Vicente Ferreira da Silva (1916-1963) |
No ano passado completou-se um século do nascimento de Vicente Ferreira da Silva. Em homenagem ao grande pensador paulista prematuramente falecido em 1963, divulgo o seguinte ensaio, de minha autoria, que já tinha sido publicado na Revista Brasileira de Filosofia (1981) e no Portal Ensayo da Universidade de Georgia (2003), organizado pelo Professor Dr. José Luis Gómez Martínez.
I
ASPECTOS BIO-BIBLIOGRÁFICOS
Vicente Ferreira da Silva nasceu em São
Paulo, em 10 de janeiro de 1916 e morreu prematuramente de acidente de
automóvel na mesma cidade, em 19 de julho de 1963, aos 47 anos de idade.
Formou-se em Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, da sua cidade
natal, mas nunca exerceu a profissão de advogado, tendo-se dedicado
inteiramente à meditação filosófica e à vida acadêmica, atividade que exerceu,
aliás, com total desprendimento, através de cursos livres que oferecia no
Colégio Livre de Estudos Superiores, que fundou em São Paulo no ano de 1945.
Nessa instituição, segundo Antônio Paim, "viria a despertar a vocação
filosófica de diversos jovens que mais tarde se destacaram nessa
atividade" [Paim, 1999: 453]. No início da sua atividade acadêmica, em
1940, o nosso autor colaborou com o filósofo Willard Quine que visitou a
Universidade de São Paulo. Dessa sua colaboração resultou o livro intitulado Elementos
de Lógica Matemática, publicado nesse mesmo ano. Em 1949 acompanhou
Miguel Reale na fundação do Instituto Brasileiro de Filosofia, centro de
estudos que, até o dia de hoje, "congrega pensadores de todas as
tendências" [Reale, 1992: 1129].
Vocação filosófica das mais brilhantes
no panorama cultural brasileiro, Ferreira da Silva praticou rigorosamente, ao
longo de sua vida, o "amor sapientiae". Alheio a preocupações
econômicas, fez do seu centro de estudos, bem como da sua presença no
Instituto, pólo irradiador da meditação mais rigorosa sobre o mistério do
ser e do homem, ao mesmo tempo que demonstrava grande interesse
pelas matemáticas. Eis a forma em que Miguel Reale sintetiza o espírito da sua
obra: "Autodidacta, aliou à multiplicidade de leituras
filosófico-literárias um gosto marcante pela matemática, pela logística e pela
problemática metafísica, o que dá um sentido especial às suas meditações,
podendo-se dizer que ele soube, com novos termos, enriquecer a linguagem
filosófica brasileira" [Reale, 1992: 1129].
Com o intuito de estimular os estudos
no campo da estética (aspecto altamente valorizado na meditação de Ferreira da
Silva), o nosso autor organizou a Sociedade Cultural Nova Crítica, juntamente
com a sua esposa, a poetisa Dora Ferreira da Silva; o órgão da mencionada
Sociedade passou a ser a Revista Diálogo. Inúmeros estudos
têm sido feitos ao longo das últimas décadas sobre o pensamento de Vicente
Ferreira da Silva, em que se destaca a vertente da meditação mito-poética que
se situaria na origem da cultura ocidental, numa perspectiva metafísica assaz
semelhante à que empolgou a filosofia de Martin Heidegger. Estudiosos
portugueses têm mostrado a proximidade do pensamento ferreiriano com as linhas
mestras da meditação lusa, notadamente da corrente que se convencionou
denominar de "Filosofia Portuguesa". O espírito desta vertente
estaria vivo na tendência que a pensadora paulista Constança Marcondes Cesar
chamou de "Escola de São Paulo" e que tem Vicente Ferreira da Silva
como seu centro inspirador, junto com Eudoro de Sousa, Agostinho da Silva e
Adolpho Crippa.
II
PERFIL ANTROPOLÓGICO DA MEDITAÇÃO
DE VICENTE FERREIRA DA SILVA
Salientarei nesta apresentação a
inspiração heideggeriana que anima a meditação de Ferreira da Silva sobre o
homem. Alicerçarei a minha análise basicamente em cinco ensaios do
pensador paulista: A concepção do homem segundo Heidegger (1951), O
Andróptero (1948), Utopia e liberdade (1948), Para
uma moral lúdica (1949) e Meditação sobre a morte (1948).
Levando em consideração que no primeiro dos ensaios mencionados Ferreira da
Silva faz um comentário acerca da Carta sobre o Humanismo de
Martin Heidegger (1889-1976), acompanharei a análise desse trabalho do pensador
paulista com a minha própria leitura do ensaio heideggeriano. Na conclusão
desta exposição farei uma avaliação global acerca do pensamento
antropológico-filosófico de Ferreira da Silva, indicando o lugar que esse tema
ocupa na evolução da sua filosofia. Espero assim contribuir ao estudo de quem
já foi considerado "a maior vocação metafísica do Brasil".
1) Inspiração de Ferreira da Silva na
meditação de Martin Heidegger
A meditação do pensador paulista sobre
o homem é, sem dúvida, de inspiração heideggeriana. No ensaio intitulado A
concepção do homem segundo Heidegger [Silva, 1964: I, 256-264],
Ferreira da Silva salienta algumas das principais apreciações feitas pelo
filósofo alemão a respeito do homem, na sua Carta sobre o Humanismo. Nessa
síntese do pensamento heideggeriano encontramos explicitados os principais
elementos antropológicos que alicerçam as restantes considerações de Ferreira
da Silva sobre o homem. Heidegger inicia a sua carta, que dirige a
Jean Beaufret em 1949, fazendo uma crítica ao falso cientificismo de
que se revestiu a Filosofia. Esse vício consiste na caracterização "do
pensar como theoria e a determinação do conhecer como postura teórica",
fenômeno que se dá no seio de uma interpretação técnica do
pensar. Trata-se, segundo Heidegger, de uma "tentativa racional, visando a
salvar também o pensar, dando-lhe ainda uma autonomia em face do agir e
operar". A filosofia é, nesse intento, "perseguida pelo temor de
perder em prestígio e importância se não for ciência (...). Na interpretação
técnica do pensar, é abandonado o ser como elemento do pensar" [Heidegger,
1979: 150]. Heidegger situa-se, nessa crítica à
interpretação técnica do pensar, no contexto da análise que Edmund Husserl
tinha feito acerca do objetivismo na sua obra A crise das ciências
européias e a fenomenologia transcendental [cf. Husserl,
1962]. Longe de ser o pensar uma função puramente teorizante, Heidegger
salienta que este ato se firma a partir do Ser "na medida em que o pensar,
apropriado e manifestado pelo ser pertence ao ser" [Heidegger, 1979: 150].
É o próprio ser que, pela sua força, "pelo seu querer, impera com seu
poder sobre o pensar e, desta maneira, sobre a essência do homem"; isso
significa, frisa Heidegger, que o próprio ser age "sobre a essência do
homem (...), sobre sua relação com o ser. Poder algo significa aqui: guardá-lo
em sua essência, conservá-lo em seu elemento" [Heidegger, 1979: 151].
O pensar, na dimensão pseudo-científica
que o valoriza exclusivamente como tekhne insere-se, frisa
Heidegger, "na singular ditadura da opinião pública" que, numa clara
manifestação do grau de objetivismo em que caiu a linguagem, "decide
previamente o que é compreensível e o que deve ser desprezado como
incompreensível". Essa "ditadura da opinião pública" exerce-se
através "da mediação das vias de comunicação" às quais se submete a
linguagem. Trata-se, a meu ver, do fenômeno que Marcuse tinha tipificado no
surgimento do "pensamento unidimensional" e que conduz, segundo
Heidegger, ao reinado dos "ismos", que materializam a caricatura da
Filosofia como "técnica de explicação pelas últimas causas". O
filósofo lembra que a temática de "a gente" em Ser e Tempo expressa
esse esvaziamento da linguagem na opinião pública [cf. Heidegger, 1979: 151;
Marcuse, 1970]. Essa crise da linguagem, salienta Heidegger, manifesta-se
especialmente na metafísica moderna da subjetividade, que se tornou "um
instrumento de dominação sobre o ente" [Heidegger, 1979: 152]. Ferreira da
Silva expressa este pensamento heideggeriano da seguinte forma: "A
totalidade das formulações e doutrinas sobre a natureza última do homem, sobre
a humanitas do homem, se desenvolveu a partir da precária base
de um profundo esquecimento do Ser. (...) O pensamento filosófico e humanístico
não atendia a esta relação e intimidade do homem com as potências instituidoras
do ser. O pensamento metafísico pensou o homem a partir da forma do Ente, isto
é, a partir de imagens que não eram suficientemente originais e prévias"
[Silva, 1964: I, 256].
