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domingo, 16 de outubro de 2016

DIA DOS MESTRES

O professor escocês Gilbert Arthur Highet (1906-1978), autor da obra The Art of Teaching (1950). Foto: Wikipédia.

A minha vocação para a docência nasceu cedo: quando cursava o terceiro ano de ensino secundário na Colômbia. Um dos meus professores emprestou-me o livro do historiador da literatura escocês Gilbert Arthur Highet (1906-1978) intitulado: A arte de ensinar (The Art of Teaching, 1950). 

Nessa obra Highet, que foi catedrático de história da literatura na Universidade de Columbia, apresentava a docência como uma aventura fascinante em que os alunos poderiam embarcar, com a condição de que o mestre fosse um apaixonado pelo saber que transmitia a eles. A arte do ensino, considerava Highet, constituía uma magia (de que não todos os docentes eram portadores) capaz de suscitar o entusiasmo dos discentes pela cultura e pelo aprofundamento nela. O ensino da cultura antiga, que era o seu forte, seria como uma viagem fantástica, em que embarcavam mestre e discípulos. Fiquei empolgado com a exposição de Gilbert Highet e decidi que seria professor quando me formasse, após concluir o segundo grau e os meus estudos superiores. Anos antes de me formar em Filosofia, ainda cursando os últimos anos do denominado "Bacharelado em Humanidades", com a idade de 15 anos comecei a lecionar para alunos do segundo grau. Depois, estudei Filosofia na Universidade Javeriana de Bogotá, cursei a Teologia no Seminário Conciliar da capital colombiana, abandonei a carreira eclesiástica e me dediquei à docência.

Ao longo da minha vida de professor encontrei, felizmente, outros mestres que reacenderam em mim o ideal pela docência, que tinha auferido da leitura da obra de Gilbert Highet. Tive a felicidade de encontrar, pelo caminho, verdadeiros mestres.

Na Universidade Pontifícia Bolivariana de Medellín encontrei um grupo desses verdadeiros mestres: René Uribe Ferrer, decano da Faculdade de Filosofia e Letras, e os professores Alberto Restrepo Arbeláez (de quem fui assistente na cadeira de História da Literatura Grega, Latina e Hebraica), Beatriz Restrepo Gallego (professora de Metafísica) e Freddy Salazar (especialista em Espinosa e professor de História da Filosofia Moderna). O grupo era constituído por outros docentes de grande valor. Mas os mais chegados a mim eram os mencionados. Nos reuníamos, semanalmente, na sala de professores, para discutirmos as novidades acadêmicas e as dificuldades que os docentes enfrentávamos naqueles tumultuosos tempos (corria o ano de 1968 e os ares estavam caldeados nas Universidades pelos acontecimentos parisienses). Nota caraterística dos integrantes desse grupo de mestres era a amizade que nos unia. Assim, os mais jovens, como eu, encontrávamos nos colegas apoio e senso crítico que nos levava a progredir na função docente. O clima que imperava na Faculdade não era burocrático, mas inspirado na "Filía" aristotélica, a mais pura forma de amizade.

Nas minhas aulas de Teoria da Literatura e de História da Literatura Antiga encontrava jovens militantes dos grupos guerrilheiros. Em alguma oportunidade, após a explosão num prédio residencial de um arsenal em cuja manutenção estavam implicados dois dos meus alunos, apareceram na minha sala de aula, por meses a fio, agentes do temido Departamento Administrativo de Seguridad (o DAS, serviço secreto da polícia). Pensava que a radicalização dos meus alunos tinha produzido pelo menos um efeito positivo: levar à sala de aula rudes agentes que alguma coisa tiveram de aprender no terreno da História da Literatura...

