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sábado, 29 de outubro de 2016

AS MÃOS SUJAS DE SANGUE E A CULPA DOS OUTROS

Black blocs fascistas-leninistas ocupam escolas no Paraná
A adolescente oradora, Janaína Ribeiro. (Foto: Henry Milleo).

A adolescente Ana Júlia Ribeiro (16 anos) discursou na Assembleia Legislativa do Paraná, em Curitiba, no dia 26 de outubro, a convite do deputado estadual petista Tadeu Veneri. Falando aos deputados estaduais, a oradora disse: "Vocês estão com as mãos sujas de sangue", se referindo ao adolescente Lucas Eduardo (16 anos) que foi morto com uma facada no pescoço pelo seu colega também adolescente. A culpa pelo assassinato do Lucas Eduardo não foi do colega drogado que o vitimou e o deixou agonizando no chão da escola invadida pelo movimento  "Ocupa Paraná". A culpa foi da sociedade representada pelos Deputados Estaduais.

Ana Júlia falou, na entrevista que deu ao jornal Gazeta do Povo, de Curitiba (27 de outubro), que não foi doutrinada ideologicamente na escola. A adolescente falou a verdade, porque a doutrinação já tinha acontecido em casa, onde aprendeu os elementos fundamentais da ideologia petista com o pai, militante do PT. A escola só reforçou o receituário marxista à luz do gramscismo que se respira nas instituições de ensino secundário. 

Na entrevista, Ana Júlia disse que falou o que falou porque era o que as pessoas queriam escutar. Por "pessoas" entendamos o público-alvo da oradora: os adolescentes e jovens instrumentalizados pelos partidos da extrema esquerda (PT, PC do B, PSOL, PSTO) que no movimento "Ocupa Paraná" invadiram 850 escolas, 14 universidades e 11 núcleos de educação, em protesto contra o Plano de Reforma do Ensino Médio e contra a PEC 241 que propõe o limite dos gastos públicos nos próximos 20 anos. 

A oradora seguiu, no quesito "popularidade palanqueira", a receita infalível do seu herói, Lula, (que, aliás, lhe telefonou no dia 27 para cumprimentá-la). Receita para ter sucesso no palanque: falar o que as pessoas querem ouvir. 

A oradora adolescente declarou, por último, que tinha sido influenciada por três autores: o "sociólogo" alemão Karl Marx, o pensador genebrino Jean-Jacques Rousseau e o sociólogo francês barão de Montesquieu.

De Marx, Ana Júlia e os seus colegas secundaristas tiraram a pior parte: o messianismo sindical em que o desalinhado filósofo era craque. Karl Marx não quis saber da libertação do operariado que os saint-simonianos (na França) e os precursores dos fabianos (na Inglaterra) propunham para ser efetivada por força dos próprios operários, nas variadas organizações sindicais nascentes nesses países, sem necessidade de destruir a "sociedade burguesa". Ele criticava duramente Lassalle (o precursor do socialismo democrático) que na França achava ser possível obter o bem-estar dos trabalhadores mediante a participação moderada dos sindicatos na política. Marx preferia o sindicalismo radical e a ditadura do proletariado como conquistas messiânicas dos operários sob a direção dele próprio. Ora, a figura do Lula, líder sindical salvador da Pátria que rejeita as instituições da sociedade burguesa, se insere direitinho nesse modelo, que passou a ser cultuado pelos nossos jovens secundaristas...

De Rousseau, o maluco filósofo de Genebra que inspirou outros malucos como o coronel Hugo Chávez da Venezuela na sua "Revolução Bolivariana", Ana Júlia tirou a convicção de que o homem é bom, sendo deformado na sua bondade natural pela sociedade burguesa. Conclusão prática desse arrazoado: a culpa pelo que os explorados fazem não é deles, mas do "sistema". Logo, "pau na sociedade! 

Do barão de Montesquieu, a secundarista Ana Júlia deve ter lido apenas a capa de algum dos seus livros, possivelmente Do Espírito das Leis. Bem que Ana Júlia poderia ler, com proveito, esta obra do pensador francês, que foi um dos maiores críticos do absolutismo e que enveredou pela busca de caminhos institucionais que se contrapusessem a este mal, com destaque para a  tripartição de poderes públicos que Lula e o PT tanto aborrecem, do alto da visão unipessoal e populista que os anima.

A culpa pelo sangue derramado do adolescente esfaqueado pelo assassino também adolescente não é deste, mas da sociedade representada pelos deputados estaduais do Paraná. Bela generalização que deixa de mãos limpas o verdadeiro culpado e os seus incentivadores, os políticos inescrupulosos que tornaram os alunos das escolas paranaenses massa de manobra política para encobrir o tsunami de impopularidade em que a esquerda afundou, como consequência de 13 anos de crimes cometidos na gestão fraudulenta do Estado brasileiro.

Com essas falsas soluções os partidos da esquerda radical brasileira só conseguirão afundar mais eles próprios e tornar ainda mais difícil a complicada reconstrução do país, após a quebradeira imposta por três governos chefiados pelo PT.  

Como frisava recentemente Reinaldo Azevedo no seu blog: "Depois de ter quebrado o Brasil, de tê-lo conduzido à maior recessão de sua história, de ter feito mais de 12 milhões de desempregados, de ameaçar comprometer o futuro de gerações, as esquerdas resolveram escolher a educação como praça de resistência, justamente a área em que o país é mais carente. Mas é também aquela em que o sindicalismo é mais obtuso, em que há mais ingênuos disponíveis". 

Falando de Lula, inspirador de tantas desgraças, o citado jornalista escreve no seu mais recente post: "Como um Nosferatu desesperado, ele está em busca de sangue novo".

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

A VIOLÊNCIA NOSSA DE CADA DIA


As Nações adoecem como os indivíduos. A sociedade brasileira está doente. A síndrome da violência se instalou como perverso clima que põe em risco a vida de todos nós. É o ambiente hobbesiano de temor da morte violenta. E de fato corremos maior risco que os habitantes de outros países. 60.000 homicídios por ano não é brincadeira. Essa cifra nos coloca no topo das nações mais violentas do mundo. É a falência do Estado patrimonial que não cuida do que deveria cuidar: saúde, educação e segurança dos cidadãos.

Enquanto isso, as instituições deste país, os poderes públicos, cuidam de si próprios e das benesses da imprestável burocracia que nos assoberba. Na rixa entre poderes que caracterizou a última semana, destaca-se um fato: as coisas ficam como estão. Policiais do Senado a serviço da presidência da casa podem bisbilhotar à vontade e atrapalhar investigações ordenadas pela Justiça. O ministro Teori Zavascki, pelo menos, passou essa mensagem ao sustar a Operação Metis, que procurava investigar as trapalhadas de contra-inteligência dos policiais do Senado. Eles serão também, agora, protegidos pelo foro especial. Renan Calheiros agradece penhorado a providência do Ministro. Mas certamente os cidadãos comuns nem entendem o por que dessa providência nem agradecem a mesma, que antes atrapalha as suas vidas e a busca da transparência por todos almejada. Esperamos que o colegiado do STF corrija essa falha.

A violência corre solta pelas ruas e espaços das nossas cidades. Noticia o jornal O Globo de hoje: o Brasil registra 160 assassinatos por dia. No que vai corrido deste ano, o Rio de Janeiro já conta com 846 vítimas de bala perdida. Os presídios federais de segurança máxima contam com 25 facções. Ler tudo isso, de uma tacada só, é para amargar o café da manhã de qualquer um.

Está prevista para hoje reunião de representantes dos três poderes da República para tratar da problemática da segurança pública que, como se vê, está em frangalhos. 

Após os 14 anos de desgovernos petistas instalou-se no Brasil um clima de salve-se quem puder. Nos tradicionais assaltos a norma dos meliantes agora é: primeiro atirar (ou esfaquear, modalidade de crime que no  Rio já virou moda) e depois roubar, como acontecia na Colômbia dos tempos de Pablo Escobar. Essa violência gratuita se instala como gripe suína. Vira clima escatológico mesmo. A violência se sente por toda parte: na agressividade do trânsito, na má educação do caixa de banco, na sem-vergonhice do funcionário público que não está nem aí para a fila interminável que se estende à porta do guichê, no caradurismo dos ladrões de ontem que aparecem de cara lavada, exigindo os "seus direitos" (desde o Lularápio até o militantezinho que imita a arrogância do chefe), na intransigência dos grevistas dos serviços essenciais de olho exclusivamente nas suas reivindicações salariais, na radicalização estúpida da militância das viúvas do PT que manipulam adolescentes e, depois, quando as mortes acontecem, lavam as mãos atribuindo a culpa "ao sistema".

Nesse clima de tudo-vale sobressai a atuação negativa de alguns funcionários públicos que, em lugar de tomar o partido da ordem e da defesa das instituições que servem aos cidadãos, se alinham do lado errado, protegendo os baderneiros. 

É o que aconteceu recentemente quando a subprocuradora da República, que está a cargo da Procuradoria Geral dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, se opôs à determinação do MEC de identificar as lideranças dos baderneiros que estão radicalizando os jovens nas escolas públicas do Paraná, tendo merecido, por essa atitude, um puxão de orelhas do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Ela já tinha tomado as dores dos militantes do caos ao defender que a PM de São Paulo somente agisse contra os baderneiros sob supervisão dos procuradores da República. Ô tempora! Ô mores!

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

ESTADO PATRIMONIAL CARO: 3 TRILHÕES DE REAIS!


A Secretaria do Tesouro Nacional divulgou recentemente o tamanho da dívida pública brasileira: 3 trilhões de reais! É o preço que pagamos pelo funcionamento paquidérmico e ineficiente do Estado, cada vez mais a serviço de uma oligarquia política.

Pode ser freada essa sangria escatológica que compromete a qualidade de vida dos brasileiros? Digamos que um pequeno passo inicial foi dado com a aprovação, em segunda votação, pela Câmara dos Deputados,  da PEC 241, que estabelece um teto para o gasto público ao longo dos próximos 20 anos. A PEC vai agora ao Senado, para ser discutida e votada ali. Esperamos que o trâmite não seja obstaculizado pelas rixas entre o presidente da Câmara Alta e o Supremo, de um lado, e pelo mal-estar existente entre o senador Calheiros e o ministro da Justiça, em relação às ações da Polícia Federal face à tentativa da polícia legislativa de obstaculizar investigações autorizadas pela Justiça contra alguns parlamentares.

Essa rixa, diga-se de passagem, é motivada pelo medo do senador Calheiros de ser enquadrado também pela Operação  Lava-Jato, após a prisão, a mando do juiz federal Sérgio Moro, do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Se este foi para o xilindró, não há motivo para não pensar que, num futuro próximo, Calheiros não seja enquadrado também em algum dos crimes de que é acusado perante o Supremo Tribunal Federal. O chilique seria apenas jogo de cena do atual presidente do Senado, a fim de mostrar a sua força e afastar a possibilidade de entrar na fila dos que prestarão contas à Justiça. Mas, pelo andar da carruagem da reação da sociedade, que dá pleno apoio aos Procuradores e Juízes da Lava-Jato, acho que a performance de Calheiros é inútil. Como se diz em linguagem popular, "a batata dele está assando".

Em relação às críticas que a PEC 241 vem recebendo, no sentido de  que comprometerá, nos próximos anos, as verbas destinadas à saúde e à educação, o secretário de acompanhamento econômico da Fazenda, Mansueto Almeida, deu alguns esclarecimentos importantes em artigo publicado na revista Valor Econômico (em 14 de outubro de 2016). A respeito, escreveu: "As despesas federais não serão congeladas por 20 anos e muito menos as despesas com saúde e educação. Despesas com saúde e educação estão protegidas e, com a volta do equilíbrio fiscal, despesas programadas serão efetivamente pagas, ao contrário do que ocorreu com a despesa com saúde de 2011 a 2015 [nos governos da Dilma Rousseff]. Mas se não fizermos o ajuste fiscal, o baixo crescimento continuará e o Tesouro Nacional não terá recursos para pagar nem as despesas sociais e nem os seus credores".

Em outro trecho bastante esclarecedor do seu artigo, Mansueto Almeida escreve:  "Não há corte nominal de despesa primária do governo federal. A economia virá ao longo do tempo à medida que o crescimento da economia reduza a relação da despesa primária como porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB). Pela regra da PEC 241, no final de dez anos, a despesa primária será reduzida em cerca de 5 pontos do PIB e, assim, a depender da recuperação da receita, o déficit primário atual de 2,7% do PIB (R$ 170,5 bilhões) poderá se [converter] num superávit primário acima de 3 pontos do PIB". 

A onda de ocupações de escolas com que as viúvas do PT (representadas pelos partidos da esquerda ululante, a começar pelo PSOL) protestam contra o projeto de controle dos gastos públicos é explicável: a esquerda retardatária é contra perder as boquinhas conquistadas ao longo do ciclo lulopetralha. Mas os preguiçosos militantes não perdem por esperar: não somente se saíram mal nas eleições municipais, como também amargarão, nos próximos 20 anos, o fechamento dos cofres públicos, que tão generosos foram com eles nos dois desgovernos petistas.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

HÁ SESSENTA ANOS, OS HÚNGAROS SE INSURGIRAM CONTRA A DITADURA SOVIÉTICA

Capa da edição brasileira da obra O Livro Negro do Comunismo (Editora Bertrand Brasil, 1999). (Fonte: Wikipédia).

Parece que foi ontem. Pelo menos para os que, como eu, estamos já na casa dos 70. Lembro-me das tocantes imagens publicadas pela Revista Life sobre a Revolução Húngara, ocorrida em outubro de 1956. Sempre achei heroica a atitude dos Húngaros que se revoltaram contra o poder soviético e que deram o primeiro grito de liberdade contra o totalitarismo de Moscou. A esse primeiro grito de independência seguiram-se outros no vasto universo das Repúblicas Socialistas Soviéticas: a Primavera de Praga, em 1968 e o Movimento Solidariedade dos trabalhadores poloneses, em 1980. Esses gritos de resistência anteciparam a queda definitiva do Império Soviético em 1989. 

Comunista no poder, quando questionado, age sempre assim: tanques por cima dos cidadãos descontentes! Foi assim na Praça da Paz Celestial, em Pequim, no final dos anos 80. Foi assim na Hungria e em Praga. Bem que os soviéticos tentaram sufocar brutalmente os protestos do Solidariedade. Mas os tempos já estavam mudando. O mundo era outro. O "lamaçal" que acobertava as falcatruas da burocracia corrupta de Moscou não conseguia mais esconder as coisas do resto do mundo. Mais ainda: em Roma tinha sido coroado Papa João Paulo II, o Pontífice Polonês que infernizou a vida dos comunistas.

Vamos convir que as comemorações pelos 60 anos da Revolução Húngara no Brasil ficaram praticamente reduzidas a algumas notas de rodapé dos grandes jornais. O nosso sentimento da defesa das liberdades é ainda muito tênue, em que pese a longa noite do descalabro lulopetista, cuja conta, pesada, estamos pagando todos. Falta-nos mais arrojo para defendermos a liberdade e para comemorarmos as datas marcantes dessa luta no universo internacional.

Os comunistas sempre foram muito criativos na propaganda para defenderem as "conquistas" por eles conseguidas. Apregoaram aos quatro cantos do Planeta a libertação dos oprimidos: eles, certamente, onde se instalaram, sempre por processos de força, oprimiram como ninguém. 

Os mortos da aventura comunista somente são comparáveis (superando-os em milhões) aos mortos da outra ditadura totalitária do século XX: a nazi-fascista. A noite negra do comunismo espalhou pelo mundo afora 100 milhões de vítimas. É isso que é calculado no Livro negro do Comunismo, publicado na França por intelectuais independentes. A edição brasileira, pela Bertrand Brasil, é de 1999.

Em que consistiu a propaganda comunista para defender a dominação totalitária e a eliminação de milhões de oponentes? Consistiu numa simplificação brutal, à sombra do arrazoado de Rousseau e de Lenine: a felicidade geral da Nação (Rousseau) decorre da eliminação da dissidência. Ora, esta operação deve ser feita sem nenhum obstáculo pelos donos do poder. O ideal seria um Estado não controlado por leis (Lenine). 

O "Sistema" seria identificado como o grande inimigo a ser eliminado. Ele se identificava com o capitalismo liberal. Ali onde imperasse tal sistema, os homens estavam escravizados e era necessário libertá-los. Essa foi, simplificada, a missão fixada pelos ativistas de esquerda inspirados na nova onda salvacionista. Ora, o que era o "Sistema"? Ele estava constituído pelo universo capitalista alicerçado em instituições liberais, segundo as quais o poder tinha que ter limites, aqueles estabelecidos pela legislação.

Para tamanha simplificação devemos ter uma resposta clara: gostamos do "Sistema", a única forma de exercício do poder acorde com a dignidade humana. 

Como frisou o professor João Carlos Espada em recente artigo para comemorar o grito de independência dos Húngaros em 1956, trata-se de "um sistema livre, de freios e contrapesos, em que ninguém detém o poder absoluto - que está dividido entre executivo, legislativo e judiciário. E mesmo o poder desses três ramos do Estado está limitado pela lei, que protege os direitos das pessoas à vida, à liberdade e à busca da felicidade, para citar a Declaração da Independência norte-americana de 1776 (ela própria herdeira da Magna Carta de 1215). (...)  Foi para reconquistar este sistema que os Húngaros se bateram em 1956. A homenagem que lhes é devida exige que saibamos voltar a defender o sistema da democracia ocidental - hoje mesmo antes que seja tarde". 

sábado, 22 de outubro de 2016

PCC, O CARTEL DO "NARCOSUL".

Artigo publicado no Estadão de 22-10-2016
O Presidente Lula, em maio de 2010 e o Presidente boliviano Evo Morales, ostentando colares de folhas de coca em Santa Cruz de la Sierra (Revista Veja, blog de Reinaldo Azevedo, 28 de maio de 2010).


O PCC, ao longo das últimas décadas, converteu-se no Cartel do "Narcosul". Nascido da reação contra o massacre do Carandirú (1992), o PCC já domina a maior parte dos presídios brasileiros. E, desde essa posição, passou a dominar o tráfico de drogas no Brasil e na região do MERCOSUL. Daí o nome dado pelos meliantes à organização: "Narcosul". É o que revela a pesquisa publicada pela revista Veja sob o título: "O Carandiru e o PCC" (edição 2498, 5 de outubro de 2016, pgs. 84-97).

Era questão de tempo o Brasil ter o seu grande cartel das drogas. Acontece que, em política, se falta a perspectiva estratégica (que, infelizmente, está longe das mentes dos nossos políticos), fica aberta a porta para eventos negativos. É o que está acontecendo com a força demonstrada pelo PCC em matéria de narcotráfico. Hoje é a principal organização criminosa brasileira que rivaliza, em lucros, com as maiores empresas do país, chegando a ocupar a 16ª posição, com ganhos da ordem de 20,3 bilhões de reais ao ano, à frente de grandes empresas como a Volkswagen e a JBS Foods. Como chegou a acontecer isso, após termos conhecido as desgraças patrocinadas na Colômbia pelo Cartel de Medellín, de Pablo Escobar, nos anos 80 e 90 do século passado? A resposta é: descaso e populismo.

Esse perigoso binômio nos levou a menosprezar a lição dada pela Colômbia após sofrer a dura guerra do narcotráfico e da narcoguerrilha, com os seus mais de 250 mil mortos. Lembro que, no final dos anos 90, fiz uma palestra no Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio, no Rio de Janeiro, acerca das desgraças produzidas pelo narcotráfico na "Cidade Maravilhosa", que se tornou incontrolável após o ciclo populista dos dois governos de Brizola.

Alertava, na época, para o risco de o Brasil se tornar palco do crescimento de grandes cartéis de drogas, em decorrência do vácuo que o populismo abriu em matéria de segurança pública e também como consequência do vazio econômico gerado pela insegurança jurídica ensejada pelo "socialismo moreno" do caudilho gaúcho, que fez com que mais de 800 empresas abandonassem o Rio de Janeiro, quando da primeira administração brizolista que começou em 1983, à sombra da retórica socialista das “perdas internacionais”, que o capitalismo teria trazido ao país. Brizola, efetivamente, deu o passo grande em matéria de abrir espaço ao crime organizado, ao pregar que a polícia não subia em morro. Os traficantes ocuparam rapidamente o vácuo aberto e, orientados pelos meliantes colombianos, começaram a adquirir armamento pesado. Data daí a explosão da violência que o narcotráfico ainda impõe aos cidadãos cariocas.

O empurrão inicial dado pelo brizolismo ao narcotráfico no Rio veio ser potencializado, em nível nacional, pelos 13 anos de populismo lulopetista, que simplesmente abriram as portas para o mercado de tóxicos no Brasil. Lula, no palanque em Santa Cruz de La Sierra com Evo Morales, no início do seu primeiro governo, ostentando no seu peito um colar feito de folhas de coca, essa foi a imagem que percorreu o mundo do narconegócio, indicando o "liberou geral" dos petistas para a produção e a distribuição das drogas. Rapidamente o Brasil viu aumentar de forma fantástica a entrada de pasta base de coca boliviana. O cocalero Evo Morales não fez por menos: ao longo dos governos petistas, simplesmente duplicou a extensão que os bolivianos dedicavam ao cultivo da folha de coca, a fim de destinar a maior parte da produção para o mercado de tóxicos brasileiro.

Resultado: viramos mercado para a droga, ao mesmo tempo em que nos firmamos como corredor de exportação de narcóticos para a Europa. Do mercado americano, cada vez mais próspero, os nossos meliantes deixaram que cuidassem os mexicanos, que ocuparam rapidamente o vácuo deixado com a morte de Pablo Escobar, em 1993. As coisas se facilitaram enormemente para os traficantes da América do Sul, com a instauração, na Venezuela chavista, de um autêntico narcoestado que passou a proteger a narcoguerrilha colombiana das Farc e que intermediou a compra de armas (lembremos que Fernandinho Beira-Mar era um dos elos da cadeia de compra de armas por cocaína no mercado americano e também no Brasil).

O corredor brasileiro de exportação de cocaína transladou-se do centro-sul do país para as desguarnecidas cidades do Norte e do Nordeste, carregando consigo a sua procissão de assassinatos e violência generalizada, que explodiu nessas regiões. A África Ocidental, ocupada por narcoestados, passou a ser a nova fronteira a ser atingida pelos traficantes brasileiros. Mas o Brasil virou, também, como previam os mafiosos italianos no final dos anos 80, um próspero mercado para o consumo de entorpecentes. 

Segundo a pesquisa divulgada pela Revista Veja (na edição citada no início deste artigo), o Brasil tem 2 milhões de viciados em cocaína, 1 milhão de viciados em crack e 1,5 milhão de dependentes da maconha. Esses consumidores regulares de tóxicos garantem ao PCC um lucro que, como frisei anteriormente, chega hoje aos 20,3 bilhões de reais por ano. Vai ser difícil nos desfazermos dessa indústria da morte, hoje plenamente estabelecida e que funciona pelo país afora, dinamizada pela enorme e abandonada população carcerária (que já chega a 550.000 indivíduos) dominada na sua maior parte pelo PCC. Um verdadeiro exército da morte, que espalha assassinatos nos presídios e em todos os cantos do Brasil! Mais uma herança perversa do populismo brasileiro.

