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quarta-feira, 4 de outubro de 2017

VIOLÊNCIA E NARCOTRÁFICO NO RIO DE JANEIRO ENTRE 1983 E 2003


O Rio de Janeiro refém do narcotráfico: Nau sem rumo.


Em setembro de 1993, na reunião da Sociedade Mont Pélérin realizada no Rio, o Presidente da Sociedade Tocqueville da França, Monsieur Guy Plunier, bretão de pura cepa, dizia-me exprimindo as suas impressões sobre a antiga capital brasileira que visitava pela primeira vez: Très belle, mais délabrée. Exprimia muito bem o ilustre visitante o que se passava na Belacap. Décadas de crise conseguiram empanar a sua beleza, que heroicamente teima em resistir. A cidade do Rio de Janeiro, após a transferência da capital federal para Brasília, no início dos anos 60, sofreu um primeiro baque na sua estrutura socioeconômica. Sem as generosas verbas federais que a tornavam um centro de prestação de serviços e de intensa vida política e cultural, a outrora capital foi-se esvaindo. Novo golpe sofreu com a extinção do Estado da Guanabara e a sua transformação em capital do Estado do Rio de Janeiro, em meados dos anos 70. 

Sem aumentar o seu orçamento, a bela cidade teve de compartilhar os escassos recursos com o empobrecido Estado fluminense. Nos anos 80 e 90 do século passado, a bela dama caiu em poder do crime organizado e tornou-se refém do narcotráfico, ao ensejo do populismo desvairado, do vácuo de investimentos e da crise geral da economia brasileira na denominada “década perdida”. As vias expressas que cortam os subúrbios da cidade e lhe dão acesso ao resto do Brasil e ao mundo, tornaram-se veias abertas por onde corre o sangue de cidadãos baleados sem misericórdia pelos mercadores da morte, em ônibus e carros de passeio.

Roberto Campos assim tipificou a crise da cidade, sugada por esse turbilhão de decadência econômica, violência, desemprego, medo e perda da esperança: “A Guanabara sofre de um círculo vicioso e da síndrome do medo. É uma trágica causação circular. O desemprego provoca a marginalidade; a marginalidade gera a violência; a violência afasta investidores e agrava o desemprego; e o desemprego fomenta a marginalidade. Os investidores nacionais vivem sob a ameaça do sequestro ou têm de pagar tributo a traficantes e pseudo-sindicalistas para diminuição de roubos. Ao tempo de Brizola, as multinacionais, além disso, dificilmente dariam prioridade a um Estado cujo governador as considerava espoliadoras e causadoras de perdas internacionais, atitude há muito abandonada pela China, Cuba e Vietnã.  Na paisagem medieval, os morros eram ocupados por templos, mosteiros e castelos. Os morros do Rio se tornaram fortalezas do crime, onde pequenos comerciantes têm de pagar pedágio para continuarem no negócio, e uma população pobre e honesta tem de se submeter às ordenanças dos criminosos que controlam o direito de ir e vir. O esvaziamento desta nova Bósnia é duplo. Fogem os turistas e fogem os investidores. Em 1984, o Rio recebeu 623 mil turistas; 5 anos depois, apenas 471 mil, numa época de crescimento explosivo do turismo mundial. Perdera sua condição de capital política para Brasília, perdeu a gala de capital financeira para São Paulo, a de cartão postal turístico para o Nordeste e a de grande porto comercial para Vitória, onde os custos portuários são mais baixos. A Belacap é uma órfã a ser resgatada, e não uma pérola a ser invejada” [Campos, 1996].

Quadro bem definido da queda vertiginosa da qualidade de vida no Rio, foi traçado por um leitor de importante jornal carioca, nos seguintes termos: “O Rio é hoje uma cidade medieval. Como nas urbes europeias do século XIII, vende-se de tudo em suas vias: alimentos, animais, unguentos e poções milagrosas. Há videntes, ciganos e curandeiros. Artesãos e um sem-número de faz-tudo à disposição. A população alivia-se em qualquer lugar e vias e calçamento precário fedem a urina e fezes. Há carcaças sendo comidas por abutres e o esgoto, em muitos bairros, corre em valas abertas, onde brincam crianças. Arruaceiros brigam pelas ruas ao mesmo tempo em que prostitutas oferecem seus corpos em locais onde passam famílias. Nas estradas, salteadores impiedosos roubam o povo, matando os que se lhes opõem; veículos de passageiros e de cargas são saqueados e queimados. Palácios são fortificados e cercados de exércitos particulares. O quadro se completa com a atuação do Estado: olha, ignora e cumpre seu papel primordial de cobrador de impostos, sem qualquer obrigação de contrapartida. Teremos andado 700 anos para trás? ” [Luís Soledade Santos, “Rio medieval”, in: O Globo, 02/06/2003, pg. 6]. 

Foi uma cruel coincidência o Rio ter mergulhado no caos de violência e decadência que acaba de ser ilustrado? Aparentemente, sim. Mas, examinadas as coisas mais de perto, não. Houve uma deliberação clara do crime organizado, no sentido de incluir o Brasil no organograma de produção/consumo/exportação de tóxicos. Não esqueçamos que o narcotráfico constitui a maior multinacional do planeta, que rivaliza com as companhias petroleiras. O comércio global de drogas proibidas, anualmente e a nível mundial, é calculado em 500 bilhões de dólares [dados da Revista The Economist, citados por Sarmiento e Moreno, 1990]. Ora, seria ingênuo pensar que os chefões da droga têm a mentalidade do quitandeiro da esquina. Muito pelo contrário, planejam friamente os seus negócios. Amauri Mello [“Crime a futuro”, O Globo, 13/06/2003] lembra que, em 1989, a máfia italiana estava interessada em incrementar os negócios do narcotráfico no Brasil, diante do combate que estavam sofrendo, da parte dos Estados Unidos e dos governos locais, os cartéis andinos da coca. Segundo Amauri, que trabalhou na Europa, policiais italianos tiveram uma série de conversas nesse ano com jornalistas latino-americanos (entre os que ele se encontrava), acerca das últimas pesquisas dos órgãos de segurança da Itália, em relação aos negócios do narcotráfico. 

A propósito dessas conversas, frisa o mencionado autor: “Mal engatinhávamos no consumo de drogas mais glamourosas como a cocaína. O brasileiro era bom de marijuana, diziam os oficiais da Guarda Finanziaria, entidade policial italiana que trata desde crimes tributários até lavagem de dinheiro e associação mafiosa. Mas, afirmavam, em pouco tempo o Brasil seria o maior fornecedor de cocaína do mundo. Os argumentos, observados agora, à luz do tempo, pareciam fantasiosos. Vamos percorrê-los: 1) o Brasil possui imensas e livres fronteiras; 2)  a pobreza no interior das áreas da Amazônia e do Centro-Oeste é permanente; 3) a população, sempre crescente, reúne uma classe média de muitos milhões de pessoas, clientes potenciais da droga, então tida como chique; 4)  as legislações que tratam de imigração, estabelecimento de estrangeiros e assemelhados são quase um convite; 5) fronteiras com o mar de mais de oito mil quilômetros; o litoral de Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina repleto de ilhas e ilhotas com grandes fluxos de turismo argentino (na época, claro);  6) miscigenação total; encontra-se brasileiro com nome de árabe, chinês, japonês, turco, boliviano, etc.; 7) consumismo e lazer marcam o comportamento de ricos e pobres, facilitando festas e estas drogas...”.  

Em face desse diagnóstico, os mafiosos italianos delinearam uma política de penetração no Brasil, a fim de tender com o nosso país uma cabeça de ponte para o narcotráfico internacional. Eis, segundo o testemunho de Amauri Mello, as linhas mestras dessa política: “A colagem de informes apontava para as seguintes ações, num plano de considerar implantada a transferência do tráfico de coca do eixo espanhol latino para o lado brasileiro em, no máximo, acreditavam, dez anos. Vejam só: 1) estimular associação com negócios em áreas de massa populacional carente; 2) recomendar atividades que gerassem grandes volumes de notas, como, por exemplo, vender material de construção nas tais áreas. Ou participar de transporte coletivo. Além da facilidade de justificar movimento de dinheiro, também estabeleceria uma simpática relação com a vizinhança. 3)  participar do Poder Legislativo de fora para dentro, vereança em pequenas cidades isoladas nas regiões de fronteira e avançar com representação federal, dando preferência às regiões com corredores para a pasta de coca; 4) Estimular o jogo (naquele período discutia-se muito a reabertura de cassinos no Brasil); 5) criar chefes brasileiros”.

A julgar pelo acontecido no Brasil ao longo das últimas décadas, as previsões da polícia italiana se realizaram quase por completo. Somente agora, com o narcotráfico tendo assumido dimensões catastróficas, começamos a perceber o tamanho do problema. No entanto, podemos dizer que diante da falta de providências das autoridades e da sociedade civil em face da gravíssima situação de violência no Brasil e no Rio de Janeiro, em particular, tudo indica que a História não é mestra da vida. Simplesmente não aprendemos com os erros alheios, (no caso da segurança pública, com as falhas que cometeram as autoridades colombianas ao longo dos últimos trinta anos, que desaguaram na situação de confronto civil em que mergulhou o vizinho país entre 1983 e 2002). 

Que o crime organizado ganhou, no Brasil, dimensões catastróficas, ninguém nega esse fato. O jornalista Carlos Amorim, um dos mais conceituados estudiosos do fenômeno, assim iniciava o seu livro intitulado CV-PCC: a Irmandade do Crime, traçando um quadro deveras trágico das dimensões que a criminalidade atingiu nas nossas cidades: "No meio da noite, prédios públicos são atacados com rajadas de fuzis automáticos e metralhadoras. Bombas explodem em frente a repartições públicas. Comboios de homens armados percorrem as ruas depois da meia-noite. Param o trânsito em grandes avenidas, saqueiam - pessoas são mortas sem nenhuma razão. Magistrados são emboscados e mortos a tiros. Funcionários de alto escalão são ameaçados. Pelo mar chegam armas e drogas. É o cenário de uma guerra que não se quer admitir. Escolas, comércio e bancos fecham a mando de meninos descalços, que se dizem porta-vozes de grandes traficantes e bandidos. Todos obedecem. Inimigos dos bandos armados são apanhados, julgados e executados sumariamente. Os policiais escondem suas identidades e se protegem atrás de barricadas. Trinta mil presos chegam a se rebelar de uma só vez, atendendo ao comando de uma liderança de cinco homens. Agora não é mais uma ameaça. A sombra ganhou contornos próprios. Porque o crime organizado no Brasil é uma realidade terrível. Atinge todas as estruturas da sociedade, da comunidade mais simples, onde se instala o traficante, aos poderes da República. Passa pela polícia, a justiça e a política. A atividade ilegal está globalizada e o país é um mercado privilegiado no tabuleiro do crime organizado. Estamos tão envolvidos, que a velha máxima de Big Paul Castellano, o poderoso chefão da família Gambino, a maior e mais influente da Máfia de Nova York, tem por aqui um significado profético: - Não preciso mais de pistoleiros. Agora eu quero deputados e senadores" [Amorim, 2003: 15-16].

Tudo se passou na Colômbia como está acontecendo hoje no Rio de Janeiro. Corrupção policial e do Judiciário, que termina beneficiando os bandidos. Glamourização do consumo de cocaína pelas elites. Corrupção no Executivo estadual, que fazia vista grossa em face de notórias vinculações de um Secretário de Estado com o narcotráfico. Corrupção e fraqueza do Legislativo estadual, que não consegue veicular as legítimas reclamações da cidadania, vítima direta do confronto entre policiais e meliantes. Apologia da criminalidade em raps que apresentam o bandido como herói. Assassinatos sistemáticos de policiais e de jornalistas comprometidos com denunciar as atividades do crime organizado. Ameaças às autoridades toda vez que mostram determinação no combate ao narcotráfico. Pusilanimidade dos poderes constituídos, em face da agressividade crescente dos criminosos. Enfim, miopia da própria sociedade civil, que não consegue ver claramente o nexo entre consumo corriqueiro de narcóticos por parte dos seus filhos, e a onda de violência e terrorismo desatada pelos mercadores da morte. Padecemos, no Brasil, da doença da hipermetropia cívica, que nos permite ver com clareza os erros que se passam longe, no cenário mundial, mas que nos impede, ao mesmo tempo, de observar o que acontece perto de nós. Somos capazes de deflagrar campanhas pacifistas em face de um confronto internacional, mas não conseguimos enxergar as causas da violência cotidiana que bate às nossas portas. 

A finalidade deste ensaio consiste em discutir a problemática da violência que enfrentou o Rio de Janeiro no período compreendido entre 1983 e 2003, sob cinco ângulos: em primeiro lugar, numa perspectiva factual do crescimento do confronto entre autoridades e sociedade civil, de um lado, e crime organizado, de outro; em segundo lugar, sob um viés sociológico, com a finalidade de situar a tríade bicheiros / traficantes / narco-guerrilheiros no contexto da tipologia weberiana acerca do Estado Patrimonial, que foi a forma assumida pelas nossas organizações políticas na América Latina; em terceiro lugar,  do ponto de vista das propostas de Segurança Pública do  governo estadual nos anos oitenta e noventa do século passado; em quarto lugar, do ângulo do Plano Federal de Segurança Pública elaborado pelo PT no início da gestão petista em 2003; em quinto lugar, do ponto de vista da proposta de segurança para o Rio de Janeiro feita pelo então prefeito César Maia. Terminarei concluindo acerca das perspectivas e os impasses que se descortinavam, em 2003, para a cidade do Rio, à luz das políticas propostas. 