Eram memoráveis as tardes em que o grupo mais chegado de professores e alguns dos nossos alunos nos encontrávamos no bar Macondo, vizinho da Faculdade, e discutíamos até altas horas da noite assuntos do momento, acadêmicos e políticos. Planejávamos publicações e eventos culturais. Programávamos excursões às cidades vizinhas de Medellín, no Oriente Antioqueño, em que realizávamos jornadas de estudo sobre temas candentes como a reforma da Universidade seguindo o modelo que então estava em voga, proveniente da Universidade de Córdoba, na Argentina. E surgiam entre os alunos e os professores solteiros os namoricos de rigor. Mas havia também um componente importante de parte dos mestres: todos estávamos inspirados pela fé religiosa e procurávamos descobrir uma forma de cristianismo mais acorde com a realidade vivida pelo nosso país.

Essa primeira experiência de solidariedade entre mestres e alunos encontrei em outras circunstância da minha vida como professor universitário. Refiro, apenas, a experiência mais marcante que dessa realidade tive no Brasil, onde me estabeleci a partir dos anos 70. De forma transitória, primeiro (entre 1973 e 1975), quando vim cursar o Mestrado em Filosofia na PUC do Rio de Janeiro. E de forma definitiva, logo depois, (a partir de 1979), quando vim cursar o Doutorado em Filosofia na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, tendo ficado, depois, definitivamente, em decorrência das dificuldades ensejadas pela guerra colombiana.

Já no grupo de colegas e mestres que conheci quando do meu Mestrado, encontrei um círculo de amigos que se organizou ao redor do professor Antônio Paim, que coordenava a linha de pesquisa ao redor do Pensamento Filosófico Brasileiro. Mestre Paim foi, para mim, a figura ideal do professor comprometido com o crescimento intelectual e humano dos seus discípulos. Pude vivenciar isso no meu caso particular. Vinculado, na Colômbia, a grupos da extrema esquerda, jamais o mestre, que era um crítico forte das opções vinculadas ao marxismo, questionou a minha opção política. No entanto, encontrei, nele, subsídios fundamentais para que pudesse eu revisar, criticamente, a minha opção política. Quando da elaboração da Dissertação de Mestrado, o mestre apresentou-me várias opções que se inseriam na linha de pesquisa em que deveria eu trabalhar: "Filosofias políticas e pensamento brasileiro nos séculos XIX e XX". Poderia escolher entre estudar um autor conhecido do pensamento católico, crítico do autoritarismo (Alceu Amoroso Lima), ou aprofundar na visão metafísica de um espiritualista do início do século XX (Farias Brito), sendo também possível escolher o estudo de uma tendência que tivesse sido marcante no século XIX, com influência no pensamento do século XX (A Filosofia Política de Inspiração Positivista no Brasil). Optei por esta última alternativa.

Rapidamente o Mestre indicou-me ampla bibliografia, tendo-me alertado de que se tratava de uma opção difícil, pois teria de consultar na Biblioteca Nacional do Rio, na sessão de publicações periódicas, a trilha seguida pelo pensamento dos doutrinadores positivistas, notadamente Júlio de Castilhos, redator de A Federação, o jornal gaúcho em que escreviam os seguidores do Partido Republicano Rio-Grandense. No decorrer da minha pesquisa, o Mestre falou-me da necessidade de confrontar o pensamento dos positivistas gaúchos com os seus oponentes, os liberais, dentre os que se destacavam as figuras de Gaspar da Silveira Martins e Joaquim Francisco de Assis Brasil. E deveria pesquisar, claro, as fontes primárias tanto do positivismo comteano, quanto do pensamento liberal. Deveria ler o Sistema de Política Positiva de Comte, bem como as obras essenciais de Locke (Dois tratados sobre o governo civil e Ensaio sobre o entendimento humano, além das Quatro Cartas sobre a Tolerância e a  Constituição Fundamental para a Carolina do Norte), a versão de democracia presente na obra A democracia na América de Tocqueville e a versão que do mesmo modelo tinham efetivado os doutrinadores americanos autores da coletânea O Federalista. Isso, para início de conversa.