A crítica a esse vício do pensamento
metafísico constitui, no sentir de Ferreira da Silva, "a primeira
observação de Heidegger", que se "colige na acentuação de que o
pensamento filosófico ocidental, ao pretender determinar a essência do homem, o
fez sempre a partir de uma determinada interpretação da Natureza, da História e
do Ente em geral". Para superar essa crise ou, em palavras do próprio
Heidegger, para encontrar "o caminho para a proximidade do ser", o
homem deve "antes aprender a existir no inefável (...). Somente assim será
devolvido à palavra o valor de sua essência e o homem será gratificado com a
devolução da habitação para residir na verdade do ser". Essa será a base
para o ressurgimento do verdadeiro conceito de Humanismo, que consiste,
unicamente, nisto: "meditar e cuidar para que o homem seja humano e não
desumano, inumano, isto é, situado fora de sua essência". Os humanismos,
porém, segundo Heidegger, tanto o marxista quanto o cristão, o greco-romano, o
renascentista, ou mesmo o sartreano, "coincidem nisto: que a humanitas do homo
humanus é determinada a partir do ponto de vista de uma interpretação
fixa da natureza, da história, do mundo, do fundamento do mundo, e isto
significa, desde o ponto de vista do ente em sua totalidade" [Heidegger,
1979: 152].
Indagando pelo fundamento dessa visão
parcelada que afeta aos diferentes humanismos, Heidegger frisa que "todo
humanismo funda-se ou numa Metafísica ou ele mesmo se postula como fundamento
de uma tal" [Heidegger, 1979: 153]. É portanto de teor metafísico toda
interpretação da essência do homem que pressuponha a compreensão do ente, mesmo
que não leve explicitamente em consideração a questão da verdade do ser.
Heidegger refere-se particularmente ao humanismo romano, cuja interpretação da
essência do homem como animal rationale é condicionada pela
Metafísica. Referindo-se a esta apreciação de Heidegger, Ferreira da Silva
afirma que "o destino da Metafísica é o de não conseguir pensar o homem em
sua verdadeira proveniência" [Silva, 1964: I, 257], pois a sua essência
transcende as determinações pressupostas por aquela. Tentando concretizar as
razões que invalidam a Metafísica, Heidegger frisa que ela "realmente
representa o ente em seu ser e pensa assim o ser do ente. Mas ela não pensa a
diferença entre ambos (...). A Metafísica não levanta a questão da verdade do
ser mesmo. Por isso ela também jamais questiona o modo como a essência do homem
pertence à verdade do ser" [Heidegger, 1979: 154]. Referindo-se à
afirmação heideggeriana de que "a Metafísica pensa o homem a partir da animalitas;
ela não pensa em direção de sua humanitas", Ferreira da Silva
expressa assim, por sua vez, essa parcialidade do pensamento metafísico:
"Esta incapacidade da Metafísica radica na impossibilidade do pensamento
metafísico para pensar a diferença que vai entre o Ser e o Ente. A Metafísica
propende sempre a reduzir e a representar o Ser pelo Ente, a substituir a
abertura do Ser pelo revelado em tal abertura. A Metafísica vê o Ente e o
pensa, mas em pleno esquecimento das potências instituidoras da manifestação do
manifestável" [Silva, 1964: I, 257].
A Metafísica, frisa Heidegger, esqueceu
o dado fundamental do homem: a sua abertura para o ser. Ela encontra-se fechada
"para o simples dado essencial de que o homem somente desdobra seu ser em
sua essência enquanto recebe o apelo do ser (...). Somente na intimidade deste
apelo, já tem ele encontrado sempre aquilo em que mora sua essência"
[Heidegger, 1979: 154]. Ferreira da Silva salienta, de forma semelhante, esse
esquecimento da Metafísica, que se baseia no fato de ela fazer descer o homem
ao domínio exclusivo do ente que é, entretanto, "um momento essencial da
própria estrutura existencial do homem" [Silva, 1964: I, 258]. Se a
essência do homem foi tergiversada no seio do pensamento metafísico, cumpre
aprofundar no sentido do que essa essência é. Heidegger frisa que a essência do
homem, ser-aí, reside na sua ec-sistência que
descreve como "o estar postado na clareira do ser" e que explica
assim: "O homem desdobra-se (...) em seu ser (west) que ele é e aí,
isto é, a clareira do ser. Este ser do aí, e somente ele,
possui o traço fundamental da ec-sistência, isto significa, o traço
fundamental da in-sistência ec-stática na verdade do
ser. A essência ec-stática do homem reside em sua ec-sistência,
que permanece distinta da existentia pensada
metafísicamente" [Heidegger, 1979: 155]. Ferreira da Silva, por sua vez,
salienta que "o homem é na forma da ek-sistência e este é
um modo unicamente humano de ser (...). Não se pode captar o que é o homem,
quer colecionando suas qualidades ônticas, quer apelando para um poder interno
ou subjetivo; o modo de aproximação da humanitas do homem
consiste na visualização da sua dimensão ek-sistencial e
transcendente". Ora, essa dimensão consiste no "habitar ek-stático na
proximidade do Ser", cuja apreensão, frisa Ferreira da Silva,
"cumpre-se na superação e transcendência de todo o Ente, no relacionar-se
com essa Abertura que condiciona todo o ingresso no mundo (Welteingang)"
[Silva, 1964: I, 259].
O filósofo paulista sintetiza assim as
características do ser na concepção heideggeriana, explicando as conseqüências
que se derivam no campo da compreensão filosófica do homem e das possibilidades ek-státicas da
sua liberdade: "O Ser é, pois, em sua essência, abertura, desvelamento,
descobertura, iluminação projetante, fonte de inteligibilidade. Mas, por outro
lado, desvelamento, transcendência significam esboço de um mundo, Weltenwurf,
descobertura do Ente. O Ser se dá continuamente como esboço de um mundo, como
poder instituidor das possibilidades históricas do homem. Esse transcender
projetante do Ser manifesta-se como um poder livre, como uma liberdade que
funda e institui o espaço de manifestação do Ente. Não se deve, entretanto,
confundir essa liberdade individual do eu e do tu, em seu jogo dialético
condicionado. É daquela liberdade original que o eu e o tu recebem o espaço de
seu movimento optativo. A dimensão do Ser é justamente a dimensão desse poder
livre e projetante de um mundo, dimensão onde descobrimos uma liberdade mais
original que a liberdade do eu singular" [Silva, 1964: I, 259].
A abertura ao Ser é, assim, o pano de fundo sobre o qual se desenham as
possibilidades históricas da liberdade humana. Ferreira da Silva faz ênfase
nesse aspecto fundante e primordial da ek-sistência aberta ao
Ser. Em virtude dela se constitui a essência verdadeiramente humana. A
respeito, frisa o nosso autor: "O homem é sujeito de um Destino
instituidor de sua própria realidade histórica, em relação ao qual pode se initimisar.
O homem habita um domínio onde, o que está em jogo é algo que supera o homem,
mas que o superando, lança-o em sua situação histórica própria" [Silva,
1964: I, 259]. Essa é a forma de interpretar validamente a afirmação
heideggeriana de que "o homem é o vizinho do ser" [Heidegger, 1979:
164], ou de que "o homem habita, na medida em que é homem, na proximidade
de Deus" [Heidegger, 1979: 170].
Heidegger salienta, na parte central da
sua Carta sobre o humanismo as características de que
se reveste o relacionamento entre o Ser e a ec-sistência. Em
primeiro lugar, esta pressupõe que o homem esteja exposto à verdade do Ser.