Este texto é ampliação de palestra que fiz no Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio, no Rio de Janeiro, em dezembro de 2003. Agradeço aos conselheiros (do Conselho Técnico da CNC), notadamente aos amigos Ernane Galvêas, Antônio Paim, Gilberto Ferreira Paim, José Arthur Rios e José Osvaldo de Meira Penna, pelas sugestões que fizeram em relação à minha palestra e que acolhi no texto definitivo. 

A parte central do texto que ora divulgo foi publicada no Reino Unido com o seguinte título: "The Sociological Dimension of the Drug Traffic in the Favelas of Rio de Janeiro", na obra intitulada: City of God in Several Voices - Brazilian Social Cinema as Action. (Coordenação de Else Vieira. Nottingham University: Critical, Cultural and Communications Press, 2005, pgs. 166-173).

1) Histórico do confronto entre autoridades e sociedade civil, de um lado, e crime organizado, de outro, na cidade do Rio de Janeiro.- Destacarei neste item, numa espécie de enumeração sumária, os fatos principais que, a meu ver, marcam os momentos do avanço do confronto da sociedade e das autoridades com o crime organizado. Alicerçar-me-ei, neste item, em paciente pesquisa jornalística feita pela minha filha Vitória (da Agence France Presse) a quem muito agradeço pelo levantamento feito no noticiário policial das décadas de 80 e 90 do século passado.

a -   Primeiro momento.- Entre 1950 e 1980 encontramos a etapa de predomínio, nos anais do crime organizado, da contravenção representada pelo jogo do bicho. A cidade foi loteada pelos meliantes. Mas estes revestiam-se de características um tanto folclóricas, que nem de longe revelavam as dimensões assumidas hoje pela violência desencadeada nos morros e no asfalto pelos atuais traficantes. Hoje certamente sentiríamos saudades da naïveté de malandros como Mineirinho (nos anos 50) e Tião Medonho (nos anos 60). Os bandidos das décadas seguintes tornaram-se mais violentos, acobertados pela impunidade de que gozavam os bicheiros. Meliantes como Lúcio Flávio (nos anos 70) ou Escadinha (na década de 80) tornaram-se mais sofisticados e ameaçadores.

Os bicheiros, certamente, conseguiram enraizar na sociedade carioca uma “cultura da contravenção”. Ser bicheiro ou contraventor passou a ser sinônimo de esperteza. “Terá a sociedade brasileira absolvido a contravenção? Ou mais: estará o jogo do bicho legitimado, cultural e socialmente? ” – perguntava editorial do jornal O Globo, em 14 de abril de 1994. Embora o mencionado editorial considerasse estas afirmações pouco procedentes, não deixava de reconhecer que o longo braço do bicho partiu para a beneficência, numa espécie de acomodação ao velho princípio macunaímico de “rouba mas faz”. E concluía: “A mão aberta dos banqueiros não se confunde com a virtude da magnanimidade. Daí sua preferência pelos apetites de fácil satisfação; pelas paixões populares que se esgotam no efêmero – o patrocínio de um ciclo de glória de times de futebol, ou da gala na Marquês de Sapucaí. Nunca se viu o cartel dos bicheiros empenhado em aspirações nacionais mais profundas e de satisfação menos imediata”.

Enganava-se redondamente o editorialista do jornal nesta sua última afirmação. Os bicheiros de ontem, transformar-se-iam, com o correr do tempo, como tem ficado demonstrado pelos fatos, nos chefões do narcotráfico carioca, que fazem alianças com os traficantes de outras regiões do país, com os meliantes do Primeiro Comando da Capital (de São Paulo), com o Suricartel do ex-ditador Bouterse e com as FARC, a fim de peitar o estado de direito no Brasil. Os bicheiros de ontem, convertidos em financiadores dos narcotraficantes, têm hoje sim anseios de poder nacional. Aspiram a influir na política do país elegendo deputados e patrocinando a “formação” de delegados, policiais, militares e juízes que sejam seus aliados. 

b – Segundo momento.- Entre 1980 e 1990 desenvolve-se a etapa de aumento de poder de fogo da contravenção nos morros, devido à aquisição de armamento de longo alcance. A polícia deixa de subir o morro já no primeiro governo Brizola. “A permissividade em relação à criminalidade nos morros – tidos como redutos eleitorais do PDT – resultou em brigas de gangue e balas perdidas, que intimidam turistas e investidores”, registrava, preocupado, Roberto Campos [“O Rio de Janeiro, o futuro e nós”, O Globo, 13/11/1994]. Consolida-se, de outro lado, o mercado de tóxicos, na medida em que os cartéis colombianos começam a ser combatidos de forma sistemática pelo governo desse país e pela DEA. O caudilho do “socialismo moreno”, Leonel Brizola, um dos responsáveis pela escalada da violência desencadeada pelos bicheiros no Rio de Janeiro, afirmou cinicamente em novembro de 1986: “Não reprimimos o jogo de bicho porque temos coisas mais importantes a fazer”. Ele próprio caracterizou o resultado do descaso oficial em novembro de 1991, ao afirmar que “continua a matança de adolescentes e jovens no Rio (...). Sucedem-se aqui, para escândalo do mundo, as chacinas de crianças. Queiramos ou não, estamos diante deste desafio: deter, parar, extirpar esses crimes. Ou iremos adquirir um estigma monstruoso: o de sermos o grande centro mundial de execuções. A máfia, Chicago, o Harlem, o West Side de Nova York não são nada comparados (com isto). Mata-se mais no Rio do que se matou nas próprias guerras da Coréia, do Vietnã e do Líbano” [“Brizola e o bicho”, editorial de O Globo, 14 de abril de 1994].

Bandido representante desse período foi o famoso Escadinha, que fugiu três vezes de presídios até ser transferido para Bangu I, na época considerado de segurança máxima. Ganhou fama, entretanto, ao protagonizar a espetacular fuga do presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande, usando um helicóptero, em dezembro de 1985. Escadinha colocou em prática ousada estratégia que já pressupunha maciço apoio financeiro da contravenção. Roberto Campos, em artigo publicado na revista Carta Mensal [“O Rio sob o signo do atraso e da violência”, no. 491, fevereiro de 1996], confirmava essa triste realidade citando dados transcritos pelo presidente do Tribunal de Contas do Rio, Sérgio Quintella, segundo os quais, no período compreendido entre 1985 e 1991, houve 70.061 homicídios no Rio de Janeiro, enquanto que  nos sete anos da guerra do Vietnã houve 56.000 americanos mortos, tendo sido de 70.000 o número de mortos nos quatro anos da guerra da Bósnia e de 25.000 o total das vítimas da guerra travada entre o Sendero Luminoso e o Estado peruano (ao longo de sete anos).  Em face desses dados alarmantes, o saudoso pensador liberal frisava: “Há tempos, costumava comparar o Rio de Janeiro a uma Beirute tropical, pelo seu crescendo de violência. Depois que Beirute se acalmou, a comparação mais pertinente passou a ser feita com a Bósnia, (...) o que deixa a Belacap em posição solitária. (...). Ninguém imaginaria que no Rio de Janeiro, em sete anos, entre 1985 e 1991, o número de homicídios viria a superar o da guerra do Vietnã, sendo quase três vezes o das vítimas do terrorismo peruano do Sendero Luminoso, e chegando a concorrer com o genocídio da Bósnia”.

c -  Terceiro momento.- Entre 1990 e 2000 consolida-se o poder dos bicheiros como traficantes que passam a intimidar de forma sistemática a população e a dar uma organização empresarial aos seus negócios ilícitos, ampliando os tradicionais pontos de aposta para bocas de fumo gerenciadas racionalmente, diversificando os investimentos em empresas de fachada, deitando as bases para a exportação de tóxicos, expandindo a empresa do narcotráfico/contravenção para outros Estados e passando a organizar, de maneira sistemática, os exércitos da morte, mediante o aliciamento de militares que garantem o treinamento e a aquisição de munições e armamento. 

A cidade do Rio é loteada entre os chefões do bicho. Castor de Andrade e Paulo Roberto de Andrade comandam a contravenção em Marechal Hermes, Padre Miguel, Bangu, Santíssimo, Senador Camará, Mangaratiba e Ibicuí; Aniz Abrahão David manda em Nilópolis e Baixada Fluminense;  José Caruzzo Scafura (Piruínha) é o senhor de Rocha Miranda e Pavuna; Luiz Pacheco Drummond (Luizinho Drummond), é o chefão da Leopoldina; Raul Correia de Mello (Raul Capitão) manda na Ilha do Governador e no Centro do Rio; José Petrus Kalil (Zinho) comanda o bicho também no Centro da cidade; Waldemir Paes Garcia (Maninho), é dono do Andaraí, Tijuca, Vila Isabel e outros pontos situados na Zona Sul; Haroldo Rodrigues Nunes (Haroldo da Saenz Pena) comanda na Tijuca e na Zona Norte da cidade; Emil Pinheiro é o chefão da Barra da Tijuca e Jacarepaguá; Aílton Guimarães Jorge (Capitão Guimarães) é o todo-poderoso de Niterói e da Região dos Lagos, ao passo que Antônio Petrus Kalil (Turcão) é o capo de Alcântara, parte de Niterói e da Zona Portuária. Trata-se de um Estado paralelo, com os seus régulos e as forças que os acompanham, verdadeiras gards de corp dispostas a qualquer violência contra a população, para fazer cumprir as ordens dos seus senhores. Não são raras as desavenças entre eles, que terminam desaguando em verdadeiros banhos de sangue das gangues rivais e dos cidadãos que porventura se atravessem no fogo cruzado. É o que poderíamos denominar de Patrimonialismo primitivo, a forma mais bárbara assumida por essa organização social, alicerçada no que os sociólogos colombianos denominam de “clientelismo armado”.[1]

Paralelamente, no mesmo período, as FARC, novo cartel das drogas que se consolida após as derrotas infringidas pelo Estado colombiano aos cartéis tradicionais de Medellín e de Cáli, firmam o seu poder na denominada “zona de distensão”, cedida pelo governo colombiano (e equivalente a uma área do tamanho do Estado do Rio), e iniciam a sua penetração na fronteira brasileira. O poder da contravenção no Rio, como vimos, torna-se empresário dos tóxicos. Um dos mais importantes representantes dessa nova geração de bicheiros-empresários foi Ernaldo Pinto Medeiros, Uê. Mesmo na prisão de Bangu I, Uê mandava nos pontos de venda de drogas dos morros do Adeus e Juramento, que herdou de Escadinha. Era audacioso e violento. Foi o responsável, no início da década de 90, pela ordem de ataques a postos da Polícia Militar e às delegacias de polícia no subúrbio carioca. Era temido pelos seus pares, não bebia, não fumava e não consumia os entorpecentes que vendia. Lembrava, em muitos aspectos, o traficante colombiano Pablo Escobar.

A população carioca, aos poucos, foi virando refém do narcotráfico, fato que levou o editorialista de O Globo a escrever em 13 de outubro de 1994: “Vivendo no Rio de Janeiro, sempre se aprende alguma coisa. Recentemente, o carioca começou a adquirir uma certa competência auditiva para distinguir entre tiros de fuzil, pistola, metralhadora, escopeta e armas mais sofisticadas e mais pesadas. Em bairros residenciais próximos de morros – vizinhos, portanto, das disputas territoriais entre traficantes, e dos ocasionais tiroteios entre bandidos e policiais – rara é a semana que passa sem que se ouça à noite, longe ou ameaçadoramente perto, o som das rajadas. Botafogo, Laranjeiras, São Conrado, Copacabana e Santa Teresa vivem com essa realidade, e com uma incerteza: onde acertará a próxima bala perdida? ”. O mesmo jornal, em editorial de 3 de setembro de 94, frisava que “no Rio de Janeiro de hoje, estamos todos confinados. Confinados os que são obrigados a viver em apartamentos de janelas blindadas, em prédios de portarias gradeadas e em condomínios que apelam para as empresas privadas de segurança. Confinados os trabalhadores habitantes de morros e favelas a quem os traficantes impuseram primeiro o código do silêncio, e agora o toque de recolher. Confinados estão os credos religiosos e as entidades assistenciais, forçados a ceder seus espaços para o narcotráfico e as quadrilhas”. 

Nesse confinamento situam-se também as escolas nos vários bairros da cidade. A violência escolar é apenas um corolário do avassalador poder de penetração do narcotráfico na sociedade carioca. É claro que esse aspecto da violência acompanha o desenvolvimento do mercado de entorpecentes nas principais cidades do planeta, como tem ficado claro após os estudos do fenômeno nos Estados Unidos, Espanha, França, Portugal, etc. No caso do Rio, a violência ensejada pelo narcotráfico nas escolas é causa direta da evasão escolar, segundo o prefeito César Maia [cf. “Violência nas escolas”, O Globo, 1º de maio de 2003].

Em relação ao treinamento dos meliantes, o mesmo jornal carioca noticiava em 29 de julho de 1995: “O serviço reservado da PM investiga o treinamento de guerrilha que traficantes vêm recebendo em acampamentos como o que foi descoberto anteontem na Floresta da Tijuca. A polícia já estourou um acampamento desse tipo no Morro do Andaraí e investiga outros locais de difícil acesso usados pelos bandidos. Em Botafogo, o traficante Marcinho VP costuma acampar próximo ao Mirante dona Marta. Os marginais são treinados por ex-militares que recebem até R$ 2 mil por semana para ensinar aos bandidos o manuseio de armas, sobrevivência na selva e camuflagem”. Em 30 de junho do mesmo ano, o jornal Tribuna de Minas informava, referindo-se às atividades logísticas do narcotráfico, que “a Polícia Federal está investigando a informação de que a quadrilha do coronel-aviador da reserva da Aeronáutica, Latino da Silva Fontes, preso (...) com um carregamento de 30 mil balas de fuzil, utilizava a própria zona portuária do Rio para negociar armas contrabandeadas”.

