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sábado, 9 de maio de 2020

Pensadores Brasileiros - LINDOLFO LEOPOLDO BOECKEL COLLOR (1890-1942)



Duas figuras são essenciais para compreender as reformas conservadoras realizadas no ciclo getuliano: do ângulo sociológico, Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951); do ponto de vista político e estratégico, Lindolfo Leopoldo Boeckel Collor (1890-1942). O primeiro elaborou o quadro conceitual e metodológico, a partir do qual é possível compreender a passagem do Brasil patriarcal e rural ao Brasil industrializado, presidido pelo Estado nacional; o segundo pensou os mecanismos práticos para tornar realidade o surgimento e consolidação deste último. Ambos os autores elaboraram uma proposta que se situou como alternativa ao autoritarismo tradicional e ao liberalismo oitocentista da República Velha, tendo dado ensejo a um modelo que se aproxima das hodiernas formas de social-democracia, embora as propostas, por ambos apresentadas, fossem muito parcas no que tange à adoção das instituições do governo representativo.
Tanto Oliveira Vianna quanto Boeckel Collor foram críticos do liberalismo na sua versão individualista e laissezferista e acreditavam, à maneira de John Maynard Keynes (1883-1946), na capacidade intervencionista do Estado na efetivação do processo modernizador. Mas, ao mesmo tempo, um e outro se bateram pela defesa das liberdades civis. De origem doutrinária castilhista, ou seja positivista tutelar, Boeckel Collor se distanciou, paulatinamente, da feição autoritária, para se aproximar de um modelo doutrinário mais acorde com o luteranismo, que professava, como religião de família.
Formado na sociologia de Fréderic Le Play (1806-1882), Oliveira Vianna inseria-se no contexto do que se convencionou em denominar de "culturalismo sociológico", herdeiro da teoria social formulada por Sílvio Romero (1851-1914), nas últimas décadas do século XIX, que atribuía importante papel ao estudo dos valores, na identificação das causas da ação social, e se distanciava das propostas positivistas ou positivistas-marxistas, ao rejeitar o monocausalismo em ciências sociais, tentando construir modelos teóricos hauridos da experiência e com valor relativo (os denominados por Oliveira Vianna de "complexos culturais"), muito próximos, aliás, dos tipos ideais weberianos.
O curioso é que ambos os autores inspiraram a ação modernizadora de Getúlio Vargas (1883-1954), um castilhista de feição saint-simoniana, pragmático antes de mais nada. Boeckel Collor e Oliveira Vianna inspiraram, também, a feição mais aberta do getulismo, que contava, de outro lado, com mentores intelectuais decididamente autoritários como, por exemplo, Francisco Campos (1891-1968), tributário das idéias corporativistas do fascismo, ou o general Pedro Aurélio de Góes Monteiro (1889-1956), um castilhista linha dura, defensor da ditadura científica. Assim, a influência de Boeckel Collor e de Oliveira Vianna é responsável, sem dúvida, pelos aspectos modernizadores e liberalizantes do regime getuliano.
A influência de Lindolfo Collor deu-se, inicialmente, na fundamentação doutrinária da Aliança Liberal, em 1929, e, após a Revolução de 30, na formatação da política social ao redor do Ministério do Trabalho, em cuja criação Vargas não tinha se empenhado muito, tendo sido de Lindolfo a idéia de organização dessa pasta. Oliveira Vianna passou a influir no Estado getuliano após a saída de Collor do governo, em 1932, se integrando ao Ministério do Trabalho, como consultor. Mas a sua influência doutrinária já tinha se exercido sobre Getúlio, quando da passagem deste pelo Congresso Nacional, entre 1923 e 1926. À luz da sociologia de Oliveira Vianna, efetivamente, o jovem parlamentar Getúlio Vargas descobriu a dimensão nacional dos problemas brasileiros, se distanciando, portanto, da tacanha perspectiva provinciana circunscrita ao Rio Grande do Sul, em que os castilhistas da primeira geração tinham se fechado. É imprescindível, portanto, para a compreensão do Brasil moderno, que emergiu da longa passagem de Getúlio pelo poder (1930-1945; 1951-1954), entender o pensamento e a ação política de Lindolfo Boeckel Collor e de Oliveira Vianna.
I - TRAÇOS BIO-BIBLIOGRÁFICOS DE LINDOLFO COLLOR.
Lindolfo Leopoldo Boeckel Collor nasceu em São Leopoldo, Rio Grande do Sul, em 4 de fevereiro de 1890, filho de João Boeckel e Leopoldina Schreiner Boeckel. Órfão de pai, acrescentou ao próprio sobrenome o do padrasto, Antônio João Collor, alemão nato e pequeno empresário do ramo de navegação fluvial do rio Caí, em quem encontrou, sempre, sólido apoio.
Nos anos de 1906 e 1907, Lindolfo estudou no Seminário da Igreja Episcopal do Rio Grande e participou, ativamente, da vida religiosa, pregando o evangelho na cadeia pública do Rio Grande, sob a orientação  do reverendo Américo Vespúcio Cabral (1870-1937). Colaborou com as atividades pastorais da Igreja Episcopal em Porto Alegre, como professor na Associação Cristã de Moços. Em 1908, Lindolfo formou-se em farmácia, na “pouco prestigiosa” Escola de Farmácia de Porto Alegre, mas nunca exerceu a profissão de farmacêutico.
Ainda moço, em 1921, aos 21 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar como redator do Jornal do Comércio e, a partir de 1919, como diretor de A Tribuna. Em 19 de fevereiro de 1914, Lindolfo Boeckel Collor casou-se, no Rio de Janeiro, com Hermínia Bartolomeu de Souza e Silva, filha de Luiz Bartolomeu de Souza e Silva (1864-1932), jornalista e deputado pelo Paraná, dono do jornal A Tribuna. Depois de casado, o nosso autor formou-se na já extinta Academia de Altos Estudos Sociais, Jurídicos e Econômicos, fundada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro. Em 1920, participou da fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.