Abre-se, pois, nova frente para desmontarmos o descaso aberto no país pelo populismo. Mas é melhor agirmos enquanto é tempo. O PCC já mostrou que tem bala na agulha.


sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A VENEZUELA NO BURACO

"O passarinho Chávez de Maduro", charge do jornal argentino Clarín, abril de 2013.

A crise institucional está tocando fundo na Venezuela. O Chavismo acabou com o país. A prova mais forte dessa trágica situação é a fuga em massa dos cidadãos venezuelanos para o Brasil e a Colômbia.

Já são mais de 30.000 os que cruzaram a fronteira com o nosso país, no longínquo Estado de Roraima. E a onda humana continuará a aumentar, o que obrigará o governo brasileiro a tomar medidas extraordinárias. As autoridades de Roraima deverão decretar o estado de calamidade pública, a fim de receberem ajuda federal e fazerem frente a essa situação emergencial. Algo semelhante ocorre na Colômbia, onde têm procurado refúgio miles de venezuelanos que fogem porque não têm mais o que comer no seu país de origem. O chavismo acabou com a economia de mercado e com a Venezuela!

As desgraças que os nossos vizinhos venezuelanos sofrem já eram previstas. Ao longo dos últimos quinze anos, a "Revolução Bolivariana" do coronel Chávez e do seu sucessor, o inepto Maduro, passou a gerir ideologicamente o país. 

Algo que no Brasil conhecemos de perto ao longo do ciclo lulopetralha. Hoje estamos pagando a conta, com a economia esgarçada pelo festival de corrupção e de inépcia que foi enxotado com o governo da Dilma. A presidente-poste deu continuidade ao carnaval de corrupção e de descaso com a coisa pública, dos dois governos de Lula. Felizmente no Brasil a sociedade civil conseguiu colocar para fora os petralhas, antes de que acabassem com a nossa economia e com o que restava de credibilidade do país no cenário internacional.

A desagregação dos Estados é como a explosão das estrelas: jogam para fora, na imensidão do espaço cósmico, a sua massa de prótons e de nêutrons (no caso da morte estelar), ou enxotam para fora das suas fronteiras a massa humana que, desnorteada, passa a ocupar espaços dos países vizinhos (no caso da falência institucional de um Estado). É o que atualmente está acontecendo com a Venezuela.

O caso venezuelano é apenas um episódio da "onda vermelha", que percorreu o continente latino-americano após a criação do Foro de São Paulo por Lula e Fidel Castro, nos anos 90 do século passado. Nessa estapafúrdia organização refugiaram-se as "viúvas da Praça Vermelha", após o desmanche do Império Soviético em 1989. 

Os regimes surgidos desse pacto do atraso levaram justamente para o buraco os países que acreditaram na falsa saída: Argentina, Bolívia, Equador, Brasil, Venezuela, para não falar nos países menores da América Central e do próprio México, que também sofreram os abalos da proposta de revivescência do comunismo. Os nossos vizinhos colombianos viram-se às voltas com as tentativas totalitárias das FARC para fazer desse país a sede de mais um governo da esquerda troglodita.

A "onda vermelha", felizmente, está chegando ao seu fim. Mas o caso mais dramático é o desmanche da Venezuela, que está afetando diretamente a vida de milhões de cidadãos.

O Chavismo está na origem dos males que sofrem hoje os nossos vizinhos venezuelanos. Recordemos que o maluco coronel, que considerava ser ele a reencarnação do Libertador Simón Bolívar, simplesmente jogou por terra as instituições republicanas do seu país, ao transformar o Estado venezuelano numa espécie de extensão da sua própria casa, à maneira como o ditador Juan Vicente Gómez privatizou as instituições venezuelanas num regime familístico que se estendeu de 1908 até 1938, tendo inspirado ao Nobel colombiano García Márquez na escrita da sua obra prima sobre os ditadores latino-americanos: O outono do Patriarca (1975).

O Chavismo tentou privatizar o Estado e transformá-lo em empreendimento familiar do déspota o do seu séquito. Ora, essa lenta transformação teve três variáveis: econômica, política e cultural. 

No terreno econômico, o maluco coronel simplesmente destruiu a empresa privada venezuelana, passando a estatizar, primeiro, as maiores firmas produtoras de alimentos. Desde a sua chegada ao poder até a morte do ditador, foram estatizadas 1.300 grandes empresas do setor agropecuário. Moral da história: o país passou a importar alimentos. Quando os preços do petróleo descambaram no mercado internacional, a crise alimentar se instalou e começou a faltar comida nos supermercados. Hoje os venezuelanos fogem do país para não morrerem de fome.

No terreno político, a "Revolução Bolivariana" de Chávez centralizou todos os poderes no Executivo hipertrofiado. As leis passaram a ser ditadas pelo presidente. O Legislativo e o Judiciário converteram-se em cópias do Executivo. A monótona figura de Chávez e, depois, de Maduro, paramentados de vermelho e brandindo a "Constituição Bolivariana", converteu-se em símbolo do despotismo implantado. Os opositores ao regime passaram a ser tratados como "inimigos da Nação". Os que não foram assassinados, amargam longas condenas impostas pelo Judiciário submetido à vontade do presidente de plantão. 

A Venezuela entregou a sua soberania a Cuba, ao ter instalado em Havana os organismos de inteligência e repressão. Os cubanos passaram a gerir diretamente essas duas instâncias. O ditador venezuelano foi morrer em Havana, para onde tinha sido transferida parte essencial do poder do Estado venezuelano.

No terreno cultural passou a se instalar a figura do "Big Brother", o líder vermelho. Convenhamos que as coisas pioraram após a morte de Chávez em 2013. Este tinha carisma e se tornou o "Pop Star" da mídia venezuelana. Chávez pretendia garantir a felicidade dos venezuelanos. Criou, para isso, o Ministério da Felicidade Popular (que, pasmem os leitores, ainda funciona!). Trata-se, certamente, de uma verdadeira aberração megalomaníaca, somente possível à luz dos ensinamentos do maluco "filósofo de Genebra", Jean-Jacques Rousseau. 

Maduro não tem a popularidade nem o carisma de Chávez. O medíocre sucessor do lunático coronel passou a agir à sombra da memória do líder falecido, que lhe falava "através de um passarinho". Ridícula versão do populismo chavista que, se não fosse trágica (em decorrência das miles de vidas humanas que estão sendo sacrificadas pelo regime repressor), não passaria de uma comédia pastelão.

domingo, 16 de outubro de 2016

DIA DOS MESTRES

O professor escocês Gilbert Arthur Highet (1906-1978), autor da obra The Art of Teaching (1950). Foto: Wikipédia.

A minha vocação para a docência nasceu cedo: quando cursava o terceiro ano de ensino secundário na Colômbia. Um dos meus professores emprestou-me o livro do historiador da literatura escocês Gilbert Arthur Highet (1906-1978) intitulado: A arte de ensinar (The Art of Teaching, 1950). 

Nessa obra Highet, que foi catedrático de história da literatura na Universidade de Columbia, apresentava a docência como uma aventura fascinante em que os alunos poderiam embarcar, com a condição de que o mestre fosse um apaixonado pelo saber que transmitia a eles. A arte do ensino, considerava Highet, constituía uma magia (de que não todos os docentes eram portadores) capaz de suscitar o entusiasmo dos discentes pela cultura e pelo aprofundamento nela. O ensino da cultura antiga, que era o seu forte, seria como uma viagem fantástica, em que embarcavam mestre e discípulos. Fiquei empolgado com a exposição de Gilbert Highet e decidi que seria professor quando me formasse, após concluir o segundo grau e os meus estudos superiores. Anos antes de me formar em Filosofia, ainda cursando os últimos anos do denominado "Bacharelado em Humanidades", com a idade de 15 anos comecei a lecionar para alunos do segundo grau. Depois, estudei Filosofia na Universidade Javeriana de Bogotá, cursei a Teologia no Seminário Conciliar da capital colombiana, abandonei a carreira eclesiástica e me dediquei à docência.

Ao longo da minha vida de professor encontrei, felizmente, outros mestres que reacenderam em mim o ideal pela docência, que tinha auferido da leitura da obra de Gilbert Highet. Tive a felicidade de encontrar, pelo caminho, verdadeiros mestres.

Na Universidade Pontifícia Bolivariana de Medellín encontrei um grupo desses verdadeiros mestres: René Uribe Ferrer, decano da Faculdade de Filosofia e Letras, e os professores Alberto Restrepo Arbeláez (de quem fui assistente na cadeira de História da Literatura Grega, Latina e Hebraica), Beatriz Restrepo Gallego (professora de Metafísica) e Freddy Salazar (especialista em Espinosa e professor de História da Filosofia Moderna). O grupo era constituído por outros docentes de grande valor. Mas os mais chegados a mim eram os mencionados. Nos reuníamos, semanalmente, na sala de professores, para discutirmos as novidades acadêmicas e as dificuldades que os docentes enfrentávamos naqueles tumultuosos tempos (corria o ano de 1968 e os ares estavam caldeados nas Universidades pelos acontecimentos parisienses). Nota caraterística dos integrantes desse grupo de mestres era a amizade que nos unia. Assim, os mais jovens, como eu, encontrávamos nos colegas apoio e senso crítico que nos levava a progredir na função docente. O clima que imperava na Faculdade não era burocrático, mas inspirado na "Filía" aristotélica, a mais pura forma de amizade.

Nas minhas aulas de Teoria da Literatura e de História da Literatura Antiga encontrava jovens militantes dos grupos guerrilheiros. Em alguma oportunidade, após a explosão num prédio residencial de um arsenal em cuja manutenção estavam implicados dois dos meus alunos, apareceram na minha sala de aula, por meses a fio, agentes do temido Departamento Administrativo de Seguridad (o DAS, serviço secreto da polícia). Pensava que a radicalização dos meus alunos tinha produzido pelo menos um efeito positivo: levar à sala de aula rudes agentes que alguma coisa tiveram de aprender no terreno da História da Literatura...

Eram memoráveis as tardes em que o grupo mais chegado de professores e alguns dos nossos alunos nos encontrávamos no bar Macondo, vizinho da Faculdade, e discutíamos até altas horas da noite assuntos do momento, acadêmicos e políticos. Planejávamos publicações e eventos culturais. Programávamos excursões às cidades vizinhas de Medellín, no Oriente Antioqueño, em que realizávamos jornadas de estudo sobre temas candentes como a reforma da Universidade seguindo o modelo que então estava em voga, proveniente da Universidade de Córdoba, na Argentina. E surgiam entre os alunos e os professores solteiros os namoricos de rigor. Mas havia também um componente importante de parte dos mestres: todos estávamos inspirados pela fé religiosa e procurávamos descobrir uma forma de cristianismo mais acorde com a realidade vivida pelo nosso país.

Essa primeira experiência de solidariedade entre mestres e alunos encontrei em outras circunstância da minha vida como professor universitário. Refiro, apenas, a experiência mais marcante que dessa realidade tive no Brasil, onde me estabeleci a partir dos anos 70. De forma transitória, primeiro (entre 1973 e 1975), quando vim cursar o Mestrado em Filosofia na PUC do Rio de Janeiro. E de forma definitiva, logo depois, (a partir de 1979), quando vim cursar o Doutorado em Filosofia na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, tendo ficado, depois, definitivamente, em decorrência das dificuldades ensejadas pela guerra colombiana.

Já no grupo de colegas e mestres que conheci quando do meu Mestrado, encontrei um círculo de amigos que se organizou ao redor do professor Antônio Paim, que coordenava a linha de pesquisa ao redor do Pensamento Filosófico Brasileiro. Mestre Paim foi, para mim, a figura ideal do professor comprometido com o crescimento intelectual e humano dos seus discípulos. Pude vivenciar isso no meu caso particular. Vinculado, na Colômbia, a grupos da extrema esquerda, jamais o mestre, que era um crítico forte das opções vinculadas ao marxismo, questionou a minha opção política. No entanto, encontrei, nele, subsídios fundamentais para que pudesse eu revisar, criticamente, a minha opção política. Quando da elaboração da Dissertação de Mestrado, o mestre apresentou-me várias opções que se inseriam na linha de pesquisa em que deveria eu trabalhar: "Filosofias políticas e pensamento brasileiro nos séculos XIX e XX". Poderia escolher entre estudar um autor conhecido do pensamento católico, crítico do autoritarismo (Alceu Amoroso Lima), ou aprofundar na visão metafísica de um espiritualista do início do século XX (Farias Brito), sendo também possível escolher o estudo de uma tendência que tivesse sido marcante no século XIX, com influência no pensamento do século XX (A Filosofia Política de Inspiração Positivista no Brasil). Optei por esta última alternativa.

Rapidamente o Mestre indicou-me ampla bibliografia, tendo-me alertado de que se tratava de uma opção difícil, pois teria de consultar na Biblioteca Nacional do Rio, na sessão de publicações periódicas, a trilha seguida pelo pensamento dos doutrinadores positivistas, notadamente Júlio de Castilhos, redator de A Federação, o jornal gaúcho em que escreviam os seguidores do Partido Republicano Rio-Grandense. No decorrer da minha pesquisa, o Mestre falou-me da necessidade de confrontar o pensamento dos positivistas gaúchos com os seus oponentes, os liberais, dentre os que se destacavam as figuras de Gaspar da Silveira Martins e Joaquim Francisco de Assis Brasil. E deveria pesquisar, claro, as fontes primárias tanto do positivismo comteano, quanto do pensamento liberal. Deveria ler o Sistema de Política Positiva de Comte, bem como as obras essenciais de Locke (Dois tratados sobre o governo civil e Ensaio sobre o entendimento humano, além das Quatro Cartas sobre a Tolerância e a  Constituição Fundamental para a Carolina do Norte), a versão de democracia presente na obra A democracia na América de Tocqueville e a versão que do mesmo modelo tinham efetivado os doutrinadores americanos autores da coletânea O Federalista. Isso, para início de conversa.

Confesso que achei um tanto extensa a bibliografia de que deveria dar conta e falei disso com o meu orientador. Mas o Mestre Paim ponderou que, se eu querida trabalhar com o Castilhismo, deveria dar conta tanto dos seus princípios positivistas fundamentais, quanto das críticas a eles efetivadas pelos liberais. Santa exigência do meu Mestre que me obrigou, sendo ainda um trotskista confesso, a ler os pensadores liberais que, paulatinamente, foram me abrindo as portas para o tema da defesa da liberdade, por mim simplesmente ignorado nos meus estudos. Da leitura dos clássicos liberais tirei uma grande lição: o pensamento marxista simplesmente ignorava o ideal da liberdade, que constituía tema central do pensamento liberal. Mudei rapidamente no meu modo de pensar. De militante trotskista virei estudioso do liberalismo. Como escreveu o filósofo francês Gilles Lipovetski, "abandonei Marx e aderi a Tocqueville". Essa foi a minha mudança, em cuja origem se situa a exigência acadêmica de um caro amigo, o Mestre Antônio Paim.

Do grupo de professores e alunos que o professor Antônio Paim organizou na Universidade Gama Filho (que deu continuidade, no final dos anos 70, ao programa abortado na PUC do  Rio de estudo do pensamento filosófico brasileiro), formava parte um grande Mestre português, que virou meu amigo: Eduardo Abranches de Soveral. O que mais me impressionou nas lições de Soveral foi a sua grande abertura intelectual, bem como a delicadeza de quem vivia, em profundidade, o ideal do Mestre: abrir espaços de indagação intelectual para que o aluno crescesse. Um desses espaços foi o relativo à meditação de Soveral em relação ao que deveria ser o ideal do Mestre. Impressionou-me vivamente o seu ensaio sobre o Ideal do Professor em que o pensador português aprofundava na exigência existencial que o deveria guiar em face dos seus alunos. O professor, escrevia o Mestre português, deve ser como o São João Batista do saber. Não deve ter medo de que os seus alunos cresçam e ele, Mestre, desapareça. Bela lição de humildade intelectual de um dos grandes pensadores portugueses da contemporaneidade, infelizmente já falecido.

A lição de ética do Mestre, tanto a do Paim, quanto a do Soveral, aproxima-se da reflexão que Max Weber dedicou aos que ensinam. Para o grande sociólogo alemão, duas são as obrigações éticas do Professor: passar aos seus alunos, com total honestidade intelectual, os vários pontos de vista existentes em relação a determinado ponto e agir, na exposição dos temas a serem ensinados, com total respeito pelas mentes e pela liberdade de pensamento dos alunos, de forma a que eles possam escolher o ponto de vista que mais lhes interessar, mesmo que seja contrário ao que o Mestre pensa.

ELECCIONES, FRAUDES Y EXPECTATIVAS NEBULOSAS EN BRASIL. (UN TEXTO DE OCTUBRE DE 2014)



Las elecciones presidenciales brasileñas del pasado 26 de Octubre me dejaron perplejo. Hablando claramente, no sólo las elecciones sino también la campaña. La actual legislación electoral brasileña le pone muchas cortapisas al libre debate acerca de los programas de gobierno. Sucesivas reformas a la ley originalmente promulgada por Getúlio Vargas en 1932, han desfigurado completamente el escenario abierto y democrático que debería ser la campaña electoral. La discusión sin tapujos, alrededor de los programas de los candidatos, es simplemente imposible. Cualquier candidato al cargo de presidente (especialmente si se trata del mandatario en ejercicio que busca la reelección) puede denunciar ante los Jueces Electorales a su adversario, si éste pone sobre la mesa, sin miedo y como al pueblo le gusta, (a “calzón quitado”, como se dice en Colombia), los puntos frágiles de su programa de gobierno. Este aspecto de la legislación electoral y, además, la absurda reglamentación acerca del tiempo disponible para los candidatos (vinculado al número de congresistas elegidos por sus respectivos partidos) hacen que el que asumió el control del Congreso busque eternizarse en el poder. Es la entropía electoral mejor montada de que tengo conocimiento.

Con este telón de fondo, no es raro que se sienta en Brasil un clima de insatisfacción generalizada después de las pasadas elecciones presidenciales, algo así como el bochorno que antecede a la tempestad. En primer lugar, la campaña fue puesta en un nivel de ataque puramente personal, sin que se le diera importancia a lo que debería ser discutido: los programas de gobierno de los candidatos, como ya fue seãnalado. Y la oportunidad era urgente para discutirlos. El responsable por ese clima de ataques personales, además del factor que acabo de mencionar (la legislación electoral) fue sin duda alguna el partido de gobierno, el PT. La máquina propagandística del Partido de los Trabajadores se ha especializado en destruir personalidades. Es una tecnología que los petistas importaron de Cuba. Al fin y al cabo José Dirceu, uno de los presos por el crimen del Mensalão I y que fuera Ministro de la Casa Civil de Lula, se especializó en Cuba en propaganda política y terrorismo. Ahora bien, en la campaña, los asesores de márquetin político de Dilma fueron bombardeando, uno a uno, a sus contrincantes más fuertes, con ataques puramente personales.

La primera en sufrir el fuego pesado petista fue Marina Silva, del Partido Socialista Brasileño. Ella recogió la herencia del fallecido candidato Eduardo Campos, víctima de accidente de aviación ocurrido en Agosto. Marina fue rápidamente identificada por el electorado como una “tercera vía”, socialista-democrática y diferente del partido de gobierno, que ideológicamente se ha colocado en una izquierda recalcitrante vecina a la ideología comunista, y que pragmáticamente se ha ajustado a la vieja corrupción, compartiendo el botín del desvío de los dineros públicos con su aliado tradicional, el Partido do Movimiento Democrático Brasileiro (PMDB), amén de una gama de pequeños partidos que atacan el presupuesto con el hambre intempestiva de las hienas. Marina se colocó en una posición  crítica de las prácticas nada republicanas de sus antiguos compañeros de viaje (fue ministra del Medio Ambiente del presidente Lula, en su primer mandato). Pero sintió el embate de los golpes bajos de la campaña de Dilma. Las preferencias del electorado por Marina eran significativas. Los sondeos de opinión la colocaban como la más fuerte concurrente a la presidencia después de Dilma, llegándola a superar en la prospectiva del segundo turno.

El segundo en sufrir el fuego pesado petista fue Aécio Neves, nieto del fallecido ex-presidente Tancredo Neves, que aparecía como tercero colocado antes del primer turno, pero que se consolidó en éste como el candidato de las oposiciones. Me impresionaron mucho las fallas de los principales Institutos de Pesquisa Electoral poco antes de ocurrir el primer turno. Aécio aparecía como descartado. Pero no ocurrió así. Las redes sociales denunciaban que el gobierno había pagado a los más importantes institutos de pesquisa de opinión, para que en la revelación de las pesquisas parciales fueran favoreciendo a la candidata oficial, a fin de ir sensibilizando al electorado con una ventaja mayor de ésta, que la que realmente los datos estadísticos revelaban.

La verdad es que el PT se volvió contumaz comprador de los institutos de pesquisa que otrora auxiliaban al Estado con datos sobre las políticas económicas y las mudanzas sociales. Los dos más importantes institutos de esta orden en Brasil son la IBGE (Instituto Brasileiro de Geografía e Estadística) y el IPEA (Instituto de Pesquisas Económicas Aplicadas), ambos con sede en Rio de Janeiro. Cuando, en los años 70 del siglo pasado, dirigí el Instituto de Postgrado e Investigación de la Universidad de Medellín, llegué a mantener contacto con los investigadores del IPEA y quedé realmente impresionado con la seriedad de su trabajo. En años posteriores, en investigaciones que realicé en función de mis actividades como asesor parlamentario del senador José Richa (del antiguo MDB), durante la Constituyente de 1986-1987, utilicé ampliamente los datos publicados por el IBGE sobre desarrollo agrario en Brasil. Puedo dar testimonio de la objetividad indiscutible de los estudios de ese Instituto.

El PT, con todo, cometió la desfachatez de forzar la salida de los mejores investigadores de ambos institutos, a fin de substituirlos por “técnicos” a su servicio. Hoy en día, no se puede confiar ni en los datos del IBGE ni en los del IPEA. Los petistas lograron desnudar a esas instituciones de la seriedad que las caracterizaba. Se convirtieron en agencias de propaganda gubernamental, como lo ha hecho también en Argentina la presidente Cristina Kirchner, con los institutos de investigación oficiales. Los citados Institutos siguieron el mismo camino de servilismo a los dueños del poder que ha afectado al tradicionalísimo Itamaraty, el Ministerio de las Relaciones Exteriores brasileño. Durante los gobiernos petistas este Ministerio fue colocado en manos de políticos inescrupulosos que echaron por tierra la tradicional política de no alineación ideológica de la Cancillería, que solamente tomaba decisiones que defendieran los intereses estratégicos del país. Hoy en día el Itamaraty es apenas un apéndice de los intereses ideológicos y personalistas del Partido de los Trabajadores. Así, Lula alineó al Brasil al lado de los peores dictadores africanos y Dilma, en la pasada sesión de la ONU, en Septiembre, cometió la felonía de ponerse al lado de los terroristas del Estado Islámico, contrariando la posición de la opinión pública brasileña y obrando claramente contra los intereses estratégicos del Brasil. Un caso para impeachment.