Frisa Heidegger a respeito: "Ec-sistência nomeia a
determinação daquilo que o homem é no destino da verdade (...). A frase: o
homem ec-siste não responde à pergunta se o homem efetivamente
é ou não, mas responde à questão da essência do homem" [Heidegger, 1979:
156]. Ferreira da Silva enfatiza esse aspecto da ec-sistência,frisando
que "na determinação da essência ek-sistencial do
homem, acontece que não é o homem, ônticamente entendido, o principal, mas
sim a natureza histórica do homem pensada a partir da verdade desveladora do
Ser. Nesta ordem de idéias, é subtraída ao homem qualquer iniciativa ou
autodeterminação fundamental, sendo o homem lançado e abandonado em sua
situação histórica particular, pelo movimento próprio da liberdade
transcendente. O homem é convocado ao núcleo de suas possibilidades históricas
próprias pelas potências ek-stático-projetantes do Ser"
[Silva, 1964: I, 260]. Desta forma, no sentir do filósofo paulista, o
pensamento heideggeriano tenta superar todo antropocentrismo.
Em segundo lugar, Heidegger se pergunta
como o ser se dirige ao homem. Isso se entende se compreendermos "que o
homem é enquanto ec-siste". Podemos afirmar que "a ec-sistência do
homem é sua substância", ou, em outros termos, que "o modo como o
homem se apresenta em sua própria essência ao ser, é a ec-stática insistência
na verdade do ser". Os humanismos, frisa Heidegger, não conseguiram
expressar essa dimensão da dignidade humana. Porisso "pensa-se contra o humanismo"
[Heidegger, 1979: 157]. No seu ensaio intitulado O ocaso do
pensamento humanístico, Ferreira da Silva amplia essa consideração
heideggeriana sobre a influência dos humanismos diante da dignidade ek-stática do
homem, inserindo neles até a própria fenomenologia. Eis as suas palavras a
respeito: "Entretanto poder-se-ia indagar se o tipo de ser da consciência
humana ou do ego cogito, eleito pela doutrina husserliana e por
tantas outras filosofias de índole humanística como princípio supremo do
pensar, não se reduziria a uma meditação mais radical, como uma forma emergente
na sucessão das epifanias do ser. Poder-se-ia propor ainda a questão de saber
se seria possível remontar a uma abertura na qual,
algo como a consciência subjetivo-transcendental, ocorreu, e não só ocorreu,
como foi efetivamente vivida" [Silva, 1964: II, 204-205].
Em terceiro lugar, Heidegger frisa que,
em decorrência da supremacia do ser sobre a ec-sistência, deve-se
excluir qualquer forma de manipulação do ser por parte do homem. Para ele,
"o homem é o pastor do Ser". O homem não decide quando os entes
penetram na clareira do Ser. Enquanto ec-sistente, deve ter cuidado,
ou seja, deve "vigiar e proteger a verdade do Ser" [Heidegger, 1979:
158]. Ferreira da Silva, por sua vez, explica esse caráter de profundo respeito
que deve guiar a atitude ec-stática em relação ao Ser, nos
seguintes termos: "O poder ser próprio do homem é, pois, um poder
arrojado, uma atividade que se exercita dentro de uma direção e de diretivas já
prescritas. O homem, portanto, não é o senhor do Ente (der Herr des Seienden),
mas o pastor do Ser (der Hirt des Seins) isto é, aquele Ente
que deve cuidar para que seja preservado o elemento do Ser. Este cuidar se dá
como transcendência em relação a todo o dado e como relação ek-stática em
direção à verdade do Ser" [Silva, 1964: I, 260-261].
Em quarto lugar, o filósofo alemão
frisa que o Ser não se revela intuitivamente ao homem como hipostasiado em
determinada coisa. A respeito, frisa Heidegger: "O Ser é mais amplo que
todo ente e é contudo mais próximo do homem que qualquer ente". O homem
atém-se primeiro ao ente. "Quando, porém, o pensar representa o ente
enquanto ente, refere-se, certamente, ao Ser (...). A questão do Ser permanece
sempre a questão do ente". Essa situação de desvelamento do
Ser através do ente (e do ente representado pelo pensar enquanto ente), é
responsável pela ambigüidade da metafísica mas, ao mesmo tempo, é a
fonte da sua riqueza inesgotável. A verdade do Ser, bem como a clareira mesma,
permanece oculta para a metafísica. Mas não é alheia a ela. É, poderiamos
dizer, a condição de possibilidade dela. A respeito, frisa Heidegger: "A
clareira mesma (...) é o Ser. Ela somente garante no seio do destino ontológico
da Metafísica, a perspectiva a partir da qual as coisas que se apresentam
afetam o homem que lhes vem ao encontro. Desta maneira o próprio homem pode
apenas atingir o Ser (...) na percepção. (...) Somente a perspectiva
atrai a visão para si e a ela se entrega, quando o perceber se transformou no propor-diante-de-si,
na perceptio da res cogitans como subjectum da certitudo"
[Heidegger, 1979: 158]. Essa questão da plenitude do Ser e da
complexidade da sua revelação através dos entes, é retomada por
Ferreira da Silva sob o aspecto da essência litigiosa do Ser,
que o pensador paulista concebe nestes termos: "O acontecimento da
verdade, como traçado ou projeto do ente é, ao mesmo tempo, revelação
e ocultação, e isto em sentido dinâmico, polêmico e histórico. Às coisas e
possibilidades que surgem no horizonte do manifestado, correspondem outras que
sucumbem e desaparecem, e isto não por pacífica sucessão, mas como trágica e
extenuante luta. A posição do ente se dá como luta; o Ser é, em sua essência, litigioso (streitige)
(...). A essência da verdade, isto é, o desvelamento, é dominada por uma
recusa. Esta recusa não é, entretanto, uma falta ou privação, como se fosse a
verdade um desvelamento total que pudesse eliminar todo o velado" [Silva,
1964: I, 267].
Em quinto lugar, Heidegger afirma que o
relacionamento entre a ec-sistência e o Ser pode explicitar-se
à luz da temática do ser-no-mundo, que não deve interpretar-se do
ponto de vista vulgar - como se o homem fosse simplesmente um ser mundano,
ou mesmo como se mundano se contrapusesse a espiritual. A
expressão ser-no-mundo significa fundamentalmente "a
abertura do Ser. O homem é homem enquanto é ec-sistente. Ele
está postado, num processo de ultrapassagem, na abertura do Ser, que é o modo
como o próprio ser é; este jogou a essência do homem, como um lance, no cuidado de
si. Jogado desta maneira o homem está postado na abertura do
Ser. Mundo é a clareira do Ser na qual o homem penetrou a
partir da condição de ser-jogado de sua essência. O ser-no-mundo nomeia
a essência da ec-sistência, com vistas à dimensão iluminada, desde
a qual desdobra seu ser o ec da ec-sistência. Pensando
a partir da ec-sistência, mundo é, justamente, de
certa maneira, o outro lado no seio da e para a ec-sistência. O
homem jamais é primeiramente do lado de cá do mundo como um sujeito,
pensa-se este como eu u como nós (...). O
homem primeiro é, em sua essência, ec-sistente na abertura do
Ser, cujo (espaço) aberto ilumina o entre, em cujo seio pode ser uma relação de
sujeito e objeto" [Heidegger, 1979: 167-168]. No seu ensaio intitulado O
homem e sua proveniência, Ferreira da Silva aprofunda no sentido não
mundano da expressão heideggeriana ser no mundo, salientando que o
termo Mundo não remete a uma dimensão antropocêntrica, mas é a
expressão da clareira do Ser, na qual o homem se situou graças à sua condição
de ser-jogado. Eis as palavras do pensador paulista a respeito:
"Sabemos como o ente intramundano só se revela a partir de um sistema de
possibilidades inerentes à existência. Estas possibilidades poderiam ser
compreendidas como projetadas pelo homem, sendo o próprio homem, neste caso, um prius em
relação ao aparecimento do ente intramundano. Porém, a perspectiva em que nos
colocamos, procurando incluir o homem dentro do círculo de um projetar
instituidor, atesta-nos que aquela interpretação antropocêntrica é inexata. A
abertura das possibilidades não diz respeito unicamente à esfera do mundo
circundante, mas incide na própria estruturação e constituição do homem. Neste
sentido devemos compreender a afirmação de Heidegger de que ao traçar o mundo,
o homem se vê traçado no interior do mundo e aí abandonado. O desvelamento do
horizonte mundanal é simultâneo ao desvelamento do próprio homem (...). Se o
transcender instituidor das possibilidades abre campo para a realização histórica,
disto resulta que estamos diante de uma área metahistórica de decisões que
envolve e condiciona todas as vicissitudes humanas. É o que afirma Heidegger em
diversas passagens da Carta sobre o humanismo" [Silva,
1964: II, 132].
