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sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

A FILOSOFIA NO MUNDO ATUAL (NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA)



Sob a coordenação da Professora Doutora Maria do Céu Patrão Neves, catedrática da Universidade dos Açores, em Ponta Delgada, acaba de ser publicado o livro intitulado Ética: dos fundamentos às práticas (Lisboa: Edições 70, 2016, 298 pgs.). 

A obra, iniciativa de grande valor patrocinada pela Presidência da República Portuguesa, integra uma série de livros dedicados ao estudo da Ética Aplicada. A coleção consta dos seguintes volumes, que abarcam os vários itens da ação humana considerados do ângulo dos valores morais: Ambiente, Animais, Comunicação Social, Economia, Educação, Investigação Científica, Novas Tecnologias, Política, Relações Internacionais,  Saúde e Serviço Social. 

A obra que ora apresento é integrada pelos seguintes capítulos: "Na senda da inquietude" (nota introdutória, a cargo da Profa. Maria do Céu Patrão Neves); "Um ponto de vista sobre a filosofia hoje" (António Manuel Martins, Universidade de Coimbra), "A filosofia no mundo atual" (Ricardo Vélez Rodríguez, Faculdade Arthur Thomas - Londrina e UFJF); "A teoria da ação" ( Isabel Renaud e Michel Renaud, Universidade Nova de Lisboa); "Racionalidade prática" (Carlos Morujãom Universidade Católica Portuguesa - Lisboa); "Conceitos que pensam a ação" (João Cardoso Rosas, Universidade do Minho); "Ingredientes da vida moral" (Manuel J. do Carmo Ferreira, Academia de Ciências de Lisboa); "A evolução histórica da Ética" (Michel Renaud, Universidade Nova de Lisboa); "La deliberación como método de la Ética" (Diego Gracia, Universidad Complutense de Madrid); "Éticas de principios e a abordagem particularista"(Pedro Galvão, Universidade de Lisboa); "Relativismo moral e universalismo ético" (Acilio da Silva Estanqueiro Rocha, Universidade do Minho); "Racionalidade hermenêutica e éticas aplicadas no mundo contemporâneo" (Maria Luísa Portocarrero, Universidade de Coimbra); "Ética e educação" (Maria Pereira Coutinho, Universidade Nova de Lisboa); "A ética no contexto das ciências humanas" (Cassiano Reimão, Universidade Nova de Lisboa); "A ética no contexto das ciências da Natureza" (Maria Manuel Araújo Jorge, Universidade do Porto); "Ética geral e éticas aplicadas" (José Henrique Silveira de Brito, Universidade Católica Portuguesa).

A seguir, transcrevo o capítulo de minha autoria, intitulado: "A Filosofia no Mundo Atual".

A criação filosófica, no Ocidente, deu-se em três planos: formulação de perspectivas, construção de sistemas e discussão de problemas. As três formas de criação do pensamento filosófico estão entrelaçadas. As perspectivas são como panos de fundo sobre os quais se desenvolve a atuação do conhecimento, enquanto que a construção de sistemas, que pressupõe esses panos de fundo, ocorre a partir da discussão de determinados problemas que capitalizaram a atenção dos homens em diferentes épocas da história, a partir da escolha de determinada Idéia matriz.

Os grandes sistemas filosóficos foram elaborados ao longo da Idade Média (nos séculos XII e XIII) e na Modernidade (nos séculos XVII, XVIII e XIX). No século XX, em decorrência da extraordinária explosão do pensamento científico (que fez com que, nos primeiros sessenta anos dessa centúria as descobertas científicas superassem em número as efetivadas ao longo dos dezenove séculos anteriores), a Filosofia passou a ser tematizada preferentemente como discussão de problemas. A dimensão problemática da Filosofia na contemporaneidade foi destacada notadamente por Nicolai Hartmann (1882-1950) na sua obra intitulada: Auto exposição sistemática, Rodolfo Mondolfo (1877-1976) em Problemas e métodos de investigação em história da filosofia e Miguel Reale (1910-2006) em Experiência e cultura.

Um panorama da Filosofia Contemporânea na América Latina deve, portanto, elencar os principais problemas debatidos ao longo dos séculos XX e XXI. Os três problemas fundamentais ao redor dos quais tem sido pensada a filosofia na América Latina no período em apreço são: I – a Totalidade, II – a Integração e III – a Libertação. Esses itens, curiosamente, acompanham a tríade de ideais que deram ensejo à Revolução Francesa: Igualdade (Totalidade), Fraternidade (Integração) e Liberdade (Libertação). Indicarei, a seguir, as principais manifestações dessa reflexão.