Aécio Neves, ducho en peleas electorales, logró sobrevivir a la andanada de mentiras y calumnias que los marqueteros oficiales colocaron a disposición de Dilma Roussef durante la campaña. En vísperas del pleito, institutos independientes de pesquisa electoral le daban el triunfo a Aécio por lo menos por diez puntos de ventaja sobre su contrincante. En los debates habidos por la radio y la televisión, el candidato de las oposiciones simplemente apabulló a su contendora, que no lograba responder a las preguntas de su oponente sobre puntos importantes como: 1 - Políticas macroeconómicas para combatir la inflación y el desempleo, volviendo a la práctica de la austeridad en los gastos públicos y al estímulo a la libre iniciativa. 2 - Medidas que deberían ser tomadas para enfrentar la violencia en las ciudades brasileñas (cada año son asesinados más de 50 mil ciudadanos en este inmenso país, sin que la policía logre investigar más que un 5 % de los crímenes cometidos). 3 - Políticas de logística y de obras de infraestructura. 4 - Políticas de salud pública. 5 – Políticas en el área de la educación básica, media  y superior, y 6 – Reformulación de las relaciones exteriores del Brasil, que – como se ha informado - fueron colocadas por los petistas a lo largo de los últimos doce años en función de afinidades ideológicas y contra los intereses económicos del país.

Desde el principio de los debates electorales le di mi apoyo a Aécio Neves, por considerar que sería el mejor candidato para devolverle al país la esperanza perdida. Contrariamente a Dilma Roussef que, antes de ser presidente, no se había elegido para nada, habiendo sido colocada por Lula como pieza manejable en el tablero de sus opciones populistas, Aécio tiene larga experiencia como senador, diputado federal, gobernador del Estado de Minas Gerais, prefecto de Belo Horizonte, etc. Era fuerte mi esperanza de que Aécio fuera elegido. Y esta expectativa se fundamentaba en las investigaciones de opinión de los institutos independientes, así como en el parecer de periodistas experimentados y en mi propia captación del estado de ánimo de la sociedad. Todo el mundo ya está saturado con el populismo de los petistas y de sus coadyuvantes, especialmente con el ambiente de robo generalizado a los cofres públicos, practicado a la luz del día y con total desfachatez.

Cada crimen es más grande que el anterior. El “Mensalão I”, denunciado en 2005 y que ha llevado a la prisión a la cúpula del Partido de los Trabajadores, robó centenas de millones de reales. El “Mensalão II”, llamado también de “Petrolão” y que está siendo denunciado por haber hundido las finanzas y la reputación de la otrora próspera Petrobras, consta que desvió de los cofres públicos una cuantía mucho más grande que la del “Mensalão I”. El robo ya llega a la casa de los 10 y más billones de reales. Ahora bien, si tenemos en cuenta que el dólar americano es cotizado a 2,30 reales, los lectores han de concluir que los ríos de dinero robados por los petistas son verdaderamente caudalosos como el Atrato, en el Chocó colombiano. ¿Para qué tanta gana? En primer lugar, para llenarse los bolsillos, las medias, los calzoncillos y los calzones con millones de dólares y sacarlos del país (como acostumbran hacerlo los militantes del PT). ¡Al fin y al cabo, los petistas también son hijos de Dios! En segundo lugar, para “hacer una vaquita” y garantizarle al Partido de los Trabajadores los dineros suficientes para comprar la supremacía y la hegemonía política.

El día de las elecciones, por la noche, seguía con mi familia, por la televisión, el contaje de votos. Aécio comenzó ganando con una ventaja muy fuerte. Después, a medida que llegaba la hora de proclamar el vencedor, los datos simplemente desaparecieron de la tela. Decían los locutores que el Tribunal Superior Electoral no podía divulgar los datos definitivos, hasta tanto no llegaran los resultados de los lejanos rincones de la Amazonia. Y a las 8 de la noche, la sorpresa: ¡Dilma había sido elegida presidente, con estrechísimo margen sobre su opositor! Me recordé de las elecciones presidenciales de 1970 en Colombia, que fueron fraudadas por el gobierno en beneficio del candidato conservador Misael Pastrana, contra el candidato que aparecía como vencedor a la media noche, el general retirado Rojas Pinilla. Después de una intervención por la televisión y la radio del ministro de gobierno, prohibiendo la divulgación de datos, Pastrana apareció como vencedor a la mañana del día siguiente. Los resultados fraudulentos dieron lugar a una onda más de violencia en Colombia y consolidaron el surgimiento del grupo guerrillero M 19 entre cuyos fundadores se encontraban los militantes de la Alianza Nacional Popular, la ANAPO, que se sintieron víctimas de la maniobra estatal. La prensa, en las ediciones de los días siguientes, con ironía, decía que no fueron los votos de los corregimientos los que eligieron a Pastrana, sino los corregimientos de votos patrocinados dizque por una “consultora electoral alemana” cuyo nombre era Fraude.  

Con fraude o no en las urnas electrónicas brasileñas del 26 de Octubre, lo cierto es que la victoria de Dilma se ha transformado en victoria de Pirro. El gobierno no sabe qué hacer. O mejor: al día siguiente de las elecciones comenzó haciendo lo que decía que su oponente haría: elevó impuestos, aumentó la tasa de interés y le abrió la puerta a todas las maldades necesarias para controlar una inflación desenfrenada por una década de gastos públicos sin control, gracias a políticas sociales que le dan becas a todo el mundo sin exigir contraprestación y que distribuyeron dinero de los contribuyentes brasileños en empréstitos benignos a países africanos y latinoamericanos, con la finalidad de catapultar a Lula a las cumbres del escenario internacional como virtual candidato a la Secretaría de las Naciones Unidas. Con certeza, vendrán muchos rayos en este horizonte cargado de sospechas y con la sociedad insatisfecha por la inflación creciente y la endémica corrupción lulopetista.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

PAIXÃO E LIBERDADE: MADAME DE STAËL E O LIBERALISMO DOUTRINÁRIO

Madame de Staël - (Tela de François Gérard - 1810 - Wikipédia)

