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terça-feira, 6 de março de 2018

ANTÔNIO BRAZ TEIXEIRA E A FILOSOFIA PORTUGUESA



Comemora-se o 80º aniversário do jurista e pensador português Antônio Braz Teixeira. Com motivo dessa data, serão realizados, ao longo deste ano, em Portugal e no Brasil, vários eventos comemorativos em homenagem ao grande intelectual. Este texto constitui a minha contribuição para os eventos que estão programados, no Brasil, nos Colóquios que terão lugar em Mariana (MG) e no Rio de Janeiro (no Real Gabinete Português de Leitura).
Mais do que fazer uma exposição exaustiva acerca do lugar que António Braz Teixeira ocupa no movimento da Filosofia Portuguesa, apresentarei um balanço acerca de como ele entende a meditação filosófica. A fim de ilustrar o tema central da minha exposição, desenvolverei quatro itens: 1) Conceito de filosofia e de filosofias nacionais; 2) Caráter mediador da antropologia filosófica; 3) A experiência religiosa e a corrente da Filosofia Portuguesa e 4) A experiência jurídica e a filosofia do direito. Concluirei destacando os aspectos mais marcantes do legado filosófico do nosso pensador.
Conceito de Filosofia e de Filosofias Nacionais
A filosofia não é para Braz Teixeira discurso puramente abstrato, sem nenhuma relação com o homem concreto. Para ele, o existencialismo e a fenomenologia deixaram claro que a meditação filosófica abarca o homem na sua concreção histórica. A filosofia é, assim, lógos que surge no seio de uma nação, fala uma linguagem, debruça-se sobre problemas específicos que desvelam o ser humano. Essa contribuição dada pela filosofia contemporânea abriu as portas para que o homem português, a quem se tinha negado num contexto racionalista a vocação de pensar, descobrisse a sua identidade filosófica, traduzindo o viver numa meditação projetada sobre a vida.
Mas se a Filosofia caracteriza-se pela sua inserção na história, no entanto também devemos reconhecer o seu compromisso com a verdade. Em relação a este ponto, escreve Braz Teixeira: "A Filosofia não é, como os outros tipos de saber, um corpo de doutrina, um acervo de conhecimentos ou um conjunto articulado de soluções ou de respostas, mas um processo, uma actividade permanente de interrogação sobre o próprio saber, seu valor e seus fundamentos. O que constitui a sua essência é a busca constante e sempre recomeçada da verdade e não a sua posse. Não é um saber feito, que possa transmitir-se e se vá adicionando, mas um conjunto permanente de interrogações, nunca definitivamente respondidas em que cada resposta que o filosofar a si próprio se dá é sempre uma resposta provisória, que se converte em nova interrogação. Com efeito, enquanto a solução resolve, dissolve, elimina ou suprime o problema, a resposta filosófica não é solucionante, deixando irresoluto o problema e viva a interrogação. Daí que, diversamente do que acontece com os restantes tipos de saber humano, a Filosofia seja, essencial e radicalmente, interrogativa, problemática e não solucionante".
A filosofia, para o pensador português, possui esse caráter de irresolubilidade, em virtude da sua dimensão aporética, que decorre da inadequação essencial entre o ser e o pensar. Justamente porque a realidade transcende ao pensar, aquela constitui-se, para o homem, em algo de misterioso, inesgotável pelo Lógos. Em relação a esse ponto, frisa o nosso pensador: "A Filosofia é, assim, fundamentalmente, aporética, já que a sua actividade interrogativa do real e do próprio pensamento a conduz à identificação e ao tratamento das aporias, à verificação de que o pensamento e a realidade se não identificam e de que nem tudo é pensável ou abarcável pela razão humana. É precisamente daqui que surge a noção de incognoscível ou de mistério, não como o que contraria a razão ou o pensamento humano, mas como o que o excede, ultrapassando a sua capacidade ou possibilidade de conhecimento ou compreensão. Trata-se, pois, do domínio, não do irracional por defeito, por contrário à razão, mas do irracional por excesso (Leonardo Coimbra), do que, ultrapassando a razão, só é acessível por via mística, por inspiração angélica ou por revelação divina"[Sentido e valor do direito].
