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quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O CREDO LIBERAL DE LOCKE, MADAME DE STAËL, TOCQUEVILLE E RUI BARBOSA

Capa da obra sobre o Liberalismo Francês publicada, em edição digital, em 2002, pelo Instituto de Humanidades. (Foto: arquivo do autor).

No Brasil é necessário lutar pelo ideal da Liberdade. Esse é o grande valor que está presente nos corações de tantos brasileiros que saíram às ruas entre 2013 e 2015.


O que o PT representa de pior, para nós, é a ameaça que a sua proposta totalitária traz para a liberdade. Esta incomoda aos donos do poder. Tocqueville dizia que os totalitários amam a liberdade só para si, com exclusão dos demais. Amam-na, privatizada para eles. Como amam também a riqueza, só que em benefício próprio. O problema dos petralhas não é, portanto, com a valorização da liberdade. É com a imagem infinitamente baixa que eles têm dos que não somos petralhas, como se não fossemos dignos nem da liberdade, nem da riqueza. 



Ora, a liberdade deve ser defendida como um direito fundamental para todos os seres humanos. Nada melhor para entender o seu alcance do que lembrar o pensamento dos clássicos. Façamos um flash sobre a ideia que de Liberdade tinham alguns pensadores liberais, desde Locke até Rui.

Comecemos por John Locke, o pai do liberalismo político, que o sistematizou na sua obra Dois tratados sobre o governo civil, no final do século 17:

Do início das sociedades políticas. Sendo todos os homens, como já foi dito, naturalmente livres, iguais e independentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem colocado sob o poder político de outrem sem o seu próprio consentimento. A única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se em uma comunidade, para viverem confortável, segura e pacificamente uns com outros, num gozo seguro de suas propriedades e com maior segurança contra aqueles que dela não fazem parte. Qualquer número de homens pode fazê-lo, pois tal não fere a liberdade dos demais,, que são deixados, tal como estavam, na liberdade do estado de natureza. Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em formar uma comunidade ou governo, são, por este ato, logo incorporados e formam um único corpo político, no qual  a maioria tem o direito de agir e deliberar pelos demais”.

“(...) Por conseguinte, o que inicia e de fato constitui qualquer sociedade política não passa do consentimento de qualquer número de homens livres capazes de uma maioria no sentido de se unirem e incorporarem a uma tal sociedade. E é isso, e apenas isso, que dá ou pode dar origem a qualquer governo legítimo no mundo”. [John Locke, Dois tratados sobre o governo. Trad. de Julio Fischer, introd. de Peter Laslett, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 468; 472].


 O que pensava a respeito de Liberdade Madame de Staël, a grande escritora que deu origem ao movimento romântico na França, no início do século 19?

“Não é para me escusar pelo meu entusiasmo em relação à liberdade, que explicito as circunstâncias pessoais que contribuíram para tornar mais caro para mim esse ideal. Creio que devo me orgulhar desse entusiasmo em lugar de me escusar, pois quis dizer desde o início que o grande reproche do imperador Napoleão contra mim, é o amor e o respeito que sempre tive pela verdadeira liberdade. Esses sentimentos foram-me transmitidos como uma herança, a partir do momento em que pude refletir acerca dos altos ideais dos quais derivam as belas ações que eles inspiram. As cenas cruéis que desonraram a Revolução Francesa, não sendo mais do que tirania sob modalidade popular, não fizeram esmaecer em mim, creio, o culto à liberdade. Poderíamos nos desencorajar em relação à França. Mas, se este país tivesse a desgraça de não possuir o mais nobre dos bens, não era necessário por isso proscreve-lo da terra. Quando o sol desaparece do horizonte dos países do Norte, os habitantes dessas regiões não amaldiçoam os seus raios, que luzem ainda em outros lugares mais felizardos do céu”. [Madame de Staël, Dix  années d´exil, edição 1996, p. 46].

O que pensava Alexis de Tocqueville, autor do clássico A Democracia na América, por ele escrito entre 1835 e 1840, bem como do magnífico livro O Antigo Regime e a Revolução, escrito por volta de 1856? 

“Alguns hão de acusar-me de mostrar neste livro um gosto muito intempestivo pela liberdade – a qual, segundo me dizem, é algo com que ninguém mais se preocupa na França. Só pedirei àqueles que me fariam esta censura lembrar-se que esta tendência é muito antiga em mim. Há mais de vinte anos, falando de uma outra sociedade, escrevia quase textualmente o que vão ler aqui”.

 “(....) Nestes tipos de sociedades onde nada é fixo, cada um sente-se constantemente aferroado pelo temor de descer e o ardor de subir e como o dinheiro, ao mesmo tempo que lá se tornou a marca principal que classifica e distingue os homens, também adquiriu uma singular mobilidade, passando sem cessar de mãos em mãos, transformando a condição dos indivíduos, elevando ou rebaixando as famílias, quase não há mais ninguém que não tenha de fazer um esforço desesperado e contínuo para conservá-lo ou adquiri-lo. A vontade de enriquecer a qualquer preço, o gosto dos negócios, o amor ao lucro, a procura do bem-estar e dos prazeres materiais lá são portanto as paixões mais comuns. Estas paixões facilmente espalham-se em todas as classes, penetram até naquelas até então mais alheias e conseguiriam rapidamente enervar e degradar a nação inteira se nada viesse pará-las. Ora, faz parte da própria essência do despotismo favorece-las e espalhá-las. Estas paixões debilitantes ajudam-no, desviam e ocupam a imaginação dos homens mantendo-os longe dos negócios públicos e fazem que a simples ideia de revolução os faça tremer. Só o despotismo pode fornecer-lhes o segredo e a sombra que colocam a cupidez à vontade e permitem angariar lucros desonestos ao desafiar a desonra. Sem ele teriam sido fortes, com ele reinam”.

“Ao contrário, só a liberdade pode combater eficientemente, nesta espécie de sociedades, os vícios que lhes são inerentes e pará-las no declive onde deslizam. Com efeito, só a liberdade pode tirar os cidadãos do isolamento no qual a própria independência de sua condição os faz viver para obriga-los a aproximar-se uns dos outros, animando-os e reunindo-os cada dia pela necessidade de entender-se, de persuadir-se e de agradar-se mutuamente na prática de negócios comuns. Só a liberdade é capaz de arrancá-los ao culto do dinheiro e aos pequenos aborrecimentos cotidianos de seus negócios particulares para que percebam e sintam sem cessar a pátria acima e ao lado deles. Só a liberdade substitui vez ou outra o amor do bem-estar por paixões mais enérgicas e elevadas, fornece à ambição objetivos maiores que a aquisição das riquezas e cria a luz que permite enxergar os vícios e as virtudes dos homens”.

“As sociedades democráticas que não são livres podem ser ricas, refinadas, adornadas e até magníficas e poderosas graças ao peso de sua massa homogênea; nelas podemos encontrar qualidades privadas, bons pais de família, comerciantes honestos e proprietários dignos de estima; nelas veremos até mesmo bons cristãos, pois a pátria daqueles não é deste mundo e a glória de sua religião é produzi-los no meio da maior corrupção dos costumes e debaixo dos piores governos: o império romano em sua extrema decadência estava repleto deles. Mas o que nunca se verá em sociedades semelhantes, ouso dizê-lo,  são grandes cidadãos e principalmente um grande povo, e não tenho medo de afirmar que o nível comum dos corações e dos espíritos não cessará nunca de baixar enquanto houver união da igualdade e do despotismo”.

“Eis o que eu pensava e dizia há vinte anos. Tenho de confessar que desde então nada aconteceu no mundo que me levasse a pensar e falar diferentemente. Tendo demonstrado a boa opinião que eu tinha da liberdade num tempo em que alcançou o apogeu, não acharão ruim que nela eu persista quando a abandonam”.

“(...) Até os déspotas não negam a excelência da liberdade. Somente que a querem só para eles e sustentam que todos os outros não são dignos dela. Assim não é sobre a opinião que se deve ter sobre a liberdade que existem divergências, e sim sobre a maior ou menor estima em que se tem os homens. E é assim que se pode dizer a rigor que o gosto mostrado para o governo absoluto está em relação exata com o desprezo que se tem para com o seu país. Peço que me permitam esperar mais um pouco antes de me converter a este sentimento”.

[Tocqueville, O antigo regime e a revolução. 3ª edição. (Trad. de Yvonne Jean; apresentação de Z. Barbu; introdução de J. P. Mayer). Brasília: Editora Universidade de Brasília. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 46-47].  

O que pensava Rui Barbosa, o nosso pensador liberal, que teve papel marcante na organização da República, nas primeiras décadas do século 20, tendo-se defrontado com o autoritarismo com que os positivistas substituíram o regime imperial, inspirado nos ideais liberais da representação e do respeito às liberdades individuais ?

"(...) Creio na liberdade onipotente, criadora das nações robustas; creio na lei, emanação dela, o seu órgão capital, a primeira de suas necessidades; creio que, neste regime, não há poderes soberanos, o soberano é só o direito, interpretado pelos tribunais; creio que a própria soberania popular necessita de limites, e que esses limites vêm a ser as suas constituições, por ela mesma criadas, nas suas horas de inspiração jurídica, em garantia contra os impulsos da paixão desordenada; creio que a República decai, porque se deixou estragar, confiando-se às usurpações da força; (...) creio no governo do povo pelo povo; creio, porém, que o governo do povo pelo povo tem a base de sua legitimidade na cultura da inteligência nacional, pelo desenvolvimento do (...) ensino".

