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quarta-feira, 16 de maio de 2018

MAIO DE 68

Estou completando 50 anos dedicados à docência superior. Comecei a minha vida de professor universitário em maio de 68, justamente naquela famosa data revolucionária que tantas esperanças levantou entre os jovens da época. 

Eu tinha saído do Seminário em novembro de 1967. As Reformas do Concílio Vaticano II tiveram um efeito devastador nos tradicionais Seminários "Tridentinos", assim chamados porque a disciplina e o regime de estudos tinham sido planejados no século XVI, à luz dos ensinamentos do Concílio de Trento. Era um regime tradicionalista. Todo mundo devia usar batina. A liturgia era aquela velha ritualística em latim, com o padre celebrando a Missa de costas para o povo. E a disciplina era rigorosa. "Grande silêncio" durante a noite. Silêncio na hora das refeições, que eram acompanhadas da leitura de algum autor de espiritualidade. Todo mundo andando em fila indiana nos claustros frios e mal iluminados. O Seminário de Bogotá tinha sido construído recordando os planos do mosteiro do Escorial, perto de Madri, levantado por Felipe II em meados do século XVI, para guardar os restos do seu pai, o imperador Carlos V.

Mosteiro de El Escorial - Tela do pintor francês Michel-Ange Houasse (1722). (Foto: Wikipédia). 
Seminário Conciliar de Bogotá, construído entre 1943 e 1946. Obra do arquiteto colombiano José Maria Montoya Valenzuela, que se inspirou no Mosteiro do Escorial, na Espanha. (Foto: álbum de família)


Decidi abandonar a carreira eclesiástica por dois motivos: em primeiro lugar, porque não topei assinar o documento que, antes do Sub-diaconato, me obrigava a manter o celibato; em segundo lugar, tinha chegado à conclusão de que a disciplina rigorosa da Igreja nos Seminários era apenas uma fachada que ocultava a falta de compromisso sério dos seminaristas. 

Quando, na trilha das reformas liberalizantes do Vaticano II, foi mudado o regulamento, dando mais autonomia aos jovens, o ambiente virou uma bagunça, com gente saindo de farra à noite e voltando na alta madrugada, além dos desvios tradicionais (pedofilia e outras aberrações) que eram de conhecimento público, praticados por padres nos Seminários Menores, como eu tinha testemunhado no Instituto Tihamer Toth. Seria muito oportuno termos, na América Latina, um Spotlight, à semelhança da corajosa investigação que a imprensa livre ensejou em Boston!



Como a expectativa dos meus pais era de que o Papa me ordenasse sacerdote no Congresso Eucarístico Internacional que se realizaria em Agosto de 1968 em Bogotá, a reação do meu pai foi muito forte. Quando cheguei em casa, em Medellín, vestindo trajes civis, ele ficou furioso, pois já tinha mandado imprimir os santinhos que distribuiria entre familiares e amigos com motivo da minha ordenação sacerdotal, a ser ministrada pelo Papa Paulo VI, ao ensejo da primeira visita papal à Colômbia. 



Para diluir o pesado ambiente familiar, imediatamente procurei emprego, tendo conseguido, com amigos espanhóis, a vaga de vendedor de livros da Editora Aguilar. Em Medellín, onde residia a minha família, comecei a penosa tarefa de vendedor de livros. Recebi uma mala cheia de exemplares das novidades editoriais da mencionada editora. O prato forte de vendas era a coleção "Prêmios Nobel de Literatura", belamente encadernada em couro e impressa em papel bíblia, como aquela magnífica coleção francesa "Clássicos Gallimard". 



Em Maio de 68, em cinco meses de trabalho, não tinha vendido nenhum livro. Mas os tinha lido todos! Uma tarde, fui oferecer a coleção na nascente Universidade EAFIT, de Medellín. As bibliotecárias estavam conversando animadamente. O assunto era o casamento de uma jovem professora de filosofia, Carmencita, para cuja vaga não tinha sido conseguido um substituto. Pedi às bibliotecárias que guardassem a minha mala de vendedor, e apresentei-me ao Diretor do Instituto de Humanidades. Quando lhe falei que era formado em filosofia e que buscava emprego, me contratou imediatamente. Assim, através da profissão de vendedor de livros, entrei na mais nobre alternativa de professor universitário, tendo começado a lecionar, no final desse maio turbulento, a disciplina ministrada pela antiga professora: "Humanismo de la Técnica".