O caráter aporético do filosofar não invalida, antes pressupõe a capacidade da razão de apreender o real numa primeira visão intuitiva, denominada por José Marinho de visão unívoca. Firma-se, a partir desta, a dimensão teórica da filosofia. Assim caracteriza o nosso autor essa dimensão: "Sendo a Filosofia pensamento reflexivo ou especulativo, e sendo este actividade própria da razão, que se exerce, discursivamente, através do raciocínio, não pode esquecer-se, no entanto, que não só a razão humana se não garante a si própria enquanto órgão de conhecimento ou de pensamento, pressupondo sempre a sua actividade um prévio acto de crença, por um lado na racionalidade do real e, por outro, na capacidade da razão para se apreender a si e para compreender a realidade, como ainda, que o raciocínio ou a actividade cognoscente da razão tem sempre como condição ou pressuposto uma intuição ou uma primordial visão, assim como se nutre do outro da razão, seja sensação, imaginação ou crença e das múltiplas formas de experiência, sendo, nessa medida, razão experimental, razão aberta ao outro de si, ao não racional, tantas vezes erradamente confundido ou identificado com o irracional. Assim, em sua radicalidade ou como saber radical, a Filosofia é sempre teoria, no seu originário e tradicional sentido, isto é, intuição intelectual, contemplação de idéias,  visão espiritual do invisível ou teoria do ser e da verdade. De igual modo, a compreensão da realidade ou do ser e da sua verdade que todo o pensamento filosófico procura alcançar depende sempre de uma prévia apreensão intuitiva, sensível ou trans-sensível, daquilo a que José Marinho chamou visão unívoca".
O caráter situado do filosofar, que o nosso autor já tinha apontado na sua obra de 1959, A filosofia jurídica portuguesa actual, é destacado de forma mais completa num dos seus últimos escritos, a segunda edição de Sentido e valor do direito. Repitamos as suas palavras, que constituem decantada expressão do pensamento de Braz Teixeira nos últimos anos: "Actividade humana, a Filosofia é, como o próprio homem, ser do tempo, radicada e dinâmica, interrogação permanente a partir de uma situação concreta, de uma circunstância definida, está indissoluvelmente ligada a uma língua, a uma tradição, é um movimento espiritual num espaço-tempo que não é homogéneo e uniforme mas múltiplo e diverso, como o ser individual de cada filósofo. Daí que, sendo embora una na busca da verdade, a Filosofia seja múltipla e diversa na variedade dos seus caminhos, pois, se são imutáveis os enigmas com que se defronta, é sempre outro o movimento do pensamento que pensa e interroga, pensando-se e interrogando-se também a si. Por outro lado, se a Filosofia é actividade ou processo da razão que se interroga a partir de uma intuição ou visão a que sempre regressa ou a que sempre se refere, está também sempre condicionada pela língua em que o filósofo pensa, já que não há pensamento sem palavra nem linguagem, ainda que este não se pretenda comunicar pela fala ou pela escrita (...). Deste modo, não pode haver verdadeiro pensamento filosófico, enquanto discurso racional, sem palavras nem linguagem".