Em sexto lugar, Heidegger refere-se à
manifestação da relação entre Ser e ec-sistência através da
linguagem que, longe de ser um flatus vocis, é essencialmente
"a casa do Ser manifestada e apropriada pelo Ser e por ele disposta".
Porisso, frisa o filósofo alemão, deve-se pensar a essência da
linguagem a partir da correspondência desta ao Ser enquanto tal
correspondência, ou seja, "como habitação da essência do homem". Isso
significa que, na fundamentação da linguagem, "não é o homem o essencial,
mas o Ser enquanto dimensão do elemento ec-stático da ec-sistência"
[Heidegger, 1979: 159]. Na parte final da Carta sobre o humanismo,
Heidegger frisa que a poesia "se confronta com as mesmas questões e, da
mesma maneira, com o pensar. Mas ainda vale a pouco meditada palavra de
Aristóteles em sua Poética: que o poematizar é mais
verdadeiro que o investigar o ente" [Heidegger, 1979: 174]. Ao mesmo
tempo, Heidegger lembra, repetindo as palavras de Hölderlin, que a linguagem
"é o mais perigoso dos bens", porquanto na expressão do pensamento através
das palavras, esconde-se o risco de despoetizar a linguagem e torná-la lógica
[cf. Heidegger, 1979: 174-175]. Ferreira da Silva adere ao conceito
heideggeriano de linguagem, que a pensa não na sua fria formalidade, mas na
dimensão poética que a constitui em casa do Ser. O pensador
paulista dedica a este tema as últimas páginas do seu ensaio A
concepção do homem segundo Heidegger. Eis as suas palavras a respeito:
"A poesia é o dizer da descobertura do Ente. No dizer poético põe-se em
obra a verdade projetante do Ser. Eis porque podemos dizer que a obra de arte,
cuja essência reside na poesia, funda e institui o mundo, trazendo a um povo o
conceito de sua própria realidade. Assim pois, ela não é - como diz
Heidegger - um simples ornamento que acompanharia a realidade humana,
nem um mero entusiasmo passageiro, como também não é uma simples exaltação ou
um passatempo. A poesia é o fundamento que suporta a História" [Silva,
1964: I, 261]. Ferreira da Silva termina o seu ensaio fazendo as seguintes
considerações em relação à Poesia como linguagem primordial: "a) A
interpretação falaciosa da essência da linguagem deve-se ao predomínio da
metafísica da subjetividade. b) Devemos pensar a palavra sob um ponto de vista
revolucionário: o homem passa a ser interior à palavra, instituído em sua
configuração histórica particular pela abertura projetante do dizer poético. c)
A palavra (poética) é o jato de luz que franqueia um mundo à humanidade
histórica. d) A linguagem, na acepção primitiva e original, é portanto um dizer do Ser,
a forma em que o Ser continuamente se põe em obra" [Silva, 1964: I,
262-263].
2) O homem, irredutível ao
geograficamente dado, graças à vivência do mundo eidético
No seu breve ensaio intitulado O
Andróptero, o nosso autor formula uma concepção não determinística do
homem, a partir da dimensão de abertura ao Ser, típica da humanitas do
ser humano. Os homens somos vítimas, frisa o pensador paulista, do provincianismo
geográfico que tinha sido caracterizado por Platão no seu diálogo Fédon. Nele,
escreve Ferreira da Silva, "depois de afirmar que esta terra não
corresponde à imagem que dela fazem os que costumam relatar descrições de sua
superfície, Platão nos diz ser a terra incomensuravelmente grande, possuindo
uma infinidade de lugares maravilhosos que desconhecemos por habitarmos entre Farsis
e as Colunas de Hércules. Fechados nesse exíguo círculo, entre vales e
escarpas confinantes, não temos muitas vezes sequer o pressentimento das
paragens divinas que nos envolvem, dessa terra pura que domina
a nossa terra. Tendo fixado nossa residência neste solo pedregoso e estéril,
aqui vivemos disseminados pelas praias e costas, como formigas e rãs em
redor de um pântano. Este provincianismo geográfico desastroso e
fatal, que se nos adere, termina por nos cegar, e deixamos então de perceber
que a terra que pisamos, estas pedras e todos os lugares que habitamos,
estão inteiramente corrompidos e arruinados como aquilo que jaze no mar o está,
pela acritude dos sais" [Silva, 1964: I, 17]. A ilusão, frisa o
pensador paulista, é a arma que empregamos para nos sentirmos senhores
das alturas e apagar, no seio da nossa consciência, todos os sintomas
de sujeição e abatimento que produz o provincianismo geográfico. Ferreira da
Silva escreve a respeito: "Escapamos ao nosso cativeiro pelo expediente da
má-fé e falsificação" [Silva, 1964: I, 18]. Platão, num outro diálogo, Fedro,
segundo Ferreira da Silva, caracterizou muito bem a situação da alma falsamente
liberada pela ilusão: "Quando a alma perde suas asas, roda pelos espaços
infinitos até aderir a alguma coisa sólida, fixando aí sua morada. Essa coisa
sólida é constituída pelo sistema de nossos limites, de tudo quanto é
externo, de todo o domínio da materialidade" [Silva, 1964: I, 17-18].
A doutrina platônica das idéias
aparece, nesse contexto de determinismo e opressão, como uma filosofia
salvadora. "A virtude das asas - afirmava Platão - consiste
em levar o que é pesado para as regiões superiores" [apud Silva, 1964:
I, 19]. Porém, frisa Ferreira da Silva, é preciso interpretar
corretamente as idéias, não como uma cópia exaurida da realidade sensível, pois
perderiam assim toda a sua originalidade, e já não seriam Ser original ou
matrizes absolutas. O nosso pensador caracteriza assim a verdadeira essência
daquelas: "A Idéia é justamente o contrário de um conceito, que está
sempre aquém do sensível, tendo virtudes e propriedades completamente
distintas. Enquanto os conceitos nos encerram no determinado e no finito,
pondo-nos em relação com um dado insuperável, as Idéias nos lançam num processo
infinito de perfeição e de plenitude, fazendo-nos ultrapassar todo o
imediato" [Silva, 1964: I, 19]. Assim, o mundo eidético, "esse Eros
cosmogônico que mantém o universo em existência", exerce um papel
distensivo e libertador ao permitir-nos a evasão do puramente fático, bem como
do confinamento a que nos reduzem os sentidos e os conceitos. Em que pese o
fato de serem "realizadas, imóveis e estáticas", as Idéias são
"o princípio de todo o movimento no mundo sensível, estando este em
constante radiação para esses paradigmas insuperáveis do Ser" [Silva,
1964: I, 20].
Só existe, para Ferreira da
Silva, um caminho que conduz à verdadeira libertação: a abertura
para o pensamento eidético, que é a abertura para o Ser e que exige de nós um
duro sacrifício, a saber, "o da entrega a uma perfeição que não
solicita o nosso consentimento para a sua constituição, exigindo a genuflexão
da nossa vontade (...). Quando entramos em cena, o drama do ser já se cumpriu,
pois está realizado desde todo o sempre e o nosso único papel seria o de
reconhecer, ou não, a legitimidade de sua soberania" [Silva, 1964: I, 20].