Em 1921 foi nomeado diretor de A Federação, órgão do Partido Republicano Rio-Grandense; pesaram nessa nomeação as suas estreitas relações com o líder dessa agremiação, Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961). Nesse jornal, o jovem editorialista escreveu, em 1922, o célebre editorial "Pela Ordem", contra o levante tenentista de 5 de julho, publicado na edição do dia 7. Eis os trechos mais importantes do mencionado editorial, que revelava a índole conservadora do republicano de inspiração castilhista: "Nada mais absurdo nem mais condenável do que corrigir uma violência com outra violência. Se nós abordássemos agora esta estrada, daríamos início, lamentavelmente, a um retrocesso histórico em demanda das turbulentas origens caudilhescas da maior parte dos Estados americanos (...). Não cabe à orientação política que vem combatendo a candidatura Bernardes a mínima responsabilidade nesses acontecimentos. E se fosse verdade, como já se começa a assoalhar, que políticos houvera instigadores do motim, a mais ampla devassa no caso só serviria para pôr mais uma vez em alto e inconfundível relevo a correção da política rio-grandense, em todo o desenrolar dessa campanha de opinião que levamos travada contra os defraudadores do regime. Inabaláveis no nosso posto de convicção, não pouparemos, dentro da ordem, o último esforço pela integridade da Constituição e pela moralidade do regime. Pela desordem civil não contribuirá o Rio Grande do Sul. (...). Dentro da ordem sempre; nunca pela desordem, parta de onde partir, tenda para onde tender - é este o nosso lema, supremo e inderrocável".[1]
Lindolfo Collor foi, desde a sua juventude, figura controvertida no Rio Grande do Sul, segundo testemunha Vianna Moog. Espírito independente, mesmo em relação aos seus mais estreitos colegas de Partido como Getúlio Vargas, o nosso autor sofreu, ao longo de sua vida pública, os dissabores da perseguição e do exílio. Esse traço altivo da personalidade impressionou ao seu mais importante biógrafo, Clodomiro Vianna Moog (1906-1988), que relata assim a resposta que o ilustre gaúcho dava aos que indagavam pelos motivos das suas prisões: "Por que o prenderam, doutor Collor? - Porque estava solto. Tempos depois, verificado que não tivera qualquer participação nas intentonas de direita ou esquerda daqueles confusos tempos, soltavam-no. - Como é que o soltaram, doutor Collor? - Naturalmente, porque estava preso. Era orgulhoso demais para queixar-se ou imprecar".[2]
No final do ano 1910 Lindolfo Collor elegeu-se deputado à Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Em 1923, foi eleito deputado federal. Na Câmara, foi membro da Comissão de Finanças e presidente da Comissão de Diplomacia dessa casa do Congresso. Tomou parte em várias reuniões internacionais, como a Conferência Interamericana de Havana, reunida em 1928. Desempenhou importante papel na Convenção que criou a Aliança Liberal, em 1929, sendo da sua lavra o respectivo Manifesto. Destacou-se, também, como um dos mais ativos articuladores da Revolução de 1930, ao lado de Getúlio Vargas, Borges de Medeiros, João Neves da Fontoura (1887-1963), Oswaldo Aranha (1894-1960), etc. Triunfante o movimento revolucionário que levou Getúlio Vargas ao poder como chefe do governo provisório, em 1930, foi o primeiro titular do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, criado por sugestão sua. O novo Ministério desempenhava as funções de organismo técnico federal para a elaboração, aplicação e fiscalização das novas leis trabalhistas, e reuniu nos seus quadros os antigos juristas, intelectuais e parlamentares que lutavam em prol dessa legislação. O ministro Boeckel Collor estava rodeado de ilustres socialistas humanitários como Evaristo de Moraes (1871-1939), seu primeiro consultor jurídico, Joaquim Pimenta (1886-1963), Agripino Nazareth (1886-1961), etc.[3]
Lindolfo permaneceu à frente dessa pasta de 26 de novembro de 1930 a 4 de abril de 1932, um período realmente curto para a grande tarefa que conseguiu realizar, pois durante esse breve espaço de tempo Boeckel Collor deitou as bases da legislação social e trabalhista brasileira. Vianna Moog sintetizou, assim, as mais importantes realizações do primeiro ministro do Trabalho: "A 11 de novembro de 30 já aparecia o primeiro decreto assinado por Getúlio Vargas, e referendado por Lindolfo Collor: limitava a entrada no território nacional de passageiros de terceira classe e dispunha sobre a localização e amparo de trabalhadores nacionais. Depois, o que alterava as disposições referentes à aplicação dos fundos das Caixas de Aposentadorias e Pensões. Depois, o que estendia ao pessoal dos serviços de força e luz e telefones, a cargo dos Estados, Municípios e particulares, o regime de um decreto que beneficiava apenas aos funcionários de determinada companhia, em detrimento dos demais. (E os decretos se sucediam). Este que modificava a organização do Instituto de Previdência dos funcionários públicos da União; aquele organizava o Departamento Nacional do Trabalho; aquele outro regulava a sindicalização das classes patronais e operárias. Ao cabo de poucos meses, com o hábito muito brasileiro de magnificar as coisas, já havia quem se orgulhasse de possuirmos no Brasil a legislação social mais avançada do mundo".[4]
Tamanha obra criativa, em tão curto prazo, só teria paralelo, consoante Vianna Moog, com a de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o Patriarca da Independência, que em período quase idêntico deitou os alicerces jurídicos do Império brasileiro. Ao analisar, mais adiante, o embasamento político da Aliança Liberal, aprofundarei nas razões que explicam essa criatividade. Mencionarei, de momento, duas: a compreensão, por parte da elite que formou a segunda geração castilhista (na qual se inseria Boeckel Collor) de que só com um grande esforço modernizador, originado no Estado, seria possível responder às intrincadas questões colocadas pela problemática social, que a República Velha tinha enfrentado apenas parcialmente e que, especialmente durante a presidência de Arthur Bernardes (1875-1955) fora reduzida, no contexto do crônico estado de sítio, a caso de polícia. Outro fator poderia ser mencionado: a peculiar forma em que os castilhistas da segunda geração entenderam as relações entre o direito privado e o direito público, considerando o direito coletivo, ou direito sindical, como elo de união entre os dois primeiros. Na exposição de motivos que acompanhava o Decreto no. 19.770 de 19 de março de 1931, que ensejava a formação do sindicato único, Lindolfo frisava que "o direito coletivo, ou o direito sindical, é o traço de união ou o termo de passagem entre o direito privado e o direito público".[5]