I – A problemática da Totalidade.

Três autores debruçaram-se hodiernamente sobre a problemática em apreço: Octavio Paz (1914-1998), Vicente Ferreira da Silva (1916-1963) e Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999).

Para Octavio Paz (Prêmio Nobel de Literatura, 1990), a totalidade ameríndia do México é sintetizada no sincretismo emergente dos mitos que inspiraram a cultura mexicana: o catolicismo peninsular e a religião ameríndia (Nueva España: orfandad y legitimidad, 1979). Esses mitos encontram a sua principal expressão, no século XVII, no duplo processo de identificação de Quetzatcóatl com o Apóstolo São Tomé e de Tontantzin com a Virgem de Guadalupe. O mito de Quetzatcóatl / São Tomé exprime a universalidade da Nova Espanha, a sua renovação perante a ordem antiga e a sua legitimidade. O mito de Tonantzin / Guadalupe conferiu ao povo mexicano a sua legitimidade primordial no seio da Mãe / Montanha. A respeito frisa: “O característico do caso mexicano não é que as supervivências pré-colombianas se apresentem mascaradas, mas que é impossível separar a máscara do rosto: fundiram-se. O homem hispano-americano não pode ser entendido sem referência a esse pano de fundo sincrético e totalizante”.

O filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva (que se inspira em Heidegger, Schelling, Walter Otto, Karl Kerényi e Mircea Eliade), considera que no inconsciente dos povos preexiste uma realidade inaugural constituída pelo Fascinator e que se revela na Mitologia. A fundação da cultura é um acontecimento primordial, de caráter meta-histórico. A expressão mito-poética é, no seio das culturas, a melhor forma para apreender a sua alma. À luz dos mitos ameríndios seria possível resgatar a originalidade do filosofar latino-americano, preservando a ideia de cultura como totalidade e incorporando a mitologia judaico-cristã, à luz da qual se forma a ideia da história como progresso. (Este aspecto do pensamento de Ferreira da Silva tem sido destacado por dois estudiosos da sua obra: Adolpho Crippa e Constança Marcondes César). À luz das mitologias ibéricas e ameríndias seria possível, também, formular uma moral lúdica, contraposta às éticas utilitaristas de desencantamento do mundo.

O pensador brasileiro Roque Spencer Maciel de Barros entende que a realização humana, nos terrenos econômico, cultural e político, deve ser aprofundada do ângulo da natureza do homem. Porque nesta residem as possibilidades da liberdade e do totalitarismo (O fenômeno totalitário). Tal fenômeno tornou-se realidade institucional no século XX, em decorrência do avanço das ciências a serviço dos Estados. Mas as suas raízes aprofundam-se na tradição filosófica ocidental, desde Platão, passando por Rousseau e chegando até a contemporaneidade. O totalitarismo nega tanto a realização do indivíduo quanto da comunidade. A melhor forma de prevenir esse risco num determinado país consiste em conhecer o fenômeno totalitário na sua inteireza. Nas culturas ibero-americanas, herdeiras do absolutismo ibérico pós-feudal, há sementes de totalitarismo, na medida em que a questão da liberdade dos indivíduos e das comunidades muitas vezes é deixada em segundo plano, em aras de um populismo autoritário. Na tentativa em prol de constituir a comunidade, o homem latino-americano deve levar em consideração, especialmente, a questão da liberdade individual, sem a qual não haverá verdadeira comunidade. Isso deve ser levado em consideração no terreno educacional, a fim de que o sistema de ensino seja uma autêntica educação para a liberdade, não para a servidão.

II – A problemática da Integração.

Três autores privilegiaram, na sua reflexão, a temática da Integração: José Vasconcelos (1882-1959), Francisco Romero (1891-1962) e Otto Morales Benítez (1920-2015).

O filósofo mexicano José Vasconcelos, na sua obra Indología, considerava que a essência da realidade, a energia, só poderia ser apreendida mediante a intuição estética (primeira faculdade da alma), não pelo caminho da razão discursiva. Os povos europeus, caducos, afastaram-se, em decorrência do materialismo e do racionalismo, do caminho da intuição estética. Aos povos ibero-americanos herdeiros da “mestiçagem universal”, cabe a missão de apreender o cerne da realidade (a energia) e, a partir dela, regenerar as caducas sociedades ocidentais. A capital da cultura estaria situada na cidade de “Universópolis”, a ser construída na região amazônica. Esta cidade seria expressão do terceiro estado da Humanidade (o estético), que ensejaria a superação dos imperfeitos estados anteriores (o material ou guerreiro e o intelectual, ou político). A integração ibero-americana ocorreria por força do élan criador da raça integral ou raça cósmica, que teria como missão conduzir a Humanidade até a sua plenitude.