O livro-texto que os alunos liam era A rebelião das massas do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, indicado pela antiga professora, Carmencita. Eu sabia que os intelectuais de esquerda criticavam essa obra de forma dura, por se tratar, diziam, de uma "versão pequeno-burguesa". Mesmo com esse óbice, achei mais prático dar continuidade à exposição do texto de Ortega, que me facilitava o trabalho de encarar uma disciplina com o bonde andando. Abri espaço para os meus alunos criticarem a obra, com a condição de que fossem lendo e resumindo os vários capítulos ao longo do período letivo, que se encerrava em dezembro. Na crítica, eles deveriam colocar a fonte em que se inspiravam. Ao aprofundar com os meus alunos na obra do filósofo espanhol, fui concluindo que ele colocava temas importantes nessa agitada conjuntura histórica. Perguntava aos meus alunos o que achavam da argumentação de Ortega sobre a ascensão das massas e as atitudes um tanto infantis das mesmas em face das reivindicações de bem-estar que todo mundo queria. Maio de 68 já se desenhava, aos olhos do mundo, como essa grande festa juvenil que queria tudo de imediato, e que externava a sua pressa na  "ação direta". Um exemplo dessa falta de raciocínio era constituído pelo fato, apontado por Ortega: as massas reivindicam alimento e queimam padarias para consegui-lo! 


68 foi uma página de ação direta das massas juvenis. "É proibido proibir" era o lema que carregava em si mesmo, como diriam os escolásticos, uma "contradictio in terminis". Esse tipo de arrazoado ajudava, certamente, a puxar o fio da história que, segundo o pensamento marxista, avança graças às contradições. A lógica ficava, sempre, maltrapilha com esse uso generoso da contradictio. Como rastilho de pólvora, as "litanias" da Maio de 68 se estenderam pelo mundo afora, alimentando os movimentos estudantis que pipocaram nos quatro cantos do planeta. Imagino que os soviéticos, gênios na arte de criar cortinas de fumaça para ocultar os seus podres, tenham ajudado, e muito, na difusão da moda da revolução juvenil. O PC da URSS estava generosamente representado, aliás, no próprio coração do Estado francês, no Ministério da Função Pública, que tinha sido candidamente entregue aos comunistas na repartição burocrática que teve lugar após a Segunda Guerra. E a decomposição do universo comunista estava em andamento, tendo dado ensejo à sanguinolenta repressão do Exército Vermelho. Remember Hungria em 1956 e Praga em agosto de 68. Não seria descabido pensar na presença de agentes soviéticos em Maio, em Paris, nessa agitada primavera. 

Como lembrava recentemente meu amigo João Carlos Espada ("Maio de 68: 50 anos depois", Observador, Lisboa, 23/04/2018), "Contra os anseios revolucionários de Maio 68, a França permaneceu 'burguesa', isto é,  livre e democrática. Pôde assim absorver ideias de Maio 68, que teriam sido esmagadas pelos comunistas". Espada citava a respeito, as palavras que Raymond Aron teria dito então a Pierre Mendès France: "Só existem dois campos, de um lado a República, o governo, as assembleias, as eleições; de outro lado, o partido comunista - que os intelectuais, os revolucionários da caneta, criticam por não ser mais revolucionário. Se a legalidade republicana sucumbir sob a pressão dos tijolos e das multitudes na rua, só o partido comunista preencherá o vazio" (Aron, Mémoires, Paris: Julliard, 1983, p. 475).

Foi exatamente esse confronto identificado por Raymond Aron que ocorreu nos nossos países na América Latina, entre as instituições "burguesas" e os movimentos revolucionários puxados pelos comunistas. No Brasil, o choque foi entre estes e as instituições republicanas que os extremistas queriam substituir pela "ditadura do proletariado", com direito ao paredão para os que não comungassem com as suas ideias. 

68 repetiu o confronto que opôs, em Cuba, dez anos antes, os revolucionários de Fidel e a antiga ordem "burguesa", com os processos sumários contra "a direita" chefiados pelo "anjo da morte", o Che Guevara, que fazia questão de disparar pessoalmente o tiro de misericórdia na cabeça dos sentenciados à morte.

3 comentários:

  1. Gostei e muito, de ler sua história, trajetória profissional repleta de valores e vitórias.Acrescidos dos esclarecimentos históricos e da forma brilhante como conduziu à reflexão daqueles jovens, durante o difícil ano de 68. Não poderia ser diferente, em se tratando da personalidade, formação e do ser humano que é o Professor Ricardo Vélez Rodriguez.
    Meus sinceros cumprimentos e agradecimentos! Que Deus esteja sempre com você e sua família.
    Grata,
    Gladslene Teixeira

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  2. Caro Ricardo, não conhecia sua história e achei muitíssimo interessante o relato. Parabéns pelo tempo de carreira e, principalmente, pela qualidade dela.

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