. A respeito, frisa Paul Blanchard [1952: 66]: "Na santa trindade da teologia do Kremlim, Marx ocupa o lugar de Deus e Stalin o do Espírito Santo. Engels é o semi-deus (...). A existência dessa deidade trinitária não é específicamente reconhecida na literatura soviética, mas forma parte definida e importante do mundo comunista (...)". Depois de Stalin, poderíamos colocar, no seu lugar, os sucessivos dirigentes, todo-poderosos e despóticos do PC, até o desmantelamento da URSS [cf. Barbuy, 1977].


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[1] Anotação nossa.

OS ETERNOS DONOS DO PODER

Dizia o general Figueiredo numa dessas declarações um tanto surpreendentes, que o que faltava ao Brasil era fazer a sua "Revolução Francesa". Isso porque, segundo o general-presidente,  o Brasil dos anos oitenta do século passado, como a França de 1789, era dominado por uma burocracia faminta que lhe sugava os recursos, assim como o país de Luis XVI, na segunda metade do século XVIII, era sugado por uma ominosa minoria que se apropriava do grosso dos recursos para satisfazer as suas infindáveis exigências de bem-estar e de luxo. A situação do país europeu piorou muito na década de 1780, em decorrência de vários rigorosos invernos que puseram em risco a produção de trigo, essencial para alimentar a população. Afinal de contas, os franceses, ainda hoje, sem a sua tradicional "baguette", aquele pão crocante e delicioso, viram feras. 

Quem denunciou objetivamente a situação dos franceses em 1789 foi o abade Sieyès, que era representante eleito pela sua comuna na Assembléia do Terceiro Estado, que constituía o órgão de representação da burguesia e do povo no seio dos "Estados Gerais". Perguntava Sieyès no seu livrinho de 1789 intitulado O que é o Terceiro Estado?: - Quem é o Primeiro e o Segundo Estado? Respondia: Uma minoria de aproximadamente 180 mil felizardos pertencentes à Nobreza e ao Alto Clero que se apropriaram dos cargos públicos e que sugam a riqueza do país. Perguntava ainda Sieyès na sua obrinha: "Quem é o Terceiro Estado?" - Respondia: "Tudo, pois é constituído pala massa espoliada de 25 milhões de franceses que trabalham e pagam impostos". Perguntava ainda Sieyès: "Quem deve governar na França?" - E respondia: "O Terceiro Estado". 

Esse foi o estopim da Revolução Francesa que foi deflagrada em 14 de Julho de 1789 com a tomada, pelos insurgentes, da Prisão Real de La Bastilha, símbolo do poder absoluto na França. O resto conhecemos pela História: os franceses, liderados pelos revolucionários financiados pela burguesia e chefiados por Danton, Marat e Robespierre, literalmente cortaram a cabeça da Nobreza e do Alto Clero, dando ensejo à sanguinolenta Revolução que deitou por terra o Antigo Regime, com auxílio da maquininha de cortar cabeças, a guilhotina, que na década seguinte ceifou a vida dos próprios revolucionários. A insanidade da Revolução feita sob os ideais da "Igualdade, Liberdade e Fraternidade" terminou desaguando no regime absolutista de Napoleão Bonaparte, que se sagrou "Imperador dos Franceses" e que governou com mão de ferro por dez anos, entre 1804 e 1814.

A comparação do Brasil com a França feita pelo general Figueiredo vale para o país de hoje. Pois somos governados por uma gulosa minoria que se encarrapitou na cimeira do Estado e que é constituída por 11 milhões de membros da alta nomenclatura distribuída na União, nos Estados e nos Municípios, com privilégios de que não goza a grande maioria que fica do lado de fora do festim e que é constituída pelos restantes 200 milhões de contribuintes que não têm planos de saúde especiais pagos pelo governo, que se aposenta com pensões desvalorizadas, que frequenta o SUS ou que paga por este desserviço e por plano privado de saúde que não funciona, que tem um sistema de ensino público falido, que é refém dos procedimentos burocráticos inícuos que dificultam o funcionamento de empresas e que já chegou ao extremo de trabalhar cinco meses inteiros para pagar os impostos escorchantes que sustentam a pachorrenta e improdutiva burocracia. 