Boas Festas de Natal e Ano Novo para todos vocês!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

LUCAS BERLANZA - "A GRANDE MENTIRA: LULA E O PATRIMONIALISMO PETISTA" - UM RESUMO DA NOSSA TRAGÉDIA


Se o lulopetismo e sua pouco mais de uma década de domínio apresentam especificidades destrutivas da moral e da sanidade institucional do país, ele não seria possível, como realidade histórica, não fossem os antecedentes que estabeleceram a nossa cultura política e a nossa lógica de organização de Estado. Reunindo ensaios e artigos publicados pelo Portal Defesa da Universidade Federal de Juiz de Fora, o novo livro do professor Ricardo Vélez-Rodríguez é uma síntese dessa tragédia que é, ao mesmo tempo, muito peculiar do nosso atual momento histórico, e consequência de um legado secular de opções equivocadas.
A Grande Mentira: Lula e o patrimonialismo petista traça uma avaliação do ciclo de governos do PT, insere suas características no contexto da revivescência do populismo na América Latina – sob a retórica belicista do “socialismo do século XXI”, inspirado simbolicamente na ilha de Cuba e na Venezuela chavista -, confere destaque ao aspecto das políticas educacionais e sua relação com a atmosfera da cultura, compara o caso brasileiro com o caso russo e posiciona nosso país no cenário do combate global ao terrorismo dos extremistas islâmicos. Em resumo, Vélez traça um amplo diagnóstico da crise que vivemos hoje, e nossos espíritos mais liberais tanto anseiam por ver eliminada. Nesse encalço, ganhamos muito ao podermos lançar-lhe um golpe de vista e sermos capazes de compreender sua natureza e formação; a obra do professor é uma didática introdução a esse entendimento.
Aqueles que já conhecerem a produção prévia do professor reconhecerão a centralidade que ele confere ao conceito de patrimonialismo, já desenvolvido, por exemplo, no opúsculo publicado pelo Instituto Liberal,Patrimonialismo e a realidade latino-americana, baseado em autores como Max Weber (1846-1920) e Karl Wittfogel (1896-1988), aqui também citados, a partir dos quais se pode definí-lo como “aquela forma de dominação tradicional em que o soberano organiza o poder político de forma análoga ao seu poder doméstico”. Essa confusão entre os interesses particulares, as esferas domésticas da classe política, e a esfera estatal, que se fortalece quanto mais se afrouxam além do razoável os limites desta última, é um problema que nos acompanha desde o início de nossa história, como Vélez volta a apontar neste livro.
Pelas páginas de A Grande Mentira, Vélez também vai passear brevemente pela modernização centralizadora e cientificista inspirada no pombalismo da época colonial, pelo autoritarismo do Positivismo e do Castilhismo, pela ditadura burocrática do varguismo, pela tecnocracia do regime militar e pela classe nacional-desenvolvimentista da Constituinte de 1988. Esse substrato, que apequena a dimensão da sociedade civil e dos indivíduos na mobilização de vitalidade democrática e agiganta a figura do tutor, encastelado no Estado, foi mantido sob diversas cores, diversas retóricas ideológicas, diversos nomes e oligarquias. No entanto, surgindo como novidade, o Partido dos Trabalhadores, cuja origem e mentiras Vélez identifica e desnuda, apareceu propondo a si mesmo como a alternativa que demoliria o patrimonialismo e derrubaria os corruptos poderosos. Diziam-se, Lula e seus consortes, proponentes de uma grande mudança, que nos levaria a uma sociedade mais justa e funcional. Conforme a própria orelha do livro destaca, “muita gente acreditava, há treze anos, em soluções messiânicas. E Lula se ajustou perfeitamente a esta conjuntura, com a sua pregação salvacionista e a índole doutrinário-redentora do PT, que apregoava, aos quatro cantos, o reino da virtude”. A dolorosa realidade, travestida pelo sucesso econômico inicial resultante da conjuntura internacional favorável e da manutenção estratégica da orientação econômica dos governos tucanos, se fez sentir, através do aparelhamento de Estado, do desprezo pela lei de responsabilidade fiscal, dos gastos despudorados que Vélez destaca em seu trabalho.
Com uma riqueza notável de referências e indicações bibliográficas, o professor apresenta o PT empregando o que Jarbas Vasconcelos definiu como “o maior programa de compra de votos do mundo”, através da bolsa-família, uma adaptação piorada do bolsa-escola desfraldado por Fernando Henrique, e do incremento avassalador que deu a tudo aquilo que dizia combater. Aliando-se, por conchavos e acordos obscuros, às oligarquias que prometeu enfrentar, o PT, como enfatiza trecho selecionado para a própria contracapa do livro, “conseguiu potencializar as raízes da violência, que já estavam presentes na formação patrimonialista do nosso Estado e que se reforçaram com o narcotráfico, mediante a disseminação, ao longo dos últimos treze anos, de uma perniciosa ideologia que já vinha inspirando a ação política do Partido dos Trabalhadores, a ‘revolução cultural gramsciana’”.
O último conceito, o da revolução gramsciana, é o segundo grande mote da compilação de Vélez, ao lado do patrimonialismo. Representa, através de sua proposta da ocupação de esferas culturais, de universidades, de meios de comunicação, de cooptação de artistas, em busca de uma hegemonia que forneça suporte simbólico aos seus projetos de poder, um dos incrementos que a dimensão socialista do PT acrescentou ao que já era ruim, investindo em segregação, compartimentação da sociedade em grupos separados por abismos apenas em função da cor de pele ou das condições financeiras, em um discurso de hostilização ao divergente.
No entanto, de par com seu sombrio diagnóstico, o professor não deixa de vislumbrar uma porta de esperança no trabalho de instituições como o nosso Instituto Liberal, o Instituto Mises Brasil e o Instituto Millenium, citados nominalmente na obra, e no despertar de um “progressivo movimento de grupos e de pessoas tendente à formulação de novas propostas políticas que nos libertem da onda de desfaçatez e cinismo totalitário da petralhada”, o que teve uma face visível nas enormes manifestações de 2015. Uma foto de uma dessas manifestações, aliás, ilustra o livro, e a capa também é uma alusão criativa aos inesquecíveis e geniais “panelaços”.
O professor Vélez sabe que “a democracia, certamente, não cai do céu. Precisamos construí-la. Diante do desgoverno destes treze anos, devemos sacudir o pó e nos reerguer com coragem, para enfrentarmos a tarefa de pensar o Brasil da próxima geração, a fim de reconquistarmos a dignidade perdida fazendo o dever de casa”. Precisaremos, acrescenta ele, de uma reforma política verdadeira, que nos conceda condições mínimas de desenvolvimento, que resolva nossa crise de representatividade, que dispa a casta burocrática de seus privilégios patrimoniais e incentive a autonomia e a consciência cívica e participativa nos brasileiros.
Para isso, mãos à obra! E para pôr as mãos à obra, antes, repetimos, é preciso compreender o cenário sobre o qual nos lançaremos ao trabalho árduo. Se o leitor já conhece o trabalho do professor Vélez e já entende o cenário de degradação produzido pelo PT, o novo livro é mais uma forma de organizar as ideias com limpidez. Caso contrário, ou caso o leitor conheça alguém que ainda se encontra perdido nesse mar tempestuoso, este livro é uma boa forma de começar a entender o que está acontecendo.

 (Este artigo foi publicado pelo Portal do Instituto Liberal, em 30 de Novembro de 2015)

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

ARSÊNIO EDUARDO CORRÊA - VÉLEZ RODRIGUEZ DISSECA O LULOPETISMO


Em seu novo livro denominado “A GRANDE MENTIRA – LULA E O PATRIMONIALISMO PETISTA” – Vélez Rodriguez nos brinda com uma avaliação histórica de grande valor. Mesmo levando-se em conta a dificuldade ou o risco de se fazer avaliações de fatos históricos recentes, o livro traz uma quantidade enorme de informações e documentos que representará, sempre, uma fonte inestimável para todos aqueles que se interessarem pelo processo político brasileiro.

O livro está dividido em uma Introdução e um Posfácio, e entre um e outro temos VIII Capítulos. A Introdução “ESCONJURANDO O ATRASO”, apresenta os problemas vividos hoje pelo Partido dos Trabalhadores, entre os quais o possível impeachment à presidente Dilma. Partindo do pressuposto, a nosso ver, correto, de que a maioria dos brasileiros, em 2002, acreditava que uma força messiânica pudesse salvar o Brasil, e tendo a liderança de LULA encarnado esse mito, o Partido chegou à presidência da República, tomado posse, mediante a reunião dos programas sociais existentes dos governos anteriores e dando-lhes nova denominação, agora centrados no programa “Bolsa Família”. O governo petista criou, segundo o Senador Jarbas Vasconcelos, “o maior programa de compra de votos do mundo (...)”. Ao final do primeiro mandato de LULA tivemos o inicio das investigações do que foi denominado de “Mensalão” processado e julgado pelo Supremo Tribunal Federal. O que parecia ser o fim de um ciclo messiânico, não ocorreu tendo o presidente se recuperado e conseguido ser reeleito e mais, no final do segundo mandato o presidente LULA conseguiu eleger como sua sucessora a atual mandatária. O fato pode ser uma prova definitiva de que Jarbas Vasconcelos acertou em sua avaliação.

Vélez nos informa que os “capítulos que integram este livro são constituídos por ensaios e artigos que, numa espécie de resistência cultural ao populismo reinante, escrevi para os meus alunos e leitores.”. Portanto, este trabalho se constituiu de um testemunho dos fatos no momento em que eles vieram à tona.