Aspecto importante do crescimento do crime organizado neste período constituiu a infiltração de soldados do narcotráfico entre os militares. Em 1994, o vice chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Luciano Casales, confirmou que os traficantes estavam se infiltrando nas três forças, na época do alistamento militar. Denunciou ainda que o narcotráfico estava patrocinando a formação profissional de delegados e juízes no Rio. Contou que, entre 1990 e 1993, quando comandou a Escola de Estado Maior do Exército no Rio, descobriu que um de seus melhores soldados era chefe da boca-de-fumo do Morro Dona Marta. “Descobrimos o fato quando suspeitamos de seu comportamento e mandamos um olheiro atrás dele”, - contou o general.  Vale a pena citar a resposta que lhe deu o soldado, depois de ouvir que o Exército descobrira a sua profissão paralela de traficante: “General, eu sei separar as coisas. Aqui, eu sou um de seus melhores soldados. Lá, eu fui escolhido pelo mesmo motivo. Pela competência”. Graças à infiltração dessas “pessoas competentes”, passou a acontecer rotineiramente, nas Forças Armadas, o roubo de munição, uniformes e armamentos. O então ministro-chefe do EMFA, almirante Arnaldo Leite Pereira, lembrou que as polícias federal e militar sofriam de problemas parecidos. 

O poder militar do narcotráfico no Rio viu-se estimulado, ao longo deste período, pelo fortalecimento do crime organizado na Colômbia, ao ensejo da organização da “República do Caguán”, pelas FARC, na zona desmilitarizada de 42 mil quilômetros quadrados que o governo do presidente Pastrana garantiu aos meliantes. Graças a essa zona de impunidade, os narcoguerrilheiros colombianos passaram a exercer pressão sobre a fronteira brasileira, invadindo-a repetidas vezes, em busca de insumos para o refino da cocaína, bem como para o comércio de armas. Houve atritos entre patrulhas do Exército brasileiro e insurgentes colombianos, que terminaram ensejando mortes de soldados do nosso país. Em face da penetração das FARC, em outubro de 1999 o Exército e a Força Aérea do Brasil atacaram a guerrilha colombiana na operação “Querarí”, tendo sido mobilizados 5 mil homens e 40 aviões de combate.

Ao poder crescente do narcotráfico juntou-se, neste período, no Rio de Janeiro, a idéia de que tudo é permitido. Como escrevia em novembro de 1994 o jornalista Leonel Kaz: “Qualquer um hoje no Rio pode fazer o que lhe passar pela cabeça”. De mendigos dormindo à vontade sob as marquises dos prédios do Centro, do Flamengo, de Copacabana, aos assassinos que, por serem menores de idade gozam de impunidade, o Rio se transformou, no sentir do jornalista, em terra de ninguém, em que não é garantido o direito comezinho à vida ao cidadão que paga impostos. Indignado, Leonel Kaz escrevia: “Comecemos pelo dimenor Meleca, solto pelo Juiz da 2ª vara de menores porque o Estado não tem condições de garantir sua guarda. Meleca participara, juntamente com o também dimenor Ratinho, do assassinato do ex-diretor do Banco Central Luís Carlos Serrano, em pleno centro do Rio. O Juiz atendeu reclamos da mãe, que prometeu levar o menor a viver no Sul do país. Meleca foi visto, há uma semana, no Bairro de Fátima. Cabe a pergunta: quem garante a nossa guarda?” [Leonel Kaz, “Rio: a cidade e as serras”, O Globo, 23 de novembro de 1994]. 

Em face da agressividade dos narcotraficantes, o poder público, tanto a nível estadual quanto federal, não conseguiu esboçar uma resposta à altura. No plano estadual, as ações foram mais de caráter tópico, repetindo um pouco o esquema que garantiu a segurança da Eco 92: nos momentos de maior crise, policiamento ostensivo do Exército, bem como ações tópicas da polícia para dar uma resposta às investidas dos bandidos. Mas não houve a formulação de uma estratégia continuada de segurança pública. No plano federal, no decorrer de 1994 os Estados Unidos suspenderam a ajuda financeira para o combate ao tráfico de entorpecentes no Brasil, porque constataram que não havia vontade política do Governo Federal para a repressão às drogas. O convênio entre os dois países, assinado em 1983, previa a ajuda financeira dos Estados Unidos, que em 1988 chegou a 2 milhões de dólares. Em 1994, a Polícia Federal recebeu apenas 200 mil dólares para a compra de equipamentos. Segundo o então diretor da Divisão de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal, delegado Sérgio Sakon, a consequência mais séria do corte da ajuda americana consistiu em que o Brasil parou de receber informações da Drug Enforcement Administration (DEA) sobre o movimento dos cartéis do narcotráfico. Os agentes da DEA, que chegaram a colaborar com a Polícia Federal em ações conjuntas, ficaram impressionados com a falta de recursos dos policiais brasileiros. “Não existe combate ao tráfico de drogas no país”, frisou Sakon.
 
Tamanha falta de ação do governo brasileiro terminou facilitando a ação dos bandidos do narcotráfico, que passaram a exercer a sua ação corruptora mediante o lavado de dólares em ações patrocinadas por entidades humanitárias. O episódio mais conhecido na época foi o dos “dinheiros quentes” recebidos pela ABIA, entidade coordenada pelo sociólogo Herbert de Souza, que em 1991 recebeu da contravenção, com a intermediação do advogado Nilo Batista (que seria posteriormente governador do Estado do Rio), soma equivalente a 58 mil dólares. Esse fato, aliás, já se tinha tornado corriqueiro na Colômbia, onde os dinheiros “calientes” do narcotráfico beneficiaram instituições filantrópicas e até paróquias, ao longo dos anos 80. Nem o Poder Judiciário do Estado ficou ileso diante de tantos avanços dos narcotraficantes. Segundo noticiava a imprensa em abril de 1994, o órgão especial do Tribunal de Justiça do Estado -  composto pelos 25 desembargadores mais antigos – abriu sindicância para apurar o envolvimento de juízes que constavam da lista de propinas da contravenção [cf. “Justiça vai apurar envolvimento de juízes”, O Globo, 14/04/94].

A Justiça, certamente, tentou reagir, ao longo do período, para se contrapor ao avanço do poder do narcotráfico. O primeiro golpe significativo contra a máfia dos tóxicos foi dado em maio de 1993, quando a juíza Denise Frossard, da 14ª Vara Criminal, condenou à prisão a cúpula do bicho carioca integrada pelos contraventores Luizinho Drummond, Anísio, Miro, Maninho, Turcão, Zinho, Capitão Guimarães e Paulinho Andrade. Graças às investigações conduzidas pelo Ministério Público no ano seguinte, ficou conhecida a clara vinculação dos bicheiros com o narcotráfico, como financiadores do mesmo. Ao longo de cinco meses os promotores investigaram o movimento financeiro dos bicheiros. O Ministério Público formalizou acusação contra mais de 30 pessoas ligadas à contravenção por formação de quadrilha. Entre os acusados contavam-se 12 dos 14 “banqueiros” condenados em 1993. A partir da apreensão dos livros contábeis e dos disquetes nas fortalezas de Castor de Andrade, a Procuradoria Geral de Justiça denunciou, ao longo de 1994, 147 pessoas por corrupção ativa e passiva. Entre os acusados figuravam os nomes dos juízes César Augusto Leite e Renato Simoni por envolvimento com a máfia do jogo. De outro lado, o Legislativo federal também tentou reagir à pressão dos narcotraficantes mediante a CPI do Narcotráfico (instalada em abril de 1999 e encerrada em dezembro de 2000). A CPI foi bastante ameaçada pelos traficantes especialmente os do Rio de Janeiro, que chegaram a trocar tiros com os seguranças a bordo das embarcações em que os parlamentares se mobilizavam na Bahia da Guanabara. Apesar dessa pressão do crime organizado, a CPI indiciou 800 pessoas pelo país afora. Mas, segundo informou a imprensa posteriormente, 70% dos políticos e juízes indiciados não foram punidos.

A consequência mais clara do avanço do poder do narcotráfico no Rio foi o aumento assustador da violência, que passou a se traduzir já não em assassinatos isolados, mas na prática sistemática de chacinas. Pode-se estabelecer um cronograma claramente definido, que aponta para um paralelismo entre aumento do narcotráfico e o crescimento do número de chacinas, como, aliás, aconteceu também na cidade de São Paulo.  Instalado o narcotráfico numa cidade, a consequência natural é a explosão incontida da violência, chegando ao que hoje vivemos nas grandes e médias cidades do país, numa situação próxima do genocídio de uma parte da população.

O crescimento da violência no Brasil fez com que a pirâmide da idade passasse a se configurar nos parâmetros dos países em guerra: a partir de meados da década de 90 começaram a faltar homens jovens, o que criou o desequilíbrio entre os sexos. Segundo dados da polícia em 1994, a média era de oito homens mortos para cada mulher. Em algumas cidades da região metropolitana do Rio de Janeiro a diferença chegava, nessa época, a 15 homens mortos para cada mulher. Esses dados foram apresentados pela pesquisadora Alba Zaluar no VI Fórum Nacional sobre a Violência. Segundo esta estudiosa, a taxa de homicídios no Rio triplicou durante a década de 80 e somente em 1992 para cada 100 mil habitantes, 76 foram assassinados [cf. Alba Zaluar, “Violência no Brasil ameaça o equilíbrio entre os sexos”, O Globo, 28 de abril de 1994].

d – Quarto momento.- No período compreendido entre 2000 e 2003, Fernandinho Beira-Mar e Leonardo Dias Mendonça, os dois mais importantes chefões brasileiros das drogas, organizaram o “Suricartel”, uma multinacional do crime e do narcotráfico, que garantia armas às FARC e cocaína aos morros cariocas. Consolidou-se a penetração da organização guerrilheira colombiana nas favelas do Rio, ao ensejo do domínio que Fernandinho Beira-Mar passou a desempenhar sobre os outros traficantes. Ao redor desse meliante unificou-se o comando do narcotráfico no eixo Rio - São Paulo e começou a guerra declarada contra as instituições no Rio de Janeiro. Essa unificação de comando já se anunciava desde meados da década de 90, época em que, segundo Ricardo Hallack, diretor da delegacia de Repressão ao Crime Organizado (DRACO), “traficantes de vários morros passaram a agir em conjunto e adotaram estrutura semelhante à de uma empresa” [O Globo, Caderno Especial, 16/06/02]. Presos em 93, os bicheiros tradicionais foram preparando os seus sucessores, a fim de que dessem continuidade à estrutura empresarial dos negócios [Jornal do Brasil, 22/05/93].

De outro lado, aumentou neste período a pressão internacional do crime organizado, mediante contatos regulares deste com organizações radicais e políticos de esquerda no nosso país. Um exemplo disso é o fato de que, a partir de 1998 e com intensidade crescente até 2002, o comandante Bernal, das FARC, passou a atuar junto a lideranças populares do Movimento dos Sem Terra (MST), da Liga Operária Camponesa (LOC) e do Movimento Revolucionário dos Sem Terra (MRST), proferindo também palestras entre intelectuais e políticos. Mais um exemplo da penetração do crime internacional no Brasil: em dezembro de 2001 foi sequestrado em São Paulo o publicitário Washington Olivetto, por uma quadrilha de ex-guerrilheiros chilenos que tinha vínculos com as FARC. Esse sequestro, aliás, revestiu-se de caraterísticas muito semelhantes às que se deram no do industrial paulista Abílio Diniz em fins de 1989. 

Juntando os cacos dos noticiários da imprensa e dos boletins das agências internacionais, pode-se concluir o seguinte:  enfraquecidas com a queda do regime comunista na antiga União Soviética, as organizações guerrilheiras latino-americanas passaram a buscar novas fontes de financiamento. Na Colômbia e na América Central os guerrilheiros começaram a praticar, de forma corriqueira, o sequestro como meio de financiamento, além, evidentemente, do tráfico de drogas. As FARC financiavam-se mediante esse esquema (um 60% dos seus ganhos provinham do narcotráfico e o 40% restante do sequestro sistemático de empresários, comerciantes e profissionais liberais, chegando na época a 3.500 o número de pessoas sequestradas na Colômbia).  Tudo indica que nos sequestros de Diniz e Olivetto as guerrilhas latino-americanas se associaram para praticar esse tipo de extorsão de forma sistemática no Brasil, começando pela capital econômica do país, São Paulo. A propósito disto, aliás, a agência ANSA noticiou que em 2000 houve, na Itália, uma reunião dos principais grupos guerrilheiros latino-americanos (encabeçados pelas FARC), mais o grupo terrorista basco ETA, visando a encontrar caminhos para solucionar os problemas de caixa dessas organizações.

Em fevereiro de 2002, Fernandinho Beira-Mar organizou o seu escritório na prisão de segurança máxima de Bangu I, de onde passou a ordenar ações armadas e a compra de armamento pesado, inclusive mísseis e o explosivo C-4. Ocorreu, por esses dias, o atentado contra o centro administrativo da Prefeitura do Rio, com tiros de fuzil e granadas. O prefeito da cidade pediu a decretação do estado de defesa, invocando o artigo 136 da Constituição. Nesse mesmo mês, a imprensa noticiava que militares brasileiros estavam servindo às FARC [O Globo, edição de 4 de fevereiro de 2002]. De outro lado, passou a circular nas bancas de jornais, com regularidade e editada em português, a revista das FARC, Resistência. Em abril de 2002 era noticiado pela imprensa o projeto do MST de criar o Estado do Pontal, no interior de São Paulo, inspirado na criação da República do Caguán pelas FARC, na zona desmilitarizada da Colômbia. Pesquisa desenvolvida por uma ONG revelou que o tráfico carioca contava com 5.369 menores como soldados armados nos morros. 

