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domingo, 25 de junho de 2017

POLÍTICA E REGENERAÇÃO NACIONAL (Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 25 de junho de 2017)2)

Coroação de Napoleão I, em 1804. (Tela de Jacques Louis David).

O tema está na crista da onda. Mas não é novo. Já os Positivistas, paladinos da moralidade pública, apregoavam a "Regeneração da Sociedade Brasileira" e, à luz dessa pregação, foi dado o golpe de 15 de Novembro de 1889 que derrubou a Monarquia. Qual seria o remédio para a desordem causada pela representação e o debate político da "metafísica liberal" no Parlamento? - Resposta: a Ditadura Científica, apregoada em alto e bom som pelos paladinos do cientificismo, Miguel Lemos e Teixeira Mendes, dirigentes do Apostolado Positivista, que antes do golpe de 15 de novembro conclamavam Dom Pedro II para que ousasse ser o grande herói nacional, fechando o Parlamento e se proclamando a si próprio Ditador Central e líder do processo regenerador, a fim de implantar o Reino da Virtude.

Mas vamos ao começo: quando emergiu esse modelo? O seu criador foi Napoleão Bonaparte, quando, a partir da Constituição do Ano 1 que outorgou desde a sua posição de Primeiro Cônsul Vitalício da República Francesa em 1802, substituindo a antiga representação concentrada na Assembleia Nacional pelo Conseil d´État integrado por cientistas e sábios que resolveriam, à luz da razão, todos os conflitos da sociedade, apresentando ao Primeiro Cônsul as propostas originárias das Luzes, sendo que ele escolheria as que achasse convenientes. Ora esse modelo ilustrado antecipou em poucos anos o passo seguinte que daria o General da Revolução quando, em 1804. se coroou Imperador dos Franceses.

Napoleão I transferiu para si a representação da Nação, que ele delegou nos seus representantes no Senado, e que encontrou no Conseil d´État o auxiliar ilustrado para buscar as saídas necessárias ao bem da Nação. O Imperador chamou a si a magna tarefa de reorganizar a Sociedade Francesa, esgarçada pela Revolução e o Terror Jacobino. Tudo seria recriado de cima para baixo, como outorga salvadora do Imperador, a começar pelo Code Civil que regulava a vida social dos súditos. Ele, através dos seus Intendentes, se tornava presente em todos os cantos do vasto Império, em cuja configuração o general Bonaparte rearrumou os limites da Europa ao redor do Trono, tendo nomeado os seus irmãos e mais próximos colaboradores, reis das várias nações submetidas pela Grande Armée.

A Filosofia que, como dizia Hegel, "levanta voo quando as sombras da noite se aproximam" registrou essa conquista das luzes napoleônicas na obra de dois pensadores: Saint-Simon e Comte. O primeiro ficou literalmente extasiado diante das conquistas do General Bonaparte e passou a considerar a possibilidade da emergência da Sociedade Racional na trilha da obra civilizadora do autocrata dos Franceses, toda ela alicerçada na ciência moderna. O conde Saint-Simon não deixou de perceber a índole messiânica do bonapartismo, lhe atribuindo caráter redentor das Nações dos laços da servidão feudal. Comte, secretário de Saint-Simon, partiu para idêntica louvação sistemática da obra do Imperador francês, enaltecendo o seu caráter regenerador na medida em que colocava em escanteio o debate político dos parlamentos e assembleias e os substituía por indústrias e comércio, organizados conforme os ditames das luzes, emergentes do Código Napoleônico. Era a "Ditadura Científica" que se firmava.


"Tempos de delação". Relógio Hublot de 20 mil dólares, dado pela Odebrecht ao ex-governador e ex-ministro petista Jacques Wagner. Dos Conselhos Técnicos getulianos aos Comitês de Salvação Nacional?