As antigas inimizades ensejadas no meio militar a partir do seu editorial "Pela Ordem" que, como frisamos, reagia contrariamente à revolta tenentista de 22, terminaram conspirando contra a permanência do ilustre gaúcho à frente do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. O empastelamento do Diário Carioca pelos militares do Clube 3 de Outubro, que apoiaram a Revolução de 30, precipitaria a renúncia de Boeckel Collor, em 4 de abril de 1932. Junto com ele, abandonavam o governo outros importantes castilhistas da segunda geração como João Neves da Fontoura, Maurício Cardoso (1888-1938) e Batista Luzardo (1892-1982). A carta dirigida por Lindolfo a Getúlio Vargas por ocasião de sua renúncia é, como frisa Vianna Moog, um claro testemunho de dignidade cívica e reflete uma grande sensibilidade frente à questão das liberdades civis, que pouco sensibilizavam o Chefe do Governo Provisório.
De resto, já se havia dado, no seio do Castilhismo, essa divisão, em duas oportunidades: no decorrer da guerra civil entre Pica-paus (positivistas) e Maragatos (liberais) (1891-1897), que separaria os castilhistas ortodoxos da ala mais liberal liderada por Fernando Abbott (1857-1924), Barros Cassal (1858-1903) e Assis Brasil (1857-1938), e no transcurso da revolução federalista de 1923, quando as duas correntes se polarizaram ao redor do mesmo Assis Brasil de um lado, e de Borges de Medeiros, de outro. No entanto, o liberalismo que empolgava à que poderíamos chamar de corrente moderada do Castilhismo, não chegaria a amadurecer num claro modelo de governo representativo.
Vale a pena transcrever os trechos mais significativos da carta do ilustre demissionário: "Senhor Doutor Getúlio Vargas, chefe do Governo Provisório: Insistindo no pedido que ontem lhe fiz verbalmente da minha demissão do cargo de Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, devo rapidamente resumir as causas que me impõem essa decisão que é irrevogável. Quanto a mim, posso dizer de ânimo sereno que, nesta agitada fase governamental que deveria ser de construção ponderada e serena e não de sistematizada confusão, procurei sempre, quanto possível, alhear-me da mediocridade das politiquices pessoais que atingiram, de um tempo a esta parte, a verdadeiros paroxismos de intriga. Por amor do Brasil, do Rio Grande do Sul e da Revolução, fui transigindo, até onde me era possível, com esse estado de coisas. Agora, porém, qualquer contemporização e transigência se confunde com fraqueza e a contemporização com covardia (...). São de ontem as minhas pregações da tribuna parlamentar e na imprensa da Aliança Liberal, em favor da liberdade de opinião, que foi um dos postulados básicos da campanha de renovação em que me coube a responsabilidade de ser um dos leaders, embora de menor valia. Devo afirmar a V. Exa. - e V. Exa. sabe que eu falo a verdade - que se me fosse dito que a Revolução se faria, precisamente, para manietar e sufocar essa liberdade que é a pedra angular das sociedades organizadas, eu não teria sido, como fui, um dos elementos decisivos da conspiração que deflagrou no movimento de 3 de outubro. (...). Pode V. Exa. estar certo de que ninguém mais do que eu lamenta essa resolução a que sou levado por imperiosas e indeclináveis razões de ordem cívica. Fiz o que pude para evitar que as coisas chegassem a tal extremo. Hoje, cumpro o meu dever, e se com o cumpri-lo estou pesaroso e não ufano, deve levar-se o fato à convicção que tenho da gravidade do momento, bem como a antigas ligações de estima que me prendem a V. Exa. De V. Exa. amigo atento, (a) Lindolfo Collor".
O desenvolvimento posterior dos fatos históricos, em que sobressaía um enrijecimento do regime, por cima da retórica liberal que tinha empolgado parcialmente à Aliança Liberal, colocaria Lindolfo Boeckel Collor em oposição ao Estado getuliano. Assim, ele participou da Revolução Constitucionalista de 32, lutando numa das colunas revolucionárias que, no Rio Grande, apoiavam o movimento desfechado em São Paulo. Derrotada a Revolução Constitucionalista, Lindolfo exilou-se na Argentina, de onde retornaria ao ser convocada a Assembléia Constituinte. Ocupou o cargo de Secretário das Finanças do governador José Antônio Flores da Cunha (1880-1959), no Rio Grande do Sul. Participou, também, da União Democrática Brasileira e apoiou a candidatura de Armando de Salles Oliveira (1887-1945) à Presidência da República. Decretado o Estado Novo, em 1937, o nosso autor foi várias vezes preso e chegou a ser deportado para a Europa, de onde regressou muito doente, em 1942. Foi detido novamente, tendo sido solto apenas poucas semanas antes de morrer no Rio de Janeiro, em 21 de setembro do mesmo ano, com 52 anos incompletos. Segundo testemunho de Vianna Moog, Getúlio Vargas tentou se reconciliar com o antigo colaborador, lhe oferecendo, pelo seu intermédio, a embaixada do Brasil na Colômbia, cargo que Lindolfo não pôde aceitar por causa da doença.
O nosso autor colaborou, regularmente, em jornais do Brasil e do exterior. Publicou, entre outras, as seguintes obras: Sinal dos TemposO Brasil e a Liga das NaçõesO Convênio de MontevidéuEuropa 1939 e Garibaldi e a Guerra dos Farrapos. Deixou um ensaio inédito sobre a vida e a obra de Camillo Castelo Branco (1825-1890). Grande era a inteligência política e a capacidade de análise histórica de Lindolfo Boeckel Collor, como testemunha a sua obra. Mais adiante referir-me-ei ao seu Manifesto da Aliança Liberal. Em decorrência dos múltiplos exílios e prisões a que foi submetido, o autor de Garibaldi e a Guerra dos Farrapos considerava que o verdadeiro historiador é aquele que, exilado do espaço e do tempo em que vive, interpreta os documentos históricos à luz do momento psicológico em que foram redigidos. A vida intelectual foi, para a sua agitada carreira de político e de exilado, "uma indeclinável necessidade do espírito" e a entendia como uma "ruptura de contato com o mundo circunjacente",[6] para haurir, nas inesgotáveis fontes da história, o sentido do presente.
Vianna Moog destacou uma virtude marcante de Lindolfo Collor: unidade de pensamento e ação. A respeito, frisa: "Se é certo, como afirma Goethe, haver poucos homens que, possuindo entendimento, tenham, ao mesmo tempo, qualidades de ação, Lindolfo Collor pertenceu a este reduzido número de eleitos. Pensar para ele era agir. Era a um tempo pensamento e ação. Agiu sempre, sem parar nunca. Jamais fez alto, jamais pediu tréguas para recobrar forças em meio do caminho".[7]