O autor mais estudado na França ao longo do ano 2000 foi Madame de Staël. A análise da obra da grande escritora foi objeto das monografias de Bacharelado em Literatura e Humanidades, por determinação do Ministério da Educação. Por que essa escolha? Responderia brevemente: em primeiro lugar, porque o seu livro mais importante, De la Littérature considerée dans ses rapports avec les institutions sociales (Acerca da Literatura considerada nas suas relações com as instituições sociais) completou duzentos anos. Em segundo lugar, porque Madame de Staël é tremendamente atual. Ela representa, efetivamente, um espírito aberto à modernidade, mas, ao mesmo tempo, crítico dela, a partir de uma perspectiva que supera o individualismo exagerado dos que unicamente buscam o proveito imediato, olhando só para os próprios interesses. E, paralelamente, com uma consciência clara da defesa incondicional da liberdade e do reconhecimento de que é possível conciliar os interesses individuais com os da comunidade. 
Madame de Staël foi uma pessoa excepcional. Podia-se odiá-la ou amá-la, mas ninguém ousaria desconhecer o seu valor. Stendhal considerava que ela era "a mulher mais extraordinária que jamais viveu". Para Benjamin Constant tratava-se de "um ser à parte, um ser superior, desses que possivelmente aparecem um a cada século". O próprio Napoleão, embora a olhasse com extremada desconfiança e a tivesse perseguido pela vida afora, chegou a confessar em certa ocasião: "É necessário reconhecer, depois de tudo, que se trata de uma mulher de grande talento; ela permanecerá".  Essa atitude de amor ou ódio foi herdada pela crítica literária em relação à nossa autora. Somente nas últimas décadas foi possível reconstruir um ambiente de imparcialidade intelectual em face da obra de Madame de Staël, isso em grande medida devido ao trabalho de estudiosos dedicados como Simone Balayé. A propósito das dificuldades encontradas para se chegar a esse equilíbrio, escreve a mencionada pesquisadora: "Se cada um de seus livros encontrou um vasto público, apaixonadamente hostil ou favorável, aos poucos foi sendo construída ao seu respeito uma lenda que mascarou a obra, assim como a pessoa. As paixões políticas e religiosas ocuparam aí lugar de destaque. Madame de Staël incomoda pelo seu espírito de livre exame e pela educação que ela herdou das Luzes. Ela tem sido atacada por gentes de todos os partidos: os jacobinos, os ultras, mais tarde a velha guarda clássica, as vezes os românticos, apesar de que se alimentaram com o seu pensamento (...). É somente nos últimos trinta anos que estudos imparciais a colocaram no justo lugar"  [Balayé, 1985: 7].
A verdade é que a brava escritora não deu trégua ao absolutismo napoleônico, tendo sido a mais importante crítica e eficaz opositora do Imperador. Pagaria caro pela sua  ousadia liberal: foi cruelmente desterrada. A reflexão de Madame de Staël deitou, assim, as bases para o trabalho ulterior de fundamentação do liberalismo doutrinário francês, efetivado por Benjamin Constant de Rebecque (com quem, aliás, teve laços amorosos), François Guizot e o próprio Tocqueville. A noção tocquevilliana de interesse bem compreendido não se poderia entender sem referência à obra de Madame de Staël.
Precursora dos doutrinários. Destaquemos duas idéias que justificam plenamente esse honroso título. Em primeiro lugar, a profissão de fé incondicional na liberdade. A propósito, escreve Madame de Staël em Dix années d'exil: "Não é para me escusar pelo meu entusiasmo em relação à liberdade, que explicito as circunstâncias pessoais que contribuíram para tornar mais caro para mim esse ideal. Creio que devo me orgulhar desse entusiasmo em lugar de me escusar, pois quis dizer desde o início que o grande reproche do imperador Napoleão contra mim, é o amor e o respeito que sempre tive pela verdadeira liberdade. Esses sentimentos foram-me transmitidos como uma herança, a partir do momento em que pude refletir acerca dos altos ideais dos quais derivam e das belas ações que eles inspiram. As cenas cruéis que desonraram a Revolução Francesa, não sendo mais do que tirania sob modalidade popular, não fizeram esmaecer em mim, creio, o culto à liberdade. Poderíamos nos desencorajar em relação à França. Mas, se este país  tivesse a desgraça de não possuir o mais nobre dos bens, não era necessário por isso proscreve-lo da terra. Quando o sol desaparece do horizonte dos países do Norte, os habitantes dessas regiões não amaldiçoam os seus raios, que luzem ainda em outros lugares mais felizardos do céu" [Staël,  1996a:  46].
Uma segunda idéia que torna Madame de Staël precursora dos doutrinários: somente um regime alicerçado numa Constituição de inspiração liberal, garantirá o exercício da liberdade. Achava que uma Carta inspirada na que tinha vigência na Inglaterra, poderia evitar na França os males do despotismo. "A Inglaterra, para ela - frisa Jacques Godechot -  é a terra da liberdade. É graças a essa liberdade que a Inglaterra conseguiu vencer Napoleão". De que liberdade se trata? Fundamentalmente da liberdade individual, "a liberdade de ir e vir, a liberdade de cada um, tanto homem quanto mulher, viver como lhe aprouver" [Godechot, 2000: 28]. 
Vale a pena, portanto, traçar uma rápido esboço da vida e da obra da grande ensaista, que prenunciou o movimento da emancipação feminina, num momento em que às mulheres só se reconhecia o direito de ficar em casa ou ir para o convento.  Desenvolverei neste capítulo os seguintes itens:  I - Perfil bio-bibliográfico de Madame de Staël; II - Concepção liberal da Política, do Estado e da Economia, segundo Necker; III - A crítica de Madame de Staël ao absolutismo napoleônico; IV - A perfectibilidade humana segundo Madame de Staël.
I - Perfil bio-bibliográfico de Madame de Staël
Anne-Louise-Germaine Necker de Staël-Holstein, popularmente conhecida como Madame de Staël, nasceu em Paris em 1766 e morreu na mesma cidade em 14 de julho de 1817. Era filha de Jacques Necker (1732-1804), o banqueiro genebrino que foi Ministro de Finanças de Luís XVI e de Suzanne Curchod, de origem suíça e filha de um pastor protestante. A propósito das raízes familiares de Jacques, vale a pena lembrar que o seu pai, Charles-Frédéric Necker, era prussiano, tendo sido advogado e preceptor do filho de Bernstorff, o primeiro ministro alemão de George I, rei da Inglaterra e eleitor de Hanôver. George I tinha enviado Charles-Frédéric a Genebra em 1725, a fim de que dirigisse uma pensão para jovens estudantes ingleses. Ali casou com Jeanne-Marie Gautier, pertencente à oligarquia genebrina e naturalizou-se suíço. Os avós de Germaine eram, portanto, cosmopolitas. Jacques Necker, lembra Godechot, "pretendia descender, por parte da mãe, de Jacques Coeur, o ministro de Carlos VII, e por parte do pai de um Necker que vivia na Irlanda no tempo de Guilherme o Conquistador, tendo adotado o escudo de armas dele" [Godechot, 2000: 9].
Jacques Necker foi nomeado ministro representante da Suíça em Paris em 1768, em decorrência do fato do grande sucesso econômico obtido pelo seu Banco, o Necker et Tellusson, ao ensejo da Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Jacques ficou muito rico, sendo a sua fortuna calculada entre 7 e 8 milhões de libras-ouro. Em decorrência da política de reformas deslanchada por Luís XVI com a finalidade de frear a crescente impopularidade da monarquia francesa, Necker foi convidado em 1777 para substituir Turgot (contra cuja política fisiocrata ele tinha se pronunciado), no ministério das Finanças,. Não foi fácil vencer as resistências para que um banqueiro estrangeiro e, ainda por cima, protestante, assumisse o importante cargo, embora houvesse a tradição, na França, de ministros estrangeiros como Concini e Mazarin. A situação foi contornada sendo-lhe atribuída a função de "diretor adjunto das Finanças". Mas, de fato, Necker foi um autêntico primeiro-ministro, que pôs em execução uma moderada política de contenção de gastos e de extinção dos privilégios que em muito oneravam os cofres públicos. (Além da pesada burocracia, integrada pela nobreza, o orçamento definhava em decorrência dos gastos exigidos pela participação da França na guerra das colônias britânicas da América contra a Inglaterra).
O caminho reformista empreendido por Necker granjeou-lhe o ódio de Maria Antonieta e de amplos setores da nobreza aliada a ela, fato que conduziu à sua demissão em 1781. O estopim foi o opúsculo intitulado Compte rendu au Roi publicado nesse mesmo ano, em que o Directeur des Finances e primeiro-ministro apresentava o quadro das receitas e das despesas do Estado, ressaltando o peso que tinham os gastos com a nobreza improdutiva denominada de frelons (zangões). Os preconceitos deste estamento aumentaram em decorrência da sugestão de Necker para uma reforma política que estabelecesse uma espécie de representação provincial, com a finalidade de diminuir a importância dos intendentes do Rei.
No capítulo IV da obra Considérations sur la Révolution Française, Madame de Staël fez uma detalhada descrição das reformas pretendidas pelo seu pai. Em relação  à proposta da representação provincial, a filha de Necker escrevia: "(Ele) sentia mais vivamente que ninguém de que forma o bom desempenho de um ministro é pouca coisa no meio de um reino tão vasto e tão arbitrariamente administrado como a França, e esse foi o motivo para estabelecer assembléias provinciais, ou seja, conselhos integrados pelos principais proprietários de cada província, nos quais se discutiria a fixação dos impostos e os interesses locais da administração. Turgot tinha concebido a idéia. Mas nenhum ministro do rei, antes de Necker, tinha tido a coragem de se expor à oposição que deveria encontrar uma instituição deste gênero. Ele previa que os parlamentos e os cortesãos, raramente solidários entre si, a combateriam com a mesma força"  [Staël, 2000: 95].
Já fora do governo, Necker publicou, em 1784 o seu Traité de l'administration des finances de France, que em muito desagradou a nobreza, fato que o levou a sofrer o desterro a vinte léguas de Paris. No entanto, após a desastrada gestão das finanças públicas efetivada por Brienne e Lamoignon, Luís XVI chamou de novo Necker para assumir a direção nacional das finanças, integrando-o ao ministério. O pai de Germaine deu continuidade à política reformista de sua gestão anterior, restabelecendo as assembléias representativas provinciais, intervindo na livre circulação de cereais a fim de fazer frente à fome e anunciando a convocação dos Estados gerais. Tratava-se de uma política econômica liberal que terminou saindo cara ao próprio Necker, pois teve de emprestar ao tesouro real a vultuosa soma de 2 milhões de libras, que somente seriam pagas quarenta anos depois, na Restauração.
Diante de reiteradas pressões da nobreza, o Rei demitiu novamente Necker em 11 de julho de 1789, poucos dias antes de eclodir a Revolução, que foi acelerada pela notícia da demissão do popular primeiro-ministro, fato que motivou o pânico financeiro. Poucos dias depois da toma da Bastilha, no entanto, o soberano chamou novamente Necker. Ao se opor à radicalização protagonizada no seio da Assembléia Nacional pelos Jacobinos e sofrer a pesada oposição de Mirabeau e de outros líderes, Necker abandonou definitivamente o governo, em setembro de 1789.
De qualquer forma, Jacques Necker foi muito valorizado pela sociedade francesa e pelas cortes européias. Após a sua demissão do ministério das Finanças, recebeu convites de José II da Áustria, de Catarina II da Rússia, dos reis da Polônia e de Nápoles, para ocupar o mesmo cargo. O pai de Germaine preferiu, no entanto, se retirar ao castelo de Coppet, na Suíça, onde terminaria os seus dias em 1804 [cf. Godechot, 2000: 10-11]. Antes da sua morte, porém, Necker escreveu várias obras, entre as quais podemos mencionar as seguintes:  De l'Administration de Monsieur Necker par lui-même (1791), Du pouvoir exécutif dans les grands États (1792), Réflexions offertes à la nation française (esta obra, que pretendia defender o soberano, motivou a reação dos jacobinos e de outros elementos exaltados, fazendo com que os bens de Necker na França fossem confiscados e que ele próprio fosse inscrito na lista dos emigrados). O pai de Germaine escreveu também  o Cours de morale religieuse (1800) e Dernières vues de politique et de finances (1802), obra que o indispôs com Bonaparte, em decorrência das críticas efetuadas por Necker contra o modelo de República autoritária proposto pelo Primeiro Cônsul na Constituição de 1800  e à qual farei referência no próximo item.
Mas voltemos à formação recebida por Madame de Staël. No salão dos Necker, em Paris, reuniam-se todas as celebridades da época. Germaine recebeu de seus pais uma sofisticada educação, em que prevaleceram a influência da cultura britânica e o protestantismo. A respeito, Axel de Blaeschke escreve: "A anglofilia de Madame de Staël era antiga e não de natureza puramente livresca. Ela se alicerça na sua experiência pessoal, iniciada no seio de uma família totalmente direcionada para o país de além-Mancha. De seu pai, ela herdou a predileção pela bicameralismo inglês como forma de organização política; de sua mãe, a admiração pela poesia inglesa; e dos dois, a atração por Shakespeare. Depois da sua segunda viagem à Inglaterra, ela teve oportunidade para aprofundar e alargar essa aquisição cultural. Não é de admirar que o quadro da literatura inglesa seja, em De la Littérature, de longe o mais completo e o mais seguro. Como síntese, supera os estudos feitos por Voltaire e outros predecessores. A literatura inglesa é aquela que mais respira o espírito de um país livre (...)" [Blaeschke, 1998: LXVIII-LXIX].
Segundo testemunho de Madame Necker de Saussure, no livro intitulado Notice sur le caractère et les écrits de Madame de Staël (Paris, 1820), Germaine tinha uma brilhante inteligência, que se manifestou precocemente. Ainda menina divertia-se com as eruditas conversas dos amigos do seu pai, entre os que se contavam Raynal, Buffon, Marmontel, Grimm, Gibbon. A jovem Germaine escreveu, entre 1781 e 1785, três romances intitulados Mirza, Adelaïde et Théodore e Pauline, que foram publicados dez anos mais tarde [cf. Staël, 1997]. De 1786 data um drama em verso intitulado Sophie. Nesse mesmo ano, Germaine casou com o barão Éric-Magnus de Staël-Holstein, adido da embaixada da Suécia em Paris, tendo recusado casar-se com William Pitt, que seria depois Primeiro Ministro inglês [cf. Larousse, 1865: 1046; Blaeschke, 1998: IX; Godechot, 2000: 11].
A primeira obra de fôlego de Madame de Staël, publicada em 1788, intitulava-se Lettres sur le caractère et les écrits de Jean-Jacques Rousseau e testemunha a grande influência que o filósofo genebrino exerceu na sua formação. Saint-Beuve, talvez o mais importante estudioso da obra de Madame de Staël no século XIX, escreveu em relação ao ensaio mencionado: "As Lettres sur Jean-Jacques são uma homenagem de reconhecimento ao autor admirado e preferido, a quem Madame de Staël se liga mais estreitamente. Todas as obras seguintes (...) em diversos gêneros, romance, moral, política encontram-se pressagiadas com antecipação neste rápido e harmonioso canto de louvor aos escritos de Rousseau, como uma grande sinfonia se antecipa, já inteira depois de ser concebida, na sua abertura. O sucesso destas Lettres, que respondia ao espírito do tempo, foi universal" [apud Larousse, 1865: 1046]. Outras influências recebidas por Madame de Staël na sua formação, foram as de Montesquieu, Turgot e Condorcet. Ela conseguiu, a partir de todas essas fontes, elaborar uma síntese pessoal aberta à liberdade e contrária ao determinismo, em boa medida pela sábia incorporação de princípios filosóficos novos, provenientes da Inglaterra e da Alemanha.
Eclodida a Revolução Francesa, Madame de Staël aspirou a desempenhar, nela, um papel ativo. Rejeitada pelos republicanos, renegada pelos partidários do Rei, ela era identificada como partidária da monarquia constitucional. Fazia votos pelo triunfo do sistema bicameral inglês. A sua posição política granjeou-lhe inúmeras perseguições. Surgiram contra ela panfletos desrespeitosos e violentos. Mas conseguiu se manter por cima dessas baixas intrigas. Deixou a sua apreciação acerca dos acontecimentos revolucionários na obra intitulada Considérations sur la Révolution Française, que seria publicada postumamente. Após uma estadia na Suécia, Madame de Staël veio se estabelecer na região de Vaud, no castelo de Coppet, na Suíça, onde Necker tinha se recolhido desde 1790.
A escritora ficou muito impressionada com a violência do processo revolucionário e a duras penas conseguiu escrever um único livro neste período: a sua Mémoire pour la défense de Marie-Antoinette, que foi publicado em  agosto de 1793, na Inglaterra e na Suíça, com o título de Réflexions sur le procès de la reine par une femme [Staël, 1996b]. A obra em apreço foi escrita logo depois do panfleto de Necker intitulado Réflexions présentées à la nation française sur le procès intenté à Louis XVI, publicado no outono de 1792 [cf.Thomas, 1996: 7].
A defesa esboçada por Madame de Staël na sua Mémoire de 1793 não pretendia ser uma peça jurídica, como ela própria reconhecia no prólogo. A novel escritora apelava para a sua condição de mulher, simplesmente. Eis as palavras da nossa autora a respeito: "O meu nome, não sendo útil, deve permanecer desconhecido; mas, para destacar a imparcialidade deste escrito, devo dizer que, entre as mulheres chamadas para ver a rainha, sou uma daquelas que menos tiveram com essa princesa relações pessoais. Estas reflexões merecem, porisso, o crédito de todos os corações sensíveis, pois não foram inspiradas pelos motivos (utilitaristas) que animam a todos" [Staël, 1996: 17]. Julia Kristeva enxerga neste escrito traços de modernidade, ao se posicionar Madame de Staël de forma crítica, ao mesmo tempo contra a selvajaria revolucionária, o terror imposto em nome da maioria e o massacre dos débeis, especialmente as mulheres. A respeito, Kristeva frisa: "Quando Madame de Staël implora clemência para Maria Antonieta, tenho certeza de que em seu pleito se misturam o orgulho ferido da humanista que abomina o massacre, a cólera da aristocrata diante da selvajaria da opinião comum e a revolta de uma feminista bem antecipada, insurgida contra a opressão às mulheres. Tudo isso é largamente suficiente para sustentar, se não para provocar, uma certa inclinação para a infelicidade. Germaine de Staël advoga a inocência da Rainha, sua feminilidade, sua estranheza, sua maternidade. Sustenta que, a partir de um grau elevado, a queda é mais dolorosa. Definitivamente, considera injuriadas por esse sacrifício todas as mulheres, em sua fraqueza social e em sua fragilidade de mães. (...) Mesmo diante do suplício, o pensamento da glória não abandona Madame de Staël. Mas são a fraqueza e a dor femininas, ferozmente varridas pela tirania revolucionária, que lhe parecem superiores" [Kristeva, 2002: 178-179].
Em 1795, Madame de Staël escreveu as suas Réflexions sur la paix adressées à Pitt e aux Français, em que advogava por uma aproximação entre a França e a Inglaterra e que obteve, em pleno Parlamento, os elogios de Fox. A propósito desse escrito, frisou Sainte Beuve: "Uma mescla de comiseração profunda e de justiça calma, o chamamento a todas as opiniões não fanáticas ao esquecimento, à conciliação, o temor pelas reações iminentes e extremistas que renascem umas das outras, esses sentimentos, tão generosos quanto oportunos, marcam, ao mesmo tempo, a elevação da alma e das perspectivas. Há algo de inspiração antiga nessa jovem mulher que se arrisca a falar ao povo, de pé sobre os escombros fumegantes" [apud Larousse, 1865: 1046]. No final desse mesmo ano Madame de Staël publicou o seu Essai sur les factions e, no início de 1796, a obra intitulada De l'influence des passions sur le bonheur des individus et des nations.
A instalação no castelo de Coppet marca uma nova etapa na vida intelectual de Madame de Staël. Insatisfeita com o seu casamento, ela decide superar com a vida intelectual as frustrações afetivas. Em 1800 escreve a sua mais importante obra, que já foi mencionada: De la Littérature. A idéia central da obra consiste na sua fé inabalável no progresso do espírito humano. A propósito desse leitmotiv, escreve a autora: "Ao percorrer as revoluções do mundo e a sucessão dos séculos, salta à vista uma primeira idéia que sempre chamou a minha atenção; é a perfectibilidade da espécie humana. Não penso que essa grande obra da natureza moral tenha sido jamais abandonada; nos períodos luminosos como nos séculos de trevas, a marcha gradual do espírito humano não tem sido interrompida" [Staël, 1998: 40-41].
A perfectibilidade humana era entendida pela nossa autora num ousado sentido liberal: como aperfeiçoamento dos seres humanos, não exclusivo de uma classe, mas alargado a todas as camadas sociais; esse aperfeiçoamento deveria, para ser autêntico, implicar o exercício da liberdade individual e a sua consolidação num regime que a respeitasse e que ela denominava de república. A concepção de Madame de Staël lembra a esboçada por Immanuel Kant na sua Paz perpétua (publicada em 1795). A escritora francesa considerava que somente se conseguiria implantar uma república que respeitasse a liberdade, se as luzes fossem espalhadas pela sociedade e não ficassem restritas a um pequeno número de philosophes. Esse processo de democratização corresponderia aos escritores, que deveriam estar comprometidos com o conhecimento das raízes culturais do próprio país, a fim de que as propostas liberalizantes ancorassem num chão cultural firme. Todo esse processo seria denominado por Madame de Staël de civilização. A Revolução Francesa foi uma tentativa de encontrar o caminho para a perfectibilidade. Mas viu-se frustrada a partir do momento em que os revolucionários inseriram-se num contexto cientificista, determinista e sensualista, que os exonerava de preocupações morais. Corresponderia aos escritores, transformados em agentes de renovação social, retomar o rumo das reformas frustradas. Ora, encontramos aqui os germes doutrinários fundamentais, que inspirarão o liberalismo de Constant de Rebecke, de Guizot e de Tocqueville. Sintetizando, o que a autora pretendia era, em primeiro lugar, defender a liberdade ameaçada pelo bonapartismo e, em segundo plano, renovar o espírito da crítica a partir do seguinte princípio: "A Literatura é a expressão da sociedade" [cf. Lotterie, 2000: 9-22; Mélonio - Noiray, 2000: 3-7].
A mencionada obra de Madame de Staël foi injustamente criticada por algumas revistas como Décade Philosophique, Mercure e Débats. Somente Chateaubriand fez do livro uma avaliação relativamente equilibrada, nos seguintes termos que destacavam o seu valor filosófico, bem como a inspiração tradicionalista do autor de Le Génie du Christianisme:  "Madame de Staël confere à filosofia o papel que eu atribuo à religião. (...) A minha loucura consiste em tentar enxergar Jesus Cristo em todas partes, enquanto Madame de Staël quer ver em tudo a perfectibilidade. (...) Desagrada-me que Madame de Staël não tenha desenvolvido o sistema das paixões do ângulo religioso. A perfectibilidade não é, a meu ver, o instrumento adequado para medir as fraquezas humanas (...). Algumas vezes Madame de Staël parece ser cristã; logo depois, a filosofia prevalece. Em alguns momentos, inspirada pela sensibilidade natural, ela põe a nu a sua alma. Mas, logo a seguir, a argumentação se levanta e vem contrariar os impulsos do coração (...). Este livro é, pois, uma mistura singular de verdades e erros. (...) Eis o que ousaria lhe dizer, se tivesse a honra de conhecê-la: Vós sois, sem dúvida, uma mulher superior. (...) A vossa expressão possui, em geral, força, elevação (...). Mas, em que pese todas essas qualidades, a vossa obra está bem longe de ser o que poderia ter sido. O estilo é monótono, sem movimento e muito misturado com expressões metafísicas. O sofisma das idéias perdura, a erudição não satisfaz e o coração é muito sacrificado ao pensamento. O vosso talento somente se desenvolveu pela metade, pois a filosofia o sufoca (...)" [cit. por Larousse, 1865: 1046]. A partir da crítica da Chateaubriand à obra de Madame de Staël, nasceu uma duradoura amizade entre os dois grandes escritores que passaram a representar a renovação da literatura francesa no início do século XIX.
O romance Delphine foi publicado por Madame de Staël em 1802. A obra teve um grande sucesso devido, em parte, às discussões religiosas que acabavam de ser levantadas por Chateaubriand em Le Génie du Christianisme. Mas a repercussão favorável deveu-se também ao fato de que no romance eram claramente identificáveis importantes figuras do momento como Benjamin Constant de Rebecke, Talleyrand e a própria Madame de Staël. Nem por isso deixou de suscitar críticas injustas. Um artigo de autor anônimo, publicado no Mercure de France, afirmava o seguinte: "Delphine fala do amor como uma bacante, de Deus como um quaker, da morte como um granadeiro e da moral como um sofista".
A partir de 1797 Madame de Staël regressou a Paris para morar no seu Hôtel na rue de Grenelle, perto da rue du Bac. O seu marido a acompanhou, tendo retomado as funções de embaixador da Suécia perante a República Francesa. O barão de Staël-Holstein morreu cinco anos depois, em 1802. A nossa autora passou então a residir em Saint-Brice, nos arredores de Paris, onde organizou, em companhia de Madame Récamier, o seu salão e passou a exercer sensível influência nos círculos políticos, tendo conseguido, por exemplo, que fosse entregue a Talleyrand a pasta dos negócios estrangeiros. O seu salão converteu-se, então, no ponto de encontro de todos os descontentes com o autoritarismo do primeiro Cônsul. Esse fato, aliado às freqüentes viagens que ela fazia ao castelo de Coppet para encontrar o seu pai, bem como a publicação, por ele, da obra Dernières vues de politique et de finances de Monsieur Necker [Necker, 1802: 2 vol.] (em que a nossa autora indubitavelmente tinha colaborado), terminaram desagradando profundamente Bonaparte. Além do mais, como frisa Larousse, "na cena política do novo regime não havia lugar para as mulheres". O conflito com Bonaparte sobreveio rapidamente e afastou Madame de Staël do palco político nos quinze anos seguintes. O exílio a que foi condenada a escritora foi a conclusão lógica desses eventos [cf. Jaume, 2000].