Fora dessa perspectiva de abertura ao plano eidético, tudo é "mímesis,
cópia, mera reprodução". Nesse contexto de inautenticidade, o
real se nos apresenta "como pensamento pensado e não como pensamento
pensante". Caímos então numa posição metafísica a cujas dificuldades não
conseguiu escapar o próprio Platão, "quando este se defronta, na República,
com o problema de explicar por que devem voltar a este mundo,
para desempenhar o seu papel de mentores e governantes, aqueles que fixaram sua
morada no templo das Idéias. Compreende-se, pois, perfeitamente a pergunta de
Glauco a Sócrates: Por que condená-los a uma vida miserável, se eles
podem desfrutar de uma vida mais feliz?" O filósofo paulista conclui o
seu ensaio O Andróptero com esta pergunta, que traz até
nós a preocupação do interlocutor de Sócrates no diálogo platônico: "Se a
felicidade e o objetivo da vida estão além da história, se o tempo e o curso
das coisas humanas não constituem um fator substancial da realidade, por que
exigir de quem se elevou a uma ordem superior de existência que se ocupe e se
responsabilize pela gestão das sombras?" [Silva, 1964: I, 21].
3) O homem, irredutível às utopias,
graças à fundação poética da sua essência
Ferreira da Silva reconhece, no seu
ensaio intitulado Utopia e Liberdade, duas formas de
utopismo que afetam ao homem: a normal, e a construtível.
A primeira faz ênfase no fato de existir uma norma canônica de ser humano,
"um regime definitivo em que o homem entraria em plena congruência com o
seu desenho essencial" [Silva, 1964: I, 61]. Nesse utopismo deitam raízes
as idéias de uma idade de ouro ou de uma nova Atlântida. A segunda forma de
utopismo baseia-se no reconhecimento de que "o homem em sua natureza é um
ser construtível, tanto do ponto de vista interior, como do ponto
de vista exterior, e que portanto pode ser conduzido ou reconduzido à sua forma
normal". O filósofo paulista salienta que o homem, nas utopias, é tomado
como um objeto destituído de qualquer dialética interna.
Trata-se, sem dúvida, de um vulgar determinismo, cuja essência é assim
explicada pelo nosso autor: "Se considerássemos o homem como um simples sistema
de necessidades ou como uma ordem de apetites psicossomáticos,
seríamos forçados a admitir sempre uma proporção direta entre o sentimendo de
poder interno, de plenitude e satisfação humana, e o aumento das condições e
dos meios externos de satisfação desses apetites". Contudo, frisa Ferreira
da Silva, a reflexão patenteia que o homem é um puro imprevisível, que não pode
ser construído ou programado por um conjunto de técnicas sofisticadas em poder
do Estado. A propósito, afirma: "A mais sumária reflexão nos
mostra, entretanto, quão negligente à realidade é essa pretensa proporção que
comanda esta forma de pensamento: num certo aspecto, o homem é um puro
imprevisível, sendo a sua coerência de ordem mais profunda do que entende o
utopismo. A utopia social implica, evidentemente, uma certa ordem no suceder
das coisas, exige que a um mais corresponda sempre um mais e a um menos sempre
um menos, pois não teria sentido trabalhar numa certa direção se não estivesse
garantido o resultado. A própria idéia de construtividade no sentido utópico,
que envolve todo um conjunto de técnicas que facultaria a um poder estatal a
construção de um determinado tipo de sociedade e, ipso facto, de
uma certa figura antropológica, viria a perder seu sentido se puséssemos em
relevo esta rebeldia metafísica da consciência humana" [Silva, 1964: I,
62].
O utopismo peca justamente por
desconhecer esta rebeldia metafísica essencial ao homem, ao
tentar quantificá-lo em resultados mensuráveis. Ferreira da Silva refere-se a
esse aspecto nestes termos: "O utopismo está baseado numa versão muito
superficial do que poderíamos denominar a lógica existencial do homem, a sua
coerência interna e não podemos fugir à impressão de que lida com o homem, como
se este fosse uma quantidade fixa, um termo que se manteria constante em todas
as suas operações. Sob um outro ângulo, o utopismo não considera a variação
histórica dos desiderata, impulsos e idéias humanas e toda a
fluente e incoercível realidade da história". Ferreira da Silva assinala
um aspecto muito importante dessa rebeldia metafísica do
homem: a liberdade. Aí deita raízes a distinção profunda entre o homem e as
coisas que podem ser programadas: "A escolha, no homem, é sempre seleção,
alternativa, privação, o que o distingue essencialmente de todas as coisas que
podem passar por diversas fases de elaboração, permanecendo sempre aptas a
serem conduzidas à perfeição previamente estabelecida. Ao optar, o homem cria
condições novas e particulares, novas determinações do seu ser, que passam a
limitar e cercear as novas opções, apresentando à sua vida um conjunto
circunstancial sempre diferente". O filósofo paulista exprime a
absoluta originalidade humana, em palavras que lembram o pensamento
de Heidegger: "O homem assemelha-se a um viandante que, ao se perder numa
floresta, fosse destruindo todas as pontes e passagens que o ligavam ao ponto
de partida, não lhe restando, portanto, outro recurso senão marchar
para a frente" [Silva, 1964: I, 63].
O utopismo, pelo contrário, frisa
Ferreira da Silva, pressupõe que o projeto humano pode ser decomposto em etapas
quantificáveis, numa alusão às teorias desenvolvimentistas que apregoam o
planejamento da sociedade e do homem, do estritamente econômico e material e do
propriamente humano. A respeito, o nosso pensador escreve: "O pensamento
utópico, entretanto, julga que o problema humano pode ser decomposto em fatores
particulares, podendo uma parte esperar a solução da outra e afirmando ipso
facto que a sociedade se pode dedicar primeiro a salvar os seus
problemas materiais mais urgentes para depois enfrentar tarefas de mais alto
significado. Esta crença vemo-la despontar quando ouvimos dizer que tal ou qual
país está sacrificando uma ou duas gerações na construção de uma
infra-estrutura incomovível que lhe possibilite depois um apogeu
espiritual" [Silva, 1964: I, 64]. Essa falsa suposição do utopismo
inspira-se numa visão simplista do homem, que pretende ser a pessoa a mesma, do
ângulo espiritual, ainda que manipulada extrinsecamente pelos processos
produtivos e de reforma social. O filósofo paulista levanta duas objeções
contra essa pretensão que, mesmo que não a identifique explicitamente, no
Brasil materializou-se nas várias tendências determinísticas que, como o
positivismo, inspiraram em boa medida as idéias desenvolvimentistas postas em
marcha nas últimas décadas do século XX. A propósito, Vicente Ferreira da Silva
escreve: "Porém, uma vez criada essa ordem econômica perfeita, estaria
ainda o homem na mesma disposição em relação aos seus antigos ideais?
Permaneceria intacta a sua fé através desses períodos de transformações
unilaterais? Estas seriam duas das objeções possíveis ao dogma da
construtibilidade parcelada do homem, que se inspira evidentemente numa
apreensão objetivante e desmerecedora do homem. Um pequeno número de idéias
simplistas e ingênuas orientam este modo de pensamento. Conhecidas as cadeias
causais próprias dessa coisa que é o homem, poderíamos então
submetê-lo a uma manipulação racional e científica (métodos pedagógicos,
higiênicos, biológicos, eugênicos, reflexológicos, etc.) em analogia com os
processos usados na criação de animais domésticos" [Silva, 1964: I, 64].
Ferreira da Silva salienta que a
afirmação da homogeneidade absoluta do real é a premissa básica da
construtibilidade utópica. A respeito, frisa: "Uma premissa se esconde sob
a crença da construtibilidade utópica do homem: é a afirmação da homogeneidade
absoluta do real. O real se poria como uma extensão homogênea de entidades
físicas e naturais que absorveriam em si a totalidade do conhecido. Nenhuma
negatividade interna conturbaria a organização dessa massa inerte. Uma vez
conhecido o determinismo intrínseco do real, poderíamos afeiçoa-lo ao nosso
gosto, dando-lhe a forma mais conveniente ao seu funcionamento natural, aos
objetivos postos". A visão utópica da realidade teve uma origem
filosófica: a República platônica. Em relação a este ponto, o nosso autor escreve:
"Platão consagrou definitivamente a crença de que o homem tem uma medida a
cumprir em todos os seus atos e de que o ideal de uma vida justa consiste na
participação de um modelo essencial. Esta República ideal de Platão não seria
uma invenção arbitrária dos legisladores, nem uma imposição de uma elite de
força, mas sim um teorema da razão, uma exigência da natureza inteligível do
homem" [Silva, 1964: I, 64-65]. Contudo, apesar desse caráter puramente
teorético que tipifica a República platônica, o seu utopismo não pode se
justificar sem a materialização de um regime universalmente válido, "que
polarize todos os espíritos numa mesma conexão racional e que imponha uma mesma
meta a todos os esforços". A utopia pode-se situar no passado, como um
paraíso perdido, ou num futuro longínquo, como um regime ideal a ser atingido.