O jornalista José Nêumanne, em artigo recente, ("O baronato das castas que a Nação sustenta", O Estado de S. Paulo, 25-07-2018, p. A2) caracterizou de forma objetiva essa situação com as seguintes palavras: "Esta relidade, paradisíaca para os mandatários dos Poderes Executivo e Legislativo e os potentados apadrinhados do Judiciário, vem ao longo do tempo restaurando a escravidão, desta vez multirracial. Nela o Brasil real sustenta o outro, o país oficial insensível, corrupto e impune, à custa de sangue, suor e lágrimas. Tudo isso acaba de ser revelado numa crua e muito corajosa iniciativa do jornalismo brasileiro: a série Eleições 2018. Os donos do Congresso, do Estadão Broadcast, iniciada com a reportagem intitulada na manchete de primeira página deste jornal de domingo 22 de julho de 2018: Servidores têm maior e mais poderosa bancada na Câmara. Essa casta (...) acaba de enterrar as votações das reformas propostas pelo governo, em particular a da Previdência, e de patrocinar o assalto de R$ 100 bilhões das pautas-bomba no Congresso". 

As jornalistas Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli, da sucursal do Estadão em Brasília frisavam a respeito: "A bancada do funcionalismo público na Câmara age sem alarde, mas é considerada atualmente o lobby mais poderoso do País". Seu poder é caracterizado assim: "Dos 513 Deputados, 132 são servidores  - um em cada quatro". Ora, eles colocam o país ao seu serviço mediante a manutenção da legislação atrasada que garante os privilégios da alta burocracia do Estado.

O nosso paquidérmico Estado Patrimonial que chegou às alturas de sem-vergonhice revaladas na Operação Lava Jato sob os governos petistas e que não foi nem arranhado com as reformas tentadas pelo governo Temer, está muito bem de saúde como frisava recentemente o deputado Rogério Rosso (PSD-DF), um dos raros porta-vozes da "bancada dos mandarins de estatais e autarquias" (como frisa Nêumanne). Efetivameente, frisava o mencionado deputado: "talvez o governo a tenha subestimado". Essa turma está arrumando as coisas para que na eleição presidencial que se aproxima seja eleito um candidato dócil à bancada patrimonialista que garante a continuidade de privilégios para a nomenclatura.

O panorama para o cidadão comum que paga a conta não é dos melhores: a continuidade do atraso. Contrasta esse horizonte cinzento com a esperança que se vive em outros contextos. Acabo de regressar do Canadá onde passei quinze dias visitando familiares que moram em Toronto. Conversando com o meu xará e sobrinho, jovem engenheiro aeroespacial, eu lhe perguntava como definiria o país onde mora. Respondia-me o felizardo sobrinho: "O Canadá é, para mim, uma terra aberta e luminosa, cheia de oportunidades e que em nada se parece com as estreitas perspectivas com que se defronta um jovem profissional na América Latina". 

A única alternativa para nos livrarmos dessa escura perspectiva no Brasil consiste em mudarmos pelo voto as estruturas clientelistas do atraso, nos livrando de blocos e centrões, como apregoava em artigo recente Fernão Lara Mesquita ("Para nos livrar dos blocos e centrões", O Estado de S. Paulo, 25-07-2018, p. A2). Somente desmontando a burocracia patrimonialista conseguiremos acender um raio de esperança para os nossos filhos e netos.


quarta-feira, 4 de julho de 2018

A VEZ DA ALTERNATIVA LIBERAL-CONSERVADORA

Nunca foi tão importante recordar que a alternativa liberal-conservadora é a solução para o Brasil. A crise institucional que nos abala decorre do fato de que a classe política e os funcionários do Estado se afastaram dos princípios do liberalismo e das tradições conservadoras na gestão da República. Alguns intelectuais, hoje, mal acostumados ao estatismo, criticam a solução liberal-conservadora de respeito à vontade da maioria e de defesa da liberdade e das tradições, como empecilhos à solução dos problemas, quando, pelo contrário, é na defesa da liberdade, na preservação dos valores ancestrais e na construção, ao redor desse ideal, de uma maioria, onde reside a verdadeira solução para os nossos problemas.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, na análise que faz da situação nacional no seu artigo de domingo passado, publicado no jornal O Estado de S. Paulo ("Sejamos radicais", 1º de julho de 2018, p.  A2), frisa a respeito da atual conjuntura: "Que os governos se unam à iniciativa privada se for necessário e lhe cedam o passo quando for mais racional para assegurar o atendimento às necessidades do povo". 