II - IDEAIS POLÍTICOS QUE INSPIRARAM A PROPOSTA MODERNIZADORA DE LINDOLFO COLLOR.
Centrarei a atenção nos quatro ideais políticos fundamentais do estadista sul-rio-grandense: 1) o seu conceito de bem público, 2) a sua idéia de democracia representativa, 3) a sua concepção de justiça social e 4) a sua visão acerca da política econômica.
1) O bem público, por cima dos interesses individuais.- Podemos afirmar que Lindolfo Boeckel Collor foi a encarnação do ideal castilhista da pureza de intenções, em face da administração da República. Se contrapondo ao vício que Oliveira Vianna identificou como "complexo de clã",[8] típico da formação política brasileira, o nosso autor soube, como poucos, identificar o espaço do bem público. A República não podia ser, para ele, clientela de apaniguados dos donos do poder. res publica, para o ilustre gaúcho, girava na órbita da busca diuturna do bem público. Contrário à falsa idéia da privatização do poder para favorecer aos amigos, Lindolfo enxergava, no espírito republicano, fundamentalmente, o desinteresse pessoal na construção do bem-estar da Nação. A perda da "substância política", para Boeckel Collor, consistia no esquecimento do bem público, que acarretava a relativização das convicções e o predomínio dos interesses individuais. Eis a forma em que, em 1936, em discurso pronunciado em Novo Hamburgo (Rio Grande do Sul), o nosso autor identificava criticamente essa situação na vida pública brasileira: "Vivemos num período de desconcertantes confusões doutrinárias e de exacerbadas paixões pessoais. Na nervosa instabilidade dos nossos dias, os princípios, as normas, as regras de ação comum valem cada vez menos, a coerência das atitudes já quase nada vale. Sentimos todos que se vem processando dentro de nós mesmos uma dissociação de valores, um lento desmoronar de convicções, fenômeno que se poderia caracterizar como sendo uma perda gradual da substância política. Rompem-se os diques das convicções partidárias: o interesse individual passa a prevalecer sobre o coletivo. Em conseqüência, tudo que é de natureza privada hipertrofia-se no nosso mundo interior: os pendores egoísticos se dilatam, amplia-se desmesuradamente a superfície das susceptibilidades pessoais, a submissão consciente desaparece, o inconformismo e a vaidosa rebelião das vontades tomam o seu lugar. E daí, a passos rápidos, o ceticismo das elites e a anarquia mental das massas".[9]
Essa análise, de rara atualidade, coloca o nosso autor na trilha da tradição castilhista do culto ao bem público, por cima das rixas partidárias ou dos interesses subalternos. Era o espírito do que os castilhistas da primeira hora chamavam de reino da virtude. Arthur Ferreira Filho (1899-1996) sintetizou admiravelmente essa concepção. Para Castilhos, "somente os puros, os desambiciosos, os impregnados de espírito público deveriam exercer funções de governo. No seu conceito, a política jamais poderia constituir uma profissão ou um meio de vida, mas um meio de prestar serviços à coletividade, mesmo com prejuízo dos interesses individuais. Aquele que se servisse da política para seu bem-estar pessoal, ou para aumentar sua fortuna, seria desde longo indigno de exercê-la. Em igual culpa no conceito castilhista, incorreria o político que usasse das posições como se usasse de um bem de família. (...). Como governante, Júlio de Castilhos imprimiu na administração rio-grandense um traço tão fundo de austeridade que, apesar de tudo, ainda não desapareceu".[10] A primeira geração castilhista, certamente, deu testemunho vivo dessa integridade moral. Borges de Medeiros, por exemplo, viveu sempre modestamente. Como presidente do Rio Grande do Sul, ia a pé de casa para o palácio; quando recebia alguma visita ilustre, o governo alugava um carro de praça.[11]
O senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915) foi o castilhista de maior nomeada a nível nacional até 1915, devido ao fato de que, como vice-presidente do Senado, exerceu uma verdadeira ditadura branca sobre a República. Como Borges e Castilhos, Pinheiro Machado materializou as virtudes republicanas, numa mistura à la Robespierre de integridade moral, autoritarismo e inclinações jacobinas. O seu principal biógrafo, Costa Porto,[12] diz dele: "Honesto e puro no trato dos dinheiros, compreende-se como lhe doeria qualquer suspeita nesta matéria delicada". Inúmeros fatos comprovam essa apreciação. Durante a insurreição federalista sul-rio-grandense, por exemplo, rejeitou o pagamento oferecido pelo presidente da República, Floriano Peixoto (1839-1895), em reconhecimento aos seus serviços, obrigando os subalternos a fazer o mesmo. Certa vez chegou a pagar, de seu próprio pecúlio, a importância de mil contos, a fim de saldar uma quota da dívida pública brasileira.
À honestidade pessoal em relação aos dinheiros públicos, Pinheiro Machado juntava uma concepção do bem público bem semelhante à de Castilhos e Borges. Os supremos interesses da Nação traduziam, para ele, essa esfera. A procura destes supremos interesses constituía o objetivo final das suas atividades e o núcleo do seu pensamento político. Tais interesses identificavam-se com a defesa do regime republicano, entendido como o fortalecimento do Partido Republicano Rio-Grandense. A essa visão de superioridade do bem público sobre qualquer forma de interesses particulares, Pinheiro Machado juntava uma concepção sacra da República. De si próprio afirmava: "Eu (...) sou um convencido. Acredito que a forma republicana é a única que nos pode dar a liberdade; é a única que se afeiçoa à nobreza dos sentimentos humanos, é a única que eleva os homens, é a única que pode elevar a Nação ao apogeu da civilização. É por isso, que eu tenho pela forma republicana predileção (...), levando minhas convicções aos últimos limites, não podendo compreender a vida política senão sob esse regime". Era, em síntese, um místico da República, segundo a acertada expressão de Costa Porto. Nesse contexto hierático, o próprio Pinheiro considerava-se "o pálio debaixo do qual se guardava a hóstia republicana".[13]