Porém, frisa o filósofo paulista, "é a utopia sempre a mesma representação
de um regime idealmente necessário dos homens e das coisas, a equação da vida
com um código eterno da natureza. Um tal sistema, pelo seu próprio caráter, faz tabula
rasa do tempo, pois é a fórmula política de todos os tempos. É o
próprio testemunho da História que demonstra o caráter sofístico desta carta
política ideal e utópica, dessa legislação universal superior aos tempos e aos
lugares" [Silva, 1964: I, 65].
O autor sintetiza assim a problemática
debatida por ele nas páginas do seu ensaio Utopia e liberdade:
"O que está em jogo aqui é, evidentemente, uma questão de ordem
metafísica, a saber: se o homem tem uma medida invariável
através dos tempos, um modelo essencial, ou se pelo contrário o homem é o fruto
de seu fazer histórico, de sua liberdade e inventividade fundamentais". E
salienta, para terminar, a sua concepção de inspiração heideggeriana em relação
à caraterística ontológica fundante do homem: "Parece-nos que o mais
íntimo do homem consiste justamente nessa fundamentação poética
de sua essência, nessa autoprojeção de sua fisionomia humana; e assim não se
pode reger por sistema de fins dados de uma vez para sempre. Este regime
definitivo da utopia nada mais é do que uma ilusão constante do espírito,
propenso a dar valor permanente aos tipos de conduta e aos valores históricos
sempre contingentes e gratuitos" [Silva, 1964: I, 65].
4) A moral lúdica, na superação do mito
do progresso indefinido
A crise do homem contemporâneo é
caracterizada por Ferreira da Silva, no seu ensaio intitulado Para
uma moral lúdica, da seguinte forma: "um veneno insidioso foi se
infiltrando lentamente no corpo da sociedade atual, um veneno estranho e
invisível, cujos sintomas, tornando-se cada vez mais nítidos, incapacitaram o
homem para as suas mais autênticas realizações. Uma atmosfera de
constrangimento e de frustração circunscreve o campo da consciência e por todos
os lados a expectativa do que está por vir tinge de cores carregadas as
perspectivas vitais" [Silva, 1964: I, 137]. Esse veneno e essa atmosfera
de constrangimento estão identificados, a partir do século XIX, com o mito do
progresso indefinido, que degredou a transcendência numa transdescendência,
ofuscando o propriamente humano. A respeito, o nosso pensador escreve: "O
mito do progresso contínuo (estabeleceu-se) invertendo a ordem dos meios e dos
fins, numa caça exaustiva de recursos que nunca desembocavam numa promoção da
vida por si mesma. A transcendência original do viver
transmudou-se numa transdescendência, isto é, num aprofundamento
material cada vez mais acentuado, toda ação passando a ser interpretada
unicamente como ação transitiva, utilitária ou econômica, como transformação
das coisas e do mundo, mas perdendo-se de vista o escopo de todo o movimento. A
ordem sem fim dos meios, o mal infinito dos instrumentos
ofuscou a alma e, ato fundamental, o exercício ético das virtudes propriamente
humanas" [Silva, 1964: I, 137-138].
O conhecimento operacional, frisa o
nosso autor, é uma "visão subsidiária e não teoria filosófica total".
Por pretender sê-lo, tornou-se conhecer monstruoso, repetindo aqui
o termo cunhado por Kierkegaard. E afirma a seguir: "O que negamos é que
esse conhecimento operacional, visão subsidiária e não teoria filosófica total,
possa nos instruir no tocante à forma última de nossa vida" [Silva, 1964:
I, 138-139]. Na hipertrofia da atividade produtiva do homem atual, a sociedade
perdeu o controle dos mecanismos que pôs em movimento. O efeito mais grave
dessa hipertrofia, consiste no fato de que os colossos nacionais da técnica
encheram o coração do homem de mais apreensões e temores. A solução adequada
para esse conflito consiste na modificação simultânea do homem e de suas
condições naturais de vida, com ênfase numa inflexão do comportamento moral.
Essa será a única forma de superar o caráter para, absolutamente
utilitário, da ação moderna, que conduz a uma transitividade insubstancial.
Nesse esforço de reivindicação do autenticamente humano, colabora conosco a
noção de espírito do cristianismo, que nos capacita para
valorizar as coisas em si mesmas. A propósito, afirma Ferreira da Silva:
"Para Aristóteles, que vivia no âmbito do intelectualismo grego, somente a
contemplação e a filosofia respondiam a tais exigências. Nós, entretanto,
educados numa tradição cristã, não necessitamos limitar às virtudes dianoéticas
este poder de salvação, pois a nossa noção de espírito é muito mais ampla. O
amor, as livres atividades criadoras, são também coisas que se buscam por si
mesmas" [Silva, 1964: I, 141]. Encontramos neste aspecto da meditação
ferreiriana uma inovação em relação à perspectiva heideggeriana que, na Carta
sobre o Humanismo ao menos, enxerga o fenômeno cristão
simplesmente como mais um humanismo que limita as livres atividades criadoras
do homem.
O nosso autor salienta o valor do jogo
como símbolo da conduta ética que dá valor às coisas em si mesmas. A respeito,
escreve Ferreira da Silva: "O objetivo do jogo é o jogo, é a ação da ação,
o ato do ato. Como símbolo de uma conduta que encontra o deleite no completo,
a atividade lúdica é o mais próximo paradigma de um sentido da felicidade que o
homem moderno perdeu quase inteiramente". O nosso autor termina o seu
ensaio Para uma moral lúdica, destacando o que considera a
única seriedade que vale a pena. Eis as suas palavras a respeito: "Varrer
da nossa consciência o inessencial, o que não se relaciona com a ação que se
busca por si mesma, votando à sátira, à ironia e ao escárnio todos os falsos
ídolos. Só há uma seriedade séria; mas esta não é lúgubre e taciturna, crispada
e sofredora, mas sim vivificante, generosa e criadora" [Silva, 1964: I,
141].
5) A morte como sucesso que transcende
a pura fenomenalidade
O filósofo paulista considera que o
silêncio que traduz a inoperância da nossa lógica, é a reação mais adequada
perante a morte. A respeito, escreve no seu ensaio intitulado Meditação
sobre a morte: "A conseqüência mais própria do evento da morte é
compelir-nos ao silêncio, cortando a palavra, pois sentimos anulada a nossa
lógica e ultrapassado o mundo de significação que fundamentam os nossos juízos
e conceitos. As palavras desmaiam em sons, pois o resto é silêncio"
[Silva, 1964: I, 23]. Também desaparecem, perante a morte, as diferenças entre
os homens. Diante dela, frisa o nosso autor, "não existem reis ou mendigos
do conhecimento e todos submergem nas trevas finais na mesma expectativa
desarmada e ansiosa". A morte é, assim, uma situação limite,
porquanto é a barreira que se ergue perante a nossa liberdade. Ferreira da
Silva enfatiza a dimensão que poderíamos chamar de transcendente da
morte, como acontecimento que supera a pura fenomenalidade perceptiva. É o
término de um vínculo inter-subjetivo entre duas almas; a solidão e a ausência
daí decorrentes são os fatos que o homem procura explicar quando se lança à
reflexão sobre a morte e a sobrevivência. Nesse esforço explicativo, surgem as
que o filósofo denomina de visões objetivantes da morte, que a
consideram como "um simples fato intramundano, como a corrupção de um
corpo, ou o desmoronamento de uma estrutura biofísica, (e que) desprezando a
relação pessoal interrompida, não respeitam a totalidade de sua natureza"
[Silva, 1964: I, 25].