Ora, ora, vamos por partes. Existe, por ventura, alguma solução verdadeira para os problemas do Brasil que corra por fora da colaboração do Estado com a iniciativa privada? O que de bom houve nos governos de Fernando Henrique foi que o então presidente tentou, num início, governar com a perspectiva da defesa dos interesses da iniciativa privada, reduzindo o tamanho do Estado mediante o plano de privatizações e controlando, nessa mesma perspectiva, o gasto público. 

O sucesso do Plano Real consistiu justamente em frear a corrida descontrolada da gastança oficial, a fim de permitir que o sistema produtivo pudesse encontrar o caminho para o desenvolvimento de longo curso. As reformas apresentadas ao Parlamento, pelo governo de inspiração social-democrata, tinham a marca registrada de pavimentar o caminho para a maior participação da sociedade, mediante a representação parlamentar e a diminuição de entraves à geração de riqueza por parte da iniciativa privada. Nesse esforço de governar respeitando as liberdades, foi fundamental a colaboração do PSDB com o Partido da Frente Liberal. Era imperiosa a continuidade dessa colaboração na busca da denominada "âncora do Real", que desse sustentabilidade ao funcionamento do governo sem aumentar o gasto público.

Com o correr do tempo, no entanto, o governo de Fernando Henrique foi se tornando refém da denominada "tentação social-democrata", que segundo avisava o fundador dessa tendência na Europa, Edward Bernstein (1850-1932), consistia em não romper definitivamente com as propostas estatizantes dos comunistas, que buscavam irresponsavelmente atiçar as contradições a fim de impor, pela revolução sangrenta, a ditadura do proletariado. Segundo Bernstein, o caminho para a redenção do operariado deveria ser o da ruptura radical com o marxismo e os comunistas, mediante a opção corajosa pela formação de lideranças trabalhistas, a fim de que os operários pudessem participar em eleições livres e, no Parlamento multipartidário, construir uma sólida maioria para fazer as reformas democráticas necessárias que garantissem o desenvolvimento do capitalismo e o enriquecimento de todos. As teses de Bernstein tornaram-se vencedoras e inspiradoras da moderna social-democracia alemã, como testemunha a ulterior evolução política, ao ensejo das teses defendidas pelo PSD no Congresso de Bad Godsberg, em 1959.

Ora, o caminho seguido por Fernando Henrique e os sociais-democratas foi o de, a partir do segundo mandato tucano, irem se aproximando das teses radicais dos seus inimigos da véspera (os petistas, que não votaram a Constituição de 1988 e que se recusaram a optar pelo Plano Real). Os tucanos passaram a pavimentar o caminho para a chegada ao poder de Lula e comparsas, com todo o carregamento de propostas estatizantes e de irresponsável sindicalismo de corte peleguista. Os tucanos ficaram do lado esquerdista do muro, numa infantil atitude politicamente correta. O distanciamento em relação aos líderes liberais do partido aliado, o PFL, foi cada vez maior. Resultado: no seu segundo mandato, FHC foi o grande eleitor do PT. E aí começaram as nossas desgraças com o estatismo sem limites e a corrupção desenfreada desatados pelos petralhas ao longo dos últimos 14 anos.

Urge nestes momentos de crise institucional voltarmos ao caminho abandonado das soluções liberal-conservadoras. Que as próximas eleições, dando espaço às novas gerações, abram perspectivas de mudança mediante a defesa das liberdades, o controle ao estatismo, a crítica ao marxismo e a abertura para construirmos um país em paz e respeitador dos princípios éticos defendidos pela sociedade brasileira que é conservadora e defensora da liberdade. 