O pensador argentino Francisco Romero na sua obra: Sobre a filosofia na América, alicerçava a sua concepção da integração latino-americana numa filosofia de inspiração anti-positivista e espiritualista, polarizada ao redor de dois pontos: a axiologia e o personalismo. Para ele, o espírito reveste-se de um valor absoluto ao se tornar presente na pessoa. Romero considerava que a América Latina seria uma grande Nação, em cujo seio conviveriam, pacificamente, todos os povos latino-americanos. A possibilidade de que esse ideal se concretize depende do desenvolvimento da consciência acerca dos valores comuns, que fundamentam a cultura latino-americana. Essa consciência se desenvolve no seio da meditação filosófica. Em face dessa grandiosa perspectiva, os pensadores latino-americanos têm um dever moral: criar os elos de comunicação entre os diversos países, superando, no diálogo intelectual desinteressado e aberto, os tacanhos particularismos. Esse exemplo será a base cultural sobre o qual se formará a consciência comum, que será a base da integração econômica e política.

Para o pensador e ensaísta colombiano Otto Morales Benítez a integração latino-americana, que constituía o grande ideal de Bolívar, não é uma realidade simples. Esse ideal deve ser equacionado em vários frentes: o cultural, o político e o econômico. No entanto, a ação no terreno da cultura é a que deve abrir o caminho para as outras variáveis. O escritor colombiano desenvolve as suas teses a respeito dessa ação integradora no plano cultural, na sua obra intitulada:  América Latina: integração pela cultura. Dois aspectos são desenvolvidos por Morales Benítez nessa tarefa de integração ao redor da cultura: o ético-jurídico e o historiográfico. No terreno ético e jurídico da integração, as bases devem ser os imperativos categóricos da liberdade e da justiça social. A filosofia política liberal, na linha social de Tocqueville e Keynes, é o ponto de inspiração de Morales Benítez. No terreno estritamente jurídico, deve ser estruturado o direito agrário na América Latina, a fim de criar as instituições necessárias para o equacionamento do ideal da justiça social no campo (Direito Agrário e Liberalismo, destino de la Patria). No que tange à reflexão historiográfica sobre a integração, Morales Benítez considera que é importante pesquisar, na História latino-americana, a parte correspondente aos ideais integracionistas, desde os ancestrais aborígenes, passando por Bolívar e chegando até a contemporaneidade. Sem conhecermos os ideais e as lutas dos que pensaram essa realidade, a atual geração não poderá equacionar a contento o ideal da integração continental (Propuestas para examinar la historia con criterios indoamericanos).

III- A problemática da liberdade e da libertação.

Quatro autores se debruçaram sobre esta temática de ângulos diferentes: 1 – Do ângulo marxista: Camilo Torres Restrepo (1929-1966) e Enrique Dussel (1934). 2 - Do ângulo da filosofia política liberal-conservadora: José Osvaldo de Meira Penna (1917) e Enrique Krauze (1947).

A primeira versão precursora da Teologia da Libertação na América Latina foi obra do ex-sacerdote e guerrilheiro Camilo Torres Restrepo, formado na Universidade Católica de Louvain, que junto com a Escola de Frankfurt representou um dos dois polos escolhidos pela União Soviética para a divulgação do marxismo nos meios acadêmico e político na Europa, nos anos 60 do século passado. A respeito da sua opção revolucionária, Camilo, que foi capelão da Universidade Nacional da Colômbia, adotou uma posição semelhante à assumida, no início do século XX, pela doutrinária e ativista polonesa Rosa Luxemburgo na sua obra intitulada: O socialismo e as Igrejas: o Comunismo dos primeiros cristãos (1905). Efetivamente, Camilo Torres afirmava, juntando na mesma opção cristianismo, revolução e técnica, num clima de messianismo político que faz lembrar o messianismo político saint-simoniano, pensado em torno ao novo cristianismo: “Soy revolucionario como colombiano, como sociólogo, como cristiano y como sacerdote. Como colombiano, porque no puedo ser ajeno a las luchas del Pueblo. Como sociólogo, porque gracias al conocimiento científico que tengo de la realidad, he llegado al conocimiento de que las soluciones técnicas y eficaces no se logran sin una revolución. Como cristiano, porque la esencia del cristianismo es el amor al prójimo y solamente con la revolución puede lograrse el bien de la mayoría. Como sacerdote, porque la entrega al prójimo que exige la revolución es un requisito de caridad fraterna, indispensable para realizar el sacrifico de la misa, que no es una ofrenda individual, sino de todo el pueblo de Dios por intermedio de Cristo” (Mensaje a los Cristianos).