Em junho de 2002 ocorreu o assassinato do jornalista Tim Lopes por Elias Maluco e seu bando. Delito do jornalista: ter noticiado o aliciamento de menores e a trata de brancas pelos traficantes nos bailes funk programados em favelas e bairros sob controle dos traficantes.  Esse crime, somado à eliminação indiscriminada e quase diária de policiais militares e civis no Rio e ao assassinato seletivo de promotores de justiça nos Estados de São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro, mostrava o poder intimidatório dos barões do narcotráfico. O recado era claro para a sociedade: se os agentes da ordem não estavam seguros, muito menos o cidadão comum. Era melhor fazer o jogo dos meliantes. Fernandinho Beira-Mar era caracterizado pela imprensa como “a síntese de uma geração de bandidos que une inteligência e violência” [O Globo, Caderno Especial, 16/06/2002].

Em agosto de 2002, a sede da diretoria de Bangu I foi destruída em rebelião comandada por Fernandinho Beira-Mar, que firmou o seu poder, definitivamente, sobre os outros traficantes cariocas. No mesmo mês era noticiado o projeto da Prefeitura de Ribeirão Preto (comandada pelo doutor Palocci, uma das figuras de prol do Partido dos Trabalhadores), para abrir uma representação das FARC nessa cidade. Em 30 de setembro de 2002, por ordem de Beira-Mar, lojas fecharam em 40 bairros do Rio de Janeiro e 33% das indústrias pararam, em decorrência da insegurança generalizada. O comércio teve prejuízos calculados em 130 milhões de Reais. Os traficantes cariocas inauguraram sites na Internet, nos quais faziam propaganda do consumo de tóxicos e ensinavam técnicas básicas terroristas para fabricação de bombas. Em 16 de outubro desse ano ocorreu o ataque do narcotráfico ao Palácio Guanabara e à Torre Rio Sul. No dia seguinte, aconteceu um ataque com granadas à delegacia da Cidade Nova. Em novembro de 2002, agentes infiltrados nas favelas do Rio descobriram guerrilheiros das FARC com plano para libertar Beira-Mar. A Drug Enforcement Administration (DEA) entregou ao governo colombiano provas dos vínculos existentes entre Beira-Mar e outros traficantes cariocas com as FARC.

Em fevereiro e março de 2003, contínuos tiroteios entre traficantes e policiais fecharam as principais vias de acesso ao Rio. Civis foram baleados em ônibus, metrô, ruas e universidades. A polícia descobriu um plano de fuga massiva de criminosos de Bangu III e incautou dos detentos o explosivo C-4 comprado por Beira-Mar. Destacando o poder exclusivo que os traficantes tinham nos morros, o jornalista Ricardo Miranda escreveu em abril de 2003: “Um dos mais violentos complexos de favelas do Rio de Janeiro, a Maré,  está ocupada (...) por 200 homens das Polícias Civil e Militar. Um mandado de busca e apreensão itinerante permite que policiais revistem qualquer casa. Mas que ninguém se engane. Ali, a PM é invasora. O território é controlado pelos narcotraficantes do Terceiro Comando (TC) e o governador é Paulo César Silva dos Santos, o Linho, que põe todo mês 300 quilos de cocaína nas ruas do Rio. Localizada junto à Baía da Guanabara, o que facilita a entrada e distribuição de drogas, e também junto às principais vias de acesso à cidade (Avenida Brasil e Linhas Amarela e Vermelha), a Maré é estratégica para o TC, que controla 14 de suas 16 favelas, e objeto de desejo - e disputa -  da facção rival, o Comando Vermelho (CV), que comanda as favelas Parque União e Nova Holanda” [Ricardo Miranda, Istoé, 30/04/2003].

Em face do avassalador crescimento das forças do narcotráfico, que passaram a atacar quartéis das Forças Armadas, em maio de 2003 o Ministério da Justiça informou que seria criada uma Força Nacional (semelhante ao FBI americano), com a finalidade de combater o crime organizado [cf. Jailton de Carvalho, “Força Nacional contra o crime”, O Globo, 22/05/2003]. Essa Força estaria integrada por 600 policiais federais, civis e militares de elite, a serem chefiados pelo diretor-geral da Polícia Federal. Digamos, de entrada, que a Força Nacional chegava um pouco tarde; em segundo lugar, a sua dimensão era bastante modesta. Enquanto só no Rio de Janeiro os traficantes contavam com um exército de aproximadamente 7 mil homens muito bem armados, os 600 efetivos da Força eram totalmente insuficientes. Parece como se o governo tivesse noticiado o fato da criação da Força somente para acalmar a opinião pública, que cobrava, no governo Lula, uma posição mais efetiva em face do crime organizado. Certamente a violência dos traficantes não foi desmotivada por essa notícia e outros fatos terríveis aconteceriam no futuro. A medida anunciada não passava de jogar a poeira do narcotráfico para baixo do tapete.

Outra medida anunciada (em junho de 2003), consistiu no fato de o Exército ter começado a treinar um grupo de elite para atuar na repressão à criminalidade no Rio de Janeiro. O número de militares e a localização da nova força foram mantidos em sigilo. A julgar pela forma em que essa unidade foi configurada, trazendo soldados de outras regiões do país, menos passíveis, portanto, de serem pressionados pelos traficantes, parecia que o projeto em andamento se tivesse inspirado na bem-sucedida experiência do governo colombiano que tinha criado esse tipo de força, altamente eficiente, graças à qual o Estado do país vizinho começou a infringir sérias derrotas às FARC.

Em relação à nova unidade militar, frisavam os jornalistas Helena Chagas e Francisco Leal: “A nova tropa de elite foi concebida a partir do diagnóstico de que,  embora as Forças Armadas não devam atuar em segurança pública, a situação é tão grave que o governo não pode abrir mão de ter uma equipe preparada, caso haja necessidade de utilizá-la. Os idealizadores da equipe insistem que não é competência dos militares fazer o patrulhamento das ruas do Rio e que as Forças Armadas não devem ser encaradas como a solução para todos os problemas de segurança do Estado. O grupo especial só será acionado segundo critérios preestabelecidos pelo governo. (...) A equipe de elite do Exército poderá servir como reforço à Força Nacional que o Ministério da Justiça pretende criar para combater o crime organizado” [Helena Chagas e Francisco Leal, “Exército prepara grupo para atuar no Rio”, O Globo, 10 de junho de 2003]. 
 
Em que pese essa boa notícia, a situação real era a de uma força policial estadual mal aparelhada e sem uma política eficaz para defender eficientemente o cidadão. Pesquisa realizada pela Universidade Cândido Mendes mostrava que a polícia carioca matava mais e morria mais, sem que os índices de violência caíssem realmente [cf. Paulo Marqueiro, “Segurança enxugando gelo”, O Globo, 9 de junho de 2003]. Além disso, eram alarmantes os índices de desrespeito aos direitos humanos por parte das forças policiais, tanto no Rio quanto no resto do país, o que levou o afoito Secretário de Segurança Pública do Rio a cometer um verdadeiro sincericídio ao afirmar que “polícia no Brasil tortura mesmo”. Crimes cometidos por policiais ou agentes penitenciários ficavam impunes, sem que os acusados sequer fossem afastados do serviço. A coisa chegou a tal grau de gravidade, que as Nações Unidas decidiram investigar os grupos de extermínio existentes no país [cf. Rodrigo França Taves “ONU investigará grupos de extermínio no Brasil”. O Globo, 7 de setembro de 2003]. 

Mas voltemos ao insuficiente número de homens do exército da legalidade contra o banditismo. O tamanho da Força Nacional proposta pelo Governo Federal era pequeno demais para fazer frente às tropas do narcotráfico na cidade. Embora não se soubesse de quantos efetivos seria o grupo de elite que o Exército preparava para combater o crime no Rio, certamente não teria mais homens do que a Força Nacional. De novo saltava à vista, aqui, a insuficiência quantitativa das forças da ordem. Só para se ter uma idéia do tamanho que um exército deveria possuir para enfrentar o narcotráfico, na Colômbia tinha sido organizada, pelo governo do Presidente Uribe, uma Força Nacional de 50 mil soldados profissionais que contavam com sofisticado apoio logístico fornecido pelo governo americano (para enfrentar um exército guerrilheiro do dobro do tamanho do exército do narcotráfico no Rio).

Na trilha das respostas policiais insuficientes, situava-se, a meu ver, o pseudopacifismo com que alguns intelectuais e administradores públicos tentavam responder à onda de violência desencadeada pelo narcotráfico. O problema era apresentado por eles da seguinte forma: o fator que produz a violência é o uso de armas de fogo pela população. Tire-se de circulação as armas, que a paz reinará de novo na sociedade. Ora, o argumento era falacioso. Em primeiro lugar, porque a causa real da violência na sociedade carioca e, em geral, na sociedade brasileira, era o descontrolado avanço do narcotráfico, com os exorbitantes lucros que apresentava. Tirar as armas de circulação, simplesmente significava que os traficantes podiam exercer a sua perversa negociação com o pó da morte, enquanto não houvesse conflito com tiros e mortes. Não significa que eu esteja querendo defender a posse indiscriminada de armas. Mas o problema não está simplesmente na posse destas. É claro que deveria haver uma legislação restritiva da posse de armas. Mas isso teria de ser acompanhado do combate sem denodo contra os grupos marginais fortemente municiados com armamento de guerra, bem como contra o narcotráfico e o consumo de entorpecentes, nas suas variadas manifestações.

Com muito bom senso o prefeito César Maia criticou a política de segurança formulada por Luis Eduardo Soares (que defendia o banimento unilateral de armas de fogo, mas não a comercialização e o consumo de tóxicos). A propósito, escrevia o prefeito em agosto de 2001: “Em que se baseia a política de Segurança formulada por ele? Com total e entusiasmado apoio de uma ONG patronal chamada Viva-Rio (que conseguiu alvará para vender serviços sem entrar em licitações), o problema central para o Sr. Luis Eduardo Soares está no uso das armas e não no tráfico de drogas. Por isso mesmo, propõe suspender a repressão, desde que as gangues de traficantes não disputem os pontos de venda a tiros, nem façam uso das armas. Ele sonha em ver o varejo das drogas repetir, no Rio, a lógica do varejo das drogas de Los Angeles, onde as gangues se acomodaram distribuindo entre elas as regiões da cidade, acabando com a disputa a bala pelos pontos de bocas de fumo, ou, para não ir muito longe, repetir a lógica adotada pela contravenção carioca. É sabido que se realizaram no Rio reuniões clandestinas, com a participação de traficantes e autoridades, ou seus próceres, para discutir a pacificação. O preço era uma espécie de camuflagem, ou adeus às armas, tendo como contrapartida a suspensão da repressão ao tráfico de drogas. A polícia do Rio recebeu orientação, no início de 1999, para deixar o mercado de varejo de drogas correr solto e só atuar quando houvesse tiroteio, como se fosse uma espécie de castigo. Quem não atirar, pode traficar drogas à vontade. Onde houver tiros, entra a polícia”  [César Maia,  “Um desastre na segurança pública”, In: Folha de São Paulo,  1º de agosto de 2001].

2) Intermezzo sociológico: bicheiros, traficantes, narco-guerrilheiros.- A realidade do narcotráfico deve ser colocada no contexto do Estado patrimonial, que foi a modalidade de organização política que prevaleceu no Brasil. Lembremos o aspecto fundamental dessa formação político-social. O Estado, no contexto do Patrimonialismo, surge como hipertrofia de um poder patriarcal original, que alarga a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a administra-los como propriedade familiar (patrimonial). A forte tradição patrimonialista, em que pese os esforços modernizadores que pontilham a história brasileira, ainda não foi superada. O Estado, como dizia Raimundo Faoro, “tem donos”. A nossa história republicana é rica em exemplos de tentativas de privatização do poder por grupos e estamentos. A “política dos governadores” obedeceu, no contexto da República Velha, a uma tentativa das elites regionais para se apossarem da máquina burocrática do Estado, como meio de enriquecimento. A longa passagem de Getúlio pelo poder, deu ensejo à tentativa de disciplinar o Patrimonialismo tradicional, fazendo emergir proposta modernizadora afinada com o Executivo central hipertrofiado, que passou a cooptar os senhores patrimoniais regionais, as tradicionais oligarquias, ao redor de uma proposta que faria emergir as bases da industrialização. Mas esse esforço modernizador e autoritário ensejado pela Segunda Geração Castilhista encontrou forte oposição nos tradicionais setores oligárquicos, bem como no contexto da miúda burocracia caudatária destes e em alguns segmentos intelectuais e políticos (minoritários, por certo), de inspiração liberal.
 
Os últimos cinquenta anos do século passado viram emergir dois momentos modernizadores tributários do modelo getuliano: o plano de metas de Juscelino e o regime militar (1964-1984). A retomada da vida democrática não garantiu, necessariamente, a preservação dos elementos modernizadores. Estes passaram a conviver com a tradicional liturgia cooptativa das oligarquias, ao redor das várias Repúblicas em que se pode disseminar a nossa experiência política das últimas décadas. Poder-se-ia falar, sucessivamente, da República do Maranhão, da República das Alagoas, da República do pão de queijo, da República do tucanato paulista e, nos tristes tempos de consolidação nacional da liderança petista, com áreas sensíveis como a saúde sendo loteadas entre as clientelas políticas de militantes, inicialmente da República do ABC. A máquina burocrática foi ciosamente preenchida, nos seus níveis federal e estadual, por aqueles que melhor representassem os interesses da República de plantão. Ausência total de espírito público? Seria injusto afirmar tal coisa. Mas também seria utopia pensar que estavamos num regime republicano estrito, em que a res publica não se confunde com a coisa nossa, com os interesses particulares e clânicos dos que exerciam o poder. A longa história da que Oliveira Vianna denominava de política alimentar ainda está muito presente e não sairá tão fácil de cena. Precisaríamos fazer emergir em cada brasileiro a noção de bem público. E isso é questão para formar toda uma geração, num ensino básico que realmente eduque para a cidadania. Coisa que, convenhamos, ainda está em débito na nossa realidade.