No Capitulo I “Avaliação do Ciclo Lulopetista”, o professor Vélez faz um balanço dos mais de dez anos de poder desse grupo político, mostrando como os petistas se apresentaram antes da eleição de 2002. Naquela ocasião foi divulgado o que o professor denomina de “Cartas de Navegação”: a “Carta ao povo brasileiro” ou simplesmente “Carta do Recife” e a “Carta de Olinda”. Na primeira, Lula se compromete, se eleito, a respeitar os contratos internacionais assinados pelo Brasil e a não atentar contra o regime democrático, mantendo, ainda, a política macroeconômica advinda do Plano Real. Seriam respeitados, enfim, todos os tratados e contratos firmados, se mantendo o governo dentro das balizas constitucionais. Essa primeira carta conquistou a classe média, dando a vitória eleitoral ao Partido dos Trabalhadores. A segunda carta de navegação denominada de “Carta de Olinda”, elaborada pela direção do Partido, leia-se José Dirceu como redator chefe (e que veio a ser Ministro Chefe da Casa Civil), trouxe o verdadeiro plano econômico que se constituiu na intervenção do Estado, com a cooptação de empresários que se constituiriam em campeões nacionais de bilheteria e se tornariam nomes internacionais. Para que isso fosse possível seriam usadas as fontes de financiamento do Estado. Estaria dentro dessa perspectiva o comando das empresas estatais que possibilitaram o desvio de dinheiro para os cofres do Partido. Voltariam a carga no sentido de reestatizar as empresas privatizadas no governo anterior. Ainda sob a “Carta de Olinda”, os movimentos sociais, entre eles o Movimento dos Trabalhadores sem Terra, receberiam polpudas contribuições do Estado, e ainda a Igreja Católica, através da Pastoral da Terra e do Conselho Indigenista Missionário, receberia a sua  significativa cota política. Dentro desse quadro foi desenvolvida uma agressiva política de demarcação de terras indígenas, com o fim de extinguir as agroindústrias mantidas pela iniciativa privada nessas áreas. Esse quadro veio a gerar um clima de insegurança jurídica.

Com o fim de demonstrar que o plano político colocado em pauta veio a reforçar o “patrimonialismo na gestão do estado”, Vélez, menciona o “Petrolão”, e nos lembra que esse tipo de procedimento vem de há muito. O autor desenvolve a hipótese de que a ciência resolveria todos os problemas como originária de Pombal. Acresce-se a isso o fato de que o positivismo brasileiro também fez coro e se juntou aos pombalistas. Na sequencia tivemos os marxistas que se juntaram a essa corrente de pensamento, trazendo as consequências funestas a que assistimos nestes dias.

O capitulo II – “O lulopetismo na perspectiva da América Latina: entre a Aliança do Pacifico e o neopopulismo bolivariano”, traz à discussão um processo que ocorre em nossos dias, sendo necessária uma avaliação do mesmo, segundo o autor. Na aliança do Pacifico nós temos o Chile, o Peru, a Colômbia, o México que hoje são membros efetivos, juntando-se aos Estados Unidos da América do Norte, o Canadá, mais a Europa Ocidental, num projeto de franco desenvolvimento comercial e cultural. Do outro lado, temos o chamado bolivarianismo que se traduz em atraso comercial e cultural. Dentro dessa perspectiva, Vélez faz uma ampla análise, justificando as afirmações e documentando-as.

No capitulo IV – “As desgraças do intervencionismo no Brasil”, o autor lembra as dificuldades enfrentadas pelo Barão de Mauá no seu esforço de constituir uma empresa independente dos “intendentes do Rei” e faz uma análise crítica acerca das práticas do patrimonialismo, que obstaculizavam a livre iniciativa. Tudo isso como uma espécie de prenúncio das desgraças que o intervencionismo de Estado causou à livre empresa no ciclo republicano, notadamente ao longo dos últimos 13 anos de governos petistas, tendo conduzido o país à penosa situação de quase insolvência em que nos encontramos.

O capitulo V – “Um Caso Típico de Vôo de Galinha: As Políticas Públicas em Educação de 64 até 2014”, o autor traz uma análise das principais políticas públicas postas em pratica no período, mostrando os erros e os eventuais acertos. O importante a ressaltar é que a política hoje desenvolvida pelo governo federal (que Vélez chama de “Lulopetismo”) é a “Pátria educacional” do atraso, pois não privilegia o fundamental, mantendo a população brasileira cada vez mais despreparada para o embate, seja cultural, seja profissional, com as populações de outras nações, nesse agressivo mundo globalizado em que o Brasil se encontra.

O capitulo VI – “O marxismo gramsciano, pano de fundo ideológico da reforma educacional petista”, traz uma avaliação de grande valia para todos, uma vez que a abordagem teórica nos leva a compreender o porque dos investimentos feitos em grande quantidade na abertura de Universidades Federais e os poucos investimentos no ensino fundamental. O autor se lastreia na suposição de que caminhamos para a “revolução cultural” baseada no pensamento gramsciano.

O capitulo VII – “A Rússia, a modernização brasileira e a saída do patrimonialismo”, constitui uma aproximação entre o Brasil da Rússia, uma vez que a Rússia é considerada como país patrimonialista mais antigo. Há que se considerar a experiência vivida pela Rússia que, segundo Antonio Paim no livro O Patrimonialismo Brasileiro em Foco (Campinas: Vide Editorial, 2015), enfrentou o desafio do patrimonialismo, tendo obtido vários êxitos que não sabemos se frutificarão e produzirão a destruição do Estado Patrimonial. Nessa obra, aliás, colaborou Vélez, junto com Paulo Kramer e Antônio Roberto Batista.

No capitulo VIII – “A Luta Contra o Terrorismo em Tempos de Bandalha Populista”, é abordada a questão da segurança, uma vez que o Brasil, até 2014, não possuía nenhuma lei antiterrorismo. O autor mostra o quando isso representa de irresponsabilidade e, ainda, destaca a importância da “educação para a cidadania” para manter a coesão interna de uma nação que, assim, pode se proteger das investidas internacionais. O autor aborda, ainda, a questão do aperfeiçoamento da representação, o que nos possibilitará um melhor equacionamento dos problemas internos o gerará com certeza melhor condição externa.

Por fim, no Posfácio nosso professor faz um complemento analítico dos fatos e nos mostra o quanto é difícil nossa saída deste imbróglio. Em conclusão, o livro de Ricardo Vélez Rodriguez é de grande atualidade e deve ser lido e meditado por todos aqueles que querem um Brasil melhor.

Arsênio Eduardo Corrêa.

Dezembro de 2015.



domingo, 20 de dezembro de 2015

BENJAMIN CONSTANT DE REBECQUE E A SUA INFLUÊNCIA NO BRASIL

Benjamin Constant de Rebecque, o pensador suíço-francês precursor do Liberalismo Doutrinário.

