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terça-feira, 29 de março de 2016

OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A CONCEPÇÃO DO HOMEM COMO CIDADÃO DO COSMO

Região do Mediterrâneo Oriental, das Ilhas Cíclades e da "Magna Grécia" onde viveram os Pré-socráticos.

Amanhecer no espaço - Fotografia da Estação Espacial Internacional, Fevereiro 2016. (NASA)


Introdução - Os Pré-socráticos foram os primeiros filósofos do Ocidente.  O objeto da sua reflexão foi o Cosmo, de longa data observado pela Humanidade, já desde a sua pré-história, há 100 mil anos atrás. Aristóteles denominou-os de “físicos”, pela importância que conferiam ao estudo do Universo e da Natureza. Mas a meditação deles também se projetou sobre o ser humano, abarcando-o como “habitante da casa cósmica”, a Terra. Ao observar os fenômenos naturais, deitaram as bases do método científico que, séculos depois, seria consagrado no Ocidente. Observaram os fatos, formularam hipóteses, desenvolveram discussões e análises acuradas para verifica-las, terminaram formulando “leis”. Utilizaram pioneiramente os números, não apenas para identificar a plenitude das perfeições divinas, mas também para calcular e expressar achados. E, em toda essa caminhada rumo ao pensamento racional, mantiveram uma ponte com o pensamento mítico.

Os Pré-socráticos viveram no Mediterrâneo Oriental, ocupando as ilhas que povoam essa região, bem como as cidades costeiras hoje pertencentes à Turquia. Viveram e ensinaram, também, nas Ilhas do Mar Egeu, bem como no território hoje ocupado pela Grécia, pela Sicília e pela Itália continental, no sul, na região do Golfo de Tarento e no nordeste, na área banhada pelo Mar Adriático. Toda essa região era conhecida como a “Magna Grécia”.

Do ângulo sócio-político, a característica fundamental dessa ampla área onde viveram os Pré-socráticos, ao longo dos séculos VI e V a. C., consistiu na ausência de um governo central forte. Prevaleciam, nessa época, as cidades-estados. E a atividade comercial era a principal ocupação econômica. O ambiente de liberdade era a tônica das cidades dessa parte do Mundo Antigo. Liberdade de movimentação, liberdade de trocas, liberdade de crenças, liberdade de pensamento. Os Pré-socráticos, com as suas variadas teorias acerca do Cosmo, das incertezas e esperanças do Homem, da constituição da Natureza e da cidade-estado, revelam esse ambiente de liberdade de pensamento.

Justamente essa ausência de controles sobre o pensamento foi o que possibilitou a diversidade e o ambiente crítico. Tudo era submetido ao crivo da razão e das conveniências dos indivíduos. É claro que, nas cidades-estados da época, volta e meia apareciam tiranos que pretendiam colocar tudo sob o seu domínio. Mas o ambiente geral de liberdade comercial tornou possível que se fizessem críticas a tais desmandos e que os pensadores pudessem emigrar para cidades onde havia um clima de maior tolerância. Isso explica a transumância desses filósofos, que ora moravam nas cidades da costa oriental do Mediterrâneo, ora se deslocavam para a Grécia continental, para as Ilhas Cyclades, ou para a longínqua Sicília e as costas do Sul e do nordeste da Itália.

Antes de abordar o pensamento dos Pré-socráticos, lembremos alguns dados da história da Grécia Antiga, bem como da democracia ateniense, nessa remota época dos séculos VI e V a. C. A seguir, será analisado o pensamento de Tales de Mileto, Pitágoras de Samos, Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia.

1 - ALGUMAS DATAS E DADOS MARCANTES DA HISTÓRIA DA GRÉCIA ANTIGA
  • 1.650-1.600 a. C. Ocorreu, nesse período, a primeira erupção vulcânica que destruiu a Ilha de Tera (a 75 quilômetros a sudoeste da Grécia continental, no extremo sul do arquipélago das Ilhas Cyclades, com uma área total de 76 quilômetros quadrados).
  • 1.400-1.150 a. C. Ocorreu, nesse período, a segunda explosão vulcânica que arrasou o que tinha restado da Ilha de Tera. Esse evento telúrico deu ensejo ao “Mito da Atlântida” registrado por Platão (nos seus diálogos Timeu e Crítias).
  • 776 a. C. Começaram os Jogos Olímpicos.
  • 620-605 a. C. Tirania de Pisístrato e dos seus filhos Hípias e Hiparco, em Atenas.
  • 600 a. C. Reformas de Sólon.
  • 600 a. C. – 500 a. C. Período dos “Filósofos pré-socráticos”, originários do Mediterrâneo Oriental e das Ilhas Gregas.
  • 500 a. C. Revolução e Reformas de Clístenes, em Atenas. A cidade, para se proteger dos invasores estrangeiros, muda o perfil agrícola e pastoril, centrado na autoridade dos anciões, e passa a se constituir como sociedade militar chefiada pelos guerreiros e aberta ao comércio.
  • 500-400 a. C. “Idade de Ouro” de Atenas, no denominado “Século de Péricles”.
  • 461-430 a. C. Período de Péricles.
  • 430 a. C. Peste de Atenas e início da decadência da cidade-estado. Observemos que os grandes pensadores de Atenas aparecem quando a cidade-estado começa a decair:
  • 470 a. C.-399 a. C. Sócrates.
  • 428 a. C.-347 a. C. Platão.
  • 384 a. C.-324 a. C. Aristóteles.