Para o filósofo e professor argentino Enrique Dussel (1934), que leciona na Universidade Autónoma do México a forma libertadora de refletir “(...) pretende formular uma metafísica exigida pela praxis revolucionária e pela poiesis tecnológica. Esta metafísica da libertação será formulada a partir da formação social periférica, que se estrutura em modos de produção completamente entrelaçados. É necessário, para isso, descrever o sentido da praxis da libertação, que somente é revelada pelo oprimido que luta para sair da opressão. Os críticos pós-hegelianos de esquerda europeus somente vislumbraram de forma parcial essa praxis libertadora” (Filosofia da Libertação).

Para o pensador e diplomata brasileiro José Osvaldo de Meira Penna, o tema da Libertação é central na filosofia ocidental, desde o Helenismo até os nossos dias. Ao ensejo da fecundação do Helenismo pela tradição judaico-cristã, esse tema ganhou a dimensão de uma filosofia da Pessoa Humana, pensada primeiro no contexto da metafísica cristã de Santo Agostinho e de S. Tomás de Aquino e, na modernidade, no seio de ontologias de inspiração personalista (Mounier, Maritain, Lavelle, etc.). A temática da Libertação, do ângulo do personalismo cristão, implica em levar em consideração três variáveis: responsabilidade individual, democracia e liberdade. A grande falha da Teologia da Libertação, na forma promulgada na América Latina à sombra do marxismo, no final do século XX, decorre do fato de que coloca a libertação num contexto puramente econômico e determinístico, sem levar em consideração a dinâmica espiritual da pessoa. Somente um liberalismo democrático, como o proposto por Tocqueville na sua Democracia na América, será capaz de reinterpretar, de um ângulo verdadeiramente humanista, os anseios de libertação e democracia que percorrem de norte a sul o Continente Latino-americano. Para divulgar essa proposta, Meira Penna fundou, em 1989, no Rio de Janeiro, com outros pensadores liberais e conservadores, a Sociedade Tocqueville. Em duas obras este pensador deixou sintetizada a sua proposta libertadora: Opção preferencial pela riqueza e O espírito das revoluções.

O pensador mexicano Enrique Krauze, herdeiro da tradição liberal contemporânea sedimentada no seu país por Daniel Cosío Villegas e Octavio Paz, realizou crítica análise do fenômeno da Teologia da Libertação, que encontrou a sua mais agressiva manifestação política no fenômeno do chavismo, na Venezuela. A respeito escreve, destacando o imprescindível papel dos historiadores no desmonte desse mito: “(...) Terrível e fascinante ao mesmo tempo. Chávez, pelo que noto,  procura apoderar-se da verdade histórica, e não só reescrevê-la, mas reencarná-la. Seu regime extrai sua legitimidade de uma interpretação mítica da história que fala através dele, que converge nele, que se encarna nele. Só os historiadores podem refutá-lo, só eles podem restaurar a verdade dos fatos e a historicidade dos processos, embora seus livros alcancem milhares, não milhões. Na Venezuela, a disputa do passado é a disputa do futuro” (O poder e o delírio, 2013).

BIBLIOGRAFIA

BARROS, Roque Spencer Maciel de. O fenômeno totalitário.

DUSSEL. Enrique. Filosofia da Libertação.

HARTMANN, Nicolai. Auto exposição sistemática.

KRAUZE, Enrique El poder y el delirio, 2013

LUXEMBURGO, Rosa. O socialismo e as Igrejas: o Comunismo dos primeiros cristãos (1905).

MONDOLFO, Rodolfo. Problemas e métodos de investigação em história da filosofia

MORALES BENÍTEZ, Otto.  América Latina: integração pela cultura

MORALES BENÍTEZ, Otto. Propuestas para examinar la historia con criterios indoamericanos.

PAZ, Octavio. Nueva España: orfandad y legitimidad, 1979.

PENNA, José Osvaldo de Meira. O espírito das revoluções.

PENNA, José Osvaldo de Meira. Opção preferencial pela riqueza

REALE, Miguel. Experiência e cultura.

ROMERO, Francisco. Sobre a filosofia na América.

TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na América

TORRES, Camilo. Mensaje a los Cristianos.



VASCONCELOS, José. Indología

3 comentários:

  1. Bom dia Professor,

    O senhor fará alguma análise da obra de Mário Ferreira dos Santos?
    Forte abraço.

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  2. Caro Ricardo, Obrigado pelo teu comentário. Não farei, por enquanto, análise da obra do Mário Ferreira dos Santos. Preciso estuda-la com afinco.

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