Na trilha desta reflexão, a filosofia reveste-se, no sentir de Braz Teixeira, das caraterísticas culturais da língua em que está expressa, ganhando assim o colorido nacional em que se encontra situada. Todo discurso filosófico refere-se, na modernidade, a esse contexto, fora do qual sairia da história. Posto que expressa em língua nacional, a filosofia reveste-se, em cada uma delas, de gêneros literários diversos. O pensador português lembra, a respeito, que Julián Marías identificou catorze formas literárias válidas do discurso filosófico ocidental. Isso testemunha a riqueza da meditação filosófica, que é suscetível de ser vertida em múltiplas formas de expressão, dependendo da personalidade e dos pendores literários de cada pensador. Em relação a essa variedade, frisa Braz Teixeira: "Diferentemente do que, muitas vezes, se diz ou do que uma análise superficial poderia levar a concluir, a Filosofia não só não constitui um género literário como não tem uma forma própria e única de exprimir o seu discurso, quando adopta a forma escrita para comunicar o pensamento pensado pelos filósofos. Na verdade, basta atentar com mediana atenção na história da Filosofia ocidental, para concluir, de imediato, que esta tanto se tem expressado através do poema ou da forma poética (Parménides, Lucrécio, Nietzsche, Teixeira de Pascoaes),como do diálogo, de estrutura teatral ou não (Platão, Cícero, Leão Hebreu, Berkeley, Leibniz, Leonardo Coimbra), do aforismo (Heraclito, Pascal, José Marinho), como da máxima ou reflexão, geralmente de índole ou intenção moral (Epicteto, Marco Aurélio, La Rochefoucauld, Matias Aires), da autobiografia (Santo Agostinho, Dom Duarte, Descartes), como do ensaio (Bacon, Locke, Maine de Biran, António Sérgio), do tratado (Aristóteles, Espinosa, Hume, Wittgenstein) como do comentário (Averróis, São Tomás de Aquino, Pedro da Fonseca), da suma (São Tomás, Pedro Hispano, Ockam), como do sistema (Hegel, Comte, Cunha Seixas, Leonardo Coimbra)".
Caráter mediador da Antropologia Filosófica
A antropologia filosófica, no sentir do nosso pensador, ganhou um lugar de destaque na hodierna meditação ocidental. Isso em decorrência da evolução das próprias ciências, que conseguiram se ver livres do estreito cientificismo do século XIX, bem como do fato de a meditação filosófica ter superado os limites do racionalismo, por força da crítica vivificante ensejada pela fenomenologia, a filosofia dos valores e o existencialismo. A antropologia centro-européia percorreu caminho diferente do trilhado pela meditação antropológica em Portugal. Naqueles países ficou restrita à análise fenomenológica e terminou dando ensejo à formulação de ontologias regionais. Em Portugal, no entanto, graças especialmente à corrente da Filosofia Portuguesa, a antropologia filosófica abriu-se a uma visão metafísica projetada sobre um pano de fundo cósmico e escatológico, de que a meditação de José Marinho, Álvaro Ribeiro, António Quadros, Afonso Botelho e Leonardo Coimbra são exemplos vivos.
A filosofia, para Braz Teixeira, está situada historicamente, em virtude do caráter temporal do homem. A dimensão ôntica deste condiciona a sua meditação sobre o real. Ora, como o ser humano pensa fundamentalmente em base aos problemas com que se defronta, a meditação filosófica está condicionada por essa perspectiva problemática. A Antropologia Filosófica é, destarte, a perspectiva mediadora entre a teoria, a prática e a dimensão estética, estabelecendo, de outro lado, o nexo entre a natureza e o espírito. Decorrente do valor especial conferido à Antropologia Filosófica, a experiência constitui a porta através da qual podemos penetrar no interior da razão humana. Haverá tantas áreas em que possamos nós, humanos, plasmar a nossa concepção de mundo, quantas forem as possibilidades da experiência do mundo. O nosso pensador considera que a revalorização do conceito de experiência constitui um dos grandes achados do pensamento contemporâneo. Ela é, basicamente, dos seguintes tipos: estética, ética, religiosa, científica e jurídica.
A experiência religiosa e a corrente da Filosofia Portuguesa
O nosso autor dedica especial atenção ao estudo de dois tipos de experiência, entre os mencionados: a religiosa e a jurídica. Quanto à primeira, Braz Teixeira considera que relaciona-se com a vivência do mistério, da apreensão intuitiva do fato de que há mais mundos do que este apreendido pela experiência sensível. A religiosa constitui a experiência fundamental, já que ela permite superar o estreito racionalismo, aderindo a uma concepção elevada de razão, aberta à realidade na sua mais numinosa plenitude.