 2 - ALGUNS DADOS SOBRE A DEMOCRACIA ATENIENSE (ANOS 500-400 a. C.)
  • Habitantes de Atenas: 400.000.
  • Cidadãos eleitores: 40.000.
  • Assembleia: 5.000 membros. Provinham das 10 tribos em que se dividia toda a população existente na região de Atenas. Era um poder que hoje chamaríamos Constitucional, porque definia as bases fundamentais do convívio político.
  • Conselho: 500 membros. Correspondia, servatis servandis, ao nosso Legislativo atual. Em 594 a. C. Sólon criou o Conselho com 400 membros, que passaram a 500 a partir das reformas de Clístenes em 507 a. C. A principal inovação consistiu em estabelecer, como principio básico, a «isonomia» ou igualdade de todos los cidadãos de Atenas perante a lei. Dessa forma, foi abolida a forma aristocrática de governo. O Conselho, denominado de Bulé, era responsável pelas funções administrativas e pela preparação das leis e a participação nele não se restringia à aristocracia, sendo assim um órgão popular de governo. Cada tribo, das dez existentes, indicava 50 membros para o Conselho. Clístenes estendeu os direitos de participação política a todos os homens livres nascidos em Atenas: os cidadãos. Desse modo, consolidava-se a democracia ateniense. Esta, no entanto, era restrita. Dos 400 mil habitantes que Atenas tinha no século V a. C., somente 10% possuíam direitos civis e políticos. Ficavam excluídos da vida pública, entre outros, os estrangeiros residentes em Atenas (os chamados “metecos”), bem como os escravos e as mulheres, ou seja, a maior parte da população.
  • Areópago (composto por Arcontes aposentados, pertencentes à aristocracia): 31 membros. Era um Conselho que exercia as funções de Tribunal Supremo e que cuidava, também, de assuntos como educação e ciência.
  • Arcontado: 9 membros pertencentes à aristocracia e que se denominavam Arcontes. Este órgão exercia as funções de governo. Inicialmente os seus membros recebiam um mandato de 10 anos, tempo que foi sendo reduzido até chegar a um ano. O Arcontado era presidido pelo Arconte-rei, encarregado das funções religiosas.
  • Domínio da Pérsia sobre a Ásia Menor: ocorre entre 550-500 a. C. e condiciona a Revolução de Clístenes, em Atenas (507 a. C.). Nesse período ocorre a transcrição da Ilíada e da Odisseia, atribuídas a Homero. Essas obras constituem o novo mito guerreiro, sobre o qual se alicerçam as reformas de Clístenes.
  • Invasões dos Persas à Grécia: ocorreram três, entre 490 e 449 a. C.
  • Duas raízes culturais remotas de Atenas: Civilização Minoica (que floresceu em Creta entre 3.000 e 1.400 a. C.), de caráter humanístico, e Civilização Micênica (que floresceu em Micenas, na Grécia continental, na região do Peloponeso, entre 1.600 e 1050 a. C.), de caráter militar, dando ensejo à lenda de Agamêmnon.
  • Decadência da Civilização Minoica e progressivo avanço da Civilização Micênica, a partir da lenta decadência da primeira, ao ensejo dos eventos telúricos que acompanharam a desaparição da Ilha de Tera, no Mediterrâneo Oriental (entre 1.650 e 1.150 a. C.). Essas duas civilizações, a Minoica e a Micênica, são responsáveis pelos dois aspectos marcantes da civilização ateniense: espírito guerreiro (herdado dos Micênicos) e profunda tradição humanística (herdada dos Minoicos).

3 – TALES DE MILETO (626 a. C. – 556 a. C.)

De ascendência fenícia, Tales nasceu em Mileto, na Jônia (antiga Ásia menor). De acordo com os historiadores foi o primeiro físico grego que estudou as coisas da natureza como um todo. A sua obra, como a da maior parte dos Pré-socráticos somente se conhece por fragmentos que chegaram até nós, conservados por escritores antigos como Aristóteles e Simplício. Aristóteles frisa que Tales se preocupou por explicitar uma teoria acerca dos fundamentos da natureza, destacando que nela assinalou um princípio permanente ou substancial, sendo que ele identificava tal princípio como água. Ora, o sentido deste termo era entendido em duas dimensões: como princípio substancial radical do qual tudo se compõe e, de outro lado, como elemento que aparece em forma líquida e que constitui boa parte da natureza.  Podemos identificar, em Tales, uma tríade conceitual: Água primordial (princípio metafísico de tudo); Água (elemento líquido); Terra (elemento sólido que flutua sobre a água).

A respeito frisa Aristóteles na sua Metafísica: “A maior parte dos primeiros filósofos considerava como os únicos princípios de todas as coisas os que são da natureza da matéria. Aquilo de que todos os seres são constituídos e de que primeiro são gerados e em que por fim se dissolvem, enquanto a substância subsiste mudando-se apenas as afecções, tal é, para eles, o elemento (stokeion), tal é o princípio dos seres, e por isso julgam que nada se gera nem se destrói, como se tal natureza subsistisse sempre. (...) Pois deve haver uma natureza qualquer, ou mais do que uma, donde as outras coisas se engendram, mas continuando ela a mesma. Quanto ao número e à natureza destes princípios, nem todos dizem o mesmo. Tales, o fundador de tal filosofia, diz ser a água (o princípio). É por este motivo também que ele declarou que a terra está sobre água, levado sem dúvida a esta concepção por ver que o alimento de todas as coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede e dele vive (...). Por tal observar adotou esta concepção, e pelo fato de as sementes de todas as coisas terem a natureza úmida; e a água é o princípio da natureza para as coisas úmidas. (...)”.[1]

Tales formulou, portanto, um princípio metafísico: tudo provém de um princípio único: a água. Mas, de outro lado, caracterizou os fenômenos observados utilizando também o conceito de água, para explica-los em termos científicos. Tales considerava que a terra flutuava no oceano como se fosse um barco. A sua hipótese é uma antecipação da moderna teoria da deriva dos continentes e das placas tectónicas. Havia tremores de terra quando a “barca” era agitada pelas águas do oceano e se deslocava. Simplício lembra a respeito o seguinte texto de Tales: “(...) Donde é cada coisa, disto se alimenta naturalmente: água é o princípio da natureza úmida e é continente de todas as coisas. Por isso (...) a água é o princípio de tudo (...) e a terra está deitada sobre ela (...)”.[2]

Tales, como os outros Pré-socráticos, manteve, também, uma ponte com o pensamento mítico. Aristóteles lembrava, a respeito, que alguns fragmentos de Tales de Mileto faziam alusão a uma antiga mitologia, segundo a qual tudo quanto existe provém de Estige (as Águas Primordiais), das quais surgiram Oceano (Água que cerca o mundo, pai de todos os rios) e Tetis (uma das Nereidas, divindades marítimas).

Os filósofos modernos consideram que Tales é o pai do pensamento filosófico, em decorrência do fato de ter postulado um princípio único de onde provém toda a realidade. A propósito, Hegel, nas suas Lições de história da filosofia (obra escrita em Heidelberg em 1816) frisava: “A proposição de Tales de que a água é o absoluto ou, como diziam os antigos, o princípio, é filosófica; com ela a Filosofia começa, porque através dela chega à consciência de que o um é a essência, o verdadeiro, o único que é em si para si”.[3]

Nietzsche, na sua obra Os filósofos trágicos (1873), escreve: “(...) Tales não superou o estágio inferior das noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele. As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstruosa generalização; o que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados para exprimi-la melhor – a proposição: Tudo é um (...). Assim contemplou Tales a unidade de tudo o que é: e quando quis comunicar-se, falou da água!”.[4]

4 - PITÁGORAS DE SAMOS (580 a. C.- 497 a. C.)