Capa da obra de Ricardo Vélez Rodríguez sobre o Liberalismo Francês e a sua influência  no Brasil (Edição digital do Instituto de Humanidades).
Se houve um autor que influenciou no surgimento das instituições brasileiras no início do século XIX, esse foi Benjamin Constant. O seu pensamento foi o arquétipo que serviu de inspiração ao nosso mais importante pensador político do período, Silvestre Pinheiro Ferreira. Efetivamente, a doutrina liberal de Constant antecipou-se à discussão dos grandes problemas com que se defrontou o Império do Brasil, na tentativa de efetivar a consolidação do Estado nacional. Temas como a representação, o controle moral ao poder, a limitação da soberania popular, a monarquia como poder neutro, os direitos inalienáveis de cidadão à vida, à liberdade e às posses, o sentido da moderna democracia, foram objeto da análise do pensador francês. As suas teses, aliás, ao mesmo tempo que inspiraram a Silvestre Pinheiro Ferreira e aos estadistas do Império, continuam tendo rara atualidade, como frisa um dos seus mais importantes estudiosos contemporâneos, Tzvetan Todorov.
Essa atualidade é paradoxal, pois emerge justamente da impossibilidade de aplicar, de forma total, a concepção de Constant ao mundo da política real. "Mas é precisamente pelo seu excesso e a sua impossível adaptação ao mundo moderno, frisa Todorov [1997b: 17-18], que o pensamento constantiniano permanece interessante e forte. Ele questiona um processo no momento mesmo em que ele vai se impor definitivamente. Constant levanta premonitoriamente o espantalho do Leviatã incontrolável. Certamente não é possível colocar toda a sua teoria em prática. Mas ela pode servir como instrumento para medir o que resta de liberdade nas nossas sociedades modernas. Entre o Estado anoréxico e o Estado bulímico, qual preferimos? A partir de que momento um governo ultrapassa as suas prerrogativas? O liberalismo constantiniano oferece uma grade de análise ou um paradigma, mais do que uma série de receitas. Aplicáveis? No sentido estrito dos seus princípios não o são, embora menos hoje do que no início do século XIX. Mas esses princípios deveriam ressoar na nossa consciência cívica, pois os mecanismos devoradores no seio de todos os poderes permanecem, eles ao menos, sempre atuais".
Constant, junto com Madame de Staël, foi o precursor dos liberais doutrinários na França. A sua meditação trilhou o caminho de moderação e de construção das instituições do governo representativo, que caracterizaria aos demais liberais franceses ao longo do século XIX. Mas o ponto central da reflexão e da pregação política do nosso autor foi a sua decisiva defesa da liberdade, num meio, como o da França pós-revolucionária, que custava a fazer uma opção por esse ideal. Acerca da marca deixada por ele no seio da cultura política francesa, eis o que, em 1872, escrevia Édouard Laboulaye no prólogo à segunda edição do Cours de Politique Constitutionnelle de Constant [Laboulaye, 1872: vol I, I-II]:
"Em 1872, como em 1861, sob a República provisória como sob o Império, a França busca as condições da verdadeira liberdade. Ela quer fundar um governo que garanta a paz pública, dando uma sólida garantia a todos os interesses, a todos os direitos. Acerca de todos esses pontos encontrar-se-ão em Benjamin Constant soluções decisivas e confirmadas por uma experiência de cinqüenta anos. Inimigo do arbítrio e da violência sob todos os regimes, Benjamin Constant converteu-se no mestre da ciência política para os amigos da liberdade. O seu Curso de Política Constitucional é o manual mais completo, o guia mais seguro para o estudante, o publicista, o legislador. Na escola de Benjamin Constant sempre se aprende. Ninguém pode se afastar impunemente dela. O tempo consagrou o equilíbrio das suas idéias. Ele cresceu e crescerá ainda mais na estima dos homens, porque sempre defendeu a justiça, a moderação, a verdade. Nestes tempos sentimos grande necessidade das suas lições e ouso dizer que jamais a publicação dos seus escritos chegou em melhor momento. Tomara que possamos aproveitar os seus conselhos e atingir enfim essa terra prometida que sempre nos escapa!".
Constant, como Madame de Staël, encarnou um outro aspecto que seria caraterístico dos doutrinários: ser testemunha da razão contra a opressão. O nosso autor apregoava a utilização, na defesa da liberdade e das luzes, de todos os meios de que a civilização poderia fazer uso para multiplicar o alcance da sua voz. No caso concreto dos intelectuais do século XIX, tratava-se de utilizar sobretudo a imprensa. Eis o que Constant escrevia acerca da missão esclarecedora que tinham os intelectuais (chamados por ele de missionários), na defesa da liberdade contra a opressão, na obra De l'esprit de conquête et de l'usurpation: "Por mais ativa que seja a inquisição, quaisquer que sejam as suas precauções, os homens esclarecidos conservam sempre mil meios para se fazerem entender. O despotismo somente vinga quando a razão se estiola na sua infância; então ele pode frear o progresso da espécie humana e mantê-la refém de uma duradoura imbecilidade. Mas, quando a razão é posta em marcha, ela se torna invencível. Somente há um momento para proscrevé-la com sucesso; passado esse momento, todos os esforços são vãos. Uma vez iniciada a luta intelectual, a opinião se separa do poder e a verdade clareia em todos os espíritos. Missionários dessa verdade eterna, se o caminho for interceptado, renovai os esforços, redobrai o zelo. Que a luz apareça em todas partes! Apagada, que ela brilhe de novo! Afastada, que ela volte! Que ela se reproduza, se multiplique, se transforme! Que ela seja tão infatigável quanto a perseguição!  Que uns marchem com coragem! Que outros se introduzam com habilidade!  Que a verdade se expanda, tanto apregoada alto e bom som, quanto repetida em voz baixa! Que todas as razões se coadunem, que todas as esperanças se reanimem, que todos trabalhem, que todos sirvam, que todos vigiem. Não há prescrição para as idéias úteis, diz um homem ilustre (Necker); não há pois prescrição para a liberdade"  [Constant,  1986: 230-231].
Mas essa missão de ilustrar que os intelectuais têm, deveria estar vinculada, segundo Constant, à inserção corajosa e real deles na vida pública. O doutrinário não poderia ser jamais um homem de gabinete, um philosophe trancafiado na sua torre de marfim.  O intelectual que iria transformar as instituições deveria se inserir na corrente do poder para, a partir dela, civilizá-la. Emerge aqui um aspecto importante, que será retomado pela tradição doutrinária e que chegará até os nossos dias na meditação de Aron: o ideal de intelectual engajado. Eis a forma em que Todorov ilustra esse importante aspecto da meditação constantiniana: "Constant, e aí reside uma das suas grandes originalidades, não quer renunciar a nenhuma dessas duas vias (a teórica, inspirada em Rousseau e a histórica, tributária de Montesquieu). A sua reflexão não é deduzida a partir de postulados abstratos; melhor, tendo ele mesmo participado da vida política, busca teorizar o real vivido. Não haverá pois lugar nele para essas ficções que Rousseau considerava úteis, o estado de natureza ou o contrato social. A história é aqui objeto de pensamento, não repertório de exemplos. Mas não se trata, no entanto, de renunciar aqui aos princípios: só num certo nível de abstração, pensa Constant, o debate será fecundo; e o seu livro (Principes de Politique) não é um programa de ação política, mas uma meditação que permite compreender e julgar o mundo. Não a teoria de um lado e a prática de outro; mas uma prática teorizada, uma teoria submetida constantemente ao teste do real. Constant não é daqueles que se deixam inebriar pelas palavras. A história e os princípios intemporais devem pois permanecer presentes, ambos, o que nem sempre é fácil. Mas algumas das idéias mais fecundas de Constant, como aquela  do seu célebre confronto entre a liberdade dos Antigos e a dos Modernos, levam consigo esse confronto" [Todorov, 1997b: 6].
Em que pese a atualidade do pensamento de Constant, várias razões explicam o fato de a sua obra ter sido apenas redescoberta, na França, em 1980. Tais motivos seriam, entre outros, os seguintes: o caráter pouco sistemático dos seus escritos, a agitada vida que levou o nosso autor e a particular evolução seguida pelas instituições francesas ao longo do século XIX (cada vez menos inspiradas nos princípios liberais e cada vez mais próximas do estatismo). Tzvetan Todorov [1997b: 9-19] adiciona mais um motivo para o fato de a obra de Constant ter passado despercebida do público leitor: o seu estilo não é grandiloqüente, ele é de uma claridade que o torna quase um professor, ao mesmo tempo que um confidente do homem de hoje. Para um século XIX acostumado aos arroubos dos heróis românticos, e para um século XX polarizado pelas grandes marchas e contramarchas das ideologias, convenhamos que o estilo do nosso autor é muito pouco empolgante. Talvez o fato de, no final do século XX, ter a atenção dos editores se voltado progressivamente para a história da vida privada, levou-os a valorizar, no seu devido peso, uma obra escrita a partir das expectativas do indivíduo. Constant fala para o homem do final do século XX, para o cidadão que desconfia das grandes soluções ideológicas, para o pagador de impostos que se preocupa com o tamanho do Estado e que viu de perto, nos totalitarismos, o perigo do poder exercido sem freio moral. 
Um libertário. A atualidade de Constant justamente decorre dessa sua defesa incondicional da liberdade contra o estatismo. A propósito deste aspecto, escreve Todorov [1997b: 16-17]: "A teoria constantiniana da limitação do poder representa a última etapa antes do anarquismo. O salário estatal se converte no mínimo possível antes da sua extinção. Os únicos domínios que o autor reconhece à autoridade pública são a segurança (exército), a ordem (polícia) e os recursos necessários para pagar essas duas funções vitais (impostos). O exército e a polícia devem, por sua vez, serem reduzidos, para evitar que se possam converter no instrumento do abuso estatizante. Constant enxerga no Estado uma espécie de hidra cujas cabeças, tão logo são cortadas, ressurgem com mais força ainda; o poder segue por uma pendente natural em direção ao seu alargamento infinito e prejudicial. A metáfora da torrente é recorrente, contra a qual os diques e os tapumes nunca serão resistentes o bastante, segundo o autor. Que barreiras suficientemente sólidas podem ser previstas contra o agigantamento da onda estatizante? Constant responde: a opinião e as garantias constitucionais. Quanto mais limitada for a parte do poder, mais fácil é o seu controle, mais eficaz também o peso da opinião. Isso pode parecer ridículo, mas Constant tem, por assim dizê-lo,  fé na força das idéias e, consequentemente, do escritor como eminência parda do poder".
Desenvolverei cinco itens, a saber: I - Perfil bio-bibliográfico de Benjamin Constant; II - Benjamin Constant, defensor liberal da França pós-revolucionária; III - O conceito de soberania popular limitada e a crítica de Constant ao democratismo rousseauniano; IV - O poder monárquico, segundo Constant; V - A herança de Benjamin Constant na teoria da representação de Silvestre Pinheiro Ferreira.

