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domingo, 27 de novembro de 2016

FIDEL CASTRO RUZ (1926-2016) E O QUADRO DO PATRIMONIALISMO LATINO-AMERICANO



Morreu o mais velho ditador das Américas. Ficou 47 anos no topo do poder. Os ditadores latino-americanos nada devem aos de outras latitudes, em termos de longevidade política. Castro vem se somar à turma dos ditadores que o Nobel colombiano García Márquez imortalizou em O outono do patriarca (1975), não pelo bem que fizeram mas pelas crueldades que praticaram para dominar os seus povos por longos anos. Fidel permaneceu quase meio século na cúpula do Estado cubano e,  ao sair, continuou fiel ao modelo de patrimonialismo original: foi sucedido pelo seu irmão.

O traço mais marcante das organizações políticas latino-americanas tem sido o Patrimonialismo, a gestão da coisa pública como patrimônio familiar. Esse caráter familístico vingou desde as origens ibéricas até a contemporaneidade, embalado, por exemplo, por essa contradança maluca de entra ministro e sai ministro do governo Temer, no nosso combalido Brasil, ou pelo mambo cubano de "Sai Fidel, entra Castro" que marcou a transição familística do poder na ilha caribenha, ou pelo tango de "Um passo para frente e dois para trás" do peronismo do casal Kirchner na Argentina, que privatizou o Estado em benefício da elite familiar e sindical, de acordo às melhores praxes peronistas. Tudo no contexto cultural de encarar a política como extensão dos interesses familísticos, tanto entre os nossos vizinhos argentinos, quanto no Brasil, na Bolívia e alhures (vide, no nosso caso, o recentíssimo evento de patrimonialismo imobiliário de Geddel Vieira Lima).

A literatura acompanha de perto a longevidade dos regimes patrimonialistas da América Latina. A ditadura de Juan Manuel de Rosas na Argentina (que durou 17 anos, até meados do século 19) foi ilustrada por Domingo Faustino Sarmiento no seu clássico: Facundo - Civilização e barbárie no pampa argentino (1846). O ciclo da "ditadura científica" de Gaspar Rodríguez de Francia (que governou com o pomposo título de "Dictador Perpetuo de la República del Paraguai"), se estendeu por longos 24 anos entre 1816 e 1840, tendo sido romanceado por Augusto Roa Bastos em Yo el Supremo (1974). A tentativa frustrada do Libertador Simón Bolívar de instaurar uma ditadura de corte rousoniano e bonapartista nos cinco países andinos por ele libertados, ao longo da segunda década do século 19, foi belamente narrada por Gabriel García Márquez no seu romance intitulado: O general no seu labirinto (1989). A aventura da "ditadura científica" do general Porfirio Díaz no México, no chamado "porfiriato", durou 30 anos, tendo terminado em 1911. O Nobel de Literatura Octavio Paz romanceou esse regime no seu clássico livro intitulado: O ogro filantrópico (1979). A ditadura castilhista, no Rio Grande do Sul, que durou 39 anos (entre 1891 e 1930) foi, nos seus primórdios, retratada de forma crítica pelo poemeto campestre Antônio Chimango (1915) de Ramiro Barcellos. A subsequente ditadura getuliana, nitidamente de inspiração castilhista, que durou 15 anos (entre 1930 e 1945) foi retratada por Érico Veríssimo no terceiro volume de O Tempo e o Vento, intitulado: O Arquipélago (1961). 

O ciclo militar que, no Brasil, constituiu, ao longo dos seus 21 anos de funcionamento, uma modalidade de patrimonialismo estamental modernizador, foi objeto de numerosos relatos jornalísticos, historiográficos e literários, dentre os quais se pode mencionar, do ângulo da historiografia, o conjunto de 5 obras do jornalista Elio Gaspari, intitulado: A Ditadura (2002-2016). Do ponto de vista oficial, o melhor documento que explica a política autoritária e modernizadora dos militares foi, a meu ver, a obra do general Golbery do Couto e Silva, Conjuntura política nacional - O Poder Executivo e geopolítica do Brasil (1981). 