Nasceu na Ilha de Samos, distante de Mileto 50 quilômetros. Participou de um renascimento religioso que ocorreu na Grécia ao longo do século VI a. C. Era filho do gravador miniaturista Mnesarco, de origem aristocrática. Na sua juventude, entrou em contato com a corte de Polícrates de Samos, célebre tirano que incentivou as artes e as técnicas.

O ambiente hedonista e requintado de Samos não agradou a Pitágoras, que emigrou para Crotona, no golfo de Tarento (sul da Itália). Pitágoras organizou uma ordem mística, de homens e mulheres, governada por uma elite dedicada à busca da sabedoria. Nessa empreitada, o filósofo recebeu influências místicas do oriente (culto de Amon Ra, no Egito; mitologia babilônica; zoroastrismo persa e budismo), bem como da mitologia celta.

Encontramos três dimensões nos ensinamentos pitagóricos: em primeiro lugar, conceitos ético-religiosos; em segundo lugar, uma doutrina metafísica (teoria do ser); em terceiro lugar, reflexões sócio políticas. Nesta exposição centraremos a atenção na doutrina metafísica de Pitágoras. Nela, encontramos uma tríade que se explicita da seguinte forma: Unidade primordial (que no Universo consiste num Fogo Central, ao redor do qual giram os planetas), que se torna presente no Péras (=Determinado, que se traduz na série de números aritméticos ou monódicos) e no Ápeiron (= Indeterminado, que se traduz na série de números geométricos).

Os aspectos fundamentais da doutrina filosófica pitagórica são os seguintes:

A – Dualismo entre corpo (soma) e alma (psyché). O corpo, elemento inferior e perecível, deve ser dominado pela alma. Ela está condenada a se reencarnar em outro ser vivo (homem, animal, ou planta), até que a completa catarse ou purificação for atingida. A saga de reencarnações pode ser quebrada por quem desenvolver a sabedoria (filosofia) e a ciência. A alma individual é uma partícula decaída que se desgarrou de um reservatório psíquico único.

B – A redenção da alma se dá pelo conhecimento. A fim de restaurar a unidade perdida e ser resgatada do pecado original causado pelo orgulho e a violência (hybris), a alma deve dedicar-se de preferência à contemplação (theoria) da harmonia que rege o mundo e é, pela sua beleza, um selo da obra divina. Nós, seres humanos, tornamo-nos semelhantes àquilo que ocupa o centro da nossa atenção. O equilíbrio interior obtém-se pela absorção mimética do Cosmos ou ordem natural, exterior a nós.

C – A harmonia do Universo pode ser apreendida e simbolizada com a ajuda dos números (arithmós). A música é expressão dessa harmonia. Como todas as coisas estão integradas numa totalidade harmônica, Pitágoras conclui que “as coisas são números”.

D – Os pitagóricos deram ensejo a grandes progressos na geometria e na aplicação da matemática à classificação dos seres materiais e dos seres vivos em pares e ímpares. Pitágoras foi, igualmente, o responsável pela descoberta do valor da hipotenusa num triângulo retângulo, dadas as medidas dos respectivos catetos.

5 - HERÁCLITO DE ÉFESO (540 a. C.-470 a. C)

Heráclito era originário de Éfeso, cidade da Jônia. A sua família tinha raízes aristocratas, pois descendia do fundador da cidade. O pensador era dono de um caráter altivo, bem como de traços misantrópicos. Essas características misturavam-se, nele, com um temperamento melancólico. Menosprezava a plebe. Fazia questão de não intervir em política. E tinha uma posição de crítica azeda contra os antigos poetas, bem como em face dos filósofos da sua época. Era crítico do fanatismo religioso. Escreveu um livro Sobre a Natureza, em dialeto jônico e em prosa. O seu auge como pensador deu-se entre os anos 504-500 a. C. 

Heráclito foi, tradicionalmente, apresentado como o “filósofo do devir”. Mas não seria exato dizer que esse conceito é o único que prevalece no seu pensamento. Encontramos, nele, certamente, a imagem do rio, como no seguinte trecho: “São águas sempre novas as que correm no mesmo rio e outros os que flutuam sobre elas”. Mas, se encontramos aqui a idéia de devir, de movimento, encontramos também a idéia de permanência. É no seio do mesmo rio por onde correm as águas sempre novas. Essa idéia de permanência aparece, também, neste texto que se refere ao sol: “O sol é novo cada dia, mas ele não ultrapassa os limites que lhe são próprios. Se não fosse assim, as Erínias, guardiãs da Justiça, o saberiam encontrar”. Achamos idéia semelhante neste outro texto: “O fogo se converte em mar e uma metade do mar vira terra, enquanto a outra se converte em nuvem ardente. No entanto, o mar não cessa de provir do mesmo Logos, a partir do qual ele se originou, antes mesmo de que nascesse a terra” [5].

Existe, pois, no pensamento de Heráclito, permanência sob o movimento das coisas. Essa relação entre permanência e movimento é ilustrada por Heráclito com a imagem do combate. Nada pode chegar a ser, senão mediante uma luta entre contrários. A respeito frisa Heráclito: “Deus é o dia e a noite, o inverno e o verão, a guerra e a paz, a abundância e a carência; ele se converte em outro como o fogo misturado aos aromas, ele é chamado como melhor agradar a cada um”. O combate (pólemos) tudo permeia. É o que o filósofo afirma no seguinte texto: “O combate é pai de tudo, rei de tudo. É ele que faz com que uns pareçam deuses, outros homens, outros escravos, outros livres”. O combate, para Heráclito, é a unidade dos contrários. O pensador exprime essa idéia acudindo às imagens do arco e da flecha, e das cordas da lira: é graças à sua tensão que é produzido o som. O combate é também harmonia, mas não estática, mas dinâmica, entendida como tensão entre o movimento e o repouso. (Anotemos, de passagem, que a imagem da tensão das cordas da lira serviu de inspiração, na Cosmologia contemporânea, à Teoria das Cordas).

 Heráclito considera que é necessária a crítica aos sentidos, por parte da razão, que é participação do Logos. Isso significa que eles podem errar ao estarem vinculados aos aspectos contraditórios do real, sem perceberem a unidade que há na discórdia. O fruto da discórdia e da composição entre contrários é a unidade. Heráclito dá um nome paradoxal à mesma: combate integrador (pólemos xynon). Este processo integrador (xynon) não é a harmonia platônica, nem a idéia que paira acima da diversidade. Pólemos xynon é aquilo que congrega, de forma semelhante a como a lei reúne os cidadãos da polis. E essa lei unificadora se alimenta do Único que é o Logos, ou seja, ela é eclosão, unidade conseguida através de oposições entre as diferenças. Zeus é o combate, o pai, o rei; ele, por outra parte, é também o fogo, aquele que vive sem cessar, aquele que se ilumina em todas as suas dimensões, aquele que se estende segundo as medidas, ele é o nexo e o lugar de encontro dos contrários.