I - PERFIL BIO-BIBLIOGRÁFICO DE CONSTANT DE REBECQUE
O  grande publicista e orador nasceu em Lausanne (Suíça), em 25 de outubro de 1767 e morreu em 10 de dezembro de 1830, poucos meses depois de ter tido começo o reinado de Luís Filipe. Pertencia a uma família de protestantes franceses originária da região de L'Artois, que tinha buscado refúgio na Suíça, na região de Vaud, quando da revogação do Edito de Nantes. Os antepassados de Constant de Rebecque converteram-se ao protestantismo no século XVI e destacaram-se pelas suas dotes literárias e por terem se devotado ao serviço público antecipando, assim, um traço marcante dos doutrinários franceses, que valorizavam sobremaneira a vida intelectual posta a serviço da administração pública e da educação para a cidadania.
O bisavô paterno de Benjamin, David Constant de Rebecque (1628-1733) foi professor de teologia e pastor na localidade suíça de Coppet, perto de Lausanne. Deixou escritas duas obras, L'Âme du monde  ou Traité de la Providence (publicada em Leyde, em 1679) e Abrégé de Politique (publicado em Colônia, em 1686). Este último livro foi muito elogiado por Pierre Bayle. David teve três filhos: Marc Rodolphe, que entrou desde jovem ao serviço do governo da Holanda e chegou a desempenhar o cargo de secretário de gabinete do rei Guilherme. O filho mais novo, Samuel, nascido por volta de 1676, conhecido como Barão de Constant, foi ajudante de ordens de Lorde Albemarle e teve destacada atuação na guerra da Espanha.
O filho mais novo de Samuel Constant e pai de Benjamin, recebeu também o nome de Samuel. Nasceu em 1729 em Lausanne, tendo falecido em 1800. Foi literato mas também abraçou, como o pai, a carreira das armas, tendo desempenhado o cargo de coronel num regimento suíço a serviço dos Estados Gerais da Holanda.. Conheceu Voltaire, de quem se tornou amigo e escreveu obras de caráter diverso. Em 1792 participou como soldado da defesa de Genebra, apesar da sua avançada idade. Algumas das suas obras são as seguintes: Instructions de morale à l'usage des enfants qui commencent à parler (Londres, 1785); Camille ou Lettres de deux filles de ce siècle (Paris, 1785); Laure de Germosan ou Lettres de quelques personnes de Suisse (Paris, 1787): Recueil de pièces dialoguées ou Guenilles dramatiques ramassées dans une petite ville de Suisse (Paris, 1787).
Constant de Rebecque foi educado por preceptores. Tendo perdido a mãe ao nascer, o nosso autor "viu-se privado, frisa Larousse [1865: 1016], desses tenros afetos da infância que nada pode substituir jamais, e que são necessários para domar o orgulho e o individualismo da personalidade". De inteligência muito viva, fez rápidos progressos nos seus estudos. Aos doze anos era considerado como uma criança prodígio, ao mesmo tempo inteligente, cativante, indócil e auto-suficiente. Testemunho da sua indocilidade e do seu brilho intelectual dá ele próprio, numa curiosa anedota em que o nosso autor informava acerca do método pedagógico utilizado por um dos seus mestres par instruí-lo, embora a isso se opusesse o irrequieto adolescente: "Ele me propôs, frisa Constant, de inventarmos, nós dois, uma língua que só nós conhecêssemos. Eu me apaixonei por essa idéia. Os dois (pusemos) mãos à obra, criando sucessivamente um alfabeto, um dicionário, uma gramática, etc. O trabalho avançava rapidamente e bem cedo essa língua desconhecida encontrava-se completa, rica, harmoniosa e com uma grandiosidade que faria palidecer todos os idiomas vulgares. Essa língua era o grego. (...) (Eu) a tinha aprendido achando que a inventara!" [apud Larousse, 1865: 1016].
O nosso autor deu continuidade aos seus estudos na Universidade de Oxford e depois em Erlangen, na Alemanha, onde freqüentou a pequena corte do margrave de Baireuth. Por último, transladou-se a Edimburgo, em cuja Universidade foi discípulo de Adam Smith. Em 1787 fixou residência em Paris, onde dedicou-se à vida boêmia, tendo-se tornado conhecido de importantes figuras da política e da cultura da época, como Suard (em cuja casa se hospedou), Morellet, La Harpe, Marmontel, etc. Ressaltando as caraterísticas marcantes da sua personalidade intelectual, visíveis já nesta época da sua vida, escreveu Larousse [1865: 1016]: "Um pouco whig, um pouco idealista, mas sobretudo filósofo da escola francesa, conservou ao longo da sua vida a marca de uma educação fecundada por várias fontes e influenciada pelas suas primeiras experiências. Dotado de um espírito engenhoso e vivo, ágil, cético, volúvel, incerto, com uma singular mistura de egoísmo e sensibilidade, de menosprezo pelos homens, de ternura e ironia, de melancolia precoce e de amor ao prazer: aparece desse jeito já a partir dos seus primeiros passos na cena do mundo; assim se retratará a si mesmo no seu romance Adolphe e melhor ainda na sua correspondência. A sua superioridade, aliás, era evidente. Sentia-se de entrada que essa personalidade indefinível era alguém, que nela havia futuro e encerrava a semente de um grande renome".
O jovem Constant de Rebecque trabalhou durante vários anos como funcionário da corte do duque de Brunswick. Casou com uma jovem pertencente a essa nobre família, Minna von Cramm, tendo-se divorciado dela em 1793. Trasladou-se a seguir a Lausanne onde conheceu, em 1794, Madame de Staël, com quem teve, nos anos seguintes, uma intensa relação amorosa que em muito influenciou o seu pensamento político e da qual nasceu uma filha, Albertine, em 1797. O nosso autor acompanhou Madame de Staël a Paris, onde publicou o ensaio intitulado De la force du gouvernement actuel de la France et de la nécessité de s'y rallier. Tratava-se de uma declaração de apoio ao Diretório, motivo pelo qual o mencionado escrito foi inserido na publicação oficial do governo francês, o Moniteur. Constant estabeleceu contatos com políticos importantes como Riouffe, Chénier, Daunou e Louvet, não tendo seguido, no entanto, a orientação deles. Pertencia ao círculo de Madame de Staël, o denominado "Clube do Hotel de Salm", do qual formavam parte também figuras como Talleyrand, o abade Sieyès e outros políticos que professavam ideais moderados, favoráveis ao estabelecimento na França da monarquia constitucional, inspirada no modelo inglês. Dessa época datam alguns escritos combativos: Des reactions politiques e Des effets de la Terreur. Estes opúsculos foram reunidos, posteriormente, em 1829, numa única publicação que levou o título de Mélanges littéraires et politiques.
Secretário do "Clube de Salm", o nosso autor converteu-se logo num dos mais importantes expoentes dessa associação. Constant de Rebecque e os seus amigos aprovaram o golpe de estado do 18 Fructidor, que deitou por terra a instituição monárquica. Naturalizou-se francês em virtude da lei de 15 de dezembro de 1790, que reconhecia os direitos civis aos protestantes expulsos da França por motivos religiosos. Após algumas tentativas mal sucedidas, o nosso autor elegeu-se para o Corpo Legislativo, tendo ingressado nele depois do golpe de estado de 18 Brumário, que guindou Bonaparte ao poder como primeiro Cônsul. Indisposto com este em decorrência da oposição que Constant lhe fazia dentro do governo, foi demitido em 1802 do cargo de tribuno (ao qual tinha ascendido recentemente, em virtude da influência de Madame de Staël sobre o novo regime). O "Clube de Salm" converteu-se, a partir desse momento, no refúgio para os opositores ao militarismo bonapartista em ascensão. Ali encontraram acolhida atores políticos de diversas tendências contrárias ao stablishment, como os antigos monarquistas constitucionais, Narbonne, de Broglie, Barante e Jaucourt.
O "Clube de Salm" terminou sendo fechado por ordem de Napoleão e Constant foi banido junto com Madame de Staël. O nosso autor tinha publicado recentemente o ensaio intitulado Suites de la contre-révolution de 1660 en Anglaterre. Constant de Rebecque partiu com a sua amiga para a Alemanha e fixou residência na corte de Weimar, onde teve tempo e tranqüilidade suficientes para se ocupar da tradução do Wallenstein de Schiller, bem como da escrita da obra que o nosso pensador acalentava há anos, De la réligion considérée dans sa source, ses formes et ses développements. A relação amorosa de Constant com Madame de Staël terminou quando ela decidiu voltar ao castelo de Coppet, na Suíça. Em 1808 o nosso autor casou com uma parente do príncipe de Hardenberg, Charlotte, com a qual viveu tranqüilamente em Gottingen. Do período do seu exílio, que se estende até 1814 (quando regressou à França em companhia de Bernardotte, de quem tinha se tornado amigo), datam as seguintes obras: o seu romance Adolphe, duas autobiografias intituladas Journal Intime e Ma Vie (denominada esta última de Le Cahier rouge), a sátira que levou o título de Florestan ou le sage des soissons e o ensaio intitulado De l'esprit de conquête et de l'usurpation dans leurs rapports avec la civilisation européenne, de 1813, que constitui sem dúvida a sua mais importante obra do período e que conheceu sucesso imediato ao mostrar, de forma clara, o perigo de aplicar o regime militar para solucionar questões civis, bem como a impossibilidade de dar alicerces sólidos a um governo fundado na conquista. Tratava-se, sem dúvida, de uma crítica radical ao bonapartismo, que tinha semeado a insegurança pela Europa afora, tendo mudado as fronteiras políticas de praticamente todos os países por onde passaram as tropas napoleônicas.