Lindolfo Boeckel Collor formou-se no contexto dessa elevada concepção do bem público. Entendia a luta político-partidária não como briga imediatista e fisiológica pela posse do poder e das benesses da burocracia, mas como ação programática, desinteressada e disciplinada, pautada, exclusivamente, pela busca do bem coletivo. No discurso de Novo Hamburgo, já citado, o nosso autor frisava a respeito: "Abastardam-se e se transformam em facções os partidos que fazem tábua rasa das definições programáticas e subordinam os interesses da coletividade aos de um pequeno número, permitindo, destarte, que uma parte demagogicamente magnificada prevaleça sobre o todo. Assim tem sido através dos tempos, em todas as latitudes políticas, em todos os climas de cultura". E concluía, um pouco mais adiante: "Por disciplina partidária se entende o abandono dos pontos de vista pessoais em benefício de uma opinião coletiva, expressa pela chefia do partido".[14]
Os castilhistas da segunda geração, à cuja cabeça colocava-se Lindolfo Boeckel Collor, deram uma contribuição definitiva à modernização do país, ao estabelecerem, claramente, a distinção entre esfera pública e privada. Efetivamente, o vício fundamental da República Velha (1889-1930) consistia no complexo de clã implantado na política, como se esta fosse uma extensão das preocupações domiciliares das oligarquias, sendo a res publica administrada como res privata ou coisa nossa. A disciplina castilhista do bem público limpou os espíritos desse indesejável patotismo, e abriu as portas para que se formulasse, ao ensejo da Aliança Liberal, amplo programa de modernização nacional.
Pela primeira vez, depois do Império, falava-se uma linguagem verdadeiramente cívica, superadas as barreiras provincianas do clientelismo oligárquico e autoritário. "Falar à Nação - frisava o nosso autor no início do Manifesto da Aliança Liberal, escrito no final de 1929 - neste momento extremo, equivale à certeza, que lhe queremos transmitir, de que a nossa atividade cívica não lhe agravará os males, mas procurará evitar, por todos os meios legais ao nosso alcance, que a prepotência do mando, a fonte viciosa dos poderes constitucionais, o acintoso desrespeito à vontade do povo, em matéria de seu exclusivo direito, venham a ter, no Brasil, a chancela do irremediável. Se isso acontecesse, não poderia ser para bem da Nação".[15] [Collor, 1982: 50].
A grande falha da República Velha consistia, no sentir de Lindolfo, em que era dirigida por caprichos pessoais. "O Brasil anseia por medidas, não por homens. Os nossos homens de governo, à falta de uma invariável tradição de nível comum, por si só já não se impõem à confiança do povo. A Nação pergunta pelos seus princípios, pelas medidas de governo que pretendem realizar, e indaga ainda qual a corrente partidária que se constitui em garantia da sua execução".[16]
2) Consolidação da democracia representativa.- Boeckel Collor salientava que o objetivo fundamental da Aliança Liberal deveria ser "a restituição ao povo do que só ao povo pertence", ou seja, o exercício da sua soberania. Em outras palavras, tratava-se de restituir à palavra República o seu sentido original, de forma que ela "se reafirme entre nós como a imaginaram os seus apóstolos e fundadores, como o seu consolidador a praticou, como a entenderam sempre (...) os mais eminentes dos seus servidores".[17] O caminho apontado pelo nosso autor, para restituir à República o seu sentido original, era este: o fortalecimento da democracia representativa. Ela era, em primeiro lugar, a condição definitiva para que a anistia proposta no Manifesto da Aliança Liberal produzisse os seus frutos. Eis a forma em que o ilustre gaúcho vincula os ideais de paz e de democracia: "Mas não basta que os brasileiros vivam em paz. Nas democracias, a paz sem agitação de idéias e sem o pleno exercício dos direitos políticos, não é paz, mas estagnação. A paz na República não pode ser como a tranqüilidade dos mangues, que é decomposição. Ora, em todo regime de pensamento livre, o direito político fundamental, o direito que prima sobre os demais, o direito dos direitos é o que assegura ao povo a liberdade na escolha dos seus governantes. Como decorrência desse postulado, afirma-se em toda república normalmente organizada o princípio de que não é lícito aos homens, que a administram, indicar, escolher, e menos impor os seus substitutos".[18]
Mas se a paz e a democracia estavam estreitamente unidas, Boeckel Collor entendia que só se poderiam preservar as instituições republicanas, se a democracia apregoada não se limitasse à eleição dos governantes, mas fosse, também, representação da vontade popular. Eis um texto de indiscutível inspiração liberal em que o nosso autor, com rara sensibilidade de estadista, resgatava a melhor tradição política do Império: a representação. "Outros países, vizinhos ao nosso, já compreenderam de há muito que só existe um caminho seguro para evitar as desordens políticas, os sobressaltos na tranqüilidade pública e prevenir definitivamente os desastres das guerras civis. Esse caminho é o da perfeita, da rigorosa representação da vontade popular. Na infância das nacionalidades americanas, dava o Brasil a esses povos, flagelados pelo caudilhismo e atormentados pela anarquia, lições de sociabilidade política, de apelo à ordem, de respeito aos poderes constituídos. Hoje, parados nós a meio da jornada, podem alguns dentre eles gloriar-se de possuírem os aparelhos legais mais adiantados para o registro seguro e inviolável da opinião eleitoral".[19]
Arrostando sem devaneios o problema fundamental da República Velha, a corrupção eleitoral, Boeckel Collor propunha a revisão profunda do sistema em vigor. Para ele, tal providência constituía, no momento, "a mais instante das necessidades na remodelação do (...) arcabouço legal", já que "sem eleições honestas, não há vida pública (digna) desse nome". O ilustre gaúcho consignava as seguintes propostas, deitando assim os alicerces do Código de Justiça Eleitoral que viria a ser instaurado pouco depois, em 1932, e que possibilitou acabar de vez com as fraudes na apuração das votações: "Na reforma do nosso sistema eleitoral, a primeira condição a ser atendida deve ser a da inscrição automática dos eleitores. (...) As dificuldades, muitas vezes insuperáveis, que hoje se opõem como chicana política aos alistandos, devem desaparecer das nossas práticas eleitorais" [Collor, 1982: 65-66].