Estas idéias subjazem à frase paradoxal de Heráclito: “A natureza gosta de se esconder”, que tantas repercussões terá ao longo da História da Filosofia Ocidental, no meio helenístico (entre epicuristas e estoicos) e, posteriormente, no pensamento renascentista e nas filosofias empiristas, notadamente no seio da meditação anglo-saxã. A natureza é eclosão sem-fim à qual ninguém pode se furtar. Ela é o desvelamento mesmo. A natureza faz vir as coisas à tona, ela as deixa se manifestar mas, ao mesmo tempo e de forma paradoxal, ela nos rouba a unidade do lar da presença no qual se dá essa manifestação. Destarte, a eclosão das coisas, a sua vinda ao espaço da manifestação é, ao mesmo tempo, dissimulação da presença radical que as sustenta. No arrazoado de Heráclito podemos encontrar uma tríade radical: O Fogo, (Logos universal de onde tudo provém), o Mar (que produz evaporações brilhantes) e a Terra (que produz evaporações tenebrosas).

6 - PARMÊNIDES DE ELÉIA (530 a. C. – 460 a. C.)

Parmênides nasceu em Eléia (hoje Vélia, província de Salerno, no sul da Itália). Estudou com o pitagórico Amínias. Provavelmente foi também discípulo de Xenófanes. Consta que criticou os pensadores Jônios, junto com Zenão, em Atenas. Escreveu o famoso poema intitulado Sobre a natureza que consta de um preâmbulo e duas partes, sendo que a primeira delas se refere à verdade e a segunda à opinião. Parmênides combate, ao mesmo tempo, o dualismo pitagórico e o conceito de movimento de Heráclito.
No seu célebre poema, Parmênides distingue a via da não-via [6]. A primeira constitui o caminho verdadeiro; a segunda, o que está cheio de falsidades. A não-via é o caminho do não-ser, a via verdadeira é o caminho do ser. Os signos do ser são os seguintes: ele não é gerado, não é perecível, não é alterável, é imóvel, sem passado, sem futuro, sem fim. Do ponto de vista positivo, ele é de complexão íntegra, continuamente presente, inteiro e, ao mesmo tempo, único. Esses signos são o ser mesmo, definem a participação nele. Encontramos na reflexão de Parmênides uma tríade básica: o Ser (princípio de onde tudo provém), a Via (caminho da verdade) e a Não-Via (caminho da falsidade).

Se ao lado da via do ser encontramos a da não-ser, que está cheia de falsidades e na qual não podemos acreditar pelo fato de ser a via da aparência, como devemos compreendê-la? Apresentam-se, aqui, duas interpretações: para uns, é uma via de falsidade. Parmênides, ao se referir a esta via quer, talvez, refutar alguns dos seus predecessores, possivelmente Heráclito. Para outros, Parmênides desenvolve, aqui, uma hipótese sem valor filosófico, formulada para aqueles que não são capazes de coisas melhores.

Jean Beaufret, segundo Heidegger, propõe outra interpretação: esta terceira via é a das dokounta, das coisas que aparecem, que se mostram no plano fenomenal. É o domínio da inconstância. No momento em que cremos apreender as coisas, elas já se converteram em outras. Há, nelas, uma radical dualidade de formas. Mas essa via das dokounta não é ilusória, não seria necessário interpretá-la a partir de uma concepção platônica. Se o ser é colocado na primeira via, é para indicar que ele se diferencia radicalmente de todo ente. A via das coisas que aparecem é a dos entes. A dóxa é o domínio da denominação. Encontramos, aqui, a força da Palavra que diferencia e que, por isso mesmo, individualiza as coisas. O ente é passagem, mas o ser é a dimensão pela qual se mede a amplitude possível de sua presença. O ser é foco de iluminação, mas ele não é perceptível enquanto tal. Ele se revela somente através da diversidade dos entes.

A ambiguidade dos seres significa que toda presença está contaminada com a ausência; é por isso que não podemos confiar naquilo que aparece. Mas isso não implica num ceticismo absoluto, pois nenhuma ausência é irreparável. O que caracteriza as dokounta (= as coisas que aparecem) é menos a sua pluralidade do que o dimorfismo que as habita (ou seja, a dualidade, nelas, da presença e da ausência).

O erro provém do fato de isolarmos um aspecto. A unidade, efetivamente, não pode ser procurada no mundo dos entes. É o ser que é a unidade. O ente é só passagem. Isso nos leva a compreender o sentido da implicação essencial do dia e da noite. Vemos, aqui, como as categorias do mito se prolongam nas categorias especulativas do pensamento ontológico.

Bibliografia

ARISTÓTELES, Metafísica, livro I, cap. 3, parágrafo 983. In: Os Pré-Socráticos. (Tradução de J. Cavalcanti de Souza e outros). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1989.

HEGEL, Lições de história da filosofia. In: Os Pré-Socráticos. (Tradução de J. Cavalcanti de Souza e outros). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1989.

LADRIÉRE, Jean. Elements de Critique des Sciences et de Cosmologie – Année académique 1966-1967. Louvain: Université Catholique, 1967 (mimeo.).

NIETZSCHE, Os filósofos trágicos. In: Os Pré-Socráticos. (Tradução de J. Cavalcanti de Souza e outros). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1989.

SIMPLÍCIO. Física, 23, 21. In: Os Pré-Socráticos.  (Tradução de J. Cavalcanti de Souza e outros). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1989.