Desterrada, a nossa autora deixou a sua residência de Saint-Brice no início de 1803 e partiu para a Alemanha, permanecendo dois anos em Weimar. Entrou em contato com Goethe e Schiller. Reveladoras da forma em que Madame de Staël personificava com brilhantismo o Zeitgeist francês são as seguintes palavras de Schiller, em carta dirigida a Goethe: "Ela representa o espírito francês sob uma luz verdadeira e muito interessante. Em tudo que chamamos de filosofia e, consequentemente, em todas as questões elevadas e decisivas, encontramo-nos em desacordo com ela e todas as conversas não podem mudar nada. Mas a sua natureza e o seu sentimento valem mais do que a sua metafísica. A sua bela inteligência toca o poder do gênio. Ela não nos aceita nada de obscuro, de inatingível e tudo quanto não consegue esclarecer à sua luz, simplesmente não existe para ela. Destarte, ela tem grande medo da filosofia idealista que, a seu ver, conduz ao misticismo e à superstição, e esta é a atmosfera que a aniquila. Não há para ela o sentido do que chamamos de poesia. De uma obra deste gênero só assimila a paixão, a eloquência e o sentido geral. Mas se o bom às vezes lhe escapa, jamais admitirá o mal" [apud Larousse, 1865: 1047].
De Weimar Madame de Staël dirigiu-se a Berlim, onde teve uma calorosa acolhida na corte da Prússia. Em 1805 fez uma curta viagem à Itália, de onde teve de regressar rapidamente a Coppet, com motivo da morte do seu pai. Fixou então residência no castelo e organizou ali essa espécie de corte da cultura que a celebrizou durante o Império. A nossa autora tinha aproveitado as suas viagens à Alemanha e à Itália para esboçar duas grandes obras: De l'Allemagne e Corinne. Este último romance foi publicado em 1807 e o seu sucesso perante a crítica foi ainda maior que o obtido com a publicação de Delphine. Corinne representava a glorificação da Itália e, ao mesmo tempo, a personificação ideal da mulher moderna. Contava-se que Napoleão Bonaparte ficou profundamente irritado com o cúmulo de elogios de que fora objeto Madame de Staël. Tratava-se, sem dúvida, da obra da sua maior inimiga, daquela que teve a audácia de desafiá-lo ao longo dos últimos anos. Villemain dizia que o Imperador da França tinha ficado tão abalado com os elogios levantados à obra de Madame de Staël, que decidiu, ele mesmo, escrever uma crítica no Moniteur.
Uma breve anotação relacionada às personagens desse romance: a nossa autora, personificada em Corinne, aparecia no relato em Roma com o nome de Telisilla Argoica e ciceroneada pelo jovem Oswald, ao longo de uma caminhada noturna visitando os seculares monumentos, que eram o marmóreo pedestal da paixão que ela passou a sentir pelo seu jovem guia. Ora, na vida real, Oswald era  o nobre português dom Pedro de Souza Holstein (futuro conde de Palmella), nascido em Turim em 1781 (quinze anos mais jovem do que nossa autora). Dom Pedro, então com 24 anos, era um belo jovem, "com os seus olhos azuis e os seus cabelos pretos"; era "um cavalheiro elegante" dono de "uma forte e bela voz com que encantava as damas e um ar grave tingido de saudade: a melancolia pre-romântica adicionava-se aos seus atrativos" [Andlau,  1979:  16]. Apaixonada pelo jovem português, Madame de Staël esperava encontrar nele um porto seguro e fiel para ser correspondida no seu amor. Grandes desgarramentos interiores ela tinha sofrido recentemente de Benjamin Constant e de outros amantes ilustres como Narbonne, Ribbing, François de Pange, Monti. "O lugar onde eles se encontram contribui para a exaltação dos sentimentos: eles caminham ao luar em Roma e os cursos arqueológicos para o romance projetado feitos em companhia de Humboldt, de Alborghetti e de outros, são alegres passeios. A vida eterna converter-se-á no pano de fundo ideal para um romance de amor. O herói apareceu: Eu vos amei e tudo se iluminou para mim", frisa Beatrix d'Andlau [1979: 18], citando a apaixonada carta que Madame de Staël escreveu em maio de 1805 ao seu jovem amante. Paixão não correspondida, pelo menos na intensidade com que a grande escritora amou o jovem dom Pedro, de quem se poderia dizer as palavras que Mathieu de Montmorency, fiel amigo da nossa autora, escreveu de Ribbing: "Eis um homem que deve ser colocado na categoria dos que não sabem amar" [cit. por Andlau, 1979: 18]. O certo é que dessa intensa relação ficou um belo testemunho: a correspondência entre Madame de Staël e dom Pedro de Souza [Staël-Souza, 1979].
Após o sucesso obtido com a publicação de Corinne e as reações adversas do governo francês, Madame de Staël não se sentiu plenamente segura na sua residência de Coppet. Em 1808 viajou para Alemanha, a fim de terminar o livro que tinha esboçado acerca da cultura germânica. Em Viena a nossa autora teve oportunidade de conhecer o general holandês Dirk van Hogendorp, ajudante-de-ordens de Napoleão, que se referiu a ela de forma depreciativa nas suas Memórias, escrevendo o seguinte: "Madame de Staël, querendo ser sempre sábia e profunda, alambicava suas expressões e enrolava suas frases até que parecia ter esquecido o que queria dizer. Era a celebridade o que queria, e a qualquer preço, por todos os meios. E Paris, o mais belo teatro do mundo para os talentos, o centro da glória, esse era o lugar onde ela queria brilhar" [apud Mélon 1996: 83]. Valha apenas uma anotação marginal em relação a Hogendorp: após a derrota definitiva de Napoleão, o general holandês radicou-se no Brasil, onde passou a viver como  eremita na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, onde morreu em outubro de 1822 [cf. Mélon, 1996: 191].
De Viena Madame de Staël escreveu ao antigo amigo Talleyrand, tratando de que ele intercedesse junto ao Imperador, para que lhe fosse paga a vultuosa soma que tinha Necker emprestado ao Rei da França, Luís XVI. A carta estava cheia de elegante ironia em relação ao ingrato amigo a quem a nossa autora tinha favorecido na sua carreira política e que olimpicamente passou a ignorá-la depois de desencadeada a perseguição de Bonaparte. Na missiva, datada em abril de 1808, Madame de Staël frisava: "Tenho pedido ao meu filho para ir ao vosso encontro e vos solicitar franca e simplesmente que vos interesseis na liquidação dos 2 milhões (de libras) que constituem mais da metade da nossa fortuna e da herança dos meus filhos. É uma dor cruel para mim pensar que eu não cuido da minha família, que eles não receberão o pagamento se amanhã eu não mais existir; pois esta dívida tem um caráter tão sagrado que as prevenções do Imperador contra mim são as únicas que podem impedir que ela seja paga (...). A vós que tudo adivinhais, tenho-vos dito o suficiente sobre este assunto. Vós tinhais-me escrito há treze anos, da América: Se eu permanecer mais um ano aqui, morro. Eu poderia dizer outro tanto em relação à minha permanência no estrangeiro: eu sucumbo. Adeus (...). Não sei terminar senão desse jeito ao falar com vós. Necker de Staël" [apud Larousse, 1865: 1047].
Talleyrand (assaz ingrato, como foi frisado, para com a sua antiga protetora que o tinha guindado ao Ministério) fez ouvidos moucos ao pedido da nossa autora [cf. Cooper, 1945: 65-69]. Madame de Staël somente obteria o pagamento da dívida no período da Restauração. Pôde, contudo, regressar sem temor à antiga residência de Necker. A respeito das atividades que se desenvolviam ali sob a inspiração e o comando da nossa autora, escreveu Saint-Beuve o seguinte testemunho: "A vida de Coppet era uma vida de castelo. Reuniam-se ali, com freqüência, até trinta pessoas, entre estrangeiros convidados e amigos. Os mais habituais eram Benjamin Constant, Monsieur Auguste Wilhelm de Schlegel, Monsieur de Saubran, Monsieur de Sismondi, Monsieur de Bonstetten, os barões de Voigt, de Balk, etc. Cada ano reuniam-se ali, uma ou mais vezes, Monsieur Matthieu de Montmorency, Monsieur Prosper de Barante, o príncipe Augusto da Prússia, a beleza célebre chamada por Madame de Genlis com o nome de Athenais (Madame Récamier), um número significativo de intelectuais da Alemanha ou de Genebra. As conversas filosóficas e literárias, sempre picantes ou elevadas, começavam por volta das onze horas, ao ensejo do almoço e eram retomadas no período entre o jantar e a ceia, que tinha lugar às onze da noite, ou estendiam-se até mais tarde, por volta da meia-noite. Nessas sessões Benjamin Constant (....) apresentava-se a nós, jovens, (conforme Madame de Staël o proclamava sem prevenções) como o primeiro espírito do mundo. Ele era certamente o primeiro dos homens distintos. Pelo menos o espírito dele e o de Madame de Staël acoplavam-se sempre e estavam conscientes disso. Nada, segundo as testemunhas, era tão fervilhante e superior quanto a conversação que se desenvolvia nesse círculo seleto. Os dois tinham nas mãos, por assim dizer, a raqueta mágica do discurso e se passavam durante horas, sem jamais falhar, a bola de mil pensamentos entrecruzados" [cit. por Larousse, 1865: 1047].
Além das conversas intelectuais, em Coppet tinham lugar divertimentos cultos. Eram representadas tragédias de Voltaire, muito apreciadas por Madame de Staël, ou peças especialmente compostas por ela ou pelos seus amigos. Esses escritos eram impressos em Paris, a fim de que todos pudessem seguir mais fielmente o assunto. Havia grande cuidado com o texto, chegando ao extremo de serem impressas novas cópias,  entre uma sessão e outra, caso houvesse lugar a correções. A poesia também encontrou em Coppet uma atenta acolhida. Zacharias Werner recitou ali vários dos seus dramas. O poeta dinamarquês Oehlenschäger teve também a oportunidade de declamar ali os seus poemas.
Em 1810 Madame de Staël arriscou-se a ir incógnita a Paris, a fim de tratar da publicação do seu livro De L'Allemagne [cf. Staël 1968], ao qual tinha dedicado os seus esforços intelectuais desde 1803. A nossa autora tinha sido sensibilizada em face da cultura alemã por um velho amigo suíço, Jacques-Henri Meister, que freqüentou a casa de seus pais em Paris [cf. Grubenmann, 1954: 59-68].  O que significou esta incursão na cultura alemã para a nossa autora? Simone Balayé responde: "Ao se iniciar na literatura alemã ela descobre ali, como entre os Ingleses, o nexo com a natureza e o povo, as tradições nacionais, o poder do sentimento. Tudo quanto ela amava em Rousseau,  encontrará de novo na Alemanha. Assim, ela permanecia fiel ao espírito e à tradição do século XVIII, ameaçado na França de todos os lados, bem como por outra parte à visão moral e religiosa que ela tinha herdado de seu pai e ao ideal da liberdade ao qual muitos renunciavam. Fazendo isso, ela permanecia a salvo das posições extremadas da filosofia materialista francesa, aspecto do século XVIII que ela renegava, e ficava a salvo também da reação católica. Mas a sua fidelidade às Luzes também a preservaria das posições mais avançadas dos românticos alemães" [Balayé, 1968: 22-23], notadamente no que tange aos aspectos de irracionalismo que a nossa autora criticará neles, em Schlegel de maneira particular.
De L'Allemagne representou, no contexto do pensamento francês, um ajuste de contas do espiritualismo moderado em face do sensualismo de Condillac e dos Ideólogos. Em que pese o fato da influência recebida inicialmente deles por Madame de Staël, no entanto a nossa autora, na altura da elaboração da sua obra sobre a cultura alemã, já tinha amadurecido intelectualmente o suficiente como para fazer uma crítica fundamentada ao excessivo materialismo da ética utilitarista que animava aos Ideólogos. A moral, no sentir destes, reduzir-se-ia simplesmente a um cálculo de interesses. Ora, pensava Madame de Staël, ela não poderia ser reduzida apenas a esse frio e materialista cálculo. Era necessário lhe dar alicerces mais fortes e acordes com a herança cristã. Encontrou no pensamento de Kant a fonte de que poderia se nutrir na sua crítica ao utilitarismo. A nossa autora ficou verdadeiramente impressionada com a leitura da obra do autor da Crítica da Razão Pura.  Eis a apresentação que dele fazia: "Kant viveu até uma idade muito avançada, não tendo jamais saído de Königsberg. Foi lá, no meio do gelo do Norte onde passou a sua vida inteira a meditar sobre as leis da inteligência humana. Uma paixão infatigável pelo estudo fazia-o adquirir conhecimentos sem número. As ciências, as línguas, a literatura, tudo lhe era familiar. E sem procurar a glória, da qual gozou muito tardiamente, não conhecendo senão na sua velhice o burburinho do renome, contentou-se com o prazer silencioso da reflexão. Solitário, contemplava a sua alma com recolhimento. O exame do pensamento dava-lhe novas forças para defender a virtude, e embora jamais se misturasse com as paixões ardentes dos homens, soube forjar armas para aqueles que seriam chamados a combaté-las" [Staël, 1968: II, 127].
A partir da meditação kantiana, considerava Madame de Staël, seria possível fundamentar uma moral na interioridade do sujeito, a fim de substituir os princípios utilitaristas alicerçados na exterioridade dos interesses. Eis a forma em que Kant veio em seu socorro para essa empreitada: "A filosofia materialista entregava o entendimento humano ao império dos objetos exteriores, a moral ao interesse pessoal e reduzia o belo ao agradável. Kant quis restabelecer as verdades primitivas e a atividade espontânea na alma, a consciência na moral e o ideal nas artes" [Staël, 1968: II, 128]. Ora, considerava a nossa autora, o pensador alemão fez essas três coisas, respectivamente, na Crítica da Razão Pura, na Crítica da Razão Prática (e "nos diferentes escritos que ele compôs sobre a moral") e  na Crítica do Juízo. Se detendo no que tange à moral kantiana, Madame de Staël frisava que "é o sentimento que nos dá a certeza da nossa liberdade e essa liberdade é o fundamento da doutrina do dever. Pois, se o homem é livre, ele deve se dar a si mesmo os motivos todo-poderosos que combatem a ação dos objetos exteriores e libertam a vontade do egoísmo. O dever é a prova e a garantia da independência mística do homem" [Staël, 1968: II, 135].
Mas voltemos às aventuras da publicação de De l'Allemagne. A polícia do Imperador ficou sabendo e a edição de dez mil exemplares foi apreendida e destruída. A nossa autora somente conseguiria ver o seu livro editado e circulando três anos depois, em Londres. Esta obra constituiu, depois de De la Littérature, a mais importante criação literária de Madame de Staël, pelo fato de ter oferecido aos leitores franceses um quadro completo da filosofia e da literatura de além o Reno, que até então eram absolutamente desconhecidas do grande público.
A propósito, escreveu o crítico Demongeot: "Na época em que apareceu, a literatura alemã era ainda para nós um mundo desconhecido, mais ainda, um universo objeto de desprezo e de piadas. Voltaire atribuía aos alemães mais consonantes do que pensamentos. Madame de Staël tomou uma gloriosa iniciativa. Ela foi a primeira que ousou penetrar nessa floresta tenebrosa e não somente entrou antes do que os outros, mais ainda assinalou o caminho a seguir, com muita mais fidelidade à verdade do que o fizeram os que vieram depois.(...) Em De L'Allemagne, contudo, eleva-se por cima dela mesma, superando os preconceitos franceses e renunciando ao ponto de vista sensualista da filosofia do século XVIII. Esse pode ser o maior serviço que este espírito generoso prestou à França e à filosofia. A esfera em que viviam Goethe, Schiller, Kant e Hegel abriu-se aos nossos olhos. Se a autora não compreendeu sempre esses grandes homens, espalhou pelo menos o desejo de conhecê-los. Os seus erros são menos numerosos do que se pode dizer. O instinto do verdadeiro e do belo suprem, nela, a imperfeição necessária dos conhecimentos" [apud Larousse, 1865: 1047].
Após a destruição do seu livro, Madame de Staël foi confinada em Coppet por ordem de Napoleão, tendo os seus amigos sido proibidos de ir visitá-la. Aqueles que ousaram desobedecer essa proibição, como foi o caso de Madame Recamier e de Matthieu de Montmorency, foram exilados. Em 1812, contudo, a nossa autora conseguiu driblar a polícia imperial e percorreu vários países, indo até a Polônia e a Rússia, reacendendo em todas partes a animosidade contra Napoleão. De Londres regressou à França, após a abdicação de Napoleão em 6 de abril  de 1814 [cf. Blaeschke, 1998: IX-XIX].
Madame de Staël tinha conhecido na Inglaterra Luís XVIII e ela enxergava nele o homem capaz de dotar a França da monarquia constitucional à inglesa, que tinha sido o seu sonho no início da Revolução de 1789. Mas ela conhecia, também, esses emigrados que voltavam com ele, cheios de arrogância e auto-suficiência. "Eles corromperão os Bourbons, frisava ela". O que, de fato, não tardou em acontecer. Durante os Cem Dias, Madame de Staël retirou-se à Suíça. Napoleão fez-lhe saber que poderia voltar a Paris e lhe acenou com o pagamento da dívida que o Estado Francês tinha contraído com o seu pai. Ela respondeu: "Napoleão passou por cima da Constituição e de mim ao longo de 12 anos e não será agora que ele vai nos amar, a mim e a ela, com maior intensidade". 
A nossa autora tinha casado, em 1810, em segundas núpcias, com John Rocca, jovem oficial suíço a serviço da França. Em 1816 ele caiu doente em Pisa e ela viu-se obrigada a partir para essa cidade a fim de cuidar do marido. De regresso a Paris, Madame de Staël veio falecer nesta cidade, em 14 de Julho de 1817. Saint-Beuve dá o seguinte testemunho acerca dos últimos anos de Madame de Staël: "A amargura que lhe causou a destruição inesperada do seu livro (De L'Allemagne) foi grande. Seis anos de estudos e de ilusões aniquilados, o recrudescimento da perseguição no momento em que ela tinha necessidade de uma trégua, além de outras circunstâncias contraditórias e duras deram ensejo, nessa época, a uma crise violenta, uma prova decisiva que a lançou sem volta no que tenho denominado de anos sombrios. Até então, mesmo as tempestades tinham deixado lugar para ela desfrutar de instantes luminosos, de pequenas alegrias e, segundo a sua expressão tão graciosa, respirar um ar escocês na sua vida. Mas, a partir de então, tudo virou mais áspero. A juventude, em primeiro lugar, essa grande e fácil consoladora, foi-se embora. Madame de Staël tinha pavor diante do avanço da idade e da idéia de chegar à velhice. Um dia em que ela não dissimulava esse sentimento perante Madame Suard, esta lhe respondeu: Vamos, então vós sabereis ocupar vosso lugar, sereis uma velha muito simpática. Mas ela tremia diante desse pensamento. A palavra juventude tinha um verdadeiro encantamento musical aos seus ouvidos (...). Estas simples palavras: nós éramos jovens então, enchiam os seus olhos de lágrimas. (...). O ar escocês, o ar brilhante do começo rapidamente converteu-se em hino grave, santificante, austero " [apud Larousse, 1865: 1048]. Foram publicados postumamente os seguintes livros da nossa autora: Considérations sur la Révolution Française (1818) [cf. Staël, 2000], Essais dramatiques (1821), Dix années d'exil (1821) [cf. Staël, 1996a] e Oeuvres inédites (1836).
Chateaubriand, em  Mémoires d'Outre-Tombe, registrou com traços magistrais os últimos dias de Madame de Staël, salientando a grandeza da sua personalidade: "Foi numa dolorosa época para a ilustração da França quando encontrei de novo Madame Récamier, no tempo em que ocorreu a morte de Madame de Staël. Tendo regressado a Paris depois dos Cem Dias, a autora de Delphine ficou doente; eu a tinha visto de novo na sua casa e na residência da duquesa de Duras. Tendo piorado aos poucos o seu estado de saúde, foi obrigada a ficar de cama. Numa manhã eu tinha ido à sua casa na rue Royale; os postigos das janelas estavam semi-fechados; o leito, próximo da parede do fundo do quarto, não deixava senão uma estreita passagem à esquerda. As cortinas, recolhidas nos trilhos, formavam duas colunas aos lados do travesseiro. Madame de Staël, sentada, estava apoiada em almofadas. Aproximei-me e quando o meu olho foi-se aos poucos acostumando à obscuridade, distingui a doente. Uma febre ardente acendia as suas faces. O seu belho olhar encontrou-me nas trevas e ela me disse: Bonjour, my dear Francis.  Eu sofro, mas isso não me impede de amar você. Ela estendeu a sua mão, que segurei e beijei. Levantando a cabeça, percebi no borde oposto da cama, na passagem, alguma coisa que se levantava branca e magra: era Monsieur de Rocca, o rosto pálido, as faces encovadas, os olhos turvos, a tez indefinível. Ele morria. Nunca o tinha visto e jamais tornei a vê-lo. Ele não abriu a boca. Inclinou-se ao passar na minha frente; não se escutava o ruído dos seus passos. Ele se afastou à maneira de uma sombra. Parado um momento na porta, (...) voltou-se em direção ao leito fazendo menção de não se afastar de Madame de Staël. Esses dois espectros que se entreolhavam em silêncio, um em pé e pálido, outro sentado e colorido com um sangue prestes a descer de novo e a se congelar no coração, faziam arrepiar. Poucos dias depois, Madame de Staël mudou de residência. Ela convidou-me a jantar na sua casa, na rue Neuve-des-Mathurins. Eu compareci. Ela não estava no salão e não pôde, efetivamente, comparecer ao jantar. Mas ela ignorava que a hora fatal estava tão próxima.(...). Madame de Staël morreu. O último bilhete que endereçou a Madame de Duras estava  escrito com grandes letras irregulares como as de uma criança. Uma palavra afetuosa encontrava-se ali para Francis. O talento que expira leva consigo mais do que o indivíduo que morre. É uma desolação geral que golpeia a sociedade. Cada um, ao mesmo tempo, sofre a mesma perda. Com Madame de Staël acabou uma parte considerável do tempo que tenho vivido. Tamanhas são as fendas que produz num século uma inteligência superior que desaba. Elas não mais se fecham. A sua morte produziu em mim uma impressão particular, à qual se misturou uma espécie de estonteamento misterioso (...)" [Chateaubriand, 1951: II, 601-602].
Concluo este breve esboço bio-bibliográfico citando a síntese feita por Florence Lotterie acerca da obra da grande escritora: "Herdeira das Luzes, Madame de Staël é também filha da Revolução (...). A literatura é o instrumento da criação de um espírito nacional e desempenha a função de elo de união entre os imperativos de difusão das luzes e da realização de uma sociedade livre, ou seja, republicana. O reconhecimento da utilidade patriótica dos escritores assinala os progressos da civilização, mas na regulação necessária dos modos de transmissão do saber e do apetite democrático. Não se trata mais, efetivamente, de progressos feitos não importa por quem ou como. Não se poderia concluir sem lembrar que o magistério literário é o de uma elite e a república staëliana consiste numa aristocracia do mérito. Os ideais ilustrados do século XVIII acham-se, pois, ao mesmo tempo alargados  numa perspectiva progressista, que recusa por sua vez o espectro da decadência e as abstrações normativas da história conjectural, em benefício do fato civilizador. Acham-se também superados esses ideais pelo caráter programático de uma perfectibilidade convertida em princípio fundador da vontade de agir, em prol da regeneração política. Acham-se temperados pela dúvida melancólica e confirmados na sua prudência elitista" [Lotterie, 2000: 22].
II - Concepção liberal da Política, do Estado e da Economia, segundo Necker
Madame de Staël recebeu, sem dúvida, uma definitiva influência liberal de seu pai. Essa influência revestiu-se, antes de mais nada, de um exemplo de patriotismo. Para Jacques Necker, o princípio fundamental que pautava a sua ação política consistia em merecer a confiança da Nação. Diante desse imperativo, tudo deveria ser posto em segundo plano: riqueza, honras, ambições. A propósito deste ponto, escrevia Madame de Staël em Considérations sur la Révolution Française: "Depois dos seus deveres religiosos, a opinião pública era o que mais o preocupava.. Ele sacrificava a fortuna, as honras, tudo o que os ambiciosos buscam, à estima da nação. E esta voz do povo (...) tinha para ele alguma coisa de divino. A menor mancha sobre a sua reputação constituía para ele o maior sofrimento que poderia ter na vida. A finalidade mundana de suas ações, o vento de terra que o fazia navegar, era o amor à reputação. Um ministro do rei da França não tinha, aliás, como os ministros ingleses, uma força independente da corte. Ele não podia manifestar em público, na câmara dos comuns, nem o seu caráter, nem a sua conduta. E inexistindo liberdade de imprensa, os panfletos clandestinos tornavam-se mais perigosos ainda" [Staël, 2000: 104].
Mas essa influência liberal de Necker sobre Madame de Staël deitava raízes numa admiração exaltada, numa verdadeira paixão da filha pelo pai, com as evidentes contradições que isso acarreta. Testemunho direto dessa situação deixou-nos Madame de Staël, em palavras (dignas de uma sessão psicanalítica) escritas por ela em 1785, no seu  Journal de Jeunesse: "(...) Algumas vezes lhe encontro defeitos de caráter que amarguram a doçura interior da vida. É que ele gostaria que eu o amasse como um amante e ele me fala, no entanto, como um pai. Eu gostaria que ele me amasse como um amante e que eu agisse no entanto como uma filha. O que me torna infeliz é essa luta interior entre a minha paixão por ele e as tendências da minha idade, que ele gostaria de ver sacrificadas totalmente. É esse mesmo combate cuja duração o torna um espectador impaciente. Nós não nos amamos sempre até o excesso e no entanto a intensidade do nosso amor é tão próxima disso, que não posso suportar tudo aquilo que nos lembra que ainda não chegamos a esse limite. De todos os homens da terra é ele que eu teria desejado como amante. É necessário que ele seja um notável para que, sem amor, eu o encontre digno de amor" [apud Balayé, 1979: 18].
Após a morte de Necker, a figura contraditória do amante/pai converteu-se em mito sobre o qual ela passou a alicerçar todas as suas convicções, buscando nesse rochedo a permanência que contrastava com a futilidade dos amores e a precariedade das circunstâncias políticas. Eis um texto de 1816, já no final de sua vida, que resume muito bem essa luta pelo amor imorredouro: "Tudo quanto me falou Monsieur Necker é firme em mim como a rocha. Tudo quanto conquistei por mim mesma pode desaparecer. A identidade do meu ser ancora na fidelidade que guardo à sua memória. Amei ele como nunca jamais amei ninguém. Apreciei ele como nunca mais apreciei ninguém. A vaga da vida tudo levou consigo, exceto essa grande sombra que está lá, no cume da montanha e que me indica a vida que virá" [apud Balayé, 1979: 18].
Não estranha, assim, a profunda influência que as idéias liberais do pai exerceram sobre o pensamento de Germaine. A figura dele simplesmente fez desaparecer a da mãe, com quem a nossa autora nunca teve uma relação tranqüila. Simone Balayé (1925-2002), a mais importante estudiosa da obra de Madame de Staël, sintetizou muito bem o simbolismo que exerceu a figura de Necker na imaginação da filha, destacando nessa representação a personalidade do estadista: "O entusiasmo de Germaine Necker não pode ser satisfeito por uma mãe enferma, triste e ciumenta, mas por esse pai cuja popularidade crescente alarga até as dimensões da França a admiração que a sua filha lhe dedica. Ele simboliza tudo quanto ela conhece de verdadeiramente grande. (...) Ela vive sob a sombra gloriosa desse pai uma espécie de amor perfeito, pleno, sem esforço. Ela cresce sob a admiração de todos, mas ela somente admira um só que será para sempre aos seus olhos o homem de Estado capaz de meditar em silêncio sobre as opiniões religiosas, como sobre as finanças da França, mas também acerca do ideal do homem comum. Ela sentirá sempre necessidade dessa exaltação: Eu tinha nascido sob os raios da glória do meu pai e descobri que fazia frio na sombra" [Balayé, 1979: 19].