A marginalidade acomodou-se à essência do Estado patrimonial brasileiro. O contraventor tradicional, o folclórico bicheiro, sempre conviveu numa boa com a estrutura patrimonial regional. Exemplo desse modelo de convivência foi, no antigo Estado da Guanabara, a administração do governador Chagas Freitas, na qual os bicheiros encontraram o seu lugar ao sol, sem ultrapassar a linha da contravenção tolerada. Os diligentes apontadores estavam nos lugares previamente combinados com a polícia, que recolhia religiosamente a fezinha dos homens da lei e as coisas ficavam na santa paz do convívio carnavalesco. Esse é o tipo de contraventor que prevalece na vida carioca até a década de 80. Realidade exclusivamente brasileira no contexto latino-americano? Certamente não. Poder-se-ia estabelecer um paralelo bastante fiel entre o bicheiro carioca e o chancero de Medellín, ambos agentes da economia informal numa atividade muito apreciada nos contextos em que a ética do atalho substituiu à ética do trabalho: os jogos de azar, que garantem o desejo do enriquecimento fácil, num passe de mágica, sem a incômoda obrigação de trabalhar. A estrutura social costurada ao redor do tradicional bicheiro tinha muito de semelhante com as práticas da máfia siciliana: fidelidade aos pactos, sentido da família e da honra, solidariedade com os membros do clã, colaboração com os outros bicheiros numa espécie de clientelismo horizontal, crueldade para com os desertores ou aqueles que violassem as regras do jogo.

Com o primeiro governo Brizola, no início dos anos 80, os morros convertem-se em redutos fortes da marginalidade e começou a surgir um novo tipo de fora-da-lei muito mais agressivo que o tradicional bicheiro: o traficante. Este não apareceu da noite para o dia. Despontou inicialmente como servidor do bicheiro, como aquele comerciante audaz do novo mercado que assomava na cidade: o dos tóxicos, inicialmente o da maconha. Com a entrada da cocaína na cena carioca, ao longo da década de 80, e com os descomunais lucros que os contraventores auferiam a partir desse novo negócio, alguns bicheiros abandonaram o perfil de contraventores soft e converteram-se em reles traficantes. Tal foi o caso, por exemplo, de Aniz Abraham David, figura que despontava nos anais do bicho carioca como alguém que quebra os elos parentais. O que vale é o enriquecimento tout-court, ou a manutenção, a qualquer preço, da primazia obtida no meio pelo terror. A carta-testamento da ex-mulher de Aniz era bem significativa desse novo tipo de marginal, o bicheiro que virou traficante. Alguns destes surgem meteoricamente das hostes que prestavam serviços aos antigos bicheiros e passam a exercer um crescente domínio, alicerçados exclusivamente no amedrontamento e na violência indiscriminada. 

Figuras como Elias Maluco ilustram muito bem esse novo tipo de personagem do nosso panorama social. Surge, nos lugares onde se torna forte o tráfico de drogas, uma nova hierarquia de poder: na cúpula está o chefão ou traficante, aquele que compra a cocaína para ser distribuída e que garante o armamento; ele é o capo di tutti capi no morro.  Vem a seguir o gerente do tráfico. Rodeiam esses líderes, numa espécie de gard de corp primitiva, os chefes das bocas de fumo, responsáveis pelas vendas das drogas no varejo e pelo gerenciamento dos lucros obtidos, bem como os soldados do tráfico, muitos deles menores de idade, treinados e armados pelo chefão. Na parte inferior da hierarquia de domínio situam-se o olheiro (aquele que, mediante rojões ou pipas, adverte a presença da polícia ou a chegada de estranhos) e o vapor (office-boy do traficante, que garante a distribuição da mercadoria no asfalto). A autoridade exercida pelo chefão, pelos gerentes e pelos chefes das bocas de fumo é vertical e inquestionável. O chefão é, no seu reduto, uma espécie de sátrapa, senhor da vida e da morte das pessoas reféns do seu domínio. Pratica julgamentos sumários contra os seus desafetos, como no caso de Tim Lopes. Quem não é diretamente ligado às atividades do tráfico, deve se deixar cooptar por ele: a lei do silêncio é a primeira providência, que garante o anonimato da estrutura de poder do tráfico em face da polícia. 

Ao contrário do que acontecia em Medellín, na época áurea do Cartel de don Pablo (que proibia sob pena de morte o consumo de cocaína pelos seus colaboradores, com a finalidade de não atrapalhar os negócios), nos morros cariocas o combustível da febril atividade do tráfico era e é costumeiramente a droga. Exemplo disso é o relato de Caco Barcellos acerca das atividades de Cabeludo, um dos chefes do tráfico no morro Dona Marta. A propósito deste ponto, escrevia o jornalista: “As extravagâncias de Cabeludo eram derivadas do consumo de cocaína. Longe das drogas, no universo restrito do crime, era um homem generoso e solidário. Já antes de virar o chefe do tráfico, transferiu parte do dinheiro roubado no assalto milionário à Casa da Moeda para os parentes dos parceiros que morreram em combate. Sempre manteve o compromisso de enviar dinheiro e drogas aos que estavam presos. Quando não cheirava, gostava de passear pela favela na companhia de crianças e de contar histórias curiosas de assaltos aos aposentados, que passavam horas ouvindo sentados em frente aos barracos. Uma grossa linha branca sobre o bigode mal raspado sinalizava quando cabeludo estava sob efeito de cocaína. Nesses dias ele virava outro homem. As pessoas mais próximas sabiam disso e muitos o evitavam para se proteger de suas atitudes imprevisíveis. Não era raro Cabeludo ficar até três dias seguidos sem dormir, período em que tinha alucinações e crises de desconfiança” [Barcellos, 2003: 92-93]. Pode-se imaginar o potencial incrível de violência que o consumo de drogas tem produzido no narcotráfico carioca. As repetidas chacinas são prova meridiana disso, bem como as que diariamente acontecem em São Paulo, Belo Horizonte e outras cidades brasileiras.

Em decorrência do contato diuturno com a estrutura do narcotráfico e devido à falta de formação profissional, alguns setores policiais se corromperam. Já não esperavam do traficante o pagamento tranquilo da fezinha, como procediam com os bicheiros. Passaram a extorquir simplesmente os traficantes e os seus colaboradores. A violência, nesse contexto, cresceu de forma descontrolada. Os ajustes de contas entre traficantes e colaboradores, ou entre estes e consumidores ou com os policiais, davam-se simplesmente mediante a eliminação física de todos os envolvidos e das suas famílias. Daí o crescimento terrível das chacinas nas grandes cidades brasileiras, a partir do final dos anos 80. Os traficantes firmavam o seu domínio sobre colaboradores e nas comunidades reféns da sua autocracia, mediante o mecanismo que os sociólogos colombianos passaram a denominar de “clientelismo armado”. Trata-se de uma subserviência aos senhores do tráfico alicerçada exclusivamente no medo.  Os policiais corruptos, por sua vez, organizaram-se em corpos de extermínio que praticavam sistematicamente chacinas como a de Vigário Geral.
Outra figura importante que caracterizava a cena carioca nesses dias que correm era o chefe de cartel. Diferenciava-se do simples traficante pelo fato de que o seu universo é mais amplo. 

O chefe de cartel era um executivo internacional das drogas, aquele que comprava cocaína diretamente dos cartéis estrangeiros e que negociava armamentos sofisticados com os traficantes de armas, como foi o caso de Fernandinho Beira-Mar, quando da organização do Suricartel, que garantia armamento para as FARC e cocaína para os morros cariocas. Esse personagem, o chefe de cartel, apareceu e se firmou progressivamente ao longo da década de 90. Ele era um herói para os jovens que viviam sob seu domínio. Conquistava as garotas que desejasse. Inspirava os raps que embalavam os bailes funk. Fazia obras beneficentes nas favelas e bairros pobres, ganhando tintes messiânicos. Virava ator de TV nos seriados produzidos pelas cadeias estrangeiras. Convertia-se em astro dos longas nacionais, financiados por banqueiros e empresários politicamente corretos. Virava capa de revista e de best-seller, como os finados Pablo Escobar ou o Marcinho VP [cf. Barcellos, 2003; Salazar, 2001]. Possuía caraterísticas de estrategista e de homem de negócios. Passava a cooptar os simples traficantes, cobrando deles imposto de suserania. Herdou a disposição para a luta dos antigos guerrilheiros. Mas, ao contrário destes, era oportunista, de um lado porque visava ao lucro, ganhando aspectos de negociante pragmático. De outro lado, porque tinha uma notável capacidade de planejar estratégias de guerra. As guerrilhas latino-americanas, órfãs da mesada soviética após a queda do Muro em 1989, passaram a se aproximar dos tradicionais cartéis da cocaína na Colômbia, tendo dado ensejo a esse novo personagem, o chefe de cartel, mistura paradoxal de sancho-pancismo e quixotismo.
 
Este era uma espécie de condottiere, como aqueles que pululavam na sociedade italiana na época da Renascença, e que semearam a intranquilidade e a violência na terra de Maquiavel. As melhores expressões desse personagem as encontramos na Colômbia, na figura de Pablo Escobar, o primeiro chefe de cartel das Américas, ou na figura de Mono Jojoy, o estrategista das FARC, grupo armado que realizou ao longo das décadas de 80 e 90 a simbiose com elementos do antigo Cartel de Cali [cf. Villamarín, 1996: 1112]. (Na Colômbia a primeira colaboração entre guerrilha e narcotráfico tinha ocorrido em 1985, na tomada do Palácio de Justiça, com a finalidade de queimar as provas que a Suprema Corte tinha contra os traficantes).

Mas voltemos ao nosso assunto. Ao redor do chefe de cartel surgiu uma força armada com caraterísticas semelhantes às de um exército regular, como é o caso das guerrilhas colombianas, notadamente das FARC e do ELN (que na década dos anos 2000 juntaram esforços para se contraporem ao Plano Colômbia do Presidente Uribe). O efeito mais importante da presença do chefe de cartel foi a organização de um exército de soldados do tráfico (os narcoguerrilheiros), que obedeciam a um comando único e seguiam uma rigorosa disciplina militar, bem como a montagem de uma sofisticada estrutura empresarial com executivos que falavam várias línguas e vestiam roupas de grife, engenheiros, advogados, relações públicas. A finalidade não era diretamente a tomada do poder, mas o fortalecimento, pelo terror, da estrutura empresarial do narcotráfico, para que pudesse trabalhar “em paz”. Nessa tentativa de organização de uma força regular, o aliciamento de ex-policiais e soldados das Forças Armadas era fator importante, como ocorreu na Colômbia e como está acontecendo hoje no Brasil. 

Como Narco-ditadura definiu o jornalista Percival de Souza, com propriedade, o clima gerado pela narcoguerrilha nos morros e favelas. Queixava-se Percival de que a sociedade (leia-se as classes média e média alta) tratava com excessiva benevolência esses assassinos que garantiam o embalo dos sonhos propulsados a droga. A respeito, frisava: “Por que essas ditaduras são tratadas diferentemente? Porque em torno da droga existe charme, glamour, e os consumidores respeitam e admiram os traficantes, a ponto de quando se toca nesse assunto pretenderem defendê-los. Não se sabe a receita para ser implacável com o vendedor de sonhos em forma de substâncias. A idéia de que usuário não vive sem traficante incomoda, e incomoda bastante. Confundem misantropo com filantropo. A narco-ditadura manda matar os indesejáveis, os que não pagaram a conta em dia. Inadimplência é uma palavra que não existe na cartilha verbal do narco-ditador. Nem pedido de falência ou concordata. Cobrança em cartório, nem pensar. As ações judiciais na área cível ajudam a entender, e muito, a economia do país. Na narco-ditadura, a regulagem do mercado é feita por tiros, facadas, tortura e cremações. A narco-ditadura consegue implantar uma pedagogia ignorada pela maioria que fala sobre drogas” [Souza, 2002: 251].
 
A força da narcoguerrilha passou a cooptar elementos da sociedade civil, notadamente candidatos ao Poder Legislativo nacional ou regional, bem como juízes, delegados de polícia e (como já foi destacado), soldados e oficiais das Forças Armadas. Se necessário fosse como aconteceu na Colômbia, partiu-se para um confronto militar explícito com as forças da ordem. Mas o ideal era manter um conflito de baixa intensidade, de forma a garantir os lucros do narcotráfico, sem ter de despender muitos recursos numa luta armada regular. Aplica-se aqui o princípio da “rentabilidade administrativa variável”, formulado por Paul Milukov para as sociedades regidas por Estados patrimoniais [cf. Wittfogel, 1977]. 

No contexto dessa lógica flexível e bastante pragmática, o narcotráfico acomodou-se, na América Latina e no Brasil em particular, à onda de terceirização e de privatização que varreu o nosso Continente ao longo da década de 90. Os antigos cartéis colombianos pulverizaram-se em centenas de pequenos cartéis que continuaram com o negócio firme como antes. A respeito desse fenômeno, escreveu Argemiro Procópio: “O narcotráfico na América Latina dança de acordo com a música que embala a corrupção nos três Poderes. Parece ousadia, mas a desregulamentação abraçou igualmente o comércio e a produção de drogas. Nos anos 1970, agiam praticamente apenas dois cartéis colombianos. No final dos anos 1990, o narcotráfico pulverizou-se entre máfias, gangues, bandos e cartéis de diferentes procedências geográficas. Tal desregulamentação tornou-o ágil e fora de alcance das tradicionais estratégias de repressão” [Procópio, 1999:  242-243].