[1] ARISTÓTELES, Metafísica, livro I, cap. 3, parágrafo 983. In: Os Pré-Socráticos. (Tradução de J. Cavalcanti de Souza e outros). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 7.
[2] SIMPLÍCIO. Física, 23, 21. In: Os Pré-Socráticos. Ob. cit., p. 7.
[3] HEGEL, Lições de história da filosofia. In: Os Pré-Socráticos, ob. cit., p. 7.
[4] NIETZSCHE, Os filósofos trágicos. In: Os Pré-Socráticos, ob. cit., p. 10-12.
[5] Para os textos citados aqui, bem como para a linha de raciocínio que seguimos, temos nos baseado na obra de Jean LADRIÉRE, Elements de Critique des Sciences et de Cosmologie – Année académique 1966-1967. Louvain: Université Catholique, 1967 (mimeo.).
[6] Temos nos baseado, para estas considerações, em LADRIÈRE, Jean. Elements de Critique des Sciences et de Cosmologie – Année académique 1966-1967. Louvain: Université Catholique, 1967 (mimeo.).

sábado, 26 de março de 2016

A REPÚBLICA DOS PETRALHAS E OS PROTESTOS (publicado em O Estado de São Paulo em 26/03/2016)

Londrina: domingo 13 de Março de 2016: 90 mil contra Lula e Dilma (Foto: Folha de Londrina).
Brasília: 17 de Março de 2016: Dilma dá pose a Lula como Ministro da Casa Civil (Foto: Divulgação).


Contrariamente ao que pensava Tocqueville em A democracia na América, como sendo a República “O reino tranquilo da maioria”, para os petralhas ela é o reino intranquilo da minoria. Por um motivo: Lula, Dilma et caterva privatizaram as instituições republicanas, para coloca-las a serviço de si próprios e dos seus amigos, tendo, de outro lado, cooptado empresários para que vendessem criminosamente bens e serviços superfaturados à Petrobrás, a fim de a elite petralha se beneficiar financeiramente e abastecer o Partido para se tornar hegemônico.

É isso que está levando as multidões às ruas. Os petralhas incorreram no vício que Aristóteles, na sua Política, assinalava como característica dos regimes corruptos: estes ocorrem quando os que governam fazem-no exclusivamente em benefício próprio. Ora, a dupla Dilma-Lula, com a posse do ex-presidente como novo ministro da Casa Civil, pensou em termos puramente domésticos, como se o Palácio do Planalto fosse a “casa da mãe Joana”. Tudo é gerido, nesta República de araque, em benefício exclusivo da grande família lulopetralha. Para o resto, a maioria esmagadora dos cidadãos deste país, não há uma explicação que deva ser dada.

Acresce a isso a deformação que Lula, como populista, impingiu ao Estado Democrático de Direito e às Instituições Republicanas. Para ele, estas são dispensáveis, num clima de patrimonialismo rasteiro, sendo que, como frisava Ruy Castro, “Lula transferiu a Presidência para o mictório de botequim” (“O Estilo é o homem”, Folha de S. Paulo, 16/03/2016).

Convenhamos que o ex-presidente encarna assim  a figura mais atrasada do líder patrimonialista, aquele identificado com personagens lendários das letras latino-americanas, como o Patriarca (que remete à figura do ditador venezuelano Juan Vicente Gómez), que presidia uma republiqueta de bananas, onde burocratas se misturavam com pedintes e filhos das amantes, num clima de bordel caribenho, segundo a contundente narrativa de García Márquez em O outono do Patriarca (1975).

Ou como o personagem central (o chefete provinciano Facundo Quiroga) da obra de Domingo Faustino Sarmiento, intitulada: Facundo, civilização e barbárie no pampa argentino (1846). Quiroga semeava a miséria entre pobres, remediados e ricos da Província de São Luís, na Argentina, taxando-os com uma carga tributária insuportável, tendo-os submetido previamente ao terror policial para “abrandá-los”.

Em ambos os casos, na Venezuela e na Argentina, o líder patrimonialista é essencialmente preguiçoso, somente se preocupando em se locupletar, bem como à sua corja de familiares e apaniguados, tendo as instituições republicanas caído na paralisia total. Tanto na narrativa de García Márquez, quanto na de Sarmiento, só restou o poder privatizado na fazenda do tirano, que de público não tinha mais nada, pois tudo se converteu em função particular do Caudilho. As notícias eram, segundo García Márquez, ilicitamente editadas por uma engenhoca que lia diretamente os pensamentos do dono do poder e os formatava com grande rapidez, para manter incólume “a nau do progresso dentro da ordem”, a fim de “esconjurar a incerteza do povo num poder de carne e osso que, na última quarta-feira de cada mês, divulgava um informe sedativo de sua gestão de governo através da rádio e da televisão”. Convenhamos que os chefetes petralhas foram, com a ajuda dos marqueteiros, muito eficientes na arte de fabricar mentiras e divulga-las aos quatro ventos, tendo para isso decuplicado os gastos da Presidência da República com propaganda, ao longo dos anos de desgovernos petistas.

É claro o clamor das ruas nestes tempos de descarada reformulação do poder por parte dos petralhas, tendo Dilma se colocado como coadjuvante da ópera bufa dirigida por Lula e encenada apenas pelos militantes do PT e os poucos colaboradores que restaram dos outros partidos, que já começam a abandonar a nau em perigo.

Três coisas exigem os cidadãos irados nas passeatas e manifestações que tomaram conta das praças, ruas e avenidas das cidades brasileiras: 1 – a saída de Dilma da presidência, pela via da renúncia ou do impeachment; 2 - a submissão de Lula à Justiça, a fim de que responda pelos seus crimes de enriquecimento ilícito e de atentado contra as instituições republicanas; 3 – a defesa da Magistratura (notadamente do juiz Sérgio Moro), do Ministério Público, da Polícia Federal e outras instâncias que colaboram com as autoridades na administração de justiça.

Segundo o que se vê pelo Brasil afora, os cidadãos deste país não estão dispostos a abrir mão de sanear as instituições. Não adianta políticos espertalhões, da oposição, tentarem capitalizar para os seus currais eleitorais a insatisfação da sociedade. Onde eles têm aparecido têm sido devidamente enxotados. A mensagem é clara: os brasileiros querem renovação da forma de fazer política. Ou os candidatos para as próximas eleições municipais reciclam os seus discursos e as suas propostas, ao vão colher a derrota nas suas bases.


A mensagem vale para as autoridades dos três poderes. Para o Executivo é clara: o tempo de Dilma acabou. Para os Magistrados vale também: os cidadãos estão de olho nas decisões dos tribunais e não aceitarão pedaladas jurídicas destinadas a manter incólumes os interesses dos donos do poder. Para o Legislativo é meridiana: os representantes do povo devem representar mesmo os interesses dos cidadãos, sendo necessário que o Congresso se ocupe, de forma prioritária, da reforma política, de modo a revalorizar a representação, com a adoção de mecanismos de aproximação entre eleitor e eleito, como é o caso do voto distrital. 

quinta-feira, 24 de março de 2016

AS GUERRAS DO TERRORISMO NA EUROPA E NA AMÉRICA LATINA

Logotipo da solidariedade francesa para com a Bélgica, após os atentados de Bruxelas.