Com bom senso, Fernando Henrique apregoa a unidade de todos os brasileiros. "O grito dos desesperados por emprego e renda - frisa o ex-presidente no seu artigo dominical - não se resolve só com assistencialismo. Este é necessário para a sobrevivência das pessoas. Mas a dignidade delas requer medidas que restabeleçam a confiança na economia, no investimento e no emprego, dando-lhes um horizonte futuro. O medo da violência reinante e a perda de oportunidades econômicas tornam o eleitorado suscetível a pregações de 'mais ordem'. Empunhemos essa consigna, mas sem substituir a lei pelo arbítrio. Ordem na lei e com bases morais sólidas".

Só destaco uma coisa, para terminar: não há ordem na lei e com bases morais sólidas, sem a defesa incondicional da liberdade para os cidadãos, banindo definitivamente os arroubos estatizantes e o messianismo totalitário que Lula e comparsas tentaram implantar ao longo dos últimos 14 anos. A política tributária de tucanos e petistas acelerou a dominação do Estado na economia. A respeito frisava recentemente Luis Philippe de Orleans e Bragança (no seu livro: Por que o Brasil é um país atrasado? - O que fazer para entrarmos de vez no século XXI, Ribeirão Preto: Novo Conceito Editora, 2017, p. 93-94): "A digitalização da Receita Federal aumentou a arrecadação e limitou qualquer tentativa de se desvencilhar da carga crescente. Todas as leis tributárias do país, se impressas, produziriam um livro de inacreditáveis 6 toneladas. O Estado brasileiro, que no ano 2000 custava menos de R$ 500 bilhões em tributos (em valores correspondentes a 2015), passou a custar mais de R$ 1,4 trilhão no final de 2014. Sim, o Estado brasileiro aumentou em três vezes sua arrecadação de impostos nos primeiros quinze anos do século XXI e em 2015 se apresentou financeiramente quebrado e incapaz de atender às demandas mais básicas da sociedade". Ora, isso foi obra das esquerdas no poder, não dos liberais nem dos conservadores.  

Não cair na "tentação social-democrata" é a condição para que tanto Fernando Henrique como os tucanos possam participar construtivamente, ao lado de partidos de extração liberal-conservadora, nessa empreitada. As opções da esquerda se esgotaram. É a vez dos liberais e dos conservadores.

terça-feira, 3 de julho de 2018

PERPLEXIDADES ELEITORAIS


As perplexidades neste processo eleitoral são grandes, na medida em que as nossas Instituições sofrem o desgaste ensejado pela insatisfação da sociedade. Há uma crise de representação. Há crise, também, do ângulo dos demais poderes públicos. Se a representação não nos satisfaz em decorrência da política “alimentar” que tomou conta do Legislativo, a crise também está presente nas demais áreas da política. O Executivo, após o fiasco dos governos petistas, se desgastou. E o Judiciário, que se apresentava como a “tábua de salvação” da República, tem-se engalfinhado numa disputa no seio do máximo tribunal, não em prol da defesa da nossa Carta Constitucional, mas em função de vaidades processuais que vão tomando conta do pedaço. Para não falar do gravíssimo problema que afeta à nossa Suprema Corte e que diz relação à falta de espírito público que se revela, infelizmente, no comportamento de vários membros do Supremo. Vale mais a cota de dominação de um juiz sobre os outros, ao ensejo do escoamento da pauta. Isso passa à sociedade uma mensagem de fraco republicanismo. Se a ausência de espírito público é o mal do Brasil, a carência de patriotismo no Supremo é doença grave, que ameaça a saúde da República.

Esse clima da falta de patriotismo ficou bem ilustrado no enérgico editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 1º de janeiro. A respeito, frisa o citado texto: “Previsto para ser o guardião da Constituição Federal e o cume hierárquico do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) deixou de ser uma casa onde se pratica o Direito, para se transformar numa casa de jogos, onde o que importa é ganhar e não interpretar e aplicar corretamente as leis. Sem o mínimo pudor, juízes da Suprema Corte operam os mais variados estratagemas para conseguir que as causas sob a sua competência tenham o resultado que almejam. Que fique bem claro o que se tem visto no STF: não são as partes, compreensivelmente interessadas num determinado desfecho do caso, que estão jogando. São os próprios ministros, cujo cargo exige isenção e imparcialidade, os jogadores desse intricado tabuleiro”.