Constant de Rebecque tornou-se figura central da política em Paris, após a saída de Bonaparte do poder. Em maio de 1814, o nosso autor defendeu a indicação do amigo Bernardotte como regente e publicou as suas Réflexions sur les Constitutions. Contrariamente às expectativas de Constant e seus amigos, Luís XVIII assumiu a coroa na denominada Restauração e outorgou a Carta Constitucional de 4 de junho de 1814, na qual foram inseridas as reivindicações liberais mínimas veiculadas pela burguesia. O prestigioso Journal des Débats abriu as suas páginas ao nosso autor que, em rápida cambalhota política, passou a defender a causa dos Bourbons, em artigos memoráveis. Na véspera do retorno de Napoleão à capital francesa (em 19 de março de 1815), Constant publicou nesse jornal violenta filípica contra o "usurpador", que era caracterizado como "esse homem tingido de sangue, mais odioso do que Átila" e prometia jamais se juntar a ele. No dia seguinte, o "usurpador" entrou nas Tuilleries e rapidamente o nosso autor, que já tinha providenciado um passaporte para América, mudou de idéia e aceitou o convite de Bonaparte para se tornar conselheiro de Estado. O imperador buscava um ponto de apoio no Partido Liberal, ao qual pertencia Constant. Fazendo gala de paradoxal pragmatismo escreveu, a pedido de Bonaparte, o famoso Acte aditionnel aux Constitutions de l'Empire, que constituiu a base da obra conhecida com o título de Principes de Politique, publicada em 1º de junho de 1815. A respeito das idas e vindas do nosso autor no conturbado cenário da  política francesa de então, escreveu Larousse [1865: 1017] com uma ponta de ironia: "Essa foi uma das mil cenas da grande comédia que encenaram perante o mundo a maior parte dos homens públicos e os dignitários da época".
Em que pese as agitadas circunstâncias em que foi escrito, o livro Principes de Politique foi considerado pela crítica posterior, junto com De l'esprit de conquête et de l'usurpation, como uma das obras principais de Constant. Eis o que escrevia, em 1872, Édouard Laboulaye: "Os Princípios de Política, publicados em 1815, (...) têm um duplo mérito: de um lado, é a exposição mais completa das idéias do autor; de outro, é a prova mais clara da continuidade dessas idéias. O conselheiro de Estado imperial fala da liberdade como o escritor independente de 1814 e de 1820. Uma coleção dos panfletos de Benjamin Constant em que faltem esses dois ensaios, não possui verdadeiramente nenhum valor" [Laboulaye, 1872: vol. I, V].
Chegada a segunda Restauração, Constant escreveu a Talleyrand para fazer explícito o seu devotamento ao governo de Luís XVIII, mas as suas provas de simpatia foram mal recebidas. Refugiu-se então na Inglaterra, tendo regressado à França no ano seguinte para retomar com estardalhaço o seu lugar na oposição constitucional, escrevendo  primeiro no jornal Mercure, depois no Minerve e em diversos outros jornais. Publicou por essa época o Traité de la doctrine politique et des moyens de rallier les partis en France. Eleito deputado pela região de Sarthe, em 1819, revelou, na Câmara, as suas qualidades de orador. Constant escrevia os seus discursos mas, ao pronunciá-los na tribuna dava-lhes vida, conseguindo cativar a atenção dos ouvintes. A respeito da sua eloquência parlamentar, escreveu Larousse [1865: 1017]: "A sua oratória era brilhante, incisiva, literária sem pompa; o seu discurso distinguia-se por uma dialética penetrante, pelo vigor da argumentação, a utilização de contrastes, enfim por uma destreza que lhe permitia desferir sobre o governo os mais terríveis golpes, sem contudo se afastar da mais estrita legalidade".
Esse brilho e essa contundência fizeram com que o nosso autor fosse a figura mais odiada, tanto pelo governo quanto pelos reacionários e os radicais de esquerda. Em decorrência da agitada vida e da paixão pelo jogo e pelas aventuras boêmias, a sua saúde ficou seriamente comprometida. Quando da Revolução Liberal de Julho de 1830, Constant estava seriamente doente. Mesmo assim encontrou forças para atender ao convite de La Fayette e participou das jornadas revolucionárias. Ele foi um dos 221 deputados que entregaram a coroa a Luís Filipe. O novo monarca, em reconhecimento aos serviços prestados, fez-lhe uma doação de 300 mil francos para que pagasse as inúmeras dívidas. "A liberdade - respondeu Constant ao rei nessa oportunidade - deve preceder à gratidão. E se o vosso governo cometer falhas, eu serei o primeiro a me juntar à oposição". "É assim como eu entendo as coisas" - teria respondido, habilidoso, o monarca. O velho parlamentar teve pouco tempo para participar dessa nova quadra da vida política francesa, pois veio a falecer logo depois, em dezembro de 1830.
Pouco antes da sua morte, o nosso autor pronunciou o que talvez tenha sido o seu último discurso na Câmara, em 13 de setembro desse ano. O tema, a liberdade de imprensa, resumia os seus ideais liberais, acalentados ao longo da vida. Eis as suas palavras: "Senhores, seria inútil destacar, perante homens tão esclarecidos quanto vós, a influência salutar da imprensa. Ela tem sido, ao longo dos últimos dezesseis anos, a nossa única garantia contra um governo opressor (quando podia sê-lo), ou hipócrita (quando não ousava ser opressor). Quando numa Câmara, triste produto de eleições fraudulentas, uma minoria insignificante defendia os direitos da nação, a imprensa, deixada livre por não sei que fatuidade inconseqüente de um ministro presunçoso, foi a nossa única salvaguarda. Ela transmitiu as sãs doutrinas até o momento em que a França soube aproveitar uma imprudência inexplicável para quebrar os grilhões por meio de eleições novas. Enfim, depois do ultraje de 8 de agosto, a imprensa foi a única que livrou o combate à morte contra um poder armado de fraude e maquinador do assassinato. E quando os dias de perigo passaram, foi ainda a imprensa que nos precedeu no campo de batalha, atraindo sobre ela, antes que sobre nós, a proscrição e a morte. Ao seu apelo, o povo tem-se armado. Seguindo o povo nós viemos, e a imprensa, o povo e nós temos, em virtude de um triunfo miraculoso, derrotado a tirania. Se nos dermos conta do que é a imprensa, encontraremos este simples caminho: ela é a palavra alargada, é o meio de comunicação no seio do grande número, assim como a palavra é o meio de comunicação entre alguns. Ora, a palavra é o veículo da inteligência e a inteligência é a soberana do mundo material. Tais vantagens colocam-na por cima de quaisquer desvantagens. É necessário, sem dúvida, diminuir os possíveis inconvenientes por meio de boas leis. Mas não se deve jamais sacrificar a imprensa, sem a qual uma nação não é mais do que um agregado de escravos. Com a imprensa, há desordem às vezes. Sem a imprensa, sempre há escravidão. E nessa servidão também há desordem, pois o poder ilimitado vira louco" [apud Larousse, 1865: 1017].
II - BENJAMIN CONSTANT, DEFENSOR LIBERAL DA FRANÇA PÓS-REVOLUCIONÁRIA
O nosso autor sempre fez profissão de fé liberal. Para ele, a defesa da liberdade constituía um princípio inegociável. A propósito dessa sua convicção, escreveu em Princípios de Política: "Afirmei, faz tempo, que na medida em que toda Constituição é a garantia da liberdade de um povo, tudo quanto está dirigido à liberdade é constitucional, e não o é quando a ignora; que estender uma Constituição a tudo é multiplicar os perigos que a ameaçam rodeando-a de escolhos; que na Constituição existem certos princípios fundamentais, que autoridade nacional nenhuma pode alterar (...). Não será, pois, supérfluo examinar a nossa Constituição, tanto no seu conjunto quanto nos seus detalhes, posto que, referendada pelo sufrágio nacional, é passível de aperfeiçoamento. Neste livro encontrar-se-ão, com freqüência, não só as mesmas idéias, mas também as mesmas palavras dos meus escritos anteriores. Daqui a pouco fará vinte anos que me dedico aos temas políticos e sempre tenho professado as mesmas opiniões e formulado os mesmos desejos. O que então pedia era a liberdade individual, a liberdade de imprensa, o fim do arbítrio, o respeito aos direitos de todos. Isso mesmo reclamo hoje com não menor zelo e mais esperança" [Constant, 1970: 3-4].
O nosso autor fazia-se porta-voz das teses básicas do liberalismo lockeano. Em primeiro lugar, Constant destacava que a soberania radicava no povo ou na vontade geral. É evidente que este reconhecimento implicava numa concepção limitada da soberania, que não se poderia estender à interioridade das pessoas, ou de forma contrária aos interesses dos indivíduos. No próximo item ilustrarei este aspecto do pensamento de Constant. Em segundo lugar, o nosso pensador considerava, de acordo às teses clássicas do liberalismo, que os indivíduos possuíam direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses, direitos esses anteriores ao seu ingresso em sociedade. Justamente por isso ele achava que a soberania, como expressão da vontade geral, deveria ser limitada, ou seja, em consonância com a defesa desses direitos inalienáveis. Em terceiro lugar, o nosso autor pensava que o interesse geral, expressão do conjunto de interesses dos cidadãos, não era mais do que a resultante da negociação entre os interesses individuais. Para ele, a representação política, essencial para o funcionamento de um país moderno, era a instituição que possibilitaria esse processo de negociação entre os interesses individuais.