Pablo Escobar e os restos do Boeing da empresa Avianca derrubado por ordem do capo, no início dos anos 90, nos arredores de Bogotá. 

O continente europeu está em guerra. Não adianta adotar a posição politicamente correta de alguns, de que chamar o que está acontecendo na Europa de guerra é dar força aos terroristas. É bobagem do emcimadomurismo internacional. Trata-se, claro, de um conflito sui generis, como os que eclodem no século 21. Guerra declarada? – Sim, a julgar pelos comunicados do Estado Islâmico. Guerra diferente das outras, travadas pela OTAN no final do século 20 no Médio Oriente e nos Balcãs?  Também. Porque esta guerra ataca em casa.

Os primeiros alvos foram objetivos militares, representados por policiais e forças de segurança assassinados nas ruas na calada da noite, praças vazias e outros lugares ermos. Os segundos alvos, após os atentados ocorridos em Paris ao longo do ano passado e no decorrer deste ano, foram espaços abertos e de transporte de massa, onde se encontra a população civil para viajar, se divertir, ir para o trabalho, passear com a família. A guerra agora foi declarada contra o cidadão médio. Os atentados de Bruxelas têm esse selo: trata-se de ferir o homem comum, a fim de disseminar o terror, de forma mais eficaz, no seio da sociedade. Isso já se anunciava nos ataques de Al Qaeda de Londres e Madri, há vários anos atrás. Mas essa modalidade de terror ganhou atualidade com a ofensiva dos radicais do Estado Islâmico contra a população civil das cidades europeias, utilizando tecnologia de mídia de ponta, difícil de ser seguida pela polícia e pelos vários grupos de segurança das comunicações.

Os Estados Unidos, após o fatídico 11 de Setembro de 2001, conseguiram reagir à altura, criando uma rede eficaz de segurança interna, que tem impedido a realização desses atentados em solo americano. O imperativo da preservação do bem comum exigiu restrições aos direitos individuais de ir e vir. Também se preveniram contra esse mal governos como o israelense, que sempre atualiza as suas políticas de segurança contra o terror.

Mas não ocorre o mesmo com os países europeus, que derrubaram barreiras entre eles e baixaram a guarda. Moral da história: estão desarmados em face dos reptos estratégicos do século 21, representados por duas séries de eventos: o terror islâmico, de um lado, e, de outro, as ondas migratórias multitudinárias que se abatem sobre a Europa, como outrora, nos estertores do Império Romano e no ciclo medieval, ao ensejo das ondas de populações bárbaras empurradas de dentro da Ásia Central por seculares déspotas como Gengis Khan e outros. Esses são os reptos aos que os europeus devem fazer frente hoje em dia, que se somam ao desgaste sofrido pelo modelo de welfare state, que tem produzido tantas dores de cabeça aos governantes da Europa Ocidental, ao longo dos últimos quinze anos.

No quadrante latino-americano do cenário mundial, as condições vividas pelos diversos países ao longo do final do século 20 e começos do 21, ao ensejo da guerra suja das drogas, assemelham-se às que a Europa Ocidental sofre hoje com o terrorismo islâmico. A brutalidade do terror democratizou-se de forma inexorável e paradoxal.

O colunista do diário Observador de Lisboa, João Marques de Almeida, escreveu recentemente (“Minha querida Bruxelas”, 23/03/2016) um texto que poderia ter sido redigido, também, por um colombiano durante a guerra dos cartéis das drogas na época de Pablo Escobar, nos anos noventa do século passado, ou por um mexicano afetado pela guerra que os vários cartéis de traficantes movem contra o Estado mexicano nos dias atuais: “Não sei se é uma guerra, nem tenho um bom nome para lhe dar. Mas sei que a nossa vida mudou. Rotinas simples como apanhar o metro para ir trabalhar pode significar o fim, a morte. Obviamente, não vamos mudar a nossa vida. Seria conceder uma vitória aos terroristas (...). A vida é mais insegura, nossas famílias e amigos (e todos nós) viverão mais preocupados. Mas não podemos alterar os nossos hábitos (...). Estamos a assistir à banalização (no sentido em que Arendt usou o termo) de ataques terroristas (...). Inevitavelmente, isto fará de nós menos tolerantes. As nossas sociedades serão mais nacionalistas e mais fechadas (...)”.

Matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo (“América Latina: holocausto movido pela cocaína”, 19/03/2016 e reproduzido pelo ex-blog do César Maia) noticiava que o jornalista britânico Ioan Grillo, radicado no México e autor de El Narco, em artigo recente intitulado: “Gangster Warlords” se perguntava o seguinte: “Por que as Américas se encontram afundadas em sangue no amanhecer do século 21?” Grillo pesquisou vários grupos de narcoguerrilheiros atuantes na região: Mara Salvatrucha (El Salvador, Guatemala e Honduras), Shower Posse (Jamaica), Comando Vermelho (Brasil) e Cavaleiros Templários (México). O jornalista destaca que, desde o início do século até 2010, esses grupos armados mataram mais de um milhão de pessoas. Levando em consideração que as cifras dos mortos nessa guerra só aumentam, o autor conclui que a América Latina vive um particular Holocausto movido pela cocaína. O autor considera que por trás de todas essas vítimas esconde-se um enorme empreendimento econômico: os narcotraficantes fazem circular na região um lucrativo montante de 300 bilhões de dólares anuais.

No nosso país é claro que a violência disparou ao ensejo da explosão de consumo de crack, presente hoje em 97% dos municípios brasileiros, tudo isso potencializado pela “colaboração” do “companheiro” Morales na Bolívia, que aumentou assustadoramente a exportação de pasta base de coca para o Brasil ao longo dos governos petistas. Os nossos cartéis das drogas são diversificados e poderosos, sendo os dois mais destacados o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital, que controlam boa parte dos presídios brasileiros. Os cartéis caboclos já desataram há anos a “guerra suja” contra as forças de segurança, pagando recompensas pelo assassinato de policiais, que se tornou corriqueiro no Rio e em São Paulo. Abriram também a caixa de pandora do terrorismo indiscriminado contra a população civil, com o incêndio de ônibus lotados de passageiros apavorados. Pablo Escobar, lembremos, chegou a derrubar um Boeing cheio de passageiros, nos arredores de Bogotá. Isso o jornalista britânico não leva em consideração. Como tampouco o fato da participação, na guerra das drogas, de grupos paramilitares dos governos “bolivarianos” de Chávez e Maduro na Venezuela, que transformaram o vizinho país num virtual narcoestado, ao serem as elites políticas irrigadas pelos lucros da exportação de narcóticos.

