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sábado, 25 de novembro de 2017

DEMOCRACIA, PATRIMONIALISMO, PRIVILÉGIOS E DESIGUALDADE NA SOCIEDADE BRASILEIRA


Nunca foi o Brasil um pais autenticamente democrático. Por um motivo: a estrutura patrimonial do Estado fez da nossa sociedade uma colcha de retalhos de pessoas mais ou menos aquinhoadas pela fortuna, em decorrência da sua proximidade, ou não, com os donos do poder. 

Claro que progredimos. Mas ainda estamos longe de sermos uma sociedade democrática para valer. A onda de privilégios tende a se perpetuar, se isso depender dos felizardos que ocupam o vértice da pirâmide social. O atual governo, que não aspira já à popularidade, mas que busca apenas se manter funcionando até o final do período que a legislação lhe reconhece, paradoxalmente decidiu mexer nos privilégios no terreno da previdência. E do Supremo, bem como do Senado, vem um sinal de que o fim do foro privilegiado é algo que se vê relativamente próximo, se levarmos em consideração as últimas medidas tomadas, tanto pelos magistrados da suprema corte, quanto pelos legisladores da câmara alta. Mas ainda é uma tendência em andamento, não uma conquista que possamos comemorar. Só esse fato já revela que as forças que buscam manter a desigualdade perante a lei estão atuantes e se enraízam fortemente nas entranhas da sociedade.

Um dado chama a atenção no relativo ao foro privilegiado: a sua extensão pelo emaranhado da burocracia. Segundo dados revelados pela imprensa em dias passados, o Brasil conta, hoje, com aproximadamente 50 mil cidadãos de primeira classe, acobertados pelo foro privilegiado. Mas as ações que correm no Supremo Tribunal Federal para julgar casos relativos a essa minoria privilegiada, andam a passo de cágado: são aproximadamente quinhentos processos em andamento, sendo que mais ou menos 200 já prescreveram. Uma verdadeira loteria de privilegiatura!

Na origem de todo esse clima de privilégios minoritários está a nossa tradição jurídica formatada pelo Direito Filipino que consagrou a desigualdade jurídica entre as pessoas, dependendo de que pertençam a castas da alta burocracia do Estado Patrimonial ou não. Contrariamente à tradição liberal que vingou nos países da Commonwealth, segundo a qual todos têm o mesmo tratamento perante a lei, entre nós vingou a desigualdade: a lei se aplica segundo códigos diferentes, se o julgado pertence ou não aos altos escalões fixados pelo Estado. Já estamos acostumados a isso. O raro, na sociedade brasileira, é a igualdade perante a lei e perante os serviços básicos que o Estado promete garantir a todos.

Em dias passados a TV noticiou a trágica sorte de um pobre idoso e doente que, pelo fato de não ser alguém com costas quentes, teve de peregrinar, antes de morrer como um cão de hemorragia estomacal e em meio a terríveis dores, visitando vários hospitais públicos sem que ninguém se prontificasse a lhe dar tratamento digno. Os médicos que o atenderam limitaram-se a um burocrático diagnóstico, que lhe receitava ou uma fórmula impossível de ser adquirida pelo doente carente de recursos, ou uma série de exames que a unidade procurada não podia fazer por carecer do instrumental necessário. 

Um verdadeiro universo de "mundo cão" a reportagem cobriu, o jornalista e o operador de câmara acompanhando o miserável doente de hospital em hospital. Imaginei o quanto esses profissionais suaram percorrendo esse calvário. Pensei uma coisa marginal: talvez a rede de TV que fazia o noticiário poderia ter socorrido a vítima, lhe pagando a consulta num hospital que prestasse. Bom: vão me dizer que isso estava fora do roteiro. E estava. O que ficou de fora, de imediato, foi a compaixão, tanto dos profissionais da mídia quanto dos hospitais pelo pobre diabo procurados.

A irmã da vítima, após a ocorrência da morte do ente querido, desabafou: "Tenho vergonha de ser cidadã de um país que tratou meu irmão de forma tão cruel". Também me senti com vergonha de ser brasileiro. A desigualdade é coisa que machuca e mata. Não se trata, evidentemente, de implantar um utópico socialismo que a todos iguale matematicamente. Isso é utopia impraticável. Os que a procuram, como os petistas e cumpinchas, buscam uma coisa simplesmente: garantir privilégios e tratamento médico de primeiro mundo para eles e suas famílias, em nome do povo que dizem defender. A igualdade que falta é a que aplica a lei indistintamente a todos os cidadãos e a que lhes garante a conquista de meios de vida com que possam fazer frente às suas necessidades básicas, com trabalho justamente remunerado e com atendimento digno para as suas necessidades prementes. 

A igualdade que falta é a decorrente da conquista da riqueza mediante a valorização da livre iniciativa e da formulação de uma carga tributária razoável, que não puna aqueles que produzem riqueza. É a igualdade na liberdade que se observa no Canadá, na Austrália, na França, na Alemanha, na Nova Zelândia, nos Estados Unidos, na Espanha, em Portugal, nos países que conseguiram criar mecanismos de representação que realmente defendem os interesses dos cidadãos, não mecanismos de perpetuação no poder de uma burocracia corrupta. 

Alguns desses países, como os ibéricos, já foram dominados por minorias privilegiadas, em decorrência da tradição patrimonialista em que se inseriram os seus Estados nacionais. Mas estes conseguiram dar a volta por cima. E alguns países latino-americanos, como o Chile, aproximam-se desse ideal, em decorrência das reformas que fizeram para tornar o Estado menos imenso e mais a serviço das suas respectivas sociedades.

Nas reformas que ora estão em andamento no Brasil, a da previdência é essencial. É uma vergonha que 1 milhão de aposentados do setor público custem mais caro (164 bilhões de reais) do que 30 milhões de aposentados do setor privado (150 bilhões de reais). 

A segunda reforma fundamental é a relativa ao fim do foro privilegiado. Entre as mais de 50 mil autoridades com essa sinecura, 79,2% pertencem ao Ministério Público e à Justiça, justamente as duas instâncias da sociedade que deveriam dar exemplo de igualdade de oportunidades para todos os brasileiros. Não se trata de promover uma onda de defenestrações dos funcionários estatutários do Estado, que são necessários. Mas seria de bom alvitre que fossem limitadas tantas vantagens que em frente da penúria da maior parte dos brasileiros, soam como uma provocação e um acinte. 

Exemplos de burocracias eficientes e mais justas não faltam no mundo desenvolvido: observe-se o que se passa com as autoridades da Magistratura nos Estados Unidos, no Canadá e na Dinamarca, por exemplo. Essas autoridades têm estabilidade, são respeitadas, mas jamais ostentam os privilégios de que gozam os nossos Magistrados e aos membros do Ministério Público. Se os altos escalões da burocracia estatal se ajustassem de forma a diminuírem as vantagens de que estão cercados, certamente gozariam de muita maior respeitabilidade no seio da sociedade.

Um comentário:

  1. O texto em poucas palavras faz um diagnóstico da realidade brasileira e dá um roteiro para corrigir o que pode ser corrigido para termos uma democracia verdadeira. Parabéns!

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