3) Implantação da justiça social.- Podemos afirmar sem exagero que o Manifesto da Aliança Liberal, de autoria de Lindolfo Boeckel Collor, constitui a primeira proposta sistemática, no Brasil, no sentido de implantar a justiça social nos terrenos trabalhista, educacional e da administração de justiça. No que respeita à questão trabalhista, é evidente o pioneirismo do nosso autor. Evaristo de Morais Filho lembra que Collor, de formação positivista, "levava para o governo o firme propósito de incorporação do proletariado na sociedade moderna", chegando até citar nominalmente Comte, na Exposição de Motivos do Decreto no. 19.770 de 19 de março de 1931. Efetivamente, era de típico sabor comteano o arrazoado do nosso autor que se referia, outrossim, à legislação francesa: "Guiados por essa doutrina - frisava Lindolfo - nós saímos fatalmente do empirismo individualista, desordenado e estéril, que começou a bater em retirada há quase meio século, para ingressarmos no mundo da cooperação social, em que as classes interdependem umas das outras e em que a idéia do progresso está subordinada à noção fundamental da ordem".[20]
Mas, se a inspiração era positivista, seria exagero identificar como corporativista ou fascista a legislação de 1931, efetivada pelo nosso autor, mesmo porque ele sempre se mostrou avesso a essas idéias, bem como ao nazismo, o que lhe ocasionou ser arrolado, pelo regime hitleriano, como pertencente ao grupo dos não ensináveis e defensor das democracias ocidentais.[21] Como de forma oportuna frisou Evaristo de Morais Filho (1933-1997), "o mérito de Collor foi o de saber cercar-se de antigos líderes e lutadores socialistas, tais como Agripino Nazareth, Evaristo de Morais (consultor jurídico do Ministério), Joaquim Pimenta, Carlos Cavaco, Deodato Maia. (...). Nenhum dos colaboradores de Collor era de direita ou favorável a qualquer manifestação corporativo-fascista".[22] Destaquemos que a feição corporativista da legislação trabalhista brasileira só se efetivou quando da Consolidação das Leis do Trabalho, elaborada, em 1943, por Francisco Campos, que se inspirou na Carta del Lavoro de Mussolini, mais de dez anos depois de o nosso autor ter deixado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
De outro lado, a independência de espírito que sempre caracterizou a Lindolfo Boeckel Collor (sendo uma prova disso a sua carta de renúncia ao Ministério, citada atrás), revelou-se, também, na formulação das leis trabalhistas. Pressões patronais houve, segundo testemunhou Evaristo de Moraes; no entanto, o nosso autor "resistiu às incursões atrevidas de certas empresas que pretenderam influir na atividade legislativa do Ministério, moldando-a pelos interesses capitalísticos".[23]
Não há dúvida quanto ao caráter pioneiro das preocupações trabalhistas de Boeckel Collor. Como acertadamente lembra Rosa de Araújo, "o primeiro passo para a instituição da justiça do trabalho é dado na gestão Collor com o projeto de Comissões Mistas de Conciliação entre empregados e empregadores".[24] Getúlio Vargas continuou, depois de o nosso autor ter abandonado o Ministério, a ampla tarefa legislativa nesse terreno. Mas, certamente, algo se perdeu com a saída de Collor: a dimensão democrática que ele soube imprimir ao processo de legislação trabalhista, que, sob a inspiração de Getúlio, viu-se contaminada com o vezo estatizante e corporativista que passou a animar, posteriormente, a Consolidação das Leis do Trabalho.[25] 
A proposta trabalhista do nosso autor, muito pelo contrário, alicerçava-se na idéia de proteção aos interesses dos trabalhadores, num contexto de liberdade sindical bem distante do clientelismo (ou peleguismo) que caracterizou, depois, ao trabalhismo getuliano. Eis as palavras de Boeckel Collor a respeito, no Manifesto da Aliança Liberal (escrito por ele, como já frisamos, em 1929): "A liberdade sindical para todas as indústrias e profissões e para os proletários em geral é, hoje, princípio vitorioso no mundo. A proteção aos interesses dos operários deve ser completa. A conquista das oito horas de trabalho, o aperfeiçoamento e a ampliação das leis de férias, dos salários mínimos, a proteção das mulheres e dos menores, todo esse novo mundo moral que se levanta nos nossos dias, em amparo do proletariado, deve ser contemplado pela nossa legislação, para que não se continue a ofender os brios morais dos nossos trabalhadores com a alegação de que o problema social no Brasil é um caso de polícia".[26]
No relacionado à questão educacional, o pensamento de Boeckel Collor no Manifesto era claro. Reivindicava maior participação da União no apoio à educação, nos seus três níveis, propunha a criação de uma "força coordenadora central" de todo o sistema de ensino, postulava a ampliação do ensino profissional, de acordo com as necessidades do país e lançava a idéia de uma reforma da Universidade, garantidas a "autonomia administrativa e didática".[27] No tocante à administração de justiça, o nosso autor considerava que a reorganização da Justiça Federal era uma das necessidades prementes do momento, levando em consideração que "não há justiça boa quando é tardia".[28] Lindolfo propunha a criação de tribunais regionais e a preservação da independência da magistratura.
4) Política econômica.- A contribuição fundamental da segunda geração castilhista foi, no sentir de Antônio Paim, a formulação e a prática do princípio do "equacionamento técnico dos problemas".[29] Para os gaúchos que, junto com Getúlio Vargas, decidiram empreender ampla política modernizadora, as reformas dever-se-iam estender a todos os terrenos da economia: funcionalismo público, ordem econômica, transportes, balança comercial e balança de pagamentos, tarifas, finanças, etc. É clara a visão integrada de todos esses aspectos, que animava a Lindolfo Collor. Ele inseria, por exemplo a proposta de criação do estatuto do funcionalismo público (idéia que ensejaria, posteriormente, o Departamento Administrativo do Serviço Público - DASP), no contexto da preocupação mais larga com a eficiência do sistema e com o combate "ao filhotismo e ao parasitismo, verdadeiras pragas que nos infelicitam".[30]