O jornalista britânico tampouco leva em consideração que as FARC, na Colômbia, viraram cartel de drogas após a derrubada do Muro de Berlim, no final do século passado. Como se tratava de guerrilheiros de esquerda, os governos petistas recusaram-se sempre a catalogar as FARC como grupo terrorista. Afinal de contas, tratava-se de “companheiros” que lutavam pela instauração do comunismo apregoado pelo Foro de São Paulo. Alguns deles refugiaram-se no Brasil, tendo sido muito bem recebidos pelo governo.

Concluindo: tanto na Europa quanto na América Latina estão em curso respectivas guerras contra o terrorismo, com inúmeras vítimas entrando nessa ciranda da morte, sendo que no nosso continente esse número é infinitamente maior do na Europa. Que o digam os 60 mil assassinatos ocorridos anualmente no Brasil em decorrência, em grande medida, da violência desatada pelos cartéis das drogas que se assenhorearam das cidades nordestinas e do norte, na Amazônia, por onde hoje são exportadas para os narcoestados da África Ocidental as drogas que os traficantes processam. Com uma legislação antiterrorista fraca que poupa os denominados “movimentos sociais” em caso de terrorismo, estamos mal preparados para fazer frente ao desafio terrorista, num momento delicado ao ensejo da realização de eventos internacionais massivos (como as Olimpíadas do Rio, em meados deste ano).

Certamente, os cidadãos europeus e latino-americanos vivem hoje sob o constante medo de atos terroristas, como os que acabam de ser cometidos em Bruxelas. O terrorismo se tornou democrático, abarcando igualmente países desenvolvidos ou em desenvolvimento.


 

sábado, 19 de março de 2016

A ESQUIZOFRENIA LULISTA


Um caso típico de esquizofrenia política: esse é o mal que acomete a Lula. Nas gravações obtidas com autorização da Justiça das suas conversas telefônicas com autoridades, amigos e militantes, Lula é o iconoclasta radical que não poupa ninguém. Considera-se aquele que pode, como Nero, incendiar não apenas uma cidade, mas o país inteiro. Revela-se uma personalidade megalomaníaca que se sente superior ao resto da Humanidade e, em decorrência disso, com direitos acima da média dos mortais. Não pode ser enquadrado pela justiça, como se isso fosse crime de lesa-majestade. A família do prócer é intocável, sendo criminosa qualquer autoridade judicial que ousar inquirir sobre bens adquiridos e investigar a sua esposa e filhos. Ai de quem duvidar da honradez absoluta do líder e dos seus colaboradores! Pior: o seu vocabulário constitui, como dizia Ruy Castro lembrando Buffon, em artigo memorável (“O estilo é o homem”, Folha de São Paulo, 16/03/2016), palavrório somente escutado em mictório de bar. O Supremo Tribunal Federal é “uma corte acovardada”. As demais autoridades judiciais são autoritárias e devem temer pelos seus atos descabidos de indagar sobre a origem dos bens do apedeuta e familiares. Os oposicionistas são desprezíveis, enfim, ninguém pode sequer tecer comentários negativos em relação ao cacique. Não menciono, obviamente, os palavrões e as expressões chulas com que são acompanhadas as avaliações do ex-presidente sobre os seus desafetos.

Na mesma linha de radicalismo situam-se documentos assinados por Lula, como a denominada “Carta de Olinda”, da lavra dos militantes petistas e com a qual o então candidato iniciou a sua campanha rumo à presidência da República, em meados de 2002. O documento era uma retomada do modelo radical de comunismo escancarado copiado de Cuba. Pau na iniciativa privada, briga com o capital internacional, generosidade oficial em face dos movimentos sociais, busca da igualdade proletária, combate aos ricos, reformulação da política externa seguindo os princípios do Foro de São Paulo, que Lula e Fidel Castro tinham fundado no início dos anos 90, com a finalidade de dar sobrevida, na América Latina, ao cadáver insepulto do comunismo, que tinha afundado no Leste europeu. Com essa plataforma Lula certamente não teria se eleito, e ficaria confinado aos eternos 15% do eleitorado. Lula se revelava, nesse documento, como autêntico líder messiânico que salvaria o Brasil da opressão da odiada burguesia internacional e dos seus filhotes tupiniquins.

A outra cara da dupla personalidade lulista é constituída por outras “Cartas” que, vez por outra, o ex-líder sindical encomenda aos seus marqueteiros e escribas. Uma delas, memorável, de autoria do seu marqueteiro, é a denominada “Carta ao Povo Brasileiro”, com que o candidato que não decolava nas pesquisas eleitorais esperava atrair a classe média na morna campanha de 2002.  Nesse documento, Lula utilizava um linguajar decente, não assassinava o português, revelava-se um socialdemocrata moderado que respeitaria a rotatividade do poder, bem como os compromissos internacionais que, no plano econômico e político, tinha assumido o Brasil. A opinião pública deixou-se seduzir, infelizmente, pela eloquência do documento em apreço e elegeu maciçamente o ex-metalúrgico para o seu primeiro quatriênio.

Outra “Carta” de feição moderada acaba de ser divulgada por Lula (“Carta Aberta” de 17 de Março de 2016) após o mal-estar causado pela revelação das gravações feitas pela Polícia Federal com autorização da Justiça, ao ensejo da trama do Palácio do Planalto e da direção petista para Lula integrar o gabinete da Presidenta Dilma, a fim de livrar o chefe da prisão que os procuradores do Ministério Público paulista tinham requerido e que foi encaminhada pela juíza responsável pela 24ª Vara da Justiça paulista para o Magistrado Sérgio Moro, por entender que este Juiz Federal já tinha adiantado bastante a investigação sobre os mesmos pontos tocados pelos procuradores paulistas. No documento em apreço, Lula se revela como um cidadão comum, que admite ser investigado pela Justiça, embora manifeste ressentimento pelo fato de a sua família ter sido também investigada e critique o fato de o Juiz Federal que o enquadrou para indagação com escolta policial em São Paulo, não ter levado em consideração o seu amplo direito de defesa. Mas a reclamação é feita sem xingamentos. O ex-metalúrgico apresenta-se com humilde reconhecimento de que não teve oportunidade de cursar estudos superiores, o que não lhe impede de ter um agudo senso moral para distinguir o certo do errado. Enfim, Lula é, na sua “Carta Aberta”, uma pessoa normal.