O Nobel de Literatura Miguel Angel Asturias, escreveu O Senhor Presidente (1946), inspirado no regime autocrático de Manuel  Estrada Cabrera, que governou com mão de ferro a Guatemala como se fosse a sua fazenda durante 22 anos, entre 1898 e 1920. O Nobel de Literatura Mário Vargas Llosa retratou, por sua vez, com cores vivas, a sanguinolenta ditadura exercida durante 31 anos (1930-1961) por Rafael Leonidas Trujillo na República Dominicana, na novela intitulada: A festa do bode (2000). Narrativas jornalísticas de qualidade ilustraram as ditaduras castrista (A Ilha do Doutor Castro, a transição confiscada de Corine Curmelato e Denis Rousseau, 2001) e chavista (A Revolução Sentimental, viagem jornalística pela Venezuela de Chávez de Beatriz Lecumberri, 2012). Mencionemos, para finalizar esta incompleta enumeração, o clássico de García Márquez, O outono do patriarca, cuja inspiração imediata foi motivada pela longa ditadura de Juan Vicente Gómez que durou 27 anos, entre 1908 e 1935, antecipando, na Venezuela, o longo ciclo da "Revolução Bolivariana" de Hugo Chávez, do qual ainda não se viu livre o país vizinho.

Do ângulo da história do pensamento político ocidental, encontramos dois modelos relativos à organização do Estado: idealista e realista. 

O primeiro, formulado por Platão na sua República, parte do pressuposto de que a organização política deve-se sedimentar na construção da unanimidade, a fim de garantir o reto funcionamento da Polis. A unanimidade ao redor do Rei Filósofo, com exclusão de qualquer dissidência, essa seria a condição para a fundação do Estado em bases firmes. Deste modelo aproximar-se iam três concepções que definiram em grau bastante forte a política moderna: o hobbesianismo, o rousseaunianismo e o marxismo-leninismo. Convenhamos que o modelo é idealista demais, se levarmos em consideração a natureza humana, dissidente por essência, em decorrência dos interesses individuais, altamente diferenciados. Ora, o castrismo - como de resto as demais formas de organização política que apontaram para a materialização do comunismo, no século 20 -, situa-se neste contexto, cuja nota característica é o alto custo social na sua implementação. Os 100 milhões de vítimas ensejadas pelo comunismo mundo afora, no século passado, são prova contundente disto. 

O líder falecido em dias passados inspirou-se inicialmente em Rousseau, com os seus comitês de defesa da revolução e a busca da unanimidade ao redor do Legislador, encarnado na figura do Fidel. Uma vez assumido o poder, Castro declarou-se comunista. Não precisou, aliás, mudar de ideologia: o marxismo-leninismo (com o princípio formulado por Lenine de que o ideal seria um governo não limitado por leis) é uma variante do pensamento de Rousseau. Convenhamos que a construção da unanimidade cubana saiu cara. Além dos mortos pelo regime (estimados pelos estudiosos em 100 mil), o funcionamento dos comitês de defesa da revolução do castrismo colocou metade dos cubanos vigiando a outra metade. Estima-se que, de onze milhões de habitantes, Cuba hoje está dividida em dois grandes grupos: os que policiam os cidadãos nos comitês de defesa da revolução e nos organismos estatais (que chegariam a 5 milhões) e os cidadãos, que seriam os restantes 6 milhões. Um regime estatista e caro demais. E que ensejou uma complicada e forte burocracia que se refestela sobre as privações do resto.

O segundo modelo que se estabeleceu na concepção do Estado no seio do pensamento ocidental foi o realista, tendo sido o seu primeiro formulador Aristóteles, com a  Política. Para o estagirita, o ser humano era, em essência, dialético, ou seja, diferenciado na procura de interesses materiais diversificados. O papel da política consistiria em, a partir da dissidência, ir construindo consensos. Desse modelo aproximar-se iam alguns pensadores modernos como John Locke, no século 17, e Montesquieu, bem como os Patriarcas Americanos no século 18. Silvestre Pinheiro Ferreira e Tocqueville, no século 19 e Raymond Aron, no século 20, foram representantes dessa tendência. Pensadores contemporâneos como Jürgen Habermas, com a sua teoria da ação comunicativa na construção de grandes consensos, situar-se-iam nesse contexto. Desse grupo fazem parte, hoje, a grande maioria dos pensadores liberais, conservadores e social-democratas. 

7 comentários:

  1. Mais uma vez, Platão x Aristóteles. Só discordo do tal ciclo militar que modernizou...Ditadura atrasada e burra.

    Muito bom, replicando!


    MAM

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    1. Obrigado, meu caro, discordando de novo contigo quanto ao ciclo militar....Abraço

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  2. Elio Gaspar já publicou o 5o. e último volume. Revise as datas de Juan Vicente Gómez.

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