No que tange à ordem econômica, Boeckel Collor achava que se deveria dar uma resposta racional à vocação agrícola do país. A respeito, frisava: "impõe-se, em primeiro lugar, o amparo à agricultura. Essa é uma recomendação a que nenhuma plataforma de governo deixaria de fazer referência. No entanto, é preciso reconhecer que a produção agrícola do país está muito longe de apresentar o desenvolvimento que seria para desejar". Especificamente no relacionado ao café, o nosso autor propunha a formulação de uma política amadurecida, que promovesse "a celebração de um convênio internacional, para salvaguarda de interesses comuns, com os produtores de outros países". De outro lado, preocupava a Lindolfo a questão da monocultura cafeeira; a respeito, frisava: "Urge que, a par da defesa do café, nos esforcemos por aumentar, quanto possível, o volume de outros produtos, de necessidade no consumo interno e de colocação mais ou menos fácil nos mercados estrangeiros".[31]
Em relação aos transportes e à vinculação que essa questão tinha com a política econômica, o nosso autor salientava: "O problema econômico dos transportes, principalmente em países novos como o Brasil, consiste em aumentar, por meio de fretes razoáveis, a produção da tonelagem a transportar. (...). Em matéria de construções ferroviárias, o governo, pode dizer-se, tem estado de braços cruzados. Ora, é simplesmente um contrassenso falar em aumento da produção, sem a correspondente atenção ao problema dos transportes. Quem não cuida de aumentar, melhorar, baratear a circulação da riqueza, não poderá dizer que teve em mínimo apreço os problemas econômicos do país". De outro lado, preocupado com o desequilíbrio da balança comercial e da balança de pagamentos, o nosso autor considerava que essa questão se equacionaria com uma adequada política de produção agrícola, que conduzisse a importar menos e exportar mais. a respeito, frisava: "O déficit da nossa balança de pagamentos quase se cancela com a supressão da importação de gêneros agrícolas, que o Brasil pode e deve produzir para o seu consumo".[32]
No terreno das finanças públicas, as propostas veiculadas pelo nosso autor são, ainda hoje, de rara atualidade. Para ele, a questão negativa fundamental era o excessivo gasto público escorado no vício da contabilidade oculta. Parece como se as palavras do grande sul-rio-grandense tivessem sido pronunciadas em face da hodierna hipertrofia do Estado orçamentívoro, com a sua “contabilidade criativa”. Lembremo-las: "Para regularidade na administração do erário nacional, cremos de inadiável necessidade a adoção de medidas severas na fiscalização dos gastos públicos e a condenação absoluta dos processos de contabilidade oculta, dentro dos quais ressaltam, como padrão inconfundível, as despesas do governo feitas por intermédio do Banco do Brasil. Fora de dúvida, por outro lado, que, como base da receita, o nosso regime tributário exige modificações tendentes à diminuição dos impostos indiretos, que oneram as classes mais necessitadas".[33]
Espírito aberto às necessidades democráticas da modernidade, Boeckel Collor não hesitava em colocar limites à capacidade intervencionista e tutelar do Estado. Diante, por exemplo, das dificuldades financeiras que atravessava o Distrito Federal nessa época, o nosso autor propunha conceder à Capital a autonomia política e administrativa. A respeito, frisava: "A administração do Distrito Federal avizinha-se, hoje, da falência. (...). Em presença do descalabro que aí se patenteia aos olhos de todos, queremos crer que a cidade do Rio de Janeiro, se pudesse livremente escolher os seus administradores, não estaria, como está, com a sua situação financeira beirando o abismo. Em face da completa falência da tutela federal, somos, pois, pela autonomia do Distrito".[34]
Conclusão.- Identifiquei a figura de Lindolfo Boeckel Collor à luz do princípio da moralidade administrativa castilhista. Se bem é certo que o nosso autor incorporou, com desassombro, a virtude republicana da pureza de intenções, superou, contudo, o preconceito positivista em relação ao governo representativo. Longe do ditado castilhista que se tornaria famoso, de que o regime parlamentar é um regime para lamentar, o nosso autor defendia abertamente a representação, como forma de convívio político garantidora da paz social. Dinamizou, de outro lado, o ideal comteano de incorporação do proletariado à sociedade (expresso no artigo 74 da Constituição castilhista), sem contudo cair, como vimos, nas formas corporativistas e tutelares que posteriormente vingaram. Boeckel Collor se aproximava mais das hodiernas formas de democracia social ou de social-democracia, abertas à participação dos operários e dos empresários em sindicatos livres. Defendeu, com dignidade, contra o autoritarismo getuliano, a liberdade de expressão. E lutou com coragem em prol do estabelecimento do estado de direito, tendo-se engajado na Revolução Constitucionalista de 1932. Criticou, outrossim, abertamente, o nazismo, o fascismo e as formas de totalitarismo ensejadas pelo comunismo.
Num momento histórico como o atual, em que o Brasil sofre com uma crise de liderança e de identidade, em que muitos duvidam da capacidade de o país vir a se tornar uma grande Nação, em que pesquisas de opinião revelam a descrença popular em face da classe política, é saudável lembrar a figura de um estadista como Lindolfo Boeckel Collor. Quando as Nações perdem o rumo do seu destino, mais do que a retórica, falam os exemplos dos grandes homens. Boeckel Collor é um paradigma de dedicação à causa republicana. Nada mais apropriado para terminar esta exposição, do que lembrar o testemunho do grande sul-rio-grandense, em discurso pronunciado no Rio de Janeiro em 1934: "Mais do que palavras, o Brasil deve exigir dos seus filhos, com projeção maior ou menor sobre os seus destinos, atitudes e exemplos. Um exemplo de renúncia vale sempre infinitamente mais, aos olhos do povo, do que as melhores intenções e as palavras mais sábias, quando não acompanhadas da imediata comprovação das atitudes. Este é, se não estou em engano, um dos sinais dos nossos tempos: o desprestígio da palavra. As multidões reclamam afirmações concretas. As palavras podem ser tergiversadas. Só os exemplos convencem. Olhai para o Brasil. Onde já sofreu a palavra política maior desprestígio e desmoralização mais completa?"[35]