A opinião pública brasileira já matou a charada do duplipensar lulista e não se deixa mais enganar. Lula não convence ninguém com os seus dois estilos contrastantes. Ele é um patife notável, que fez uso do poder sem escrúpulos, que se enriqueceu ilicitamente e que não dá explicações adequadas quando é cobrado pelos seus antigos eleitores. Sem ser a boia de salvamento (que os petralhas imaginavam) para o atual governo em fim de linha, a sua presença é mais um buraco no navio petista, que já faz água. É um peso morto que Dilma, na sua falta de previsão política, convidou para pilotar o navio que é ameaçado pelas tempestades que se desenham no horizonte da Lava Jato e do processo de impeachment que ela enfrenta. Problema dela que termina atingindo também, infelizmente, os cidadãos de bem, pelas dificuldades que a incômoda presença do marujo do caos está criando, na difícil tarefa de reerguer a economia do País bastante abalada pela roubalheira petralha. Lula está mais, como diria Mário de Andrade em Macunaíma (1928), para “herói sem nenhum caráter”.

sexta-feira, 11 de março de 2016

E LA NAVE VA





Os tempos são tensos e os acontecimentos se aceleram com rapidez cinematográfica. Acho que a melhor imagem para retratar o Brasil nestas vésperas das grandes manifestações de 13 de Março é a do filme E La Nave Va de Frederico Fellini (1983), que relata a misteriosa viagem-funeral das cinzas (que seriam lançadas ao mar) de uma cantora lírica em torno à ilha grega onde ela nasceu. Na tresloucada viagem se destaca um nobre que teme pela integridade dos viajantes desse Titanic surrealista, diante da descoberta, no convés do navio, de um grande número de refugiados sérvios que fogem da turbulência desatada em 1914, na véspera do início da Primeira Guerra Mundial. A onírica viagem prossegue em meio a muitos eventos que não colam uns com os outros, mas nos quais se destaca a misteriosa presença, nos porões do transatlântico, de um rinoceronte moribundo acompanhado do seu cuidador que, na filmografia felliniana, segundo os críticos, representaria as organizações sindicais que perdiam força nas lutas sociais que pipocavam aqui e acolá antes da Grande Conflagração. 

Digamos que, para nós, a nave é o Brasil perdido no mare Magnum de acontecimentos que nos atordoam, que ora fazem o dólar despencar, ora fazem a divisa americana subir, acompanhando o sobe e desce das nossas expectativas. A nau perdida no imenso oceano seria o Brasil chefiado pela incompetência dilmista. O nobre que reclama da insegurança da viagem representaria a opinião pública que exprime temores em torno à estabilidade das instituições. O rinoceronte moribundo no porão não poderia deixar de ser o grande chefe que já foi levado a depor, sob escolta policial, e cujo pedido de prisão foi pedido pelo Ministério Público paulista, aumentando ainda mais a tensão entre os viajantes desse Bateau Îvre, diante da expectativa de o líder se refugiar taticamente no ministério dilmista para escapar do duplo enquadramento pela Justiça paulista e pelo juiz federal Sérgio Moro. Estou me lembrando, a propósito de “navios bebuns”, do poema (com o título acima mencionado) que Arthur Rimbaud, em 1871, com apenas 17 anos, escreveu, pouco antes de mergulhar/naufragar na tumultuosa relação com Paul Verlaine. O nosso Navio Bêbado seria, novamente, o Brasil mergulhado nas águas tempestuosas da política, em meio aos calores deste verão que não termina.

Mas nem tudo é incerteza na atual conjuntura. Sabemos que a Magistratura e o Ministério Público, nas suas instâncias federal e estadual, funcionam a contento. Na denúncia apresentada pelo Ministério Público paulista à Justiça, Lula é denunciado por ocultação de patrimônio, lavagem de dinheiro e incitamento à revolta contra as instituições republicanas, particularmente contra o Ministério Público e a Magistratura. Os Promotores paulistas mencionaram na peça acusatória, filme feito pela deputada Jandira Feghali, do PC do B, no qual, em segundo plano (imaginando talvez que estava em off) aparece o ex-presidente pronunciando xingamento inominável contra os Promotores e a Magistratura. Uma vergonha nacional! Segundo a denúncia que culmina com o pedido de prisão do ex-presidente, Lula era o mascote de vendas dos apartamentos do condomínio “Solaris” do Guarujá. O que a juíza da 4ª Vara da Justiça Criminal de São Paulo decidir a respeito, não sabemos. O texto da denúncia é longo (74 páginas) e bem fundamentado. Na parte final do Documento, os promotores paulistas citam o Assim falou Zaratustra de Nietzsche, quando o filósofo diz, pela boca de Zaratustra, que não há super-homens e que todos estão sujeitos à lei.

A equipe de Promotores da operação Lava Jato já tinha lembrado esse princípio há alguns dias atrás, quando Lula foi conduzido pela polícia federal para prestar esclarecimentos. Boa lembrança nestes tempos de cinismo lulopetralha que estabelece o conceito rousseauniano de soberania, segundo o qual uns são mais iguais do que outros, estando os militantes petistas e o seu chefe, claro, livres das amarras da lei. É o velho princípio leninista de pretender erguer um poder não controlado por leis. Bom, claro, apenas para eles. Ruim para o resto. É inaceitável, de todo ponto de vista, o chamado que Lula, irado, fez à militância para que se levantasse contra as decisões da Justiça e que a Presidente tivesse se solidarizado publicamente com ele, repetindo falsas acusações contra os Juízes e Promotores, como se eles fossem militantes partidários.

Que as instituições republicanas passam por uma crise, não há dúvida. Mas nem tudo está paralisado. É bom lembrar, como frisava o ex-presidente Fernando Henrique (“Cartas na mesa”, Estadão, 6 de Março, p. A2) que “(...) Algumas corporações do Estado (...) se robusteceram: partes do Ministério Público e da Polícia Federal, segmentos do Judiciário, as Forças Armadas e partes significativas da burocracia pública, como no Itamaraty, na Receita e em algum ministério, ou no Banco Central”. Esse segmento do Estado, aliado aos que, desde a Oposição, fazem a crítica no Congresso aos atuais desmandos, responderá ao que os brasileiros de bem exigimos nas ruas e avenidas: o fim da impunidade e da corrupção.


De quem será a titularidade do processo no caso do enquadramento do ex-presidente Lula? Da Justiça paulista ou da Justiça Federal, haja vista que corre no Paraná, sob a direção do juiz federal Sérgio Moro, processo similar ao apresentado pelos promotores paulistas? O STF, possivelmente, dirimirá a questão. Resta-nos, aos simples cidadãos, fazermos o nosso dever de casa: Vamos às ruas no domingo 13 para exigirmos o fim deste governo corrupto!