Os esforços de racionalidade administrativa dão-se na medida das necessidades da manutenção da supremacia inquestionável dos donos do poder. As táticas da guerrilha rural e urbana foram incorporadas pelos narcoguerrilheiros, com toda a sequela de desgaste institucional, violência continuada, criminalidade em alta, insegurança crescente para os cidadãos, desestímulo à inversão estrangeira, quebra do turismo, incentivo a tipos de delito rentáveis para os traficantes como o sequestro sistemático de comerciantes, industriais, políticos e profissionais liberais. No mundo do terror globalizado, o chefe de cartel e o narco-guerrilheiro são uma porta aberta para os terroristas profissionais, que encontram neles eficazes colaboradores. Foram conhecidas, por exemplo, as ações conjuntas desenvolvidas por Pablo Escobar com os terroristas da ETA (na derrubada de um Boeing da empresa colombiana Avianca em Bogotá, em meados dos anos 80). Podemos lembrar, também, os atentados perpetrados pelas FARC junto com os ativistas do IRA, em anos posteriores. O que se passou na Colômbia e começa a se firmar na sociedade brasileira como uma sina trágica, é tudo consequência da consolidação desse novo poder, o dos chefes de cartel auxiliados pelos narcoguerrilheiros. Fernandinho Beira-Mar é, sem dúvida, o grande paradigma brasileiro dessa nova figura da criminalidade. Conseguirá o Estado Patrimonial brasileiro fazer frente a essa nova onda de desagregação e atraso?

3) Política de segurança pública da governadora Rosinha Garotinho.- A governadora do Estado do Rio de Janeiro no começo do milênio explicitou a sua política de segurança pública no documento intitulado: Propostas Preliminares do Plano de Governo – Segurança pública, publicado no início de 2003. Mais do que fazer uma análise abrangente da situação caótica de segurança pública no Estado, para a partir de aí assinalar a política a ser seguida, a governadora Rosinha partiu para identificar onze ações tópicas, que, sozinhas, soavam mais como medidas paliativas. Enumeremo-las: 

A – Centralizar o comando da Segurança Pública, os serviços de inteligência (através da criação da Central de Inteligência estadual), as operações e as comunicações da Polícia Militar, Polícia Civil Defesa Civil e DESIPE no prédio da Central do Brasil, para que estas entidades atuassem de forma integrada com a Polícia Federal, o Ministério Público e o Poder Judiciário. Isso permitiria, ainda, a ligação com outros bancos de dados, como os do Poder Judiciário, DETRAN,  Instituto de Identificação,  Instituto de Criminalística, Secretaria de Fazenda, CEDAE, entre outros. Ficaria, assim, constituída a Central de Segurança Pública.
B – Reunir numa mesma coordenadoria as delegacias especializadas no combate ao crime organizado, a fim de agilizar e tornar mais eficiente a atuação policial. Das 22 delegacias especializadas, oito passavam a formar a Coordenadoria de Repressão ao Crime Organizado. Elas eram as seguintes: Delegacia de Homicídios (Rio e Baixada), Delegacia de Pessoas Desaparecidas, Delegacia de Repressão a Entorpecentes (Rio e Niterói), Delegacia Antissequestro, Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas, Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis, Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos e Delegacia de Capturas  (POLINTER).

C – Aumentar o efetivo do BOPE (Batalhão de Operações Especiais) para ocupar emergencialmente áreas críticas. As ações seriam descentralizadas para a Baixada e o Interior com dois núcleos em cada região.

D – Realizar ação social nas áreas críticas, substituindo gradativamente o BOPE pelo Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE), a exemplo do que ocorria no Cantagalo e no Pavão/Pavãozinho.

E – Instituir novamente as rondas noturnas nas vias expressas com os guardas “boinas azuis” do Grupamento Especial Tático Móvel (GETAM).

F – Intensificar o combate ao crime nas rodovias estaduais, reestruturando e aumentando os efetivos do Batalhão de Polícia Rodoviária Estadual.

G – Ampliar o programa Escolas da Paz para atender 300 estabelecimentos de ensino (no governo Garotinho foram atendidas 242 escolas). O programa, que tinha parceria com a UNESCO, visava à utilização dos prédios escolares no final de semana com atividades educativas, culturais, esportivas e de lazer, integrando pais, alunos, professores e comunidades. Esse programa seria desenvolvido em parceria com a Secretaria de Educação.

H – Ampliar os serviços da Polícia Técnica para outras regiões do Estado e colocar em funcionamento os oito postos construídos no governo Garotinho.   Essa descentralização iria otimizar a realização das perícias, permitindo a obtenção de provas para apuração de crimes com maiores rapidez e eficiência, garantindo, assim, o pronto atendimento às requisições do Ministério Público e do Poder Judiciário. A nova Polícia Técnica unificaria os Institutos Carlos Éboli (ICCE), Afrânio Peixoto, Félix Pacheco (IFP) e Diretoria de Identificação do DETRAN.

I – Retomar o programa Delegacia Legal para concluir as reformas de todas as delegacias de polícia, que seriam transformadas numa repartição policial moderna, informatizada e dotada de equipamentos de última geração.

J – Retomar o programa Casa de Custódia para concluir as unidades que estavam em obras e construir mais unidades com capacidade para 500 pessoas cada. O objetivo era acabar com todas as carceragens em delegacias de polícia.
K – Comprar mais viaturas policiais e contratar mais policiais militares.

4) O Plano Federal de Segurança Pública do governo Lula.- Este Plano foi preparado em abril de 2002 pelo Instituto Cidadania, ligado ao PT, e contou com a apresentação do então candidato presidencial Luiz Inácio Lula da Silva, que destacava o caráter apartidário e revolucionário do documento, conclamando para uma unidade nacional em torno ao tema da segurança pública. Frisava Lula: “A proposta não possui coloração partidária, nem credo ideológico. Sua intenção é convocar uma amplíssima unidade nacional para enfrentar e vencer esse inimigo comum, a violência, em todas as suas formas: do crime organizado que usa colarinho branco aos assassinatos, estupros e odiosos sequestros. (...). Aqui se aponta a necessária conjugação de esforços entre União, Estados e Municípios e se recomendam diversas alterações na legislação brasileira. Antes de mais nada, trata-se de garantir uma verdadeira revolução na história de nosso país: é fundamental que as leis passem a ser cumpridas”.

O sumário do Projeto abarcava muitos itens, 15 ao todo: identificação da problemática e síntese do diagnóstico; exigências para a elaboração de uma política de segurança pública na esfera policial; reformas substantivas na esfera da União e dos Estados; reformas substantivas na esfera municipal; um novo marco legal para o setor de segurança pública; a persecução penal;  violência doméstica e de gênero; a violência contra as minorias;  o acesso à justiça; sistema penitenciário; diagnóstico e propostas para a segurança privada; programas de proteção a testemunhas; o Estatuto da Criança e do Adolescente e a redução da idade da imputabilidade penal; a violência no trânsito e, por último, desarmamento e controle de armas de fogo. Não há dúvida de que se tratava de um Plano bastante completo e abrangente. Deixava, no entanto, por fora algumas questões essenciais: em primeiro lugar, numa época em que o mundo sofre as terríveis conseqüências do terrorismo globalizado, o tema não mereceu atenção suficiente no documento; em segundo lugar, em face da problemática das drogas e do narcotráfico, que certamente constitui uma questão essencial para a segurança do país, o assunto não recebeu a atenção adequada, que exigiria um capítulo específico. Outras deficiências serão anotadas no final deste item, após a exposição dos elementos essenciais que integravam o mencionado documento.

Destacarei, a seguir, algumas das partes do Plano que me parecem fundamentais para entender os lineamentos gerais da política de segurança pública do governo Lula. Uma análise detalhada de todos os itens contidos no documento exigiria uma extensão que supera as pretensões deste ensaio.

Um primeiro item era dedicado à “identificação e diagnóstico do problema da segurança”. O objetivo do documento consistia em “submeter à apreciação da sociedade um projeto de segurança pública cuja meta é a redução daquelas modalidades da violência que se manifestam sob a forma de criminalidade”. O Plano insistia na abrangência do conceito de segurança, que se deveria estender a todos os membros da sociedade, não apenas a algumas classes privilegiadas; em relação a esse ponto, o documento frisava que “ou haverá segurança para todos, ou ninguém estará seguro no Brasil”. A seguir, o documento assinalava o problema fundamental de segurança que enfrenta o país; esse problema consistia no “verdadeiro genocídio a que vem sendo submetida a juventude brasileira, especialmente a juventude pobre do sexo masculino”.  O tamanho do problema era ilustrado com alguns dados estatísticos: “Em 1999, na cidade do Rio de Janeiro, em cada grupo de cem mil habitantes, 239 jovens do sexo masculino, com idades entre 15 e 29 anos, foram vítimas de homicídios dolosos. É como se o Brasil experimentasse os efeitos devastadores de uma guerra civil sem bandeira, sem propósito, sem ideologia e sem razão”. E mais adiante o documento destacava o centro nevrálgico dessa tragédia, ligada ao narcotráfico: “juventude pobre recrutada por unidades locais do tráfico de armas e de drogas, responsável pelo varejo desse comércio ilegal: aí está o centro de uma de nossas maiores tragédias nacionais”. O comércio de tóxicos desenvolveu essa dinâmica de aliciamento, no contexto de um arrazoado econômico: “O tráfico coopta um exército de reserva para a indústria do crime, em função da conveniência econômica de preencher a capacidade ociosa do armamento”.

O centro do drama ensejado pelo narcotráfico era constituído pelos espaços urbanos pobres e esquecidos pelos políticos. Mas a causa da barbárie não se situava ali. O documento do PT apontava em direção a criminosos de “colarinho branco”, que de algum lugar das avenidas chiques da Zona Sul carioca comandavam esse exército da morte. Digamos, de entrada, que se tratava de uma identificação muito vaporosa, quando todos sabemos para onde apontam os indicadores do crime: as FARC e as organizações correspondentes no Brasil, os cartéis da droga (Comando Vermelho, Primeiro Comando, Primeiro Comando da Capital, etc.) administrados por homens da laia de Fernandinho Beira-Mar. Em relação a este ponto, frisava o documento: “Se a cena mais dramática é o teatro da guerra (os espaços urbanos abandonados pelo poder público), a cena decisiva, da qual emana o roteiro da tragédia, situa-se bem longe dali. Seus atores são os operadores do atacado do tráfico de armas e drogas, que moram bem, falam línguas estrangeiras, têm acesso a informações privilegiadas: são os criminosos de colarinho branco”.  

Para o documento do PT, a dimensão da violência no Brasil deixou de ser já problema de alçada puramente policial, para se tornar um problema político de grande monta. A respeito, o Plano destacava: “O fenômeno ultrapassa as fronteiras da  questão criminal e lança a violência num patamar político. O que se passa hoje no Brasil, em muitas áreas urbanas empobrecidas e negligenciadas pelo poder público, é um ultraje à democracia, (é) a banalização da violência, é o preâmbulo da barbárie”.

Uma vez feita a análise da situação de violência pela que o país atravessava, o documento fixava a sua atenção na síntese que, do ponto de vista criminal, poder-se-ia fazer em relação a essa realidade. Neste ponto eram destacadas duas variáveis, como elementos condicionantes do fenômeno: o tráfico de armas e o consumo de drogas, sendo que esta última condicionava a primeira. A respeito, o Plano frisava: “Síntese do diagnóstico especificamente criminal: para a compreensão do quadro da criminalidade são relevantes as seguintes circunstâncias: a) na esfera da criminalidade prepondera a articulação entre tráfico de drogas e de armas, como matriz da economia clandestina que orienta a delinquência como prática utilitária; b) o tráfico de drogas é alimentado pelo mercado que lhe é cativo; c)  o tráfico de drogas financia as armas e, apropriando-se delas, potencializa seus efeitos destrutivos”. 

Qual o caminho a ser empreendido para resolver tamanho problema?  A solução, para o documento petista, devia-se inspirar na experiência internacional e consistia numa combinação de elementos, no seguinte sentido: “Feliz combinação entre tendências demográficas, a mobilização de um amplo espectro de agências públicas e entidades da sociedade civil e policiamento focalizado”. Tratava-se, a meu ver, de uma fórmula bastante indefinida, que de tanto generalizar não dizia nada. À luz da trilha assinalada, o Plano identificava o novo ângulo de abordagem da problemática em questão, nos seguintes termos: “Os fenômenos da violência e da criminalidade são complexos e multidimensionais. O êxito de qualquer esforço público voltado para a redução desses fenômenos depende de um número muito grande e variável de circunstâncias”. Novo ângulo verdadeiramente obscuro, assim como era indefinida a trilha que lhe deu nascedouro.
 
Nesse “mare tenebrosum” de generalidades e abstrações, aparecia, por fim, uma solução prática: a criação, de cima para baixo, de uma estrutura administrativa situada no alto governo, para que, a partir dela, fossem fixadas as políticas de segurança necessárias. Eis o teor da medida: “Será formada uma coordenação unificada para a gestão da política integrada de segurança pública. Seus membros serão os ministros ou os secretários das pastas pertinentes. Nesse contexto, as secretarias de segurança, as polícias e o ministério da Justiça não estarão mais isolados no comando da política de segurança pública”.
O documento passava a analisar, a seguir, as causas e as conseqüências da ineficiência policial. As causas eram identificadas nos seguintes termos: “Falta investigação, falta confiança, faltam informações. Qualquer intervenção política que vise a transformar esse quadro de impunidade, carência e descrédito, deve agir sobre os três tópicos”. Já no que tange às conseqüências, o Plano identificava os pontos a seguir: “Inviabilidade de aplicação de políticas públicas de segurança racionais; ineficiência (baixíssimas taxas de esclarecimento de crimes); descrédito público (gerando subnotificação de crimes); práticas violentas (implicando medo da população); corrupção crônica e comprometimento capilar com a criminalidade”.