Trata-se, a meu ver, de um nítido motim praticado por aqueles membros da Corte que sentem diminuir o seu poder. Com o fim de obrigar a presidência do órgão a pautar pontos que lhes interessam, tomam, na Segunda Casa da Corte, decisões abertamente contra o bom senso jurídico, a fim de colocar a Presidência do STF em maus lençóis perante a opinião pública e obriga-la a pautar o que lhes interessa. Não tiveram outra justificativa decisões amplamente questionadas pela opinião pública e que abertamente insuflaram os ares de insegurança jurídica no país, como a liberação de réus condenados em segunda instância, no caso um dos peixes gordos da corrupção lulopetista, José Dirceu e a exigência do ministro Dias Toffoli de que lhe fosse retirada a tornozeleira eletrônica (disposição que o juiz Sérgio Moro tinha mantido, para evitar a fuga do condenado).

Houve no Brasil uma disfunção constitucional, que se sedimentou ao longo das últimas décadas – notadamente durante os 14 anos de desgovernos petistas -. O Judiciário começou a legislar, diante da lentidão do Legislativo e motivado pelos episódios de corrupção que ali começaram a ficar evidentes ao ensejo do Mensalão e das investigações deslanchadas pela Operação Lava-Jato. Essa mudança foi se instalando primeiro com a atividade dos Ministros do Supremo mediante liminares que pretendiam corrigir falhas do Legislativo e, logo, com uma ação direta de normatividade por parte da Suprema Corte.  O ciclo se fecha hoje com ações do Supremo que, com o pretexto de corrigir distorções, terminam gerando a insegurança jurídica, como as decisões questionáveis da alta corte no sentido de libertar réus condenados pela Justiça de primeira instância, (condenações que contaram com apoio, na segunda instância, dos respectivos tribunais superiores). A liberação do réu José Dirceu foi a culminância desse tipo de “ativismo judicial”, que traz certamente ares de insegurança jurídica ao país.

A história das Nações modernas não foi alheia a esse fenômeno de invasão das atribuições de um poder por outro. O filósofo Jeremy Bentham, no final do século XVIII, tentava reagir contra a invasão, pelo Judiciário, das atividades do Legislativo. Bentham considerava que o grosso das leis, na Inglaterra da sua época, era feitura do Judiciário que, inserido na tradição consuetudinária do direito anglo-saxão, pretendia refletir melhor essa tradição. Considerava Bentham que essa praxe entrava em atrito com a Inglaterra moderna que, a partir da Gloriosa Revolução de 1688 tinha acabado com o absolutismo e tinha entregue a tarefa de governar ao Parlamento, de onde, segundo a teoria do articulador dessa Revolução, John Locke, deveria emergir a legislação, em decorrência do fato de que constituía o poder que representava os interesses dos cidadãos. A crítica de Bentham teve sucesso: ao longo das primeiras décadas do século XIX o Parlamento retomou o seu antigo poder de legislar, corrigindo assim a deformidade introduzida pela ação legiferante dos juízes. No contexto de um Parlamento legiferante foram processadas as reformas que, na Inglaterra victoriana, deram ensejo, no final desse século, à democratização do sufrágio, sob a batuta lúcida do primeiro-ministro Gladstone.

Providência semelhante deveria ser tomada hoje no Brasil, com o clima de insegurança jurídica que se estabeleceu a partir do ativismo judicial no terreno legislativo. As eleições de outubro deste ano, que renovarão a cara do Legislativo, deverão dar ensejo a um reforço do Parlamento na vida política do país, restabelecendo no Congresso a faculdade de legislar e retirando-a do Judiciário. Um Parlamento renovado pelo voto popular será o melhor instrumento para essa reforma, que deverá criar limites rigorosos para o Judiciário não invadir a esfera dos demais poderes.