Dessa experiência, por outro lado, parte toda a concepção da denominada Filosofia Portuguesa. Eis a forma em que o pensador explicita o seu ponto de vista a respeito: "Importa, antes de mais, partir de um conceito de razão que exceda os limites de um racionalismo fechado e formalista, apoiado unicamente nas ciências do mundo sensível e numa noção redutoramente empírica de experiência, e se abra ao essencial e irrecusável valor e significado gnósico da sensação, da intuição, do sentimento, da imaginação e da crença, reconheça que há mais mundos para além daquele que os sensos nos revelam e admita que a experiência humana assume múltiplas formas, desde aquela em que se fundam as ciências, até à experiência estética, que as figuras e formas simbólicas propiciam, à experiência ética, que transcende a lei, norma e mandamento, para encontrar nos valores e nos princípios o seu centro ou o seu objecto, e à experiência religiosa, que, partindo do numinoso dos mitos, ascende à sublimidade do sagrado e do divino ou se eleva à união mística. Necessário é, também, atender a que a mais autêntica origem da interrogação filosófica se não encontra no espanto ou na admiração perante a multiplicidade dos seres e a imensidão cósmica, pois que ambos são ainda do domínio meramente psicológico e limitadamente humano, mas sim no plano ontológico mais radical do enigma ou do mistério, no qual e pelo qual todo o ser e toda a verdade, em instantânea visão, simultaneamente, se ocultam e patenteiam ao espírito do homem"[Deus, o mal e a saudade].
A partir do conhecimento do enigma ou do mistério forma-se em nós a idéia de Deus, que passa a se constituir no núcleo que dá sentido a tudo quanto existe e deita os alicerces do filosofar. A busca incondicional do absoluto constitui, no sentir de Braz Teixeira, não apenas um tema de indagação teórica mas é, como já foi salientado, a causa originante do filosofar. Diríamos mais: que a problemática teodiceica é o leitmotiv das preocupações existenciais do homem comum, bem como o ponto de partida para a indagação filosófica. Isso constitui marca caraterística da cultura em Portugal. "No português, escreve Braz Teixeira no seu ensaio intitulado O problema do mal na filosofia portuguesa contemporânea, a ânsia desmedida de absoluto, causa tão freqüente de seus sucessos e fracassos, a apetência de regresso a uma perdida harmonia e perfeição, de que emerge a saudade, como já D. Francisco Manuel o vira, choca-se dramaticamente com a realidade brutal e agressiva do mal nos homens e no mundo. A possibilidade de existência de Deus, suma Bondade e sumo Bem, e a realidade insofismável do mal, eis o que, desde o plano do mais desatento viver quotidiano até ao da mais séria e responsável especulação, é para ele causa de inquietação e perplexidade. De tal atitude e problema dá sinal o seu pensamento, com tão funda ressonância, desde a heresia priscilianista aos nossos dias, que por eles acentuadamente se singulariza no quadro do filosofar europeu, como tem já sido notado por alguns dos seus mais esclarecidos intérpretes".
O nosso pensador faz referência específica, neste ponto, a Álvaro Ribeiro e José Marinho. Embora estes pensadores, bem como outros importantes representantes da corrente da Filosofia Portuguesa (como Leonardo Coimbra, Sant'Anna Dionísio, Antônio Quadros e Afonso Botelho) tenham salientado o caráter religioso-metafísico do povo, inspirador da meditação filosófica em Portugal, estudiosos de outras latitudes, em épocas passadas, salientaram também essas caraterísticas, referindo-as ao homem peninsular. Madame de Staël, por exemplo, na sua obra Dix années d'exil, tinha dito acerca da Rússia que "(...) os laços da nação consistem na religião e no patriotismo", tendo encontrado profundas semelhanças entre esse povo e os ibéricos, ao ponto de dizer que os russos eram os "castelhanos do norte".