No capítulo 4, o Plano apresentava o que, a meu ver, constituía o cerne da política de segurança pública. Nele eram propostas “reformas substantivas na esfera da União e dos Estados”. Essas reformas estavam contidas nos seguintes nove pontos: a) criação do Sistema Único de Segurança Pública; b) este Sistema centra-se nas Polícias Estaduais, que vão servir de ponte com a Polícia Federal e com as Guardas Municipais. Propõe-se a integração, nos Estados, entre polícia civil e polícia militar; c) a política unificada de segurança pública será acompanhada pelo conselho consultivo de segurança pública (integrado por representantes da sociedade civil e pelos chefes e comandantes das polícias); d) propõe-se a criação, nos Estados, de um núcleo de formação em segurança pública e proteção social; e) propõe-se, outrossim, a criação, nos Estados, das áreas integradas de segurança pública (AISPs); f) as finalidades das áreas integradas de segurança serão as seguintes:  integrar as polícias;  melhorar a qualidade dos serviços; integrar as forças de segurança estaduais e municipais; racionalizar os recursos; possibilitar a participação da comunidade por meio das comissões civis comunitárias de segurança; facilitar a prestação de contas; tornar mais ágeis os serviços de segurança pública; coordenar as ações locais com as políticas de segurança do Estado e formular estratégias para problemas que transcendam a esfera local; g) propõe-se a criação de órgão integrado de informação e inteligência policial, vinculado ao gabinete do secretário de segurança pública; h)  o órgão coordenador da política nacional de segurança pública denominar-se-á de Secretaria de Estado de Segurança Pública e resultará da ampliação da atual Secretaria Nacional de Segurança Pública vinculada ao Ministério da Justiça. A nova secretaria terá sob a sua jurisdição a Polícia Federal e a Coordenação Nacional da Política de Drogas; i) objetivos gerais do órgão coordenador: reorientar a Polícia Federal para o combate ao crime organizado; criar o banco de dados nacional sobre segurança pública; aumentar o efetivo da Polícia Federal; criar a ouvidoria da Polícia Federal e reformular o Fundo Nacional de Segurança Pública.

Além dos pontos negativos que foram destacados no decorrer da exposição do Plano, podemos adicionar outras críticas. Em primeiro lugar, o documento sobre a política de segurança pública do governo Lula peca pelo mesmo que sempre se pecou no Brasil: foi dimensionado de cima para baixo, quando, como se diz, “a febre não está nos lençóis”. A violência pipoca é no município, onde todos vivemos. Ora, qualquer política de segurança pública que se preze, teria de partir daí. No documento, a política é traçada a nível federal, administrada a nível federal e são cogitadas as desgastadas e corruptas polícias estaduais para que sirvam de ponte com a população. Em segundo lugar, não se insiste adequadamente na importância do policiamento ostensivo, como forma de dar ao cidadão de novo a segurança no lugar onde mora; justamente como se deixou de lado a perspectiva municipal no gerenciamento da segurança pública, o ponto do policiamento ostensivo passa a segundo plano. As polícias estaduais são alérgicas ao policiamento; degeneraram em atividades meio, quando não descambaram para a pura e simples criminalidade, como no Rio de Janeiro e em outros Estados onde pululam os esquadrões da morte chefiados por policiais. Essa é a situação que se vive no país.

Outras críticas seriam as seguintes: a) não é mencionado o fenômeno da cooptação de ex-militares pelo narcotráfico; b)  não se diz nada acerca do papel de organizações não governamentais que se situam deliberadamente à margem da lei e que terminam engrossando o caldo da violência sistemática no país, como é o caso do MST; c)  embora se mencionem casos de ações bem sucedidas contra a criminalidade em vários países, não é sequer citada a bem-sucedida experiência colombiana na extinção dos cartéis da cocaína em Medellín e Cali (ocorrida nos anos 90 sob a chefia do general Rosso José Serrano); d) não é mencionado o papel letal de apoio ao narco terrorismo brasileiro desempenhado pelas FARC. O PT sempre considerou, ingenuamente, que se trata ainda de um agrupamento de ativistas animados pelo ideal socialista. Em virtude disso, o governo Lula recusou-se a considerar as FARC como terroristas, contrariando deliberação da Organização dos Estados Americanos que se pronunciou nesse sentido; e) embora os exércitos do narcotráfico no Rio de Janeiro sejam formados por milhares de jovens entre 16 e 18 anos (os cálculos apontam para mais de 5 mil menores que integrariam exércitos marginais), não foi sequer contemplada a idéia de diminuir a idade da imputabilidade dos delinquentes. O Plano considera que deve ser mantido, inalterado, o atual Estatuto da Criança e do Adolescente; f) no histórico da criminalidade não foi mencionado o fato de a origem do crime organizado decorrer, além do jogo do bicho, no Rio, também do convívio entre ativistas de esquerda e bandidos, na prisão da Ilha Grande, durante o regime militar; g) na denominação “criminosos de colarinho branco”, o documento insinua que esses pertencem unicamente às classes altas, nunca ao chamado “povão”.  Isso contradiz os fatos que foram apontados no início da minha exposição. Fernandinho Beira-Mar vem do povão. E é um criminoso de colarinho branco.

5) A proposta de segurança pública para o Rio de Janeiro, elaborada pelo prefeito César Maia.- Está contida no documento intitulado Nova Política Nacional de Segurança, que foi adotado pelo Partido da Frente Liberal (hoje Democratas), ao qual pertence o então prefeito, como plataforma para a política de segurança pública dessa agremiação. A adoção oficial do mencionado documento pelo PFL revela a seriedade com que o mesmo foi elaborado, partindo de um conhecimento detalhado da realidade do Rio de Janeiro, bem como do Estado e da região Sudeste, onde se concentravam as atividades do crime organizado, justamente por ser a que mais contribui com a produção de riqueza no Brasil.  

A proposta de César Maia era, a meu ver, a mais completa de todas as que no período estudado neste ensaio (1983-1993) foram formuladas. Partia, em primeiro lugar, da situação de insegurança vivida pelos cidadãos no município e ali tentava já dar uma resposta, desverticalizando a abordagem dos problemas mediante a criação dos Distritos de Segurança, onde a criminalidade seria detectada e combatida, adotando o princípio de “tolerância zero com os delitos de rua”. Em segundo lugar, identificava, de forma realista, os principais focos de criminalidade na cidade, a fim de ali intensificar o seu combate. Em terceiro lugar, colocava o policiamento ostensivo da Polícia Militar como fator essencial e atribuía a esta papel importante nos procedimentos de isolamento e cobertura dos locais dos delitos, a fim de que não fossem perdidas provas essenciais; o projeto assinalava a necessidade da especial capacitação dos efetivos da Polícia Militar para que bem pudessem desempenhar essa função. Em quarto lugar, identificava claramente os mecanismos processuais que deveriam ser agilizados e indicavas a forma de fazê-lo, no interior de cada Distrito. Em quinto lugar, assinalava a forma em que se daria a colaboração dos Distritos entre si e com o Município e o Estado, a fim de tornar as ações mais eficazes, evitando a migração dos focos de criminalidade para outros pontos da cidade ou do Estado. Em sexto lugar, fugia das apreciações ideológicas da temática em questão, deixando claro que se tratava da efetivação de políticas pragmáticas que deveriam beneficiar num razoável espaço de tempo à população que clamava por segurança. Em sétimo lugar, apresentava uma proposta exequível de reforma do sistema penitenciário do Município e do Estado, a fim de desafogar as delegacias, inadequadamente convertidas em prisões. Em oitavo lugar, a proposta de César Maia, pela praticidade e a desverticalização que a caracterizavam, constituía um modelo ágil para ser adotado em outras cidades do país, fazendo deslanchar, destarte, uma nova prática de segurança pública no Brasil. O projeto do prefeito do Rio considerava que cabia à União capitanear as ações em prol do estabelecimento de uma política nacional de segurança pública, levando em consideração o flexível modelo apresentado por ele para a cidade. E, por último, identificava, de forma realista, os fundos de que o Município poderia fazer uso para financiar essa política de segurança, mediante a criação do fundo de segurança pública (utilizando, entre outros recursos, as contrapartidas do Estado e da Federação; o autor apontava, por exemplo, para a utilização social das royalties do petróleo).

A proposta de César Maia situava-se, a meu ver, na trilha das grandes políticas de segurança pública, que deram certo em países como Estados Unidos, Inglaterra, França, que se caracterizam justamente por terem atacado o problema da violência ali onde ela se pratica, ou seja, nas comunas ou nos distritos. Lembremos como essa perspectiva local impressionou a um atento observador da política americana, o grande Alexis de Tocqueville, que já em 1835, na sua obra A democracia na América, chamava a atenção para o fato de os americanos enfrentarem as duas mazelas que mais acossavam as sociedades de início do século XIX, a violência e a pobreza, justamente a nível das comunas, assinalando, para isso, comissões de cidadãos (os denominados na América de selected-men) que se encarregariam de realizar o diagnóstico dos problemas, a fim de irem encontrando as respostas cabíveis. As políticas regionais e nacionais construir-se-iam a partir das respostas locais, e não ao contrário [cf. Tocqueville, 1977:53-67]. A proposta do prefeito do Rio resgatava, outrossim, o melhor da nossa tradição luso-brasileira de valorização do município como cerne das políticas públicas. Lembremos que o visconde de Uruguai, no seu Tratado de Direito Administrativo fazia suas as palavras de Tocqueville quando dizia que “o município é a escola primária da democracia” [Souza, 1960: 368].

Feita a síntese da proposta de César Maia, destaquemos, com ajuda do “resumo executivo” preparado pelo PFL e que introduzia o documento do prefeito, alguns pontos essenciais. A primeira questão que vale a pena ser destacada é a que se referia ao objetivo central da proposta, que consistia na devolução à polícia da sua capacidade de iniciativa, deixando de ser ela, assim, apenas um mecanismo reativo que se mobiliza em função dos deslocamentos dos criminosos. A respeito, frisava o documento: “No entendimento do prefeito César Maia, o objetivo central imediato da nova política nacional de segurança deve consistir em devolver à polícia a sua capacidade de iniciativa. Para tanto cumpre considerar:  I – Ações imediatas; II – Descentralização com concentração de autoridade a nível local e III – Suporte técnico na atuação da polícia. Considera ainda a integração dos três níveis da administração e a Reorganização do Sistema Prisional. O cumprimento desse programa exigiria, finalmente, a Criação de Fundos específicos, com recursos dos três níveis de governo”.

A proposta de César Maia focalizava os interesses do cidadão, que anseia intensamente viver em segurança. Em face das frustrações repetidas, bem como do cinismo das autoridades que em não poucas oportunidades têm considerado o próprio cidadão culpado pela situação que vive, a proposta do prefeito visava a implementar ações imediatas. A respeito, o “resumo executivo” destacava: “As Ações Imediatas consistem, em primeiro lugar, no redimensionamento dos efetivos da Polícia Militar com vistas a restaurar o policiamento ostensivo. O redimensionamento em causa deve ter em vista que, para o conjunto da população de determinada área, o acesso à polícia seja factível, sem tardança e efetivo. Trata-se de restaurar no país a situação em que os policiais possam ser vistos na rua, estejam conectados uns com os outros – pelos meios modernos disponíveis. Para o aumento imediato dos efetivos podem ser adotadas, isolada ou cumulativamente, as seguintes providências:  oferta de uma segunda jornada ao policial, exame da possibilidade de recrutamento de inativos para formações de apoio; dimensionamento com o máximo rigor dos efetivos aquartelados, desde que essa modalidade, inevitavelmente, acaba desviando para atividades-meio pessoal que, formalmente, estaria destinado a atividades fins. (...) A atuação do policiamento ostensivo será orientada para exercitar tolerância zero com delitos de rua”.

Peça-chave da proposta do prefeito consistia na descentralização da política de segurança. Esta seria efetivada mediante a criação dos Distritos de Segurança. Tratava-se de medida importante, pois respondia perfeitamente à forma em que a criminalidade se instala no seio das comunidades. César Maia considerava, aliás, que a víbora do crime organizado somente seria morta mediante a inoculação do seu próprio veneno, ou seja, com ações que o enfrentassem no seu nascedouro. Em que consistiam os Distritos de Segurança propostos? Eis a forma em que o “resumo executivo” os apresentava: “Entende-se como Distrito de Segurança os espaços geográficos onde as ações dos policiais são focadas, integradas e cogeridas. As delegacias serão centrais onde estará o Juizado Especial, a Defensoria Pública e a sala de trabalho do promotor. A Polícia Civil e a Polícia Militar atuarão no distrito como uma secretaria de segurança operacional e local. E contarão com os instrumentos de polícia técnica e de acesso aos sistemas de identificação e de informação. Suas ações de combate local ao crime terão ampla autonomia”.

A proposta do prefeito colocava como assunto essencial o adequado suporte técnico para as atividades de combate ao crime. Em relação a esse ponto, o “resumo executivo” frisava: “A atuação da polícia deverá contar com moderno Suporte Técnico. Para tanto, incumbe aprimorar o processo de registro das ocorrências, a cargo da Polícia Militar, executora do policiamento ostensivo, que será devidamente treinada a fim de assegurar que esse instrumento inicial se transforme num fator de agilização da Justiça. É imprescindível conseguir que o boletim inicial da ocorrência não precise ser refeito, cabendo à polícia técnica complementá-lo. Trata-se certamente de alcançar o requerido nível de qualidade. Outros elementos de suporte técnico consistirão na reconstituição, digitalização e sofisticação do sistema de identificação; construção de eficaz sistema de informação; aprimoramento da comunicação; introdução do monitoramento eletrônico, através de câmaras fixas e móveis; e, ainda, implantação do sistema centralizado de Inteligência”. 