 É fundamental, porisso, para entender as idéias de Madame de Staël, compreender o pensamento político e econômico de Jacques Necker. Em primeiro lugar, no que tange ao que poderíamos definir como a sua teoria do conhecimento, parece que ele tivesse presente o pensamento de Aristóteles de que, em matéria de política, não valem os juízos apodícticos, mas apenas os dialéticos, que expressam uma opinião alicerçada na experiência. O pai de Germaine acreditava no princípio, que será caraterístico dos doutrinários, de que em política não vale o pensamento especulativo sozinho, sem referi-lo ao processo histórico apreendido vivencialmente. Esse processo, mais as tradições que dele emergem, precisam ser levados em consideração por quem quiser compreender as realidades ligadas ao exercício do poder, ou por quem pretender modificar as instituições políticas de um país. Discutindo a conveniência de na França se estabelecer a representação política, Necker escrevia, por exemplo, na obra intitulada Dernières vues de politique et de finance:  "Essas não são reflexões vãs, embora um pouco subtis pela sua natureza; pois o interesse ou a indiferença pelas assembléias políticas  é determinado por circunstâncias que escapam à demonstração. É necessário julgá-las, como todas as coisas morais, por meio de simples apreensões. E se os homens atribuem um grande valor à experiência, é ela que dá consistência às idéias complexas ou fugidias, é ela que ensina as verdades que o raciocínio não poderia apreender anteriormente com suficiente força"  [Necker, 1802: 14-15].
A política exige uma reflexão projetada sobre o processo histórico. De nada adiantaria discutir, em teoria, se para a França seria melhor a República ou a Monarquia. Necker considerava que, no início do século XIX, seria necessário aos estudiosos levar em consideração as circunstâncias concretas do país e o homem com que os franceses contavam à frente do governo: Bonaparte. Somente partindo desse ponto seria possível achar um caminho para encontrar o rumo da liberdade e da democracia. O resto seria elucubração vazia. A respeito, escrevia: "Creio que, para comparar de boa fé a Monarquia com a República, é necessário estudar previamente o grau de perfeição que se poderia dar, na França, a esses dos gêneros de governo. E essa obrigação é tanto mais essencial, tanto mais rigorosa, quanto que não basta hoje um julgamento especulativo. É necessário examinar o que pode ter sucesso em meio a tantas opiniões encontradas, tantos hábitos já tornados fortes e tantas paixões ainda prestes a renascerem. É necessário estudar o que se pode fazer com o homem necessário e nós damos esse nome a Bonaparte" [Necker, 1802: VIII-IX]. Não se trataria, evidentemente, de sagrar os anseios imperiais do Primeiro Cônsul. Mas de conhecer as suas pretensões, bem como os hábitos decantados na mente das pessoas, como ponto de partida para a meditação sobre os ideais políticos a serem implementados. 
Do ângulo puramente teórico, Necker não escondia a sua preferência pela monarquia moderada.  Tal sistema de governo traria, em tese, maior estabilidade a um país de amplas dimensões. A propósito, escrevia: "É a minha opinião que, num vasto país, no seio de uma Nação viva e ardente, no interior de uma Nação mutável nos seus princípios, volúvel nas suas opiniões, uma Monarquia temperada deve ser preferida a uma República unitária e indivisível" [Necker, 1802: II, 304]. Mas, se a consideração especulativa aconselhava a adoção da monarquia temperada e embora as caraterísticas destacadas por Necker no texto anterior se aplicassem à França, eclodida a Revolução de 1789, derrubada a monarquia absoluta do jeito que aconteceu com Luís XVI, já era tarde demais, em 1802, para pretender instaurar na França essa modalidade de governo inspirada na monarquia britânica. O nosso autor tinha um ponto de vista de realismo político. No texto a seguir aparece essa nota de realismo, que não pretende brigar com os fatos. Frisava Necker: "Sem dúvida que, após ter mostrado as vantagens da Monarquia temperada, estaríamos de acordo com a sua essência, e estaríamos também em feliz harmonia com a impressão que pretendíamos produzir, se viéssemos em seguida indicar o meio, e o meio fácil para introduzir na França um tal Governo. Mas a natureza das coisas não se acomoda aos nossos sistemas. São os sistemas, ao contrário, que devem se acomodar a ela. Houve muitos momentos favoráveis, na França, para que fosse estabelecida uma Monarquia temperada; mas eles passaram" [Necker, 1802: II, 325-326].
A impossibilidade de instauração da monarquia temperada na França posterior à Revolução de 1789, prendia-se ao fato de que todos os segmentos sociais passaram a desenvolver um movimento centrípeto de cooptação das instituições, em função dos seus interesses corporativos. Nesse terrível contexto de perda do sentido do que é bem comum, o desfecho napoleônico foi um mal inevitável. Eis o clima de ausência de espírito público que terminou vingando na França após a terrível saga revolucionária, no sentir de Necker: "Essa disposição (de instaurar uma Monarquia temperada) se enfraqueceu. Ou, pelo menos, deixou de ser universal, quando foi prometida a convocação dos Estados Gerais. As diferentes ordens do Estado, os diversos corpos políticos somente cuidaram das prerrogativas de que então careciam. E todos se jactavam de que, numa tão grande assembléia e no meio ao descontentamento geral, a Corte precisaria do apoio de todos eles; e que cada um, segundo o seu ponto de vista, melhoraria a sua situação"  [Necker, 1802: II, 327-328].
Em épocas de transformação histórica como as que vivia a França logo após a Revolução de 1789, os intelectuais tinham um dever adicional ao de simplesmente pensarem o seu país: era necessário que com a sua ação buscassem aperfeiçoar as instituições. Mas para isso precisavam estar atentos à realidade concreta e conhecê-la completamente. Essa realidade estava composta pelo "movimento dos homens, o curso das suas opiniões, o nascimento e o crescimento dos seus preconceitos" [Necker, 1802: VI-VII].  O pai de Germaine propunha uma ciência da sociedade, ao estilo da "Geografia Moral" de que falavam os filósofos escoceses.
Necker analisou detalhadamente a Constituição de 22 Frimário, ano VIII (1800), que sagrou um modelo de República autoritária, presidida pelos três Cônsules, sendo Bonaparte o que de fato exercia o poder [cf. Chevallier,  1977: 105-108]. O pai de Germaine considerava que, não tendo sido estabelecida nessa Constituição uma verdadeira representação dos interesses populares no Parlamento, a eleição não tinha nenhum sentido e as instituições republicanas careciam de autenticidade. A propósito, escrevia Necker: "A primeira circunstância que chama a atenção ao examinar esta Constituição é que, num Governo denominado de Republicano, nenhuma porção dos poderes políticos, nenhuma, realmente, foi confiada à Nação. No entanto, não apenas nas Repúblicas mistas ou puramente democráticas, mas também nas Monarquias moderadas, o povo concorre à nomeação do Corpo Legislativo, à nomeação das autoridades que determinam os seus sacrifícios. Vemos na Inglaterra os Membros da Câmara dos Comuns eleitos pela Nação. Vemos na Suécia uma ordem de Burgueses, uma ordem dos Camponeses comporem o Poder Legislativo; e sob a Monarquia Francesa o Terceiro Estado nomeava Deputados às Assembléias Nacionais. Uma tal prerrogativa, a mais importante de todas, foi substituída por uma ficção no novo código político da França. Concede-se ao Povo um direito de indicação que não significa nada para ele e que aborrecerá ao Governo se esse direito for respeitado" [Necker, 1802:  I, 1-2]. 
Ora, nenhuma estabilidade institucional poderia advir de um tal regime. Tratava-se de uma República de faz-de-conta, modelo da que, no final do século XIX, os Castilhistas instaurariam no Rio Grande do Sul. Tudo girava ao redor do único poder verdadeiramente forte: o general Bonaparte. A feição dessa pseudo República foi resumida perfeitamente por Jean-Jacques Chevallier, com as seguintes palavras: "Uma fachada de sufrágio universal (simples direito de apresentação). Uma fachada de assembléias: o Senado, o Tribunato, o Corpo Legislativo. No governo uma fachada de três cônsules, sendo que o poder repousava realmente no Primeiro Cônsul. Na tarde em que o texto constitucional foi solenemente promulgado nas ruas de Paris, as pessoas perguntavam: O que há na Constituição? E a resposta era a seguinte: Há Bonaparte. O referendum sobre um texto constitucional tinha fatalmente virado um plebiscito sobre um homem" [Chevallier, 1977: 107]. A propósito  dessa enorme encenação, escreveu Necker: "Mostraremos agora que toda essa organização é ao mesmo tempo motivo de irritação para a massa geral dos Cidadãos, bem como um atentado aos seus direitos, um estorvo para o Governo e um constrangimento prejudicial para o bem do Estado" [Necker, 1802: I, 4-5].
O modelo de representação previsto pela Constituição bonapartista do ano VIII constituía uma caricatura da prática do verdadeiro parlamentarismo. Os cidadãos habilitados para votar segundo as normas oficiais (cinco milhões, calculava Necker, sobre uma população de mais de vinte milhões de Franceses), nos seus  respectivos cantões indicariam as pessoas que, segundo o seu critério, pudessem desempenhar cargos públicos. Daí sairia uma massa de cinco mil homens aptos para receberem do Senado Conservador, formado à revelia da Nação, a responsabilidade de administrar a máquina do Estado. Seria uma representação às avessas, que personificaria os interesses de Bonaparte e da sua burocracia, deixando de lado os reais interesses dos cidadãos. "Essas listas de elegibilidade - frisava Necker [1802: I, 10-11] - teriam pouca credibilidade, ao reduzir cinco milhões de homens a cinco mil, sem nenhuma das precauções que garantem ao menos um sentimento de interesse, um grau formal de atenção a essa grande ação política".
O resultado de tudo isso não poderia ser outro: o crescente descontentamento popular, a instabilidade da República e a porta aberta para novas revoluções. A própria mãe de Bonaparte, Laetitia, tinha dito a respeito das novas instituições emergentes da Constituição do Ano VIII (1800) que colocou o seu filho na cúpula do poder, fazendo dele um ditador: "Isso não durará! Isso não pode durar" [apud Chevallier, 1977: 109]. Necker previa a mesma catástrofe: "Nós veremos ainda o resultado, no momento em que o espírito republicano se reanimar. A exclusão de tão grande número de Cidadãos das listas de elegibilidade, essa exclusão duradoura e eficaz será recebida como uma grande ofensa, como um justo motivo de irritação. As pessoas sentir-se-ão postas de lado por um pequeno número de felizardos, tornados os únicos elegíveis por escrutínios praticados com indiferença. E ninguém estará disposto a aturar pacientemente uma barreira colocada diante de si, logo nos primeiros passos da carreira política".
O próprio Estado tornar-se-ia ingovernável, pois o centralismo desvairado, aliado à exclusão dos Cidadãos, impediria que os governantes conseguissem nomear os mais aptos para os cargos públicos. Assim enxergava Necker mais essa contradição da Carta do Ano VIII: "Consideremos agora, de um novo ângulo, a disposição constitucional relativa aos elegíveis. Resultará daí, para o Governo, para a República inteira, um entrave bizarro cuja experiência servirá de lição. É  a partir de um número de cinco mil Cidadãos ativos que será necessário, de agora em diante, escolher os principais Funcionários públicos, os Cônsules, os Tribunos, os Legisladores, os Ministros e os Conselheiros de Estado, os Juizes de cassação, os Comissários de contas. Ora, como todos esses cargos exigem qualidades diferentes, não é seguro que os grandes Eleitores, o Governo e o Senado, encontrem uma quantidade suficiente de homens para escolher, com segurança, a partir de um número de cinco mil Cidadãos, indicados uns por amizade, outros por intriga e os melhores por uma reputação genérica de honestidade" [Necker, 1802: I, 26-27]. Destacando a impossibilidade de pôr em prática as disposições de tão maluca Constituição, o pai de Germaine concluía com uma ponta de ironia: "Enfim e por cima de todas as outras dificuldades, são os Cônsules também os que será necessário escolher entre os elegíveis. Convenhamos que é muita modéstia de Bonaparte ter considerado que o seu equivalente poderia ser encontrado entre cinco mil pessoas" [Necker, 1800: I, 28].
A instituição do Senado Conservador constituía mais do que uma instância de representação da Nação, uma roda solta do sistema, absolutamente ignorante das necessidades da administração e que ainda por cima tinha a alta responsabilidade de nomear o Chefe do Estado. A respeito, escrevia Necker: "Um corpo político, absolutamente separado do movimento da Administração e que não participa da confecção das leis, uma espécie de solitário na ordem social, não poderia conservar o direito de nomear o Chefe do Estado, mesmo se ele se equivocasse uma única vez. Seria necessário que vivendo nas sombras e no silêncio, como os oráculos, tivesse a ciência e a infalibilidade destes"  [Necker, 1800: I, 32].
Quanto ao Poder Legislativo instaurado pela Carta do Ano VIII, Necker considerava que se tratava de uma instância vazia, pois a iniciativa de propor as leis corresponderia exclusivamente ao Governo, sendo que  as duas Assembléias Políticas (Tribunado e Corpo Legislativo), somente poderiam votar os projetos de lei sem discussão alguma. A propósito, escrevia: "Este Poder é atribuído, pela Constituição, a duas assembléias políticas, uma designada com o nome de Tribunado e a outra com o de Corpo Legislativo. A primeira é integrada por cem pessoas, com idade mínima de vinte e cinco anos; a segunda por 300 pessoas com idade mínima de trinta anos. O Governo deve propor todas as leis, o Tribunado as examina, as aceita ou as rejeita. O Corpo Legislativo se pronuncia unicamente por escrutínios, sem nenhuma discussão pública, nem secreta, sem jamais pedir um esclarecimento, sem pronunciar palavra. Uma interdição tão especial e da qual não há um modelo existente, manterá o desejo contínuo de se ver atado por um vergonhoso laço.  E a Nação, que ama ouvir falar dos seus negócios e que tem direito a isso numa República, apoiaria o voto dos Legisladores desde que as circunstâncias o permitissem. O seu silêncio, o seu absoluto silêncio, mesmo que ordenado pela Constituição, prenuncia, mais do que qualquer outro indício, a presença de um dono do poder" [Necker, 1802: I, 50-51].
Essa absoluta passividade do Corpo Legislativo, considerava Necker, era sobremaneira nociva especialmente no que tange à tributação. A Carta do Ano VIII estabelecia, nessa matéria, uma verdadeira orgia orçamentívora, toda vez que ninguém poderia objetar a generosidade do gasto público. Em matéria tributária, frisava,  "depois de um certo tempo, geralmente, temos amiúde uma opinião diferente, bem por causa das lições da experiência, bem por causa das mudanças que ocorrem nas necessidades do Estado" [Necker, 1802: I, 56].
Inoperante a representação política, a Nação ficou sem instrumentos para exigir dos membros do Governo a mínima responsabilidade. Os Cônsules e os seus Ministros viraram espécies de semideuses, irresponsáveis perante a sociedade e inatingíveis. A França caminhava na contramão da história dos países onde houve um amadurecimento da representação, como a Inglaterra. A respeito, Necker escrevia: "A responsabilidade dos Ministros na Inglaterra é algo real e bem concreto. Mas tudo é diferente na França. Hoje, tudo caminha em sentido contrário. Nada de Câmara dos Pares, que se imponha pelo seu caráter hereditário. Nada de assembléia política representativa da Nação. Nada de Parlamento, enfim, enraizado no espírito e no coração do povo. E além do mais, nenhuma liberdade para escrever, para opinar sem pautas e sem tutores. Como, com uma tal distribuição política, com uma desproporção tão marcante entre a autoridade Executiva e todas as outras autoridades, ousaria alguém acusar um Ministro! Essa seria uma empresa tão vã quanto perigosa" [Necker, 1802: I, 84].
No meio dessa falta de controles sobre o poder, a burocracia miúda tornou-se todo-poderosa, à sombra do Primeiro Cônsul  e dos seus Ministros. A respeito frisava Necker [1802: I, 92]: "A autoridade no seu imenso círculo de influência pode ter agentes ordinários e agentes extraordinários. A carta de um Ministro, de um Prefeito de um Subtenente da Polícia é suficiente para transformar alguém em agente. E se no exercício de suas funções estão todos fora do alcance da Justiça, a menos que haja uma especial permissão do Príncipe, o Governo terá na sua mão homens que tal privilégio tornará suficientemente audaciosos como para não temer a desonra, graças ao seu acoitamento pela autoridade suprema. Que instrumentos para optar pela tirania!".
O efeito de tudo isso será a morte da liberdade e o fortalecimento do absolutismo. Todos terão medo, menos o tirano. Todos ficarão reféns do seu poder sem freio. Eis o sombrio quadro traçado por Necker: "Que acontecerá com a liberdade no meio de todos esses dispositivos políticos? O que o Cônsul quiser. O Tribunado poderá lhe dirigir a palavra. Mas está previsto que não é obrigado nem a escutá-lo, nem a responde-lhe. O Senado Conservador está investido do direito de anular os atos inconstitucionais. Mas ousará tal coisa? (...) E todo mundo, em determinado momento, terá medo, exceto o Cônsul" [Necker, 1802: I, 85].
Da crítica de Necker ao regime instaurado pela Carta do Ano VIII depreende-se uma conclusão: a França estava longe de constituir uma verdadeira República. Esta, à sombra da experiência americana, é fundamentalmente o reino da liberdade da Nação, da representação de seus interesses, da salvaguarda dos seus direitos fundamentais à vida, à liberdade, às posses. O pai de Germaine preocupava-se por dar à palavra povo um sentido diferente do que terminou sendo usado pelo democratismo revolucionário e pelo bonapartismo. Povo deveria ser entendido como conjunto de Cidadãos que se distinguem da minoria que exerce o poder.
Eis a forma em que o nosso autor entendia essas noções, bem como o espírito de uma Constituição autenticamente republicana: "Apuremos de entrada o sentido da palavra povo, com a qual se faz o que se quer na língua francesa. Esse termo converte-se em algo terrível quando o utilizamos para designar as últimas classes da sociedade, os homens despidos de educação e entregues, sem limitações, à impetuosidade do seu caráter. A palavra retoma a sua dignidade quando, sinônimo do termo Nação, serve para lembrar a universalidade dos Cidadãos, e algumas vezes para distingui-los do pequeno número de homens que compõem o Governo. O espírito de uma Constituição republicana é indubitavelmente o de atribuir ao povo, assim definido, todos os direitos políticos que pode exercer ordeiramente. E se for verdade que este não existe dessa forma, se for verdade que na França a extensão do país ou o caráter dos habitantes se opusessem a isso, a boa fé exigiria que se chegasse a um acordo sobre o particular,  exigiria que deixássemos de dar o nome de República a uma forma de governo na qual o povo não seria nada, nada mais do que uma ficção. Esse povo pode ser feliz sob o abrigo exclusivo das leis civis. Pode sê-lo sem direito político. Pode sê-lo, ainda, segundo os seus mestres, sob um Monarca absoluto, sob um Ditador, sob uma aristocracia hereditária, sob uma aristocracia burguesa mais ou menos dissimulada. Mas as honras do nome republicano não mais lhe pertenceriam" [Necker, 1802: I, 8-9].
Está enunciado, aqui, um Leitmotiv que encontraremos em Constant de Rebecque, nos doutrinários, em Tocqueville e em Aron: o povo francês, preso ao seu bem-estar e trancafiado na sua vida privada, poderá em muitos momentos abrir mão da liberdade e da luta na defesa da sua dignidade como Nação. Mas, nesses instantes, estará se afastando do ideal republicano. O alerta vale, segundo Tocqueville, inclusive para o povo americano, tão sensível à conquista do bem-estar material. Uma tentação que se desenhará sempre no horizonte da democracia americana é a de abrir mão da luta pela liberdade, em prol da manutenção do conforto.
A República, como lembraria mais tarde Tocqueville, é o reino tranqüilo do povo sobre si mesmo, o estreito laço que existe entre a Nação e as instituições. Já Necker tinha se antecipado a essa concepção, quando frisava que a vantagem da representação na vida republicana é o estreitamento de laços entre os cidadãos ativos e os seus Governantes. A propósito, o pai de Germaine escrevia: "Temo-lo já dito, a intervenção do povo na escolha dos homens públicos não é essencialmente necessária à bondade dessa escolha, nem é uma garantia disso. E pode ser possível que se chegasse ao mesmo objetivo de forma igualmente segura, sem colocar em movimento cinco milhões de Cidadãos ativos. A primeira utilidade da participação do povo na nomeação dos seus Magistrados, dos seus Legisladores, consiste em estabelecer uma ligação contínua, um vínculo mais ou menos estreito entre os Chefes do Estado e a massa inteira dos Cidadãos. Destruamos essa ligação, seqüestremos ao povo o único direito político que pode exercer, troquemos esse direito por algo semelhante, adotando uma simples ficção, e não haverá mais República, ou ela só existirá no papel" [Necker, 1802: I, 16-17].
Necker considerava que a Constituição do Ano VIII pretendeu imitar a praxe inglesa de liberar de toda responsabilidade o Chefe do Estado. Essa providência, que faria sentido numa Monarquia Constitucional, seria de todas maneiras inconveniente numa República, onde o Chefe do Estado foi eleito, como no caso da França. Ora, o Poder Supremo sendo eleito e gozando de imunidade, os seus Ministros passarão a se sentir imunes também. Como veremos no próximo capítulo, Constant de Rebecque aprendeu esta lição de Necker, pois encontraremos arrazoado semelhante nos Principes de Politique.
A propósito do equilíbrio de poderes existente na Inglaterra, eis o que afirmava Necker, destacando - como Constant fará também -  o papel importantíssimo da imprensa como veiculadora do quarto poder, o da opinião: "Há, na Inglaterra, um tal equilíbrio entre os três poderes, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, que eles se respeitam mutuamente. E um quarto poder, não menos imponente, vigia sobre a sua união, sobre os seus mútuos direitos. Quero falar do poder da opinião pública, poder enraizado, estimulado, tornado quase imperativo pela liberdade de imprensa" [Necker, 1802: I, 82]. Este é, como veremos, outro ponto em que Constant recebeu influência definitiva de Necker.
Mas voltemos às considerações que Necker fazia em torno à monarquia temperada. Não há dúvida, como frisei atrás, de que este era, em tese, o modelo preferido pelo pai de Germaine. A monarquia temperada e bicameral, à maneira inglesa, constituía o regime mais apropriado para garantir a estabilidade política, sem cair no risco do absolutismo. Se algum dia a opinião pública francesa decidisse instaurar novamente a monarquia, considerava Necker, esse deveria ser o modelo a ser realizado. O pai de Germaine deixava, pois, em aberto essa possibilidade que, como veremos, Constant de Rebecke retomou em Princípios de Política. O modelo sugerido por Necker seria o de uma monarquia bicameral  em que se reforçasse o papel moderador do monarca mediante a nomeação, por ele, para a Câmara Alta (ou dos Pares), de 50 representantes escolhidos entre pessoas de prol da Nação, não necessariamente pertencentes à antiga aristocracia, mas expoentes dos valores morais que garantiriam a unidade nacional, algo assim como os homens de mil, identificados por Oliveira Vianna como a base de que se valeu dom Pedro II, no Império brasileiro, para a estruturação do Estado [cf. Necker, 1802: II, 287-288; 291-292; 298-299].
A monarquia temperada, assim constituída, garantiria, de um lado, a diferença e a separação dos poderes públicos, preservando, mediante a autoridade do monarca aliada à representação dos interesses permanentes da Nação na Câmara Alta, os limites de cada um deles, bem como a harmonia no seu funcionamento. A propósito dessa função moderadora da monarquia temperada, frisava Necker: "Creio, pois, que a Monarquia temperada possui não somente todos os meios de estabilidade, como também o Príncipe mesmo e as autoridades secundárias, os corpos intermediários, não são tentados, por nenhum interesse, a saírem do círculo que serve de limite ao seu poder" [Necker, 1802: II, 316].  Constant, neste ponto também fiel seguidor do seu mestre Necker, ampliará a feição moderadora da monarquia constitucional, elaborando a teoria do poder neutro.
Na sua ampla visão de mundo, Necker apostava na possibilidade de uma República em que os ideais de igualdade e liberdade ficassem equilibrados. O nosso autor ainda não tinha uma visão clara do que seria a República americana. Esse quadro somente ficaria bem definido após o primeiro volume de De la démocratie en Amérique de Tocqueville, publicado em 1835. De outro lado, Necker parece valorizar o que poderia ser uma experiência liberal da República na França, tentando auscultar no fundo dos corações dos seus concidadãos um ancestral patriotismo aliado à paixão pela liberdade e à ação benfazeja das luzes. Mas os acontecimentos revolucionários e o ciclo posterior de terror e absolutismo deixavam tudo incerto. Seja como for, Necker não excluía a idéia de uma República de inspiração liberal, cujos contornos desenhava de forma entusiástica, tentando cativar os espíritos republicanos na França, a fim de que mitigassem a busca da igualdade com a defesa da liberdade. Esses ideais permaneceriam numa espécie de hibernação, e começariam a frutificar já no ciclo da restauração, ao ensejo das reflexões de Madame de Staël em relação á perfectibilidade humana numa ideal República das Letras. Seriam retomados, no entanto, com força cada vez maior, quando da queda da monarquia de Luís Filipe, após os acontecimentos revolucionários de 1848, quando alguns espíritos liberais, como Tocqueville, passaram a acalentar a idéia de uma República respeitadora dos ideais de liberdade e igualdade.