A primeira conseqüência da adoção, por parte da Filosofia Portuguesa, do mencionado ponto de partida teológico, é a crítica à razão que pretendeu, sob a inspiração do racionalismo iluminista, se constituir em juíza e senhora da verdade. A propósito, frisa Braz Teixeira: "Como, porém, o problema de Deus é indissociável do problema do Logos, a crítica filosófica à idéia tradicional da divindade é acompanhada por uma paralela dissolução do conceito iluminista de uma razão clara e segura de si, que recusa todo o negativo e todo o irracional, primeiro através da interrogação sobre os limites da própria razão e sobre o seu saber de si, e, depois, pela admissão progressiva do irracional que recusara, tanto do irracional entitativo, como do irracional cognitivo, e, por fim, pela sua abertura a outras formas gnósicas, como a intuição, a imaginação ou a crença".
Em decorrência desta avaliação crítica da razão, as questões antropológicas deságuam em questões teológicas, sendo o problema do mal a indagação central da antropologia na Filosofia Portuguesa. No contexto da crítica à tendência racionalista, a meditação portuguesa, no sentir de Braz Teixeira, passa a se polarizar ao redor das seguintes questões: a idéia de Deus, o problema do mal, o conceito de razão e as relações entre razão e fé, filosofia e religião e filosofia e ciência. Se a meditação filosófica se polarizou em Portugal em torno às questões teológicas, isso não significa, contudo, que esteja fechada a porta para um diálogo criativo com a meditação brasileira, claramente formulada numa perspectiva fenomenológica e crítica.
A experiência jurídica e a filosofia do direito
A experiência jurídica constitui o outro tipo de experiência que, junto com a religiosa, merece especial atenção do nosso autor. Diferentemente desta, que se abre à escatologia e à transcendência, como acabamos de ver, a experiência jurídica projeta-se sobre o mundo e sobre os conflitos entre as pessoas. É definida por Braz Teixeira, no seu ensaio intitulado Experiência jurídica e ontologia do direito, no qual o pensador português sintetiza os aspectos essenciais da sua filosofia do direito, que expôs de maneira sistemática na obra, já citada, Sentido e valor do direito. Introdução à filosofia jurídica. Eis a definição de experiência jurídica, no primeiro dos escritos mencionados: "A experiência jurídica aparece-nos constituída por um conjunto, complexo mas unitário, de dados, de que se destaca, em primeiro lugar, a sua estrutura antinómica, a natureza ou dimensão conflitual das relações jurídicas, o envolver uma questão prática, um problema referente à conduta, em que existe um conflito entre diversos sujeitos, que carece de ser resolvido ou composto, de ser satisfeito, de modo a obter a paz social. Este tipo particular de experiência (...) revela-se constituído por dados que se referem não só a pessoas e a realidades da vida ou coisas do mundo, como também a valorações, a necessidades e pretensões, envolvendo questões concretas que é necessário resolver ou decidir. É por isso que constituem dados imediatos da experiência jurídica, por um lado, os conflitos de interesses e, por outro, o critério de valor - o sentido do justo e do injusto - a que se recorre para a respectiva solução. E também aqui a sua estrutura antinómica se revela, agora no confronto entre o sentimendo de justiça, que fornece o critério de valor em que se baseia a solução dos conflitos e a necessidade de fundamentar racionalmente essa mesma solução, de encontrar razões ou argumentos que a justifiquem".
O nosso autor destaca o caráter cultural da realidade jurídica, criação humana referida a valores, princípios ou ideais, inserida no contexto da historicidade em que se desenvolve a vida do homem. Eis a maneira em que Braz Teixeira sintetiza esse aspecto do direito, de forma muito próxima, aliás, a como Miguel Reale interpreta essa realidade, no contexto do seu conhecido culturalismo, que constitui o marco da teoria tridimensional do direito. "Como realidade cultural, - frisa Braz Teixeira - o Direito não pertence ao mundo físico nem biológico, em que impera a causalidade e o determinismo, nem ao domínio psíquico, nem sequer ao dos seres ideais, em que se situam as realidades lógicas e matemáticas, pois enquanto estas são intemporais e abstractas, o direito é concreto, variável no tempo e no espaço e, como realidade humana, é profundamente marcado pela temporalidade e pela historicidade essenciais ao próprio homem. Como criação cultural, o Direito não é um dado, uma realidade pré-existente que o homem encontre no mundo ou na natureza, nem uma realidade estática, mas sim espírito objectivado, projecção espiritual do homem, algo que está aí para ser pensado, conhecido e vivido e cuja existência depende, por isso, da relação cognitiva e vivencial que o homem com ele estabelece e mantém, a qual lhe dá vida e conteúdo e actualiza, dinâmica e criadoramente, o sentido que nele está latente e lhe é conferido pela referência a valores, princípios ou ideais".