No que se referia às prisões, o documento do prefeito do Rio preocupava-se em distinguir a finalidade que possui cada uma das instituições que integram o sistema. A propósito deste item, o “resumo executivo” frisava o seguinte: “O princípio básico da Reorganização do Sistema Prisional consiste em distinguir precisamente qual o propósito de cada uma das instituições que o integram. Assim, por exemplo, aquelas destinadas a menores têm por objetivo promover a ressocialização, o que impõe atuar em conformidade com o perfil do menor infrator e do delito, bem como impedir a concentração daqueles mais violentos e de maior periculosidade. O mesmo princípio deve presidir à reorientação dos espaços prisionais, de forma a não misturar condenados, observando de igual modo o perfil do condenado e o tipo de delito. Além disto, promover a criação de presídios especiais, capazes de acolher os que não coloquem em risco a sociedade, onde possam realizar trabalhos com nexos futuros com o emprego e a reintegração. Esta parte do Programa contempla a questão da liberdade provisória, com sistema de monitoramento e controle individual; da Defensoria Pública; do atendimento às famílias dos condenados e de ex-detentos. No que se refere aos presídios de segurança máxima, não se limitar à questão do risco de fuga, criando regimes especiais de contatos e visitas, de acesso a materiais e de incomunicabilidade eletrônica. Por fim, priorizar a efetivação dos mandatos de captura e planejar, para uso eventual, sistema de celas metálicas pré-moldadas de forma a dar resposta rápida às necessidades do sistema”.

Qual o perfil temporal da política de segurança pública proposta? O “resumo executivo” frisava a respeito: “A nova Política Nacional de Segurança deveria ser concebida para orientar a atuação do Poder Público nos próximos vinte anos”, abrindo margem, assim, para a revisão dos aspectos essenciais da proposta, em face da mutável realidade social brasileira.

6)   Considerações finais.- Era de suma gravidade, para a segurança nacional, o quadro do que estava acontecendo no Rio de Janeiro no período estudado (1983-2003). Os soldados do narcotráfico mostraram que tinham a iniciativa, e conseguiam manter reféns do terror os cidadãos. A situação fugiu ao controle da então governadora Rosinha Garotinho. Era necessária, por isso, uma resposta mais agressiva no âmbito da União. Tornava-se necessária uma intervenção federal no Rio de Janeiro, em decorrência, fundamentalmente, destes fatores: em primeiro lugar, a presença de terroristas internacionais das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia no meio dos traficantes cariocas (no morro do Borel na Tijuca, no Complexo do Alemão e no bairro da Penha), que estariam ajudando a planejar os atos terroristas que apavoraram a cidade durante meses a fio. Em segundo lugar, a utilização sistemática, por parte dos bandidos no Rio de Janeiro, de armamento sofisticado e de táticas típicas da guerrilha colombiana. 

Segundo foi noticiado, os traficantes já contavam com o poderoso explosivo C-4, adquirido por Fernandinho Beira-Mar por meio de uma conexão mantida com traficantes de São Paulo e com ele planejavam derrubar o muro da penitenciária de Bangu III, a fim de possibilitarem a fuga em massa de bandidos ali presos. A utilização desse explosivo em carros-bomba era, sem dúvida, questão de tempo, pois os narcoguerrilheiros das FARC começaram as suas ações urbanas exatamente assim, derrubando primeiro muros de penitenciárias, para depois passarem ao terrorismo em larga escala com a explosão de carros-bomba e até de casas-bomba. Em terceiro lugar, a corrupção que não conseguiu ser extinta nas polícias civil e militar no Rio de Janeiro, fato que tornou praticamente impossível aos bons elementos das forças da ordem conservarem o segredo necessário no combate aos terroristas. No fator corrupção, era necessário também levar em consideração a venalidade dos guardas penitenciários e de alguns advogados e até de juízes, que possibilitaram a livre comunicação dos detentos nos presídios de segurança máxima, bem como a entrada de armas e até de computadores. 

Uma intervenção federal no Rio de Janeiro teria possibilitado várias providências que eram necessárias ao controle do Estado sobre as forças do narcotráfico: teria tornado possível, em primeiro lugar, uma ação mais unitária e contundente da justiça, centralizando os vários casos relacionados ao narco terrorismo. Em segundo lugar, teria permitido que fossem selecionados bons policiais cariocas, civis e militares, para que atuassem em estreita colaboração com a polícia federal e com as forças armadas. Em terceiro lugar, teria sido possível ter uma unidade de comando das forças policiais e militares, para atuarem mais eficazmente no combate à criminalidade organizada. Em quarto lugar, teria se tornado viável a estruturação de uma séria política de inteligência, fundamental para que os governos estadual e federal conseguissem elaborar estratégias adequadas. Por último, teria sido dado um recado aos bandidos das outras regiões do país, bem como aos guerrilheiros das FARC, no sentido de que o governo federal e os governos estaduais não estariam dispostos a permitir ameaças à ordem e à legalidade. O temor que me assaltava à época era o de que se não se desse uma resposta contundente e eficaz aos narcotraficantes no Rio de Janeiro, o modelito de luta do crime organizado terminaria se alastrando a outras cidades do país (como de fato aconteceu no o Estado de São Paulo, onde o PCC planejou atos terroristas no mesmo figurino dos guerrilheiros das FARC, atentando contra a infraestrutura elétrica das cidades para semear o pânico). Estes fatos colocaram em seríssimo risco a vida democrática e a segurança dos brasileiros. 

O governo do Estado do Rio só respondeu com ações isoladas e ineficazes, com muita retórica dos secretários de segurança e dos governadores de plantão, mas com resultados muito aquém dos esperados pela população. É só ler as "cartas dos leitores" dos vários jornais publicados no Rio de Janeiro, para observar como os cariocas tinham perdido a confiança nas autoridades e na conquista da paz. Tornava-se imperioso, por isso, restabelecer a credibilidade da sociedade nas suas instituições, a fim de que fossem garantidos os direitos básicos dos cidadãos. A presença do exército nas ruas foi, evidentemente, uma solução paliativa.

À luz de uma intervenção federal no Rio teria ficado clara a necessidade de se ter uma força policial de abrangência nacional (guarda nacional ou polícia federal ampliada), que possibilitasse ao governo federal efetivar esse tipo de intervenção contando, evidentemente, com o grupamento especial que o exército estava treinando para debelar o crime organizado. Mas essa força federal deveria possuir mais efetivos do que os 600 homens inicialmente propostos pelo Governo Federal. Lembremos que se tratava de desarmar pelo menos 7 mil combatentes muito bem armados.

Passeatas como as que então se fizeram dizendo um “Não às Armas” (mas não às drogas), só faziam rir aos bandidaços que comandavam o narcotráfico nos morros cariocas. O fato de altos funcionários do governo Lula terem participado da mencionada passeata, fez pensar que não havia muita vontade política para fazer a guerra ao narcotráfico, com a contundência necessária. Desarmamento? Sim, claro, mas começando pelos narco-terroristas. A intervenção federal almejada era no sentido de conseguir esse desarmamento. Não desarmar os bandidos e dizer que o problema da violência é das armas que estão em poder de cidadãos honestos, foi e ainda é pura demagogia. Não podemos cair na esparrela de criar uma cortina de fumaça que impeça ver a causa real da violência: o narcotráfico.

Uma vez feita a intervenção federal no Rio e desarmados os bandidos, deveria ter sido aplicada, integralmente, a proposta de segurança pública apresentada pelo prefeito César Maia. Era uma proposta realista, sensata, que atacava os problemas da violência e da insegurança ali onde eles ocorrem: no município.

É evidente que essa proposta constituía apenas uma iniciativa para ser discutida. Vozes autorizadas diziam que era difícil se pensar numa intervenção federal num importante Estado da Federação como o Rio de Janeiro. Mas os acontecimentos foram se avolumando até o ponto de ter sido solicitada pelo Ministro da Justiça a intervenção no Estado do Espírito Santo, diante de um quadro muito menos grave que o do Rio. Essa proposta, é certo, custou a cabeça ao Ministro Miguel Reale Júnior, mas revela de que forma a situação do Rio se alastraria a outras regiões do país.

Uma solução menos radical que a intervenção federal teria sido a realização de um convênio entre os Estados mais afetados pela guerra do narcotráfico, aqueles situados na Região Sudeste, a fim de traçar políticas conjuntas de combate ao crime organizado. Isso terminou sendo posto em marcha na primeira década deste milênio, com a consequente queda dos índices de criminalidade na Região Sudeste, mas com o agravamento da situação nas regiões Norte e Nordeste, para onde se deslocou o front de exportação de tóxicos para a África Ocidental e a Europa.

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Artigos de imprensa (não assinados)

“A cada ação, um novo limite para a audácia: Antes do atentado ao Palácio Guanabara, dois prédios públicos já haviam sido alvejados por traficantes”. O Globo, Rio de Janeiro, 17/10/2002, caderno 1, pg. 19. 
“A cultura da contravenção” (Editorial). O Globo, Rio de Janeiro, 14/14/1994, caderno 1, pg. 6.
“A década sofrida: Imagens mostram como a violência se tornou rotina na cidade ao longo dos anos”. O Globo, Rio de Janeiro, 16/06/2002, Caderno Especial O Rio está perdendo a guerra contra o tráfico?  Pg. 10.
“A federação celerada” (Editorial). O Globo, Rio de Janeiro, 03/09/1994, caderno 1, pg. 6.
“Agrônomo tinha terra produtiva: foi desapropriado”. Jornal da Tarde, São Paulo, 14/04/2002, caderno A, pg. 4.
“Bondes espalham tiros e medo na madrugada”. O Globo, Rio de Janeiro,  17/10/2002, caderno 1, pg. 16.
“Brizola e o bicho” (Editorial). O Globo, Rio de Janeiro, 14/04/1994, caderno 1,
pg. 1.
“Carta do outro mundo”(Editorial). Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15/08/1991, caderno 1, pg. 8.
“Como o terror se espalhou”. O Globo, Rio de Janeiro,  17/10/2002, caderno 1, pg. 20.
“Doação à ABIA: mulher do bicheiro Turcão desmente Nilo”. O Globo, Rio de Janeiro, 15/04/1994, caderno 1, pg. 12.
“Estados vão atuar em conjunto contra o crime: Alckmin afirma que Beira-Mar vai ficar em São Paulo o tempo que for necessário”. In: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27/09/03, caderno 1, pg. 14.
“EUA cortam ajuda à Polícia Federal”. Jornal da Tarde, São Paulo, 16/01/1995, caderno 1, pg. 11.
“Ex-informante liga Castor ao tráfico”. Jornal da Tarde, São Paulo, 30/04/1994, caderno B, pg. 8.
“Faver acredita que tribunal possa virar alvo: Presidente do Tribunal de Justiça volta a defender a participação das Forças Armadas no combate ao crime”. O Globo, Rio de Janeiro, 25/06/2002, caderno 1, pg. 18.
“Fuzileiros ocupam morros e prendem 75”. O Globo, Rio de Janeiro, 08/12/1994, caderno 1, pg. 19.
“Governo Federal descarta Estado de Defesa no Rio”. O Globo, Rio de Janeiro, 26/06/2002, caderno 1, pg. 18.
“Guerra no escuro” (Editorial). O Globo, 13/10/1994, caderno 1, pg. 14.
“Juíza decreta prisão de 28 bicheiros”, O Globo, Rio de Janeiro, 15/10/1994, caderno 1, pg. 11.
“Justiça vai apurar envolvimento de juizes”.  O Globo, Rio de Janeiro, 14/04/1994, caderno 1, pg. 15.
“MST já virou guerrilha” (Editorial). O Estado de São Paulo, São Paulo, 23/05/2003, caderno A, pg. 3.
“O confronto entre o poder do Estado e do crime”. O Globo, Rio de Janeiro, 16/06/2002, Caderno Especial O Rio está perdendo a guerra contra o tráfico?, pg. 7.
“O dia em que a sede do governo tremeu”. O Globo, Rio de Janeiro, 17/10/2002, caderno 1, pg. 17.
“Onda de medo na cidade teve efeito dominó”.  O Globo, Rio de Janeiro, 01/10/2002, caderno 1, pg. 18.
“O primeiro levantamento sobre o narcotráfico”. O Globo, Rio de Janeiro, 13/04/2003, caderno 1, pg. 4.
“Poder paralelo: lojas permanecem fechadas em pelo menos 40 bairros; 33% das indústrias interrompem a produção; comércio tem prejuízo de R$ 130 milhões”. O Globo, Rio de Janeiro, 01/10/2002, caderno 1, pg. 17.
“Prefeitura crivada de balas de fuzil: Bandidos usam até duas granadas em atentado contra Centro Administrativo”. O Globo, 25/06/2002, caderno 1, pg. 14.
“Presos tinham explosivo usado por terroristas”. O Globo, Rio de Janeiro, 17/10/2002, caderno 1, pg. 15.
“Quadrilha de coronel usava a zona portuária do Rio”. Tribuna de Minas, Juiz de Fora,  30/06/1995, caderno 1, pg. 5.
“Risco Brasil”(Editorial). O Globo, Rio de Janeiro, 26/06/2002, caderno 1, pg. 6.
“Tiroteio faz Garotinho interromper carreata”. O Globo, Rio de Janeiro, 23/09/1994, caderno 1, pg. 7. 
“Um dia histórico no Fórum do Rio”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22/05/1993, caderno 1, pg. 17.





[1] Cf. a minha obra: Da guerra à pacificação: a escolha colombiana. Campinas: Vide Editorial, 2010, p. 87-99.

Um comentário:

  1. Antes de ler lhe peço. Faça a mesma análise para o período entre 64 e 83. Talvez vc descubra que a causa para o período pesquisado, começou na ditadura de 64. Pior, a Redentora sabia exatamente o que aconteceria, pois havia contratado consultoria internacional que cantou a pedra sobre o que aconteceria. Agora leio. MAM

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