Eis o que a respeito da perspectiva republicana escrevia Necker: "Emprestemos, contudo, aos Republicanos idéias mais grandes e mais próprias para  contrapor aos arrazoados que temos empregado em favor da Monarquia temperada. Eles não têm nenhuma vantagem sobre os partidários deste último sistema político, quando se limitam a falar da liberdade. Eles possuem no entanto uma vantagem, quando falam em igualdade, mas aí é a imaginação que possui a maior força. Nós os escutamos com interesse, mesmo com uma sorte de respeito, quando exaltam a idéia de uma vasta sociedade que marcha, com uma vontade comum, em direção a um mesmo objetivo. Uma República que se movimenta com ordem, não obstante a sua extensão e a sua numerosa população, animada possivelmente por um sentimento antigo de patriotismo e de liberdade e que recebe gradualmente, do progresso da ilustração, essa temperança que aperfeiçoa todas as instituições políticas: esta perspectiva é bela!  É um quadro capaz de seduzir os espíritos elevados e as grandes personalidades. Mas essas são apenas especulações ainda não referendadas com o selo da experiência e, enquanto isso não ocorrer, toda confiança é incerta, toda experiência é confusa" [Necker, 1802: II, 323].
Terminemos este item destacando um aspecto bastante original das idéias de Necker: a particular versão do seu liberalismo econômico. O nosso autor traçou as linhas do que seria uma concepção de liberalismo social, da qual certamente emergiria posteriormente a visão de Tocqueville, alicerçada no ideal de interesse bem compreendido. A síntese da concepção econômica de Necker seria a seguinte:  do ponto de vista teórico, é perfeitamente válida a concepção de Adam Smith em defesa da livre iniciativa e do mercado como formas de garantir a produção das riquezas. Mas o funcionamento do sistema produtivo precisa de uma base institucional não redutível ao mercado. Sem instituições políticas, se tornariam impossíveis a empresa e a circulação das riquezas. Ora, esta parte das instituições políticas e do seu funcionamento não é algo puramente teórico, mas é fruto dos ideais e da tentativa de pô-los em funcionamento. Aí entra a desempenhar um papel importante o intelectual comprometido com o processo histórico. A simples idéia de mercado não torna a realidade mais favorável à liberdade, se a empresa econômica não for acompanhada de uma organização política que salvaguarde os direitos individuais.
São vários os textos que poderiam ser trazidos à colação aqui para ilustrar esses aspectos originais da concepção econômico-política de Necker. Eis um deles, por exemplo, que põe de relevo as duas variáveis, econômica e política, na experiência inglesa, uma irredutível à outra e ambas precisando de mútua complementação: "Os Ingleses tiveram, entre os seus compatriotas, um dos mais ilustres escritores em economia política (Adam Smith). No entanto, o Legislador não obedeceu à sua doutrina acerca dos impostos, os grãos, a balança comercial, etc. E creio que ele teve razão. É bom ter, num país, homens que militam no campo da teoria, para fazer surgir idéias novas e amiúde verdades úteis. Mas é necessário, também, que as suas verdades compareçam perante o tribunal dos Filósofos práticos, que enxergam as questões no seu conjunto. E este tribunal não pode deixar de ser integrado por pessoas chamadas, pelo seu dever e as suas funções, a se ocuparem dos negócios do Estado. Eles se atêm, cada dia, às dificuldades das coisas e alguns princípios não lhes bastam. Eles precisam de uma dupla guia, das luzes expandidas nos livros e dos fatos inscritos nos anais da experiência" [Necker, 1802: II, 456-457].
Livre mercado entre as Nações e não ao protecionismo? Sem dúvida que são belos ideais. Mas na marcha dos povos, na luta encarniçada no terreno do comércio internacional, é necessário levar em consideração outros fatores, além desse. E esses outros fatores dizem relação à conveniência de um tal tipo de intercâmbio num determinado momento. Ser liberal em comércio exterior quando todo mundo quer tirar proveito dos outros, é um suicídio. Eis o que Necker escrevia a respeito do comércio internacional da sua época: "A França, dotada de tantos favores e rica em produtos privilegiados, rica em obras de arte, em produtos industrializados, deveria desejar que fosse estabelecida entre as Nações a liberdade de comércio mais ilimitada, ela lucraria com isso, sem dúvida. Mas, quando todos se negam a comprar dela e gostariam de guardar o seu dinheiro; quando todos chegam a esse extremo ou mediante regulamentos internos o através de convenções políticas, ou tratados de  balanço e compensação, seria ruim para a França empreender outro caminho. E a mesma reserva lhe é imposta. Não há dúvida quanto a tudo isso, não obstante as proposições gerais formuladas pela teoria. Mas o modo de execução, a sabedoria dos meios, os cuidados necessários para atender aos princípios liberais sem ser vítima da política de outras Nações, eis o que exige habilidade de parte dos Governantes [Necker, 1802: II, 454-455].
Igual prudência deve pairar nas decisões econômicas no interior do próprio país. O princípio do livre mercado é em si bom. Mas há momentos em que os produtos de primeira necessidade não podem ser considerados apenas como mercadorias submetidos à dinâmica da oferta e da procura (diríamos hoje, há produtos que não podem ser considerados, em determinadas circunstâncias, apenas como commodities). Grandes turbulências aconteceriam se o trigo, por exemplo, fosse comercializado livremente num momento de penúria e fome generalizadas. O livre comércio desse produto faria a alegria dos especuladores, às custas da infelicidade coletiva. (Foi o que aconteceu na França pouco antes de 1789, quando Necker deitou por terra as políticas liberais de Turgot, que ameaçavam matar de fome grandes setores da população, ao favorecer unilateralmente a exportação de grãos, sem levar em consideração a fome que grassava no interior do país).
A respeito desse ponto, escrevia Necker: "(O Governo) pode, nos dias de abundância, considerar os grãos como uma simples mercadoria, semelhantes a todas aquelas cuja circulação é entregue sem restrições às especulações dos cultivadores e dos comerciantes. Mas quando a insuficiência das colheitas no interior e o excesso de demanda nos países estrangeiros aumentam a inquietude; quando o Governo, pelas suas informações, considera que o alarme tem fundamento, os grãos não são mais uma simples mercadoria semelhante a todas as outras. A metamorfose é absoluta, pois eles convertem-se então em objetos de vigilância, um objeto de polícia e o mais delicado e o mais sério de todos" [Necker, 1802: II, 461].
O pai de Germaine defendia, portanto, a intervenção do Estado na economia quando fosse necessário garantir a distribuição de gêneros de primeira necessidade. Não se trataria de negar a liberdade econômica, mas de torná-la compatível com o interesse público. Somente se poderia entender esse tipo de arrazoado, levando em consideração não apenas os ideais, mas também a realidade concreta. Poderíamos dizer que o liberalismo de Necker supera o laissez-fairismo e se abre a um intervencionismo moderado do Estado, com vistas a restabelecer o equilíbrio no jogo econômico, algo que a doutrina liberal somente iria conhecer com a contribuição de John Maynard Keynes, na primeira metade do século XX. Talvez se encontre essa herança na tentativa de formular políticas econômicas que visam a superar o problema da pobreza, mediante o estímulo à poupança dos trabalhadores, na linha pretendida por Hebert de Tocqueville e os seus filhos Hyppolite e Alexis (na conhecida experiência do Banco dos Pobres).
As censuras levantadas contra a política proposta por Necker muitas vezes somente enxergavam os aspectos teóricos da questão, frisava o nosso autor, não o conjunto da teoria e das necessidades concretas. A propósito, escrevia: "Creio (...) que um pequeno número de críticos tem acusado de inutilidade todas essas precauções. Eles dizem: o Governo, não intervindo em nada, teria remediado mais facilmente a crise extremada em que más colheitas teriam eliminado a maior parte da França. Ora, é fácil se transportar em imaginação ao reino dos resultados hipotéticos da liberdade perfeita, quando jamais se está disposto a ser desalojado, pela experiência, dessa torre de marfim. Que Governo, pergunto, poderia se mostrar indiferente ao clamor popular? Que governo estaria disposto a cochilar em face da escassez, da penúria de um gênero de primeira necessidade e repassar a batata quente às combinações do interesse pessoal, às possibilidades desconhecidas da liberdade?" [Necker, 1802: II, 465-466].
O Governo tem uma importante responsabilidade em face dos gêneros de primeira necessidade. Ele deve fazer estoques reguladores a fim de impedir a ação dos especuladores. Deve formular políticas que estabeleçam bases justas e seguras para a comercialização dos gêneros alimentícios. A vigilância diuturna do Estado, no que tange ao abastecimento dos gêneros de primeira necessidade, esse é um assunto estratégico, como a vigilância das fronteiras, a prevenção da criminalidade, a ágil administração de justiça e a manutenção das instituições do governo representativo. Necker elevava as questões da política econômica ao nível de assuntos de Estado. Traço verdadeiramente atual do estadista francês. A propósito da indelegável responsabilidade do Estado no terreno da economia, escrevia: "Assim, quanto mais refletimos, mais nos persuadimos de que, no seio da França, o olhar vigilante do Governo é de uma necessidade absoluta em face do assunto delicado dos gêneros de primeira necessidade e mais nos persuadimos de que Legislação nenhuma pode substituir essa responsabilidade. O Governo possui as qualidades que o tornam apto para desempenhar uma função tão importante. Somente ele possui os meios para se guiar de acordo às circunstâncias. Ele permite, depois de ter proibido; ele proíbe depois de ter permitido; ele  pode fixar limites instantâneos e prescrever limitações passageiras; somente ele pode, enfim, ser o regulador de uma coisa móvel e variável" [Necker, 1802: II, 471-472].  
III - A crítica de Madame de Staël ao absolutismo napoleônico
A variável política, para Madame de Staël, era suscetível de duas abordagens: intuitiva e racional. O ponto de partida seria o primeiro. A nossa autora acreditava numa espécie de "lógica emocional" que lhe possibilitaria pressentir o rumo dos acontecimentos. Seria uma espécie de inteligência sentiente, à maneira zubiriana. A nossa autora vinculava essa modalidade de conhecimento ao senso comum da filosofia escocesa. Eis o que afirmava em Dix années d'exil (obra escrita por Madame de Staël entre 1803 e 1813), quando se aproximava a guinada napoleônica rumo ao absolutismo imperial: "Eu estava na casa do meu pai em Coppet, quando soube que o general Bonaparte tinha passado em Lyon regressando do Egito, e que tinha sido acolhido com entusiasmo. Experimentei nessa notícia uma impressão de dor que me faria crer nesse instinto do futuro, nessa segunda via de que falam os Escoceses, e que não pode ser mais do que a luz do sentimento, independente daquela do raciocínio" [Staël,  1996a: 67].
Esse sentimento, que crescia com o passar do tempo, era o de uma tirania à espreita, que se aproximava passo a passo, galgando progressivamente o poder e ameaçando a liberdade e a dignidade moral. A respeito, escrevia a nossa autora: "Como jamais consegui pensar em nenhum interesse político desvinculado do amor à liberdade, cada dia eu estava mais aflita com a revolução de 18 Brumário, cada dia eu apreendia mais um traço de arrogância ou de astúcia naquele que se apossava gradualmente do poder. Pensava comigo mesma para tentar combater, na medida do possível, o sentimento que me dominava, mas ele renascia sempre, apesar de mim. Eu via se aproximar a tirania ora a passos de lobo, ora com a cabeça erguida, mas parecia-me que de uma hora para outra estaríamos mais oprimidos e que bem cedo toda a vida moral estaria encadeada"  [Staël, 1996a: 75].
Incomodava particularmente a Madame de Staël a retórica bonapartista, composta por um discurso populista alicerçado na ameaça das armas. A Revolução de 1789 tinha nivelado a Nação francesa, quebrando os elos entre as antigas ordens, e era mais fácil agora ao futuro amo da Europa tomar posse daquela. Em relação a esse ponto, a nossa autora escrevia: "A Revolução tinha feito tabula rasa em face de Bonaparte e ele só tinha raciocínios para combater, espécie de arma com a qual ele se sentia muito à vontade e à qual ele opunha, quando lhe convinha, uma espécie de imbróglio veemente, que parecia muito lúcido com o auxílio das baionetas, nas quais ele poderia se apoiar" [Staël, 1996a: 76].
Não deixava de destacar Madame de Staël a responsabilidade dos teóricos liberais tradicionais, como o abade Sieyès, autor do famoso panfleto que fez deslanchar o movimento revolucionário de 1789, intitulado: Qu'est-ce que le Tiers État? (O que é o Terceiro Estado?) [cf. Sieyès, 1973]. Ora, eles seriam os diretos responsáveis pela ascensão napoleônica, tendo lhe servido pronto o arrazoado de que o general e futuro Primeiro Cônsul necessitava para se firmar no poder absoluto. Em relação a este ponto, escrevia a nossa autora: "O general Bonaparte tomou bem rápido do sistema de Sieyès aquilo de que ele precisava, ou seja, a anulação da eleição de deputados pela nação. Sieyès tinha imaginado listas de elegíveis, nas quais o Senado poderia escolher os representantes do povo, sob o nome de tribunos e legisladores. Sem dúvida, Sieyès não tinha pensado nessas instituições para estabelecer a tirania na França. Ele tinha oposto contrapesos que poderiam talvez fazê-la balançar, mas Bonaparte, sem se incomodar com os contrapesos, apoderou-se da palavra decisiva: nada de eleição. A metafísica de Sieyès servia de véu, ou melhor de cortina de fumaça para ocultar a força positiva que Bonaparte queria adquirir. Sieyès tinha dito: nada de eleição. Não era pois o militar, mas o filósofo mesmo que condenava esse direito, o único com ajuda do qual podemos fazer entrar a opinião pública no governo. São as águas novas que vivificam este, enquanto que os corpos permanentes se assemelham aos estanques cujas águas estagnadas podem mais facilmente serem corrompidas. É preciso numa monarquia e talvez numa república também, que haja magistrados hereditários, sábios vitalícios, toda uma aristocracia conservadora, mas uma parte do governo, aquela que aprova os impostos, deve emanar diretamente da nação" [Staël, 1996a: 76-77].
Chateaubriand sintetizou as críticas que um intelectual independente poderia endereçar ao regime de Napoleão: ele governava para a sua glória, não para o seu povo. A sua administração só se preocupava com números, não com pessoas. Bonaparte teria sido, talvez, a primeira encarnação do tecnocrata frio, misturado ao guerreiro implacável. A propósito, frisava Chateaubriand: "A administração de Bonaparte tem sido elogiada: se a administração consiste em números, se para bem governar é suficiente saber quanto trigo, quanto vinho, quanto azeite produz uma província, qual é o último cêntimo que pode ser roubado, o último homem que pode ser preso, certamente Bonaparte era um excelente administrador. É impossível organizar melhor o mal, colocar mais ordem na desordem. Mas se a melhor administração é a que deixa o povo em paz, que alimenta nele sentimentos de justiça e de compaixão, que é zelosa em preservar o sangue dos homens, que respeita os direitos dos cidadãos, as propriedades e as famílias, certamente o governo de Bonaparte era o pior de todos os governos" [Chateaubriand,  1966: 76].
De forma semelhante a Chateaubriand, Madame de Staël reconhecia um único ponto positivo na administração napoleônica: aumentou as riquezas da França. Mas a finalidade é que era ruim: para melhor se apossar do que era de todos! A respeito, escrevia a nossa autora: "O que havia de evidente era, de longe, a melhora das finanças e a ordem restabelecida em muitas áreas da administração. Napoleão era obrigado a  passar pelo bem da nação para chegar à desgraça dela. Era preciso que ele juntasse as forças da nação a fim de melhor se servir delas para a sua ambição pessoal" [Staël, 1996a: 101].  De positivo o déspota só tinha a aparência. Se buscava acrescer a riqueza da França era para melhor roubar os cidadãos mediante o confisco e os impostos esmagadores. A sua norma de comportamento era a negação da moral e se pautava unicamente pela vontade de poder esmagando a dignidade das pessoas. "O seu grande talento consiste em amedrontar os fracos e tirar proveito dos homens imorais. Quando ele encontra a honestidade em algum lugar, poder-se-ia dizer que os seus artifícios sofrem um grande desconcerto, como quando o diabo é derrotado nas suas maquinações mediante o signo da cruz" [Staël, 1996a: 99].
A estratégia bonapartista para a conquista total do poder seguiu esse imperativo de utilizar a fraqueza ou a falta de caráter dos outros. Isso se manifestou na forma em que Bonaparte dominou, durante o Consulado, os dois colegas que junto com ele exerciam o poder, os Cônsules Cambacérès e Lebrun. A propósito da forma em que cooptou o primeiro, escrevia Madame de Staël, salientando outrossim a engenhosidade do déspota, que conseguia pôr a seu serviço a inteligência alheia: "Ele escolheu com sagacidade notável os dois cônsules que lhe tinham sido dados de presente para mascarar a sua unidade despótica. Um, Cambacérès, tinha aprendido a se submeter durante a Convenção. Jurisconsulto de notável erudição, tinha redigido os decretos arbitrários dos facciosos de forma tão metódica, como se ele tivesse a pretensão de consolidar a código mais justo e amadurecido. Ele me disse um dia, conversando comigo: Quando foi proposto na Convenção e estabelecimento do Tribunal revolucionário, vi em seguida os males que daí decorreriam e no entanto o decreto foi aprovado por unanimidade. Ele era então membro da Convenção e contribuiu com o seu sufrágio para essa mesma unanimidade (...). Bonaparte o identificou em seguida como o seu colega de trapaças e como o seu instrumento apropriado. Tudo quanto ele buscava e não cessou de buscar nos homens, é o talento e a ausência de caráter" [Staël, 1996a: 77-78].
Uma vez submetidos os mais diretos colaboradores na cúpula do poder, só restava ao déspota escravizar o resto da Nação. Como? De forma semelhante a como Max Weber considerava que se reforça o poder do governante nos Estados patrimoniais: destruindo sistematicamente todo sentimento de dignidade presente na sociedade. A respeito, escrevia Madame de Staël: "O exército político de Bonaparte compunha-se de trânsfugas dos dois partidos. Uns lhe sacrificavam as suas obrigações para com a família dos Bourbons e os outros o seu amor à liberdade. Em todos os casos, não deveria estar presente em seu reinado uma forma independente de pensar, pois ele podia ser o rei dos interesses, mas jamais o das opiniões e, pela sua situação assim como pelo seu caráter, ele sufocava ao mesmo tempo tudo que houvesse de nobre na realeza e na república, pois aviltava ao mesmo tempo nobres e cidadãos. Quando todo o seu estabelecimento constitucional foi completado, um grande homem pronunciou acerca dessa ordem de coisas uma dessas palavras que ecoam pelos séculos afora:  É uma monarquia - frisou M. Pitt - à qual só faltam a legitimidade e os limites. Ele poderia adicionar que não havia monarquia verdadeiramente legítima senão aquela que tem limites" [Staël, 1996a: 78-79].
Madame de Staël considerava que Napoleão desenvolveu uma estratégia verdadeiramente moderna - forma mais agressiva de maquiavelismo - tendo dado ensejo a um processo que contava com cinco variáveis: 1) cênica ou estetizante (em que o despotismo montava o  seu próprio palco, que realçava as figuras que aceitassem aparecer como atores a serviço do tirano), 2) cultural (que tinha como finalidade o controle sobre a opinião pública, mediante o amordaçamento da imprensa e a censura sobre as publicações), 3) política (mediante o terror policial que esmagava qualquer resistência civil), 4) religiosa (mediante a submissão da estrutura da Igreja aos seus anseios absolutistas) e 5) imperial (através da submissão imposta às nações estrangeiras, mediante as guerras de conquista). Essas cinco variáveis foram estudadas por Madame de Staël na sua obra Dix années d'exil. A nossa autora ergue-se assim, como precursora da obra de Alexis de Tocqueville, na parte que corresponde à análise crítica do absolutismo (que o autor de De la démocratie en Amérique desenvolveu na sua última obra L'Ancien Régime et la Révolution). Destaquemos apenas alguns exemplos de cada uma das variáveis apontadas.
1)                           Variável cênica ou estetizante.- A nossa autora considerava que o despotismo napoleônico inseriu-se no complexo cultural estetizante que já existia no imaginário francês, tornando os atores políticos comediantes que desempenhavam uma função no palco. O segredo da teatralidade bonapartista consistiu em democratizar as expectativas de ter intimidade com o poder, no sentido de que cada cidadão poder-se-ia considerar apto a ser confidente do déspota. A respeito dessa manobra culturológica, escrevia Madame de Staël: “Eram distribuídos folhetos nos quais se dizia que Bonaparte não queria ser nem Monk, nem Cromwell, nem sequer César, porque esses eram, afirmava-se, papéis já representados, como se os acontecimentos deste mundo pudessem ser considerados assuntos de tragédia que não é preciso imitar dos antepassados. Mas o que interessava não era persuadir realmente, mas sugerir àqueles que queriam ser enganados uma frase que pudessem repetir a qualquer um. A doutrina de Maquiavel fez tais progressos na França depois de um certo tempo, que toda a vaidade francesa se transporta ao terreno da habilidade política. Pode-se colocar a nação toda inteira, por assim dizer, no segredo da comédia: ela sentir-se-á orgulhosa de se sentir confidente. Um cabeleireiro dizia, quando Bonaparte tratava com o Papa: Eu não acredito em nada, mas é necessária a religião para o povo. Cada indivíduo goza ao se considerar parte do embuste que é feito a todos” [Staël, 1996a: 80].
2)                           Variável cultural.- Bonaparte pôs em execução uma sistemática política de censura à imprensa e às obras literárias. O peso da repressão desabava, impiedoso, sobre todo aquele que ousasse transgredir, ou seja, esboçar uma crítica ao déspota e aos seus representantes. Madame de Staël sofreu em carne própria essa repressão, ao publicar o seu livro De L’Allemagne. O ditador sabia que a obra da nossa autora não se limitava ao estudo especulativo do pensamento alemão. O significado desta era muito mais profundo. Se a alma das nações é a sua cultura, uma obra acerca da cultura alemã significava que o déspota, ao invadir os principados ao norte do Reno, não tinha conseguido submeter o espírito altivo desse povo. Daí a sanha com que a polícia do Imperador destruiu, em  1810, a mencionada obra de Madame de Staël. Em relação à censura imposta à imprensa, escrevia a nossa autora: “O grande número de jornais que existia na França foi reduzido, de um momento a outro, a quatorze por uma simples portaria do Conselho de Estado e, a partir de então, estabeleceu-se esse poder terrível das folhas periódicas que repetiam todas a mesma coisa cada dia e que não sofriam a mais mínima sombra de crítica de nenhum gênero. A descoberta da imprensa passava como a salvaguarda da liberdade, posto que até então jamais tinha sido vista a serviço da autoridade de um déspota. Mas, assim como as tropas regulares têm sido bem menos favoráveis que as milícias à independência européia, seria necessário lamentar a descoberta da imprensa, se daí se seguissem a subserviência dos jornais e a vigência do princípio de que os jornalistas deveriam ser empregados e pagos pelo governo” [Staël, 1996a: 82]. O Imperador antecipou-se, aliás, aos grandes comunicadores do século XX, ao encarar a nação como massa que poderia ser formatada de acordo com as informações (certas ou erradas, pouco importava), que lhe fossem repetidas dia e noite. Certamente Bonaparte ficaria ao lado de Goebbels nessa empresa, como o precursor deste. A respeito deste ponto escreveu a nossa autora: “O sistema de Bonaparte era avançar mês a mês, passo a passo, na carreira do poder. Ele fazia espalhar com estardalhaço decisões que gostaria de tomar, a fim de sondar e ir preparando desse modo a opinião. De ordinário, preferia que se carregasse as tintas nas decisões que pretendia tomar, a fim de que, quando estas se tornassem concretas, aparecessem como mais brandas ao público do que se temia” [Staël, 1996a: 100].
3)                           Variável política.- O terror policial foi a grande arma de que Bonaparte fez uso para quebrar os laços de solidariedade na França e assim governar absolutamente, sem nenhuma oposição. A nobreza recebeu um recado quando o Imperador mandou fuzilar, sem prévio aviso, o duque de Enghien, um dos mais tradicionais representantes da aristocracia. O longo exílio a que foi submetida nossa autora foi, de outro lado, uma advertência aos intelectuais provenientes da burguesia. Se a filha de um ministro que foi adorado pelo povo podia ser banida, ninguém no meio intelectual estaria seguro! A respeito do despotismo sem limites que se abateu sobre os franceses no período napoleônico, escreveu Madame de Staël: “Os mais pobres como os mais ricos, os mais desconhecidos como os mais célebres, as mulheres, as crianças, os velhos, os sacerdotes, os conscritos tinham alguma coisa a pedir ao novo governo e essa alguma coisa era a vida, pois não se tratava de dizer: Eu renunciarei em favor de um déspota. Mas era necessário se resolver a jamais rever a pátria, a não achar a menor parte das suas posses, se alguém caísse na desgraça do governo, que tinha se reservado o direito de traçar a sorte de cada um, ou de quase todos os habitantes da França. Essa situação escusa muito a nação, parece-me, mas ela coloca a nu o torpe comportamento desses magistrados que, para conservar o seu cargo, entregaram o destino de todos os seus concidadãos ao Primeiro Cônsul” [Staël, 1996a: 81].