Confesso que achei um tanto extensa a bibliografia de que deveria dar conta e falei disso com o meu orientador. Mas o Mestre Paim ponderou que, se eu querida trabalhar com o Castilhismo, deveria dar conta tanto dos seus princípios positivistas fundamentais, quanto das críticas a eles efetivadas pelos liberais. Santa exigência do meu Mestre que me obrigou, sendo ainda um trotskista confesso, a ler os pensadores liberais que, paulatinamente, foram me abrindo as portas para o tema da defesa da liberdade, por mim simplesmente ignorado nos meus estudos. Da leitura dos clássicos liberais tirei uma grande lição: o pensamento marxista simplesmente ignorava o ideal da liberdade, que constituía tema central do pensamento liberal. Mudei rapidamente no meu modo de pensar. De militante trotskista virei estudioso do liberalismo. Como escreveu o filósofo francês Gilles Lipovetski, "abandonei Marx e aderi a Tocqueville". Essa foi a minha mudança, em cuja origem se situa a exigência acadêmica de um caro amigo, o Mestre Antônio Paim.

Do grupo de professores e alunos que o professor Antônio Paim organizou na Universidade Gama Filho (que deu continuidade, no final dos anos 70, ao programa abortado na PUC do  Rio de estudo do pensamento filosófico brasileiro), formava parte um grande Mestre português, que virou meu amigo: Eduardo Abranches de Soveral. O que mais me impressionou nas lições de Soveral foi a sua grande abertura intelectual, bem como a delicadeza de quem vivia, em profundidade, o ideal do Mestre: abrir espaços de indagação intelectual para que o aluno crescesse. Um desses espaços foi o relativo à meditação de Soveral em relação ao que deveria ser o ideal do Mestre. Impressionou-me vivamente o seu ensaio sobre o Ideal do Professor em que o pensador português aprofundava na exigência existencial que o deveria guiar em face dos seus alunos. O professor, escrevia o Mestre português, deve ser como o São João Batista do saber. Não deve ter medo de que os seus alunos cresçam e ele, Mestre, desapareça. Bela lição de humildade intelectual de um dos grandes pensadores portugueses da contemporaneidade, infelizmente já falecido.

A lição de ética do Mestre, tanto a do Paim, quanto a do Soveral, aproxima-se da reflexão que Max Weber dedicou aos que ensinam. Para o grande sociólogo alemão, duas são as obrigações éticas do Professor: passar aos seus alunos, com total honestidade intelectual, os vários pontos de vista existentes em relação a determinado ponto e agir, na exposição dos temas a serem ensinados, com total respeito pelas mentes e pela liberdade de pensamento dos alunos, de forma a que eles possam escolher o ponto de vista que mais lhes interessar, mesmo que seja contrário ao que o Mestre pensa.

5 comentários:

  1. Posso afirma que aqueles de nós, seus alunos, que tivemos a oportunidade de privar de sua companhia, não só como mestre e mentor, mas como amigo, sentem imenso orgulho por terem privado de tamanha dedicação e respeito. Hoje tento ensinar meus alunos da forma dedica e ética que aprendi com o senhor. Mestre é uma palavra que o descreve perfeitamente, pois sua maestria sempre transcendeu o campo da teoria, nos ensinando também com sua postura prática aquilo em que acredita.

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    1. Marquinho, Obrigado pelas tuas belas palavras. Fico muito feliz de que eu tenha ajudado um no crescimento dos meus alunos. É a melhor retribuição para os meus esforços. Abraço grande, caro amigo.

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  2. Parabéns, Mestre. Não tive o privilégio de ser seu aluno, mas sigo atentamente seus escritos, tanto aqui quanto em outros locais onde são publicados. Seu pensamento lança LUZ nesta escuridão em que nossa pobre América Latina se encontra.

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    1. Caro leitor dos meus posts, obrigado pela sua generosa opinião em relação a mim, bem como pelo seu interesse nos meus escritos. abraço grande!

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    2. Caro leitor dos meus posts, obrigado pela sua generosa opinião em relação a mim, bem como pelo seu interesse nos meus escritos. abraço grande!

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