Braz Teixeira considera que o Direito, enquanto realidade cultural, objetiva-se em normas, "constituindo uma ordem reguladora da conduta ou do agir humano na sua interferência inter-subjectiva, na sua convivência ou na sua vida social"; refere-se, assim, à atividade prática do homem e não à atividade teorética e pressupõe, fundamentalmente, a liberdade, "porquanto só enquanto o homem é livre no seu agir, quando pode escolher o seu comportamento e optar entre diversas condutas possíveis, tem sentido que se lhe ordene que aja de certo modo e se responsabilize e puna pelo desrespeito pela ordem recebida ou imposta. Assim, o seu domínio próprio é o da liberdade de agir, cujo exercício e manifestação exterior regula e disciplina, visando estabelecer uma ordem nessa mesma conduta, definida a partir de princípios, valores ou ideais que se entende ou pretende deverem conformar o agir humano. Ao Direito, como realidade cultural, é, pois, inerente um sentido ou um conteúdo axiológico, uma relação entre a liberdade e determinados valores, princípios ou ideais".
Importante contribuição dá Braz Teixeira à reflexão acerca da forma em que são atualizados os valores no contexto da experiência jurídica. Nesse particular, atribui grande importância ao papel do magistrado, aquele que tem a missão de tornar vivo o valor da justiça. O Direito, de outro lado, considera nosso autor, tenta regular ou ordenar a conduta relacionada à condição social do homem,  às relações com os outros homens e com as coisas, "na medida em que estas últimas relações possam interessar ou afectar os outros". O Direito possui, portanto, o caráter de realidade social e de bilateralidade, ao envolver as relações interpessoais, "implicando direitos e deveres de uns perante os outros". O Direito é, além disso, uma realidade social heterónoma, "uma vez que a regulamentação ou a ordenação da conduta que se propõe estabelecer é imposta do exterior aos sujeitos, por um outro sujeito dotado do poder de estabelecer e impor critérios, regras ou normas de conduta ou de comportamento".
Na análise que o nosso autor realiza do Direito como ordem normativa ressaltam, de um lado, a sua extensa e profunda cultura jurídica e, de outro, o sábio equilíbrio de quem muito refletiu sobre a problemática humana do ângulo da solução dos conflitos à luz do ideal de justiça. Além dos seus clássicos estudos no terreno da filosofia do direito, é conhecida, também, a importantíssima contribuição dada por Braz Teixeira no terreno do direito fiscal e tributário, ou no da teoria do Estado, especificamente no que diz relação à guerra e ao papel das corporações. Não vou me alargar mais na análise deste aspecto do pensamento de Braz Teixeira. Gostaria de destacar apenas que, no terreno da historiografia das idéias sociais e jurídicas, espelha-se de modo claro a sensatez e o equilíbrio que animam a reflexão do nosso pensador, bem como a sua indiscutível atualização, segundo transparece no seu ensaio intitulado A justiça no pensamento contemporâneo. Outras comunicações neste encontro destacarão com mais profundidade e pertinência a importante contribuição de Braz Teixeira neste terreno. Chamarei a atenção, finalizando este item, para a concepção de Braz Teixeira acerca da sociedade como pluralidade de interesses em conflito, regulados pelo Direito na busca do bem comum, preservando a liberdade e à luz do valor justiça.
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