No seguinte texto, tirado da sua obra Princípios de Política, ficava claro o estreito entrelaçamento entre defesa dos interesses individuais dos cidadãos e interesse geral. Vale a pena citar completo o arrazoado do pensador francês, pois constitui uma das peças clássicas da filosofia liberal na fundamentação do governo representativo: "O que é o interesse geral senão a transação efetivada entre os interesses particulares? O que é a representação geral senão a representação  de todos os interesses parciais, que devem transigir naquilo que lhes é comum? O interesse geral é diferente, sem dúvida, dos interesses particulares, mas não lhes é contrário. Fala-se sempre como se um ganhasse o que os outros perdem. O geral, não é senão o resultado desses interesses combinados. Difere deles como um corpo difere das suas partes. Os interesses individuais são aqueles que tangem mais de perto os indivíduos. Os interesses dos distritos são aqueles que tangem mais de perto estes. Ora, são os indivíduos e os  distritos os que compõem o corpo político. São, consequentemente, os interesses desses indivíduos e desses distritos os que devem ser protegidos. Ao proteger todos eles, suprimir-se-á de cada um deles aquilo que prejudica aos outros, disso resultando o verdadeiro interesse público, que coincide com os interesses individuais, em virtude do fato de que lhes foi tirada a possibilidade de se prejudicarem mutuamente. Cem deputados nomeados por cem distritos de um Estado levam ao seio da assembléia os interesses particulares, as preocupações locais de seus mandantes. Essa base é útil para eles. Forçados a deliberarem juntos, logo tomam consciência dos sacrifícios respectivos que são indispensáveis. Esforçam-se para diminuir a extensão destes, e nisso reside uma das maiores  vantagens da forma de sua designação. A necessidade acaba sempre por uni-los numa transação comum, e quanto mais fragmentadas tiverem sido as eleições, a representação adquire um caráter mais geral. Se se invertesse  a gradação natural,  se se colocasse o corpo eleitoral no cume do edifício, os nomeados por ele deveriam se pronunciar no seu nome acerca de um interesse público cujos elementos desconhecem, pedir-se-lhes-ia conciliar interesses cujas necessidades foram ignoradas ou desprezadas. Convém que o representante de um distrito atue como órgão do mesmo, que não ceda nenhum dos seus direitos, reais ou imaginários, senão depois de tê-los defendido. Que seja parcial na defesa dos interesses de que é mandatário, porque se cada um é parcial nessa defesa, a parcialidade de cada um, unida e conciliada, terá as vantagens da imparcialidade de todos" [Constant, 1970: 46-47].
O pensador francês considerava que a única forma de dar estabilidade política à França pós-revolucionária consistiria em organizar a representação em duas Câmaras que espelhassem os interesses da sociedade, uma Câmara alta, a dos Pares, representativa da nobreza e que serviria de ponte com o trono, e uma Câmara baixa, a dos interesses populares. De outro lado, o nosso autor cuidava de imaginar, em detalhes, a forma em que deveria se proceder a organizar territorialmente os distritos eleitorais, a fim de atrelar a representação a circunscrições em que os cidadãos se sentissem representados. Boa parte da obra Princípios de Política é dedicada a esse debate. Constant defendia o voto direto, porquanto somente a partir dele poderiam surgir autoridades com peso moral, profundamente "enraizadas na opinião" [Constant, 1970: 42].
A grande vantagem do sistema representativo, considerava Constant,  consistia em que possibilitava a aproximação entre as diferentes classes sociais, impedindo o surgimento de odiosas oligarquias. A respeito, o nosso autor frisava que uma das grandes vantagens do governo representativo consistia em que  estabelecia "relações freqüentes entre as diversas classes da sociedade". Ora, essa vantagem somente poderia ser conseguida mediante as eleições diretas. "Esse tipo de eleição, frisava Constant,  exige que as classes poderosas se interessem constantemente pelas classes inferiores. Obriga à riqueza a dissimular a sua arrogância e ao poder a moderar a sua ação, fazendo do sufrágio do grupo menos opulento dos proprietários uma recompensa para a justiça e para a bondade, um castigo para a opressão. Não se deve renunciar gratuitamente a esse instrumento cotidiano de felicidade e de harmonia, nem menosprezar tal causa de beneficência, que não sendo, no início, mais do que um cálculo, logo se converte numa virtude habitual" [Constant, 1970: 48].
Em relação à França pós-revolucionária, Constant registrava, com as seguintes palavras, a precária situação em que ficou o país após o ciclo das conquistas napoleônicas: "Numerosos exércitos levantam-se contra nós. Tanto os povos quanto os seus chefes parecem cegos pelas suas lembranças. Os restos do espírito nacionalista que os animava há dois anos, tinge ainda com certo aspecto nacional o esforço que deles se exige" [Constant, 1970: 4]. Ora, arrazoava o nosso autor, a França só queria, nesse momento, se organizar pacificamente ao redor do monarca por ela escolhido e com o governo que ela queria se dar, como tinham feito as modernas nações européias. "Hoje,  - afirmava -  já não é a sua própria pátria que esses povos defendem; atacam uma nação fechada nas suas fronteiras e que não quer ultrapassá-las, uma nação que só reclama a sua independência interior e o direito a se dar o seu próprio governo, como a Alemanha o tem feito ao eleger Rodolfo de Habsburgo, Inglaterra ao chamar a casa de Brunswick, Portugal ao dar a coroa ao duque de Bragança, Suécia ao eleger Gustavo Vasa; numa palavra, da mesma forma que todas as nações européias têm exercido (esse direito) numa determinada época, geralmente a mais gloriosa da sua história" [Constant, 1970: 4].
A França, em que pese as aventuras absolutistas sofridas no passado, estava animada por dois sentimentos: a liberdade e o ódio à subserviência a um poder estrangeiro. A propósito, frisava Constant: "Todos nós sabemos que a liberdade não nos pode vir do estrangeiro. Todos nós sabemos que qualquer governo que se reorganize sob as suas bandeiras, opor-se-á aos nossos interesses e aos nossos direitos". Assim como nas modernas sociedades a vida política é constituída pelo confronto entre interesses individuais, do qual deve surgir a negociação entre eles e a identificação do bem público, de maneira semelhante, a vida entre as nações é pautada pelo confronto entre os interesses delas, não apenas pelos princípios que estão em jogo. Em relação a este ponto, escrevia o nosso autor: "Ontem os nossos inimigos só faziam a guerra aos nossos princípios e hoje a fazem aos nossos interesses, aos que o tempo, o hábito e inúmeras transações têm identificado com os nossos princípios (...). Mas a experiência realizou-se, os princípios são opostos, os interesses são contrários, os laços romperam-se" [Constant, 1970: 5].
Parte da animosidade das nações européias contra a França, no sentir de Constant, decorria da profunda alteração que a Revolução de 1789 ensejou nos hábitos políticos, fazendo afundar o Ancien Régime, cujas sombras ainda pairavam nos céus de algumas delas. A respeito desse aspecto, escrevia: "Na verdade, os nossos inimigos têm pouca memória. A linguagem que de novo utilizam derrubou os seus tronos há vinte e três anos. Então como agora, atacavam-nos porque queríamos ter um governo nosso, porque tínhamos libertado do dízimo o camponês, da intolerância o protestante, da censura o pensamento, da prisão e do exílio arbitrários o cidadão, dos ultrajes dos privilegiados o plebeu" [Constant, 1970: 5].  O nosso pensador deixava clara a sua inspiração liberal, mas ao mesmo tempo destacava-se como um patriota, defensor dos interesses de seu país no contexto internacional. Patriotismo e liberalismo, duas notas que aparecem no ideário deste precursor dos doutrinários, e que serão também leitmotivs de doutrinários como Guizot e dos liberais que prolongaram essa tradição de reflexão-ação na cultura política francesa, como Tocqueville e Aron.
III - O CONCEITO DE SOBERANIA POPULAR LIMITADA E A CRÍTICA DE  CONSTANT AO DEMOCRATISMO ROUSSEAUNIANO
O nosso pensador considerava que só havia dois poderes: a força (ilegítimo) e a vontade geral (legítimo). Era fundamental conceber de forma correta a natureza desta última, a fim de determinar claramente a abrangência da mesma. Se isso não fosse feito, a tentativa de defesa da liberdade poderia simplesmente suprimi-la.  A propósito, escrevia Constant: "O reconhecimento abstrato da soberania do povo não aumenta em nada a soma de liberdade dos indivíduos, e se lhe for atribuída uma abrangência indevida, pode-se perder a liberdade apesar e contra esse mesmo princípio" [Constant, 1970: 8].
A delimitação da soberania, pensava Constant, não podia ficar nas mãos dos que exercem o poder, pois a tendência de todo governo constituído é a sua auto-preservação. A soberania, portanto, deve ser limitada desde fora do poder pela própria sociedade. Ora, a soberania jamais pode ser entendida como ilimitada. Esse era, para o nosso pensador, o grande defeito dos que a criticavam no Ancien Régime, identificando-a com o absolutismo monárquico. Foram atacados os reis, mas não a fonte do despotismo, que radicava na concepção inadequada de soberania, como algo sem limites. Assim, o absolutismo de um ou de poucos foi substituído pelo de muitos, sem que mudasse a forma de se entender a soberania. O nosso autor deixou clara a forma limitada em que entendia a soberania, com as seguintes palavras: "Numa sociedade fundada na soberania do povo, é evidente que nenhum indivíduo, classe nenhuma, tem o direito a submeter o resto à sua vontade particular; mas é falso que a sociedade, no seu conjunto, possua sobre os membros uma soberania sem limites" [Constant, 1970: 9].
A soberania deve ser limitada em si mesma. Ela abarca parcialmente o ser dos cidadãos, ficando do lado de fora da mesma o que diga relação à independência e à existência do indivíduo. Ultrapassar esse limite torna a soberania ilegítima. Nem interessa se esse abuso é cometido por uma pessoa, um grupo, ou a maioria dos homens na sociedade. Será sempre algo ilegítimo. A respeito, frisava Constant: "O assentimento da maioria não basta em todos os casos para legitimar os seus atos; há atos que é impossível sancionar. Quando uma autoridade pratica atos semelhantes, não importa a fonte da que pretenda provir, não importa que se chame indivíduo ou nação. Faltar-lhe-ia legitimidade, mesmo se tratando de toda a nação e havendo um único cidadão oprimido" [Constant, 1970: 10].