Foi só questão de tempo para que as duas tradições cientificistas, a prevalecente na França pós-Revolução, com Napoleão, e a proveniente das reformas pombalinas em Portugal, se juntassem na revivescência da tendência cientificista com que se viu às voltas o Segundo Reinado. Os "Clubes Republicanos" pipocaram por todos os cantos do Brasil ao longo da segunda metade do século XIX, pregando uma República Ilustrada que substituísse a velha retórica da "metafísica liberal". Foi assim como esse  difuso cientificismo cobrou forma definida no projeto de República autocrática e científica que foi pensada no Rio Grande do Sul, entre 1889 e 1891, por Júlio de Castilhos e que foi posta em prática por ele no longo ciclo que, iniciado nesse último ano, se prolongaria até 1930, tendo consolidado o modelo de "Ditadura Científica" que Getúlio tomou como caderno de viagem para a sua tomada do poder na Revolução de 30.

O próprio Getúlio expressou o seu propósito cientificista em discurso pronunciado em 4 de maio de 1931: "A época é das assembleias especializadas, dos conselhos técnicos integrados à administração. O Estado puramente político, no sentido antigo do termo, podemos considerá-lo atualmente, entidade amorfa, que, aos poucos, vai perdendo o valor e a significação. Creio azado o ensejo para o cancelamento de antigos códigos e elaboração de novos. A velha fórmula política, patrocinadora dos direitos do homem, parece estar decadente. Em vez do individualismo, sinônimo de excesso de liberdade, e do comunismo, nova modalidade de escravidão, deve prevalecer a coordenação perfeita de todas as iniciativas, circunscritas à órbita do Estado, e o reconhecimento das organizações de classe, como colaboradores da administração pública".

Antônio Paim escreveu a respeito dessa opção tecnocrática e autoritária: "Todo o esforço de Vargas vai consistir em criar organismos onde as questões de alguma relevância passem a ser consideradas do ângulo técnico. Amadurecido o ponto de vista dos técnicos, a instituição deve assegurar a audiência dos interessados. O governo não se identificará com qualquer das tendências em choque porquanto exercerá as funções de árbitro" (A querela do estatismo, 1978, p.74).

Firmou-se, assim, a versão contemporânea da "Ditadura Científica". O debate político será substituído pelos conselhos técnicos do Estado. Esse foi o modelo assumido pelos militares em 64, sintetizado no termo "Engenharia Política", cunhado pelo general Golbery. (Convenhamos, no entanto, que de lá para cá os nossos militares deram um novo giro na sua visão, afinando a sua participação na vida nacional com as exigências da volta da democracia e reforçando a sua visão profissional, deixando de lado as intervenções "salvadoras" e enquadrando a sua participação à luz da Constituição vigente, em acordo com o arcabouço legal da República). 

Nas atuais ondas de choque da Operação Lava-Jato, a saída tecnocrática descrita acima parece ter ficado em evidência, quando os técnicos do Ministério Público, congregados na Procuradoria Geral da República, exorcizam os males da política despolitizando o debate e tornando-o questão "técnica", a fim de implantar o Reino da Virtude Republicana. É o processo purificador que o professor Werneck Vianna atribui à nova elite dos "tenentes de toga" [cf. Entrevista de Luiz Werneck Vianna a Wilson Tosta, O Estado de S. Paulo, 20 de dezembro de 2016].

A democrática reação da sociedade brasileira contra os desmandos lulopetistas não pode cair nesse beco sem saída, que nos leva direto ao passado do cientificismo positivista. É necessário, nos atuais momentos, restabelecer o jogo político, respeitando a tripartição de poderes e a participação de cada um deles dentro dos limites fixados pela Constituição. Que a Justiça exerça o seu papel julgando aqueles que agiram fora da lei. Mas sem artifícios à margem do baralho constitucional, com suspeitas delações que são dirigidas a criar a instabilidade do Estado, com uma promessa vaporosa de "Regeneração Moral" que somente pode beneficiar aos arquitetos do caos.

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