4)                           Variável religiosa.- Neste terreno, como aliás no concernente à vida política, a estratégia napoleônica consistiu em ir lentamente colocando a religião na órbita do poder temporal. Ao ensejo da negociação da Concordata que se seguiu à Constituição de 1800, o Primeiro Cônsul simplesmente iniciou um processo de cooptação da religião católica, que passou a girar ao redor dele como mais um sustentáculo do seu poder absoluto. Se dizendo católico, fez no entanto com que a religião passasse a lhe servir. Já no ato de coroação do Primeiro Cônsul como Imperador dos Franceses em 1804 ficou clara essa dimensão de cooptação do elemento religioso, quando na basílica, na cerimônia religiosa que o sagraria, tirou a coroa das mãos do Papa e a colocou na própria testa. A propósito dessa cooptação, escreveu a nossa autora: “A religião tinha ficado na França numa grande anarquia depois da Revolução. O partido revolucionário a considerava como destruída. O partido aristocrático a adotava como bandeira e, o que era mais importante, um grande número de pessoas esclarecidas e golpeadas pelas desgraças da Revolução buscavam reacender os raios da fé nos seus corações.. O Primeiro Cônsul, que jamais deixou de considerar nenhuma coisa deste mundo senão em relação a ele, examinou a religião do ponto de vista da autoridade que ela poderia lhe dar e sobretudo do obstáculo que ela poderia oferecer, se ele não se impusesse para sufocar qualquer entusiasmo que ela pudesse fazer nascer. Ele começou pois a negociação dessa Concordata que deveria socavar lentamente toda religião sincera entre os homens. Ele percorria neste terreno o mesmo caminho que seguiu em relação aos reinos que ele quis arruinar. Não os destruiu como poderia fazê-lo, mas deixou cravado o machado na árvore, a fim de fazê-los morrer com o passar do tempo. Exatamente isso aconteceu com a religião da forma como ela foi restabelecida pela Concordata. Era lembrada a ordem nas práticas religiosas como se se tratasse de um negócio mal administrado. Mas o princípio da religião, ou seja a sua independência em face do poder temporal, era atacado radicalmente” [Staël, 1996a: 334-335].
5)                           Variável imperial.- O projeto napoleônico foi o de unificar toda a Europa ao seu redor, exercendo sobre os vários países submetidos uma autoridade de ferro que impedia a expressão das liberdades ou a manifestação das culturas nacionais. Daí a agressividade do Primeiro Cônsul e logo do Imperador, em relação a uma mulher escritora que ousava desafiá-lo no seu poder tirânico, escarafunchando nas fontes da cultura elementos que poderiam fazer pensar na vitalidade das várias tradições européias, a partir das quais poder-se-ia acender o fogo do Volkgeist, do espírito dos povos. O imperador mudou realmente a geografia da Europa, ao ponto de que, como confessava Madame de Staël, para escapar da sua polícia, era necessário ir até os confins do Continente, nos limites da Ásia. Eis o testemunho que dava a nossa autora, em relação à viagem que se viu obrigada a empreender para fugir da perseguição napoleônica, indo até os confins da Rússia: “A geografia da Europa napoleônica só se aprende de forma adequada na desgraça. As voltas que era necessário dar para evitar o seu poder eram já de quase duas mil léguas e agora, passando pela mesma Viena, era necessário ganhar o território asiático para escapar por ali” [Staël, 1996a: 242-243]. Em relação aos países dominados, frisava a nossa escritora: “Napoleão possui a arte de tornar a situação dos países que se consideram a si próprios em paz de tal forma infeliz, que toda mudança lhes é agradável e que, uma vez forçados a dar homens e dinheiro à França, não sentem quase o inconveniente de serem reunidos ao redor dela. Eles se dão mal, no entanto, pois nada há pior do que perder o nome de nação e, como os males da Europa são causados por um só homem, é necessário conservar com cuidado aquilo que pode renascer quando ele já não mais exista” [Staël, 1996: 236]. A nossa autora era consciente do preço que os seus concidadãos tiveram de pagar para erguer o monumento ao despotismo napoleônico. A propósito, contava a seguinte anedota: “Alguém me falou certa vez: Eis tudo restabelecido como antes da Revolução. – Sim, respondi-lhe, tudo exceto dois milhões de homens que morreram pela liberdade. Essas palavras impressionaram um general que as repetiu como se fossem dele. O Primeiro Cônsul me reconheceu nessa expressão e em algumas outras que foram repetidas pelo mesmo general, que conversava freqüentemente comigo. Deixando escapar expressões as mais violentas, ele disse com a sua delicadeza ordinária para com as mulheres, que ele me faria cortar os cabelos e me trancaria num convento” [Staël, 1996a: 335-336].
IV - A perfectibilidade humana segundo Madame de Staël
Seguindo a moda introduzida por d'Alembert, Madame de Staël utilizou o subtítulo de Discours Préliminaire na parte inicial da sua obra De la Littérature, para ressaltar o plano da mesma e as circunstâncias que deram ensejo à sua escrita. Destaquemos, inicialmente, estas últimas. A nossa autora considerava que a obra em apreço constituiu para ela um reencontro com o prazer de conversar no seu salão. O diálogo mundano com os grandes da França, essa seria uma espécie de Sitz im Leben que serviu como pano de fundo para este escrito. A respeito, frisava em Dix années d'exil: "Por volta da primavera de 1800 publiquei a minha obra acerca da literatura e o seu sucesso me colocou totalmente em sintonia com a sociedade; o meu salão voltou a ficar cheio e reencontrei esse prazer de conversar, e de conversar em Paris que, creio, tem sido para mim o prazer mais estimulante de todos. No meu livro não havia uma só palavra sobre Bonaparte e os sentimentos mais liberais estavam ali expressos, creio eu, com força" [apud Staël, 1998: 14].
Em relação ao plano da obra, Madame de Staël escrevia no mencionado Discours Préliminaire: "Tenho me proposto examinar qual é a influência da religião, dos costumes e das leis sobre a literatura, e qual é a influência da literatura sobre a religião, os costumes e as leis. Existem, na língua francesa, sobre a arte de escrever e sobre os princípios do gosto, tratados que não deixam nada a desejar. Mas, parece-me que não se tem analisado suficientemente as causas morais e políticas que modificam o espírito da literatura. Parece-me que não se tem considerado ainda, como as faculdades humanas se têm desenvolvido gradualmente, graças às obras ilustres de todos os gêneros, que têm sido escritas desde Homero até os nossos dias" [Staël, 1998: 15].
A nossa autora explicitava, a seguir, o objetivo da sua obra, colocando-a em relação com o contexto histórico da França que acabava de sair do ciclo revolucionário de 1789: "Tenho tentado dar conta da marcha lenta, mas contínua, do espírito humano na filosofia, e dos seus progressos rápidos, mas interrompidos, nas artes. As obras antigas e modernas que tratam dos temas da moral, da política ou da ciência, provam evidentemente os progressos sucessivos do pensamento, depois que a sua história se torna por nós conhecida. Não acontece a mesma coisa com as belezas poéticas, que pertencem unicamente à imaginação. Ao observar as diferenças características que se encontram entre os escritos dos Italianos, dos Ingleses, dos Alemães e dos Franceses, creio poder demonstrar que as instituições políticas e religiosas eram responsáveis, em grande parte, por essas diversidades constantes. Enfim, ao contemplar não só as ruínas, mas também as esperanças que a revolução francesa, por assim dizer, fundiu no seu bojo, tenho pensado que importa conhecer qual era o poder que essa revolução exerceu sobre as luzes e quais os efeitos que um dia poderiam resultar, se fossem sabia e politicamente combinadas a ordem e a liberdade, a moral e a independência republicana" [Staël, 1998: 15-16].
O grupo que se formou ao redor de Madame de Staël em Coppet tentou desenvolver o entusiasmo liberal, que valorizava as culturas nacionais como a alma a partir da qual poderiam tomar vida as novas sociedades emergentes das lutas em prol da sua libertação. Apelo contra o imperialismo napoleônico, certamente, mas também formulação da tese romântica do Volkgeist. Paul Petitier sintetizou assim essa feição do grupo chefiado pela nossa autora: "Estes românticos estão impregnados da filosofia das Luzes e de um espírito cosmopolita que apregoa a descoberta e a utilização das diversidades culturais nacionais. Como os historiadores liberais da mesma época, o seu pensamento está organizado ao redor da idéia de nação e buscam uma literatura que exprima a nação, a sua história, o estado de sociedade no qual ela se encontra. A sua reflexão orienta-se ao teatro, gênero literário que, pelo seu modo de representação, é o que mais diretamente se inscreve nas relações sociais. Stendhal pensa que ele corresponde aos anseios do público: A nação tem sede da sua tragédia histórica (Racine e Shakespeare). Benjamin Constant interessou-se suficientemente por ele como para traduzir o Wallenstein de Schiller e publicar as Réflexions sur la tragédie (1829), nas quais sugere que as molas da ordem social contemporânea podem substituir nas peças modernas a fatalidade dos antigos. O romantismo liberal se exprime no Le Globe, on no Le Mercure du XIXe. siècle, que gostaria de insuflar na literatura nova o entusiasmo liberal, essa energia renovada nascida da Revolução" [Petitier, 1996: 54].
Para Madame de Staël, "os contemporâneos de uma revolução perdem amiúde todo interesse pela busca da verdade". Não de outra forma aconteceu na França, com aqueles que viveram as sanguinolentas jornadas de 1789 e da década do terror jacobino. As revoluções alimentam-se das baixas paixões humanas. A respeito, frisa nossa autora: "Tantos acontecimentos decididos pela força, tantos crimes absolvidos pelo sucesso, tantas virtudes acintosamente desdenhadas pelo cinismo, tantas desgraças injuriadas pelo poder, tantos sentimentos generosos convertidos em motivo de burla; tantos vis cálculos hipocritamente tramados; tudo tira a esperança aos homens mais fiéis ao culto da razão" [Staël, 1998: 17]. Mas eis que, iluminista incorrigível, a nossa autora conclama todos os espíritos elevados para que descubram, mesmo nas ruínas da mais sangrenta revolução, os traços subtis que marcam a marcha ascensional do espírito humano: "Ah, se eu pudesse lembrar a todos os espíritos esclarecidos o gozo das meditações filosóficas (...). Eles devem, apesar de tudo, se reanimar ao observar, na história do espírito humano, que jamais existiu nem um pensamento útil, nem uma verdade profunda que não tenha encontrado o seu século e os seus admiradores!" [Staël, 1998: 17].
Esse esforço iluminista age, também, como bálsamo que sara as nossas feridas intelectuais. Fala aqui a mulher desiludida com um casamento de fachada e que encontra na vida do espírito o motivo para viver, mesmo renunciando às alegrias domésticas. Há no seguinte texto de Madame de Staël um tom um tanto estóico: "Enfim, levantemo-nos sobre o peso da existência, não concedamos aos nossos injustos inimigos, aos nossos amigos ingratos, o triunfo de terem conseguido abater as nossas faculdades intelectuais. Aqueles que se contentam com as afecções, renunciam a buscar a glória: ora, pois, devemos conquistá-la. As tentativas ambiciosas não levarão remédio à penas da alma, mas enchem a vida de honra. Consagrar a própria existência à esperança sempre frustrada da felicidade, é torná-la ainda mais infeliz. Vale mais reunirmos todos os nossos esforços para descer, com alguma nobreza, com alguma reputação, pelo caminho que conduz da juventude à morte" [Staël, 1998: 17-18].
Projeto platônico de descoberta de uma dimensão transcendente à própria finitude da cotidianeidade, a partir do qual se deitam as bases para uma perspectiva eterna, no universo da cultura, identificado pela nossa autora como a glória. Dimensão metafísica que constitui a mais radical paixão que pode movimentar ao ser humano, como frisava ela em De l'influence des passions [Madame de Staël apud  Kristeva, 2002:  175]: "De todas as paixões às quais é suscetível o coração humano, nenhuma tem caráter tão dominante quanto o amor da glória: pode-se encontrar o rastro de seus movimentos na natureza primitiva do homem, mas é somente no meio da sociedade que esse sentimento adquire sua verdadeira força. Para merecer o nome de paixão, é preciso que ele absorva todas as outras afeições da alma, e tanto seus prazeres como suas penas pertencem ao completo desenvolvimento de sua potência".  Essa paixão pela eternidade produz no ser humano, segundo Madame de Staël, o sentimento de um "prazer inebriante", que consiste em "preencher o universo com seu nome, de existir a tal ponto além de si, de ser possível iludir-se tanto sobre o espaço quanto sobre a duração da vida, e de se crer possuidor de alguns dos atributos metafísicos do infinito".
Não pode haver glória legítima, no sentir da nossa autora, que não seja legitimada pela moral. A propósito, frisava: "A moral fornece os fundamentos sobre os quais a glória pode se levantar e a literatura, independentemente da sua aliança com a moral, contribui ainda, de maneira mais direta, à existência dessa glória, nobre estímulo de todas as virtudes públicas" [Staël, 1998: 25]. Encontramos aqui a essência da posição romântica: o valor da literatura consiste no seu poder de elevar a moral de um país.
Diríamos que Madame de Staël propunha o caminho da virtude (da glória) como a mais elevada forma para atingirmos a verdadeira felicidade. A finalidade da obra de arte literária consiste em mostrar esse caminho à sociedade. A propósito, escreveu: "A crítica literária é amiúde um tratado de moral. Os escritores importantes, ao se entregarem exclusivamente ao impulso de seu talento, descobrirão o que há de mais heróico no devotamento, de mais tocante no sacrifício. Estudar a arte de emocionar os homens, é aprofundar nos segredos da virtude. As obras-chave da literatura, independentemente dos exemplos que apresentem, produzem um tipo de sacudida moral e física, uma perturbadora admiração que nos dispõe às ações generosas (...). A virtude converte-se, então, em um impulso involuntário, um movimento que percorre o sangue e que nos encadeia irresistivelmente, como as paixões mais imperiosas" [Staël, 1998: 19].  Eis aí definido o marco conceitual da crítica literária romântica, que valoriza a arte (à la Platão) como paideia moralizadora. A nossa autora arrematava a sua idéia afirmando: "No estado atual da Europa, os progressos da literatura devem servir ao desenvolvimento de todas as idéias generosas" [Staël, 1998: 23].
No prefácio à segunda edição de De la Littérature, a autora deixou claro que não pretendia escrever uma obra de crítica literária ou de poética. Outros já o teriam feito no seio da tradição francesa, como Voltaire, Marmontel ou La Harpe. Madame de Staël destacava da seguinte forma o objeto da obra: "Eu queria mostrar a relação que existia entre a literatura e as instituições sociais de cada século e de cada país; e esse trabalho ainda não tinha sido feito em nenhum livro existente" [Staël, 1998: 2]. A autora explicitava logo qual seria o caminho a seguir, na busca do seu objetivo: "Eu queria provar, também, que a razão e a filosofia têm sempre adquirido novas forças através das desgraças sem número da espécie humana". É como se ela definisse o objeto material da sua pesquisa (sendo tal objeto a matéria sobre a qual versa o seu estudo), como a análise das relações entre a literatura e as instituições sociais de cada século e de cada país, e definisse o objeto formal da mesma pesquisa (o aspecto específico sob o qual ela vai estudar o seu objeto formal), como a perfectibilidade da razão e da filosofia, na superação das desgraças sem número da espécie humana.
Em face dos objetos material e formal propostos, o critério do gosto na análise das obras literárias ficava curto: "O meu gosto em poesia é pouca coisa ao lado desses grandes resultados". Poderia acontecer, inclusive, frisava Madame de Staël, que alguém discordasse em matéria de gosto, mas, ao mesmo tempo, colocado no contexto dos objetivos traçados, concordasse com ela. A respeito, escrevia a autora: "Mas essa forma de ser afetada [o critério do gosto], não possui mais do que relações muito indiretas diante do plano da minha obra; e aquele que tivesse opiniões totalmente contrárias às minhas acerca dos prazeres da imaginação, poderia ainda estar inteiramente de acordo comigo no que tange às aproximações que tenho feito entre o estado político dos povos e a sua literatura; poderia estar inteiramente de acordo comigo acerca das observações filosóficas e o encadeamento das idéias que nos têm servido, para traçar a história dos progressos do pensamento desde Homero até os nossos dias" [Staël, 1998: 2-3].
Madame de Staël tratava de realizar algo semelhante ao que tenta, hodiernamente, V. S. Naipaul, nas suas obras Entre os fiéis, Além da fé e The Loss of El Dorado [cf. Naipaul, 1999, 2001a, 2001b], ao estudar as sociedades islâmicas do ponto de vista das relações entre instituições religiosas e políticas. (Para flagrar, neste caso, as idéias de intolerância em face dos infiéis e de manutenção de uma sociedade de corte patriarcal, quando se trata de organizar as estruturas sociais. O elemento inspirador seria, aqui, a tradição corânica).
A nossa autora considerava que forma parte da perfectibilidade do espírito humano a criação de novos estilos literários. Mas condicionava a validade destes a dois fatores: em primeiro lugar, que não caíssem na vulgaridade (caracterizada como pouca elegância nas imagens e falta de delicadeza na expressão); em segundo lugar, que respeitassem o talento (que é definido como "saber preservar os verdadeiros mandamentos do gosto"). Para que se realizassem essas condições, deveria ser introduzido na literatura nacional "tudo que há de belo, de sublime, de tocante na natureza sombria que os escritores do Norte têm sabido pintar" [Staël, 1998: 6]. Ora, Madame de Staël achava que somente poderia criar um novo estilo aquele que conhecesse "perfeitamente as obras clássicas do século de Luís XIV". Não se trataria, contudo, de matar a criatividade, erguendo esse século como paradigma a ser imitado. "Renunciaríamos a possuir doravante na França grandes homens na carreira da literatura, se desprezássemos de entrada tudo quanto pode conduzir a um novo gênero, a abrir uma rota nova ao espírito humano, a oferecer enfim um futuro ao pensamento. Este perderia de entrada toda emulação se lhe apresentássemos sempre o século de Luís XIV como um modelo de perfeição, além do qual escritor eloqüente nenhum ou pensador nenhum se pudesse levantar" [Staël, 1998: 6].
A perfectibilidade do espírito humano, no entanto, parece que se manifesta clara, segundo Madame de Staël, na evolução do pensamento filosófico. Esse aperfeiçoamento, porém, não seria apreciável nas artes da imaginação. Ao passo que os gregos nos legaram "a maior parte das invenções poéticas", isso contudo não aconteceu no terreno do pensamento. A respeito dessa manifestação filosófica da perfectibilidade humana, frisa Madame de Staël: "O sistema da perfectibilidade da espécie humana tem sido o de todos os filósofos esclarecidos nos últimos cinqüenta anos; eles o têm defendido sob todas as formas de governo possível. Os professores escoceses, Fergusson em particular, têm desenvolvido esse sistema sob a monarquia livre da Grã Bretanha. Kant o defende sob o regime ainda feudal da Alemanha. Turgot o tem professado sob o governo arbitrário, mas moderado, do último reinado; e Condorcet, na proscrição em que tinha sido jogado pela sanguinária tirania que o deveria fazer desesperar da república, Condorcet, no cúmulo do infortúnio, escreveu ainda em favor da perfectibilidade da espécie humana. Tanto os espíritos pensantes têm dado (tal) importância a este sistema, que promete aos homens neste mundo alguns dos benefícios de uma vida imortal, um porvir sem sombras, uma continuidade sem interrupção!" [Staël, 1998: 8-9].
O sistema da perfectibilidade do espírito humano abarca o progresso das ciências, da razão humana, da moral e da política das nações. "Ao descobrir a bússola, frisava nossa autora, foi descoberto o Novo Mundo e a Europa moral e política tem, depois disso, experimentado mudanças notáveis. A imprensa é uma descoberta das ciências. Se dominássemos algum dia a navegação aérea, como seriam diferentes as relações da sociedade!" [Staël, 1998: 10-11]
A idéia de progresso, segundo Madame de Staël,  deve abarcar todo o âmbito das realidades humanas: no terreno científico, no moral e no político. E o grande inimigo da Humanidade é a superstição. Ela é, a longo prazo, "irreconciliável com os progressos das ciências positivas. Os erros de todo tipo se retificam sucessivamente pelo espírito de cálculo. enfim, como se pode imaginar que coloquemos as ciências de tal forma fora do pensamento, que a razão humana não sinta os efeitos dos imensos progressos que se conseguem cada dia, na arte de observar e de dirigir a natureza física? As luzes da experiência e da observação não existem também na ordem moral e não dão elas também útil ajuda aos desenvolvimentos sucessivos de todos os gêneros de reflexões? Diria mais: que os progressos das ciências tornam necessários os progressos da moral. Pois, aumentando o poder do homem, é preciso fortalecer o freio que lhe impede de abusar daquele. Os progressos das ciências tornam necessários os progressos da política. Precisamos de um governo mais esclarecido, que respeite previamente a opinião pública, no meio das nações onde as luzes se estendem cada dia . E embora possamos sempre opor os desastres de alguns anos aos arrazoados que se alicerçam nos séculos, não é menos verdadeiro que país nenhum da Europa suportaria, hoje, a longa sucessão de tiranias baixas e ferozes que têm castigado aos Romanos. É necessário, além do mais, distinguir entre a perfectibilidade da espécie humana e a do espírito humano. Uma se manifesta mais claramente do que a outra. Toda vez que uma nação nova, como a América, a Rússia, etc.,  faz progressos em direção à civilização, a espécie humana se aperfeiçoa; cada vez que uma classe inferior sai da escravidão ou do aviltamento, a espécie humana ainda se aperfeiçoa. As luzes ganham evidentemente em extensão, mesmo quando se trata ainda de questionar que elas cresçam em elevação e profundidade" [Staël, 1998: 11-12]. 
A fim de ver garantido num determinado país, como a França, o triunfo do progresso, a nossa autora considerava ser necessário que os espíritos ilustrados se unissem, de forma semelhante a como os maus elementos da sociedade se apoiam mutuamente nos seus negócios escusos. Se viva fosse nos dias atuais, a ensaista francesa conclamaria a sociedade civil a se associar contra o crime organizado. Madame de Staël pensava, sem dúvida, na experiência suscitada e dirigida por ela no castelo de Coppet, onde ocorreu o primeiro grande encontro intercultural da Europa, que possibilitou a explicitação do conceito de nação como unidade espiritual, sobre um pano de fundo de intercâmbio cultural e de tolerância religiosa, alheio ao projeto absolutista de unificação unidimensional dos espíritos sob a batuta napoleônica. Como frisa com propriedade Michel Delon, na introdução da coletânea organizada por ele e por Françoise Mélonio acerca dos colóquios  de agregação na Universidade de Paris-Sorbonne sobre a nossa autora, "Madame de Staël e os seus amigos liberais buscam lutar, com os seus meios limitados, contra uma unificação cultural do continente e contra a negação autoritária da herança parlamentar da Revolução" [Delon, 2000: 6].
A propósito dessa empresa de cultura que constituía uma República das Letras, frisava a nossa autora: "Por que os espíritos distinguidos, qualquer que seja a carreira que sigam, não juntam os seus esforços para defenderem todas as idéias que, neles, possuem grandeza e elevação? Não vêm eles, por acaso, que por todos os lados os sentimentos mais vis, a avidez mais rastejante se apoderam cada dia de mais um caráter, e degradam cada dia alguns homens sobre os quais eles tinham feito repousar a sua estima? Que restará ainda aos que se preocupam pelos progressos do pensamento? (...). A filosofia é atacada; bem cedo sentirão falta dela; bem cedo reconhecerão que, degradando o espírito, afrouxam a mola da alma que faz amar a poesia, que faz partilhar o seu generoso entusiasmo. Se todos os vícios se coadunam, todos os talentos dever-se-iam aproximar. Se estes se reunissem, fariam triunfar o mérito pessoal. Pelo contrário, se eles se atacam entre si, os arrivistas, felizes, ocuparão os primeiros lugares e tornarão piada todos os sentimentos desinteressados, o amor à verdade, a ambição da glória, a sadia emulação que inspira a esperança de ser útil aos homens e de aperfeiçoar a sua razão" [Staël, 1998: 12-13].
O amor à pátria, sendo uma questão social, precisa ser construído e a literatura, bem como a imprensa, seriam, no sentir da nossa autora, os instrumentos ideais para conseguir esse resultado. a respeito, frisava Madame de Staël: "O amor da pátria é uma afeção puramente social. O homem, criado pela natureza para as relações domésticas, não leva a sua ambição além desse limite, senão graças à irresistível atração da estima geral; e é sobre essa estima, formada pela opinião, que o talento de escrever tem a maior influência. Em Atenas, em Roma, nas cidades dominadoras do mundo civilizado, falando na praça pública, podia se dispor das vontades de um povo e da sorte de todos; nos nossos dias, é pela leitura que os acontecimentos se preparam e os juízos se esclarecem" [Staël, 1998: 24-25].
Julia Kristeva enxerga nessa idéia da nossa autora um traço marcante de contemporaneidade. A propósito, escreve: "Lembremos que nossa democrata não conhece o totalitarismo nem a força da mídia. Estamos ainda longe de Hannah Arendt, e no entanto já está lançado sobre os séculos um elo entre as duas filósofas. Paralelamente ao Terror, Madame de Staël observa aquilo que de fato deve ser chamado de novas mídias da época: ela é sensível, após a invenção da arte tipográfica, à liberdade de imprensa e à multiplicidade dos jornais. Fontes de liberdade e de informação necessária e indispensável, esses fenômenos que a cada dia tornam público o pensamento da véspera também fazem com que seja quase impossível existir num tal país o que se chama de glória. Não mais mestres do pensar, já então!" [Kristeva, 2002: 177].
Estão lançadas, aqui, as bases do liberalismo doutrinário, que une, numa síntese indissociável, meditação diuturna sobre o homem e a sociedade, criação literária e compromisso moral com a defesa da liberdade e da democracia, mediante a divulgação das verdades hauridas no universo da cultura através da imprensa e da tribuna parlamentar. Síntese que aparece no pensamento de outro precursor do liberalismo doutrinário, Benjamin Constant, diretamente influenciado aliás por Madame de Staël. Síntese de que serão portadores homens como Guizot,  e de que se tornarão herdeiros, para além do limite dos doutrinários propriamente tais, Tocqueville e Aron.
BIBLIOGRAFIA
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