O Reino dos vivos opõe-se
radicalmente à morte. Aquele é constituído pela "assembléia daqueles que
pela determinação do seu amor" geram sempre mundo ao seu redor. A morte
constitui a interrupção dessa "comunidade de libido e de cuidado",
mediante a destruição do vínculo exteriorizado dessa co-participação. A morte
do próximo é, assim, uma "infidelidade trágica" de sua
parte, na expressão cunhada por Landsberg, que Ferreira da Silva faz sua.
Existe uma dualidade trágica entre a morte e a vida, entre a nossa natureza
(que implica movimento, atividade e superação) e o confinamento, o
ensimesmamento definitivo dos mortos. Trata-se, considera Ferreira da Silva, de
uma "luta entre a fidelidade ao passado e à pessoa do morto, e os novos
anseios de vida". Assim, o acontecimento objetivo da morte e o fato
subjetivo não se correspondem. Em decorrência da minha morte dilui-se a minha
circunstância mundanal, devido ao desmoronamento da base da minha encarnação.
Ferreira da Silva destaca o caráter misterioso da morte. Tal caráter deita
raízes no fato de que ela nos liberta da esfera fenomênica, constituindo assim
para nós um mistério que não pode ser analisado por nenhuma ciência. De acordo
com esse caráter, a nossa atitude diante da morte deve ser de confiança no
mistério. Eis a forma em que o pensador caracteriza essa atitude: "O que
pode existir, sim, é uma confiança no mistério, um sentimento efusivo de que o
inteligível não é tudo e que podemos abandonar-nos mesmo àquilo que não pode
ser vertido nos diagramas do conhecimento. Esta confiança é contrária ao
desafio do conhecimento, é o sentimento esperançoso e tranqüilo do que, como o
núcleo do nosso ser, se opõe ao terror do aniquilamento" [Silva, 1964: I,
28].
Conclusão
Segundo salientou Benedito Nunes, a
obra filosófica de Heidegger pode-se dividir em duas etapas: um primeiro ciclo
que "é preenchido pela influência da Ontologia Fundamental, recebida como
expressão de uma filosofia que centralizava as várias tendências existenciais
até então dispersas, ratificando a transformação da metafísica numa
antropologia filosófica, preconizada antes de Ser e Tempo por
Max Scheler" [Nunes, 1980: 6]. Esse primeiro ciclo estaria representado
pela obra que acaba de ser mencionada, devendo ser levado em consideração,
contudo, o caráter não fechado da mesma, que é testemunhado pelo seu
inacabamento.
Já o segundo ciclo da meditação
heideggeriana começa com a rejeição, por parte do filósofo alemão, do paralelo
que alguns críticos pretendiam estabelecer entre o seu pensamento e o
existencialismo, particularmente a meditação sartreana. O início desta segunda
etapa estaria marcado pela sua Carta sobre o Humanismo (escrita
em 1949), endereçada a Jean Beaufret, e que foi provocada, em parte, pela
conferência de Sartre intitulada L'existencialisme est un humanisme.
Heidegger, porém, já tinha feito, anteriormente, algumas ressalvas quanto ao
caráter não existencialista de sua meditação, no seu ensaio Filosofia
da Existência [cf. Nunes, 1980: 6]. Benedito Nunes caracteriza,
assim, o cerne do pensamento heideggeriano nesta etapa:
"Questão de fundo, interesse, encargo ou destino do pensamento -
seu assunto e seu tema únicos - o Ser torna-se, como matéria
exclusiva da indagação heideggeriana, menos um centro de especulação teórica do
que o alvo de uma prática meditante, concernida com o objeto de sua
busca desde o plano da linguagem, caminho preferencial, ao plano
histórico, quer na época da cultura grega, em que despontou a metafísica,
enquanto forma dominante de concepção do ocidente europeu, quanto na época
atual, caracterizada pela expansão planetária da técnica, em que se prenuncia a
superação da mesma metafísica" [Nunes, 1980: 7]. Nesta segunda etapa da
obra heideggeriana dá-se uma inversão na sua temática, em que é privilegiada a
posição do Ser como norte único de toda a meditação filosófica. O dizer
poético será o veículo de comunicação da ec-sistência, devendo-se
"pensar a essência da linguagem a partir da correspondência ao Ser"
[Heidegger, 1979: 159], como foi destacado no início desta exposição. Assim,
podemos caracterizar a obra filosófica de Martin Heidegger citando as palavras
de Benedito Nunes, como sendo "uma investigação extremada que tenta falar
daquilo mesmo que o discurso filosófico especulativo condenou ao esquecimento,
o Ser, o tempo e a linguagem, e que por isso não se detém nos limites onde o
pensamento deve silenciar. A prática meditante heideggeriana, já excedentária à
filosofia e laborando na sua negação, alcança, enfim, pelo dizer poético que
procura liberar na linguagem, a inversão do Ser e Tempo para Tempo e Ser, como
virada do idioma metafísico. Expressão tateante e sondagem antecipadora de um
pensamento por vir, a virada prenuncia a possibilidade de uma mudança profunda
nas próprias relações do homem com o Ser e dos homens entre si. A revolução da
linguagem, consumada no dizer poético, tornar-se-ia, com
a obra inteira do filósofo, o prólogo interrogativo e perplexo dessa mudança
possível, entreaberta na cena revolta da nossa época, onde se joga, num lance
decisivo, o destino do mundo e do homem postos em questão" [Nunes, 1980: 7].
Vale a pena salientar que na obra
filosófica de Vicente Ferreira da Silva deu-se uma evolução semelhante à do
filósofo alemão. Miguel Reale assinala três etapas na evolução do pensamento
ferreiriano: a) de formalização lingüístico-matemática, b) etapa existencial e
c) etapa de compreensão poético-religiosa da história e do cosmo. A primeira
etapa manifestou-se no ensaio intitulado Elementos de Lógica
Matemática, que o nosso autor escreveu em 1940. A etapa existencial
caracteriza-se, no dizer de Reale, pelo "interesse compreensivo e
desvelado amor pelo significado pleno da existência humana, do que é exemplo
magnífico o seu belo livro Dialética das Consciências (1950),
o mais perfeito ensaio em língua portuguesa sobre os problemas da
intersubjetividade e da alienação, onde demonstra que a atuação do espírito se
dá na forma do encontro e da comunicação existencial, remontando às fontes
primordiais da sociabilidade como concreção e concreação" [Reale, 1964: I,
11]. A esta segunda etapa pertencem a maior parte dos trabalhos de Ferreira da
Silva que foram objeto de análise nestas páginas, como O Andróptero (1948), Utopia
e Liberdade (1948), Para uma moral lúdica (1949)
e Meditação sobre a Morte (1948). Os estudiosos
franceses Sylvie e Zdenek Kourim chegam a considerar esta etapa do pensamento
ferreiriano tão importante, que no sentir deles o cerne deste seria o tema
antropológico. A terceira etapa da evolução filosófica de Ferreira da Silva é,
segundo Reale, a da compreensão poético-religiosa da história e do homem. A esta
etapa, que se inicia em 1951, o nosso autor dedicou os últimos doze anos de sua
vida, "ofertando-nos ensaios esparsos, como intuições poderosas, numa
linguagem que se tornou cada vez mais apurada e pessoal, e às vezes enigmática,
que lembra a do último Heidegger, mas que com ela não se confunde". Alguns
dos trabalhos pertencentes a esta terceira etapa são, por exemplo, Filosofia
da Mitologia e da Religião (1954), Sociologia e
Humanismo (1958), O Homem e a Liberdade na Tradição
Humanística (1961), O Ocaso do Pensamento Humanístico (1960)
e Natureza e Cristianismo (1957). Porém, a mais
importante obra deste período é, ao meu modo de ver, o ensaio Idéias
para um Novo Conceito de Homem (1951) que inclui o escrito
intitulado A concepção do Homem segundo Heidegger que
comentei atrás e que constitui o ponto de partida para a última fase da
meditação ferreiriana.