O grosseiro erro de Rousseau consistiu, frisava Constant, em ter imaginado uma Vontade Geral como poder ilimitado, que terminava sacrificando, em nome da democracia, a liberdade que pretendera defender. O filósofo de Genebra, considerava o nosso pensador, ignorou esta simples verdade: "o assentimento da maioria não basta (...) para legitimar os seus atos". Vale a pena citar completa a crítica efetivada por Constant ao democratismo rousseauniano, pois ela servirá de base para as que serão levantadas no seio do liberalismo francês, no decorrer do século XIX (com Guizot,  Tocqueville e outros) e ainda no século XX (com Aron, Peyreffitte, Revel, etc.).
Eis o teor da crítica de Constant: "Rousseau ignorou esta verdade, e o seu erro fez do seu Contrato social, tão freqüentemente invocado em prol da liberdade, o instrumento mais terrível de todos os gêneros de despotismo. Definiu o contrato celebrado entre a sociedade e os seus membros como a alienação completa e sem reservas de cada indivíduo com todos os seus direitos em mãos da comunidade. Para nos tranqüilizar acerca das conseqüências do abandono tão absoluto de todas as partes da nossa existência em benefício de um ser abstrato, diz-nos que o soberano, ou seja, o corpo social, não pode prejudicar nem ao conjunto dos seus membros, nem a cada um deles em particular; que ao se entregar cada um por completo, a condição é igual para todos, e que ninguém tem interesse em torná-la onerosa aos demais; que ao se dar cada um a todos, não se dá a ninguém; que cada um adquire sobre todos os associados os mesmos direitos que ele lhes entrega, e ganha o eqüivalente de tudo quanto perde, com mais poder para conservar o que tem. Mas esquece que todos esses atributos preservadores que confere ao ser abstrato que chama de soberano, resultam de que esse ser se compõe de todos os indivíduos sem exceção. Ora, tão logo que o soberano tem de fazer uso do poder que possui, ou seja, tão logo que deve proceder a uma organização prática da autoridade, não podendo o soberano exercê-la por si próprio, delega-a, e todos esses atributos desaparecem. Ao estar necessariamente, pela sua própria vontade ou à força, a ação que se executa em nome de todos à disposição de um só ou de alguns, resulta que ao se dar um a todos, não é verdade que não se dê a ninguém; pelo contrário, dá-se aos que agem em nome de todos. Daí que, ao se dar por completo, não se coloca numa condição igual para todos, já que alguns se aproveitam exclusivamente do sacrifício do resto. Não é verdade que ninguém tenha interesse em tornar onerosa a condição aos demais, posto que há associados que estão por fora da condição comum. Não é verdade que todos os associados adquirem os mesmos direitos que cedem; não todos ganham o equivalente do que perdem e o resultado daquilo que sacrificam é, ou pode ser, o estabelecimento de uma força que lhes tira o que têm" [Constant, 1970: 10-11].
O próprio Rousseau, frisava Constant, ficou tão impressionado com as conseqüências decorrentes do seu conceito de soberania absoluta, que decidiu criar um mecanismo para tornar impossível o exercício da mesma. Fez isso quando declarou que "a soberania não podia ser alienada, nem delegada, nem representada" [Constant, 1970: 11], abrindo assim caminho à ingovernabilidade que tem afetado sempre aos sistemas alicerçados na ideologia rousseauniana.
A defesa do absolutismo por Thomas Hobbes, em meados do século XVII, antecipou a tese rousseauniana da soberania absoluta. Frisa a respeito Constant: "Hobbes, o homem que erigiu de modo mais inteligente o despotismo como sistema, apressou-se em reconhecer o caráter ilimitado da soberania, a fim de defender a legitimidade do governo absoluto de um só. A soberania, diz Hobbes, é absoluta; essa verdade sempre foi reconhecida, inclusive por aqueles que induziram à sedição ou provocaram guerras civis. A sua intenção não era aniquilar a soberania, mas transferir o seu exercício para outras mãos" [Constant, 1970: 11].
Os espíritos absolutistas, frisava Constant, entendem os conceitos da política de forma a eles traduzirem o seu ódio à liberdade e à limitação do poder. Para eles "a democracia é uma soberania absoluta em mãos de todos; a aristocracia, uma soberania absoluta em mãos de alguns; a monarquia, uma soberania absoluta em mãos de um só. O povo pôde se desprender dessa soberania absoluta em favor de um monarca, que então se converteu no seu legítimo possuidor" [Constant, 1970: 11-12]. O nosso autor resumiu em dois pontos as conseqüências dos princípios por ele enunciados em relação à soberania.
Em primeiro lugar, a soberania do povo não é ilimitada. Ela está delimitada pelo marco da justiça e dos direitos dos indivíduos. A vontade de um povo não pode fazer com que aquilo que é justo vire injusto e vice-versa.
Em segundo lugar, pode-se afirmar que a demonstração clara de certos princípios constitui a sua melhor garantia de aceitação universal. Ora, se reconhecermos que a soberania tem limites, ninguém, em sã consciência, ousará reivindicar o poder ilimitado. A história prova que "os atentados mais monstruosos do despotismo de um só deveram-se, com freqüência, à doutrina do poder ilimitado de todos" [Constant, 1970: 17].
No que tange à natureza do poder numa monarquia constitucional, Constant destacava que até sua época reconheciam-se três poderes nas organizações políticas. Mas ele considerava que estes deveriam ser cinco, a saber: o poder real, o executivo, o poder representativo da continuidade, o poder representativo da opinião e o judiciário.
Onde residiriam esses poderes? Constant explicava esse ponto da seguinte forma: "O poder representativo da continuidade reside numa assembléia hereditária; o poder representativo da opinião, numa assembléia eletiva; o poder executivo é confiado aos ministros; o poder judiciário, aos tribunais. Os dois primeiros poderes fazem a lei; o terceiro providencia a sua execução legal; o quarto, aplica-a aos casos particulares. O poder real está no meio, mas acima dos outros quatro, sendo, ao mesmo tempo, autoridade superior e intermediária, sem interesse em desfazer o equilíbrio, mas, pelo contrário, com o máximo interesse em conservá-lo"  [Constant, 1970: 19-20].
Poderiamos terminar a exposição deste item destacando um aspecto dialético no pensamento de Constant sobre a soberania: esta deve contemplar, ao mesmo tempo, os indivíduos e a coletividade, tentando estabelecer um liame entre a defesa dos interesses individuais e o interesse público. Difícil conciliação. Mas essa constitui a essência, para Constant, da vida democrática. Em relação a este aspecto, escreve Todorov: "Constant, da sua parte, endereça ao poder uma dupla exigência: ele deve ser legitimado tanto pela sua instituição como pelo seu exercício. O povo permanecerá soberano; qualquer outra alternativa levaria a se submeter simplesmente à força; mas o seu poder será limitado: deve se deter nas fronteiras do indivíduo que será, no seu foro íntimo, o único soberano. Uma parte da sua existência submeter-se-á ao poder público; uma outra permanecerá livre. Não se pode pois regulamentar a vida em sociedade em nome de um princípio único; o bem-estar da coletividade não coincide forçosamente com o do indivíduo. O melhor regime não se satisfaz somente nem com a democracia, nem com o princípio liberal que exige a proteção do indivíduo. Ele deve reunir essas duas condições: essa é pois a democracia liberal. O equilíbrio é difícil, e é por isso que o pensamento de Constant permanece sempre atual: o Estado moderno mesmo é constantemente tentado a usurpar a liberdade dos indivíduos"  [Todorov, 1997b: 7].
IV - O PODER MONÁRQUICO SEGUNDO CONSTANT
Para Constant, era necessário que houvesse, na estruturação do Estado, um poder neutro. A razão para postular esse poder radicava na imperfeição humana. A propósito, frisava: "Dado que os homens não obedecem sempre ao seu interesse bem compreendido, é necessário ter a precaução de que o chefe do Estado não possa substituir na sua ação os outros poderes. Nisso radica a diferença entre a monarquia absoluta e a constitucional" [Constant, 1970: 20].
Ora, seguindo a lição do seu mestre Necker, Constant considerava que essa função de caráter moderador deveria corresponder ao monarca. "A monarquia constitucional tem esse poder neutral na pessoa do chefe do Estado. O verdadeiro interesse de tal chefia não consiste, de maneira nenhuma, em que um dos poderes destrua o outro, mas em que todos se apoiem, se entendam e ajam de acordo" [Constant, 1970: 20]. Levando em consideração a prática da monarquia constitucional na Inglaterra, Constant achava que a função real era, nesse contexto, eminentemente moderadora. A respeito, escrevia: "Na Inglaterra, não pode se fazer lei nenhuma sem o concurso da câmara hereditária e da câmara eletiva. Não pode ser executado ato nenhum sem a assinatura de um ministro, nem ser proferida sentença nenhuma sem o concurso exclusivo de tribunais independentes. Mas uma vez que se tomou a precaução de que falo, vejamos de que forma a Constituição inglesa faz uso do poder real para pôr fim a toda luta perigosa e restabelecer a harmonia entre os demais poderes. Se a ação do poder executivo resultar perigosa, o rei destitui os ministros. Se a da câmara hereditária resultar funesta, o rei imprime-lhe uma nova tendência mediante a instituição de novos pares. Se a da câmara eletiva se apresentar ameaçadora, o rei faz uso de seu veto, ou dissolve essa câmara. Enfim, se a própria atividade do poder judiciário se mostrar acintosa, pelo fato de aplicar a atos individuais penas gerais demasiadamente duras, o rei a modera mediante o exercício de seu direito de graça" [Constant, 1970: 20].
O nosso autor considerava que o equilíbrio dado pela moderação