BIBLIOGRAFIA




COLLOR, Lindolfo Boeckel [1934]. "Discurso pronunciado no Hotel Glória, em 5 de setembro de 1934". In: Américo Palha, Lindolfo Collor, um estadista da Revolução. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, 1956, pg. 50.


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*   *   *
(Este trabalho foi preparado especialmente pelo autor para el Proyecto Ensayo, www.ensayistas.org a partir de artigo publicado, em 1988, pelo Tribunal Regional do Trabalho de Belém do Pará, com o título: "Lindolfo Collor e a plataforma modernizadora da Aliança Liberal", com motivo da Semana de Lindolfo Collor). Março de 2003.





NOTAS

[1] Apud SILVA, Hélio. O ciclo Vargas, volume I - Sangue na areia de Copacabana. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. P. 283-284.

[2] MOOG, Clodomiro Vianna. "Lindolfo Collor e a questão social no Brasil". In: Elmano CARDIM (organizador). Posse de Vianna Moog no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - Discursos. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora, 1978, pg. 26-27.

[3] Cf. MORAIS FILHO, Evaristo de. Introdução ao direito do trabalho. 2ª edição. São Paulo: LTr, 1978, p. 162.
[4] MOOG, Clodomiro Vianna [1978]. "Lindolfo Collor e a questão social no Brasil". In: Elmano Cardim (organizador). Posse de Vianna Moog no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - Discursos. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora, pg. 38.
[5] MORAIS FILHO, Evaristo de. "Sindicato e sindicalismo no Brasil desde 1930". In: As tendências atuais do direito público (Estudos em homenagem ao professor Afonso Arinos). Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 196.

[6] COLLOR, Lindolfo Boeckel. Garibaldi e a Guerra dos Farrapos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1977, p. 15.
[7] MOOG, Clodomiro Vianna. "Retrato de Lindolfo Collor". In: Lanterna Verde, Boletim da Sociedade Felipe de Oliveira. Rio de Janeiro, no. 8 (julho 1944), p. 6.

[8] VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras, volume I - Fundamentos Sociais do Estado. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1987, p. 161.
[9] COLLOR, Lindolfo Boeckel. O sentido histórico do Castilhismo. Discurso pronunciado em Novo Hamburgo, no dia 2 de agosto de 1936, por ocasião da posse da primeira diretoria do Grêmio Republicano Lindolfo Collor. Porto Alegre: Livraria Globo, 1936, p. 9-10.

[10] FERREIRA FILHO, Arthur. História geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria Globo, 1958, p. 149.
[11] Cf. VÉLEZ Rodríguez, Ricardo. Castilhismo, uma filosofia da República. 1ª edição. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980, p. 97. Cf. LOVE, Joseph. "Índice cronológico dos papéis de Antônio Augusto Borges de Medeiros, 1909-1932, arquivados no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre". In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, (janeiro-março 1970): pg. 269. Cf. FONTOURA, João Neves da. Memórias - Volume I: Borges de Medeiros e o seu tempo. Porto Alegre: Livraria Globo, 1958.
[12] COSTA PORTO. Pinheiro Machado e seu tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951, p. 180.

[13] Apud COSTA PORTO, Pinheiro Machado e seu tempo, ob. cit., p. 233.
[14] COLLOR, Lindolfo Boeckel. O sentido histórico do Castilhismo. Discurso pronunciado em Novo Hamburgo, no dia 2 de agosto de 1936, por ocasião da posse da primeira diretoria do Grêmio Republicano Lindolfo Collor. Porto Alegre: Livraria Globo, 1936, p. 11-16.
[16] COLLOR, Lindolfo Boeckel. "Manifesto da Aliança Liberal", in: BRASIL – CONGRESSO NACIONAL – CÂMARA DOS DEPUTADOS. Aliança Liberal - Documentos da campanha presidencial, 1929., Ob. cit., P. 54.
[17] COLLOR, Lindolfo Boeckel. "Manifesto da Aliança Liberal", in: BRASIL – CONGRESSO NACIONAL – CÂMARA DOS DEPUTADOS. Aliança Liberal - Documentos da campanha presidencial, 192., p. 52.
[18] COLLOR, Lindolfo Boeckel. "Manifesto da Aliança Liberal", in: BRASIL – CONGRESSO NACIONAL – CÂMARA DOS DEPUTADOS. Aliança Liberal - Documentos da campanha presidencial, 1929, ob. cit., p. 57.
[19] COLLOR, Lindolfo Boeckel. "Manifesto da Aliança Liberal", in: BRASIL – CONGRESSO NACIONAL – CÂMARA DOS DEPUTADOS. Aliança Liberal - Documentos da campanha presidencial, 1929, ob. cit., p. 65.
[20]COLLOR, Lindolfo Boeckel. "Exposições de motivos". In: Alfredo João LOUZADA (organizador). Legislação trabalhista. Coletânea de decretos feita por determinação do Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1933, pg. 400 seg.
[21] Cf. ALEMANHA, MRE (Ministério das Relações Exteriores). Ofício do Ministério de Relações Exteriores da Alemanha ao Instituto Ibero-Americano, de 3 de abril de 1939. Arquivo Federal Koblenz. Cópia fornecida pelo Departamento de História da Universidade do Estado de Louisiana, Baton Rouge, Estados Unidos da América, 1939.
[22] MORAIS FILHO, Evaristo de. "Estado e sindicatos no Brasil: os mecanismos da coerção sindical". In: O Estado de São Paulo - Suplemento Cultura, ano VI, no. 336 (edição de 22-11/1986): pg. 8.
[23] MORAES, Evaristo de. "Legislação social-trabalhista". In: Revista do Trabalho. Rio de Janeiro, volume II, no. 8 (julho de 1934): pg. 1 seg.

[24] ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. O batismo do trabalho: a experiência de Lindolfo Collor. (Prefácio de Evaristo de Morais Filho). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 159.
[25] Cf. LIMA SOBRINHO, Barbosa. "Ministro Lindolfo Collor". In: Jornal do Brasil, edição de 3 de janeiro de 1988, 1º caderno, pg. 11.
[29] PAIM, Antônio [1978]. A querela do estatismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 73.
[30] COLLOR, Lindolfo Boeckel. "Manifesto da Aliança Liberal", in: BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, CÂMARA DOS DEPUTADOS. Aliança Liberal - Documentos da campanha presidencial, 1929. Ob. cit., p. 72.
[31] COLLOR, Lindolfo Boeckel. "Manifesto da Aliança Liberal", in: BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, CÂMARA DOS DEPUTADOS. Aliança Liberal - Documentos da campanha presidencial, 1929. Ob. cit., ibid.
[32] COLLOR, Lindolfo Boeckel. "Manifesto da Aliança Liberal", in: BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, CÂMARA DOS DEPUTADOS. Aliança Liberal - Documentos da campanha presidencial, 1929. Ob. cit., p. 73-74.
[33] COLLOR, Lindolfo Boeckel. "Manifesto da Aliança Liberal", in: BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, CÂMARA DOS DEPUTADOS. Aliança Liberal - Documentos da campanha presidencial, 1929. Ob. cit., p. 76-77.
[34] COLLOR, Lindolfo Boeckel. "Manifesto da Aliança Liberal", in: BRASIL, CONGRESSO NACIONAL, CÂMARA DOS DEPUTADOS. Aliança Liberal - Documentos da campanha presidencial, 1929. Ob. cit., p. 77.
[35] Apud PALHA, Américo. Lindolfo Collor, um estadista da Revolução. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, 1956, p. 50.


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