Assim como o segundo Heidegger não nega
o primeiro, antes pelo contrário projeta uma luz esclarecedora sobre o autor de Ser
e Tempo, da mesma forma encontramos um nexo estreito entre as
diferentes etapas da meditação ferreiriana, especialmente entre as duas
últimas. Segundo Reale, nos ensaios de Ferreira da Silva intitulados Idéias
para um novo conceito do homem e Teologia e
Antihumanismo, este último de 1953, é onde o pensador paulista exprime
de forma mais explícita o cerne da terceira etapa de sua meditação, que
consiste em pensar "o homem e as coisas a partir de Deus, pondo-se o
pensador ousadamente na perspectiva original do divino" [Reale, 1964: I, 12].
Em linguagem heideggeriana diríamos, melhor, que o pensador paulista se coloca,
nesta segunda etapa, na perspectiva original da ec-sistência, para
pensar o homem e as coisas a partir do Ser. Em relação ao estreito nexo que
existe entre as etapas do pensamento ferreiriano, especialmente entre as duas
últimas, a humanística e a ec-sistencial, Miguel Reale anota que
com os ensaios Idéias para um novo conceito de homem e Teologia
e Antinhumanismo, "Vicente supera, sem a eliminar, (...) a dialética
das consciências (...), para elevar-se às fontes projetantes e
condicionadoras da intersubjetividade, concluindo que, na base da liberdade
individual do eu e do tu, em seu jogo dialético condicionado, está o Ser como
liberdade que funda e institui o espaço de manifestação do homem e de suas
possibilidades históricas contingentes. O segundo Heidegger, cujas obras
ninguém soube interpretar melhor que ele no Brasil, propicia-lhe o encontro de
suas perspectivas originais, o que, diga-se uma vez por todas, para prevenir
críticas superficiais, nunca o impediu de viver intensamente os problemas
brasileiros, como o demonstrarão os seus penetrantes estudos sobre política,
educação e sociologia" [Reale, 1964: I, 12].
Reale frisa que a meditação
ferreiriana, em virtude do princípio herdado de Heidegger "de que o homem
não é o senhor do Ente, mas o pastor do Ser", concebe a filosofia
intramundana como momento da filosofia transmundana ou Filosofia da Religião e
da Mitologia, ou melhor, da Filosofia da Religião como Mitologia, "à qual
corresponde um novo humanismo, não apenas teocêntrico (referido a Deus) mas
teogônico (como projeção do divino)" [Reale, 1964: I, 12]. Essa orientação
anti-historicista (porquanto não limitada à dimensão intramundana) é o ponto de
partida, na meditação de Vicente, para uma nova visão da história e da gênese
do processo gnoseológico, que se alicerça na abertura ao Ser e não na
manipulação dos Entes e que inspira a sua crítica ao Ocidente, num paradoxal
esforço por salvá-lo de si mesmo" [Reale, 1964: I, 13]. A
meditação ferreiriana apontaria, assim, em último termo, para o reconhecimento
de uma historicidade transcendente que nos permita voltar às
origens, no reconhecimento do Ser. Eis a forma em que Reale tipifica essa
finalidade última da filosofia do nosso autor: "Sua preocupação pelas
origens e o valor do infra-estrutural, quer na raiz da personalidade, como o
demonstra o ensaio intitulado Uma interpretação do sensível,
quer no evolver das idéias, como o revela a sua nota sobre Heráclito ou o
estudo sobre a origem religiosa da cultura, tem, com efeito, o alcance de uma historicidade
transcendente, de uma volta às origens, para dar começo a um diverso ciclo
de história, diferente deste em que o homem estaria divorciado da natureza e das
partes do divino; para um retorno, em suma, ao ponto original donde emergem
todas as possibilidades naturais espontâneas, libertas das crostas opacas do
experimentalismo tecnológico assim como das objectivações extrínsecas
platônico-cristãs" [Reale, 1964: I, 13].
Em Ferreira da Silva encontramos, pois,
um elo fundamental que unifica toda a sua meditação, ao longo das etapas
assinaladas: a abertura para o Ser, o reconhecimento da essência do homem como ec-sistência (ek-sistência,
diz o nosso autor), no melhor sentido heideggeriano. O homem é, para o filósofo
alemão, e também para o pensador paulista, "o vizinho do Ser", ou, em
palavras do próprio pensador paulista, citadas atrás, "o homem é o sujeito
de um destino instituidor de sua própria realidade histórica, em relação ao
qual pode se intimisar. O homem habita um domínio onde, o que está em jogo é
algo que supera o homem, mas que o superando, lança-o numa situação histórica
própria" [Silva, 1964: I, 259]. A idéia de ek-sistência, e não
o conceito de símbolo (como pretendem Silvie e Zdenek Kourim),
é a peça chave da filosofia ferreiriana. Essa perspectiva de abertura ao Ser,
que funda a historicidade transcendente em que se desenvolve a meditação do
nosso autor, é o elo que unifica os diferentes aspectos da reflexão sobre o
homem, que foi estudada ao longo deste ensaio. Porque é ek-sistente,
o homem está aberto à vivência do mundo eidético e é irredutível ao
geograficamente dado. Porque é ek-sistente, o homem é irredutível
às utopias, graças à fundação poética da sua essência. Porque é ek-sistente, é
possível para o homem viver uma moral lúdica, na qual supere o mito do
progresso indefinido. Porque é ek-sistente, a morte é para o homem
um sucesso que transcende a pura fenomenalidade perceptiva e que enseja nele a
confiança no mistério.
Bibliografia citada
- HEIDEGGER,
Martin [1979]. "Carta sobre o Humanismo". In: Martin Heidegger, Conferências
e escritos filosóficos. (Tradução, introdução e notas de
Ernildo Stein). São Paulo: Abril Cultural, pgs. 149-175, coleção "Os
Pensadores".
- HUSSERL,
Edmund [1962]. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und
die transzendentale Phänomenologie. Band VI, M. Nijhoff .
- MARCUSE,
Herbert [1970]. El hombre unidimensional. Barcelona:
Seix Barral.
- NUNES,
Benedito [1980]. "Por que ler Heidegger hoje?". In: Suplemento
Cultura - O Estado de São Paulo. Edição de 31 de agosto de
1980, vol. I, núm. 12, pg. 6.
- PAIM,
Antônio [1999]. "Silva, Vicente Ferreira da". In: Dicionário
Bibliográfico de Autores Brasileiros - Filosofia, Pensamento Político,
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Documentação do Pensamento Brasileiro). Salvador - Bahia: Centro de
Documentação do Pensamento Brasileiro; Brasília: Senado Federal. Pg.
453-455. Coleção "Biblioteca Básica Brasileira".
- REALE,
Miguel [1964]. "Prefácio". In: Vicente Ferreira da Silva, Obras
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- REALE,
Miguel [1992]. "Silva (Vicente Ferreira da)". In: Lógos
- Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa / São
Paulo: Editorial Verbo, vol. 4, pg. 1129-1132.
- RODRÍGUEZ
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crisis de la ciencia y de la vida". In: Anuario
Filosófico. Universidad de Navarra, vol. 7, pg. 311-368.
- SILVA,
Vicente Ferreira da [sem data]. Méditation sur la mort. (Apresentação,
tradução e notas a cargo de Silvie e Zdenek Kourim). Université de
Toulouse-le-Mirail.
- SILVA,
Vicente Ferreira da [1940]. Elementos de Lógica Matemática. São
Paulo: Cruzeiro do Sul, 1940.
- SILVA,
Vicente Ferreira da [1964]. Obras completas. (Prefácio
de Miguel Reale). São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 2 volumes.
- VÉLEZ
RODRÍGUEZ, Ricardo [1981]. "O pensamento de Vicente Ferreira da Silva
sobre o homem". In: Revista Brasileira de Filosofia. São
Paulo, vol. 31, no. 123 (julho / setembro 1981): pg. 198-222.
[El presente trabajo fué preparado
especialmente para el Proyecto Ensayo. La parte correspondiente al estudio de
la meditación antropológica de Ferreira da Silva fué publicada inicialmente en
la Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, vol. 31, no.
123, julio / septiembre de 1981, pgs. 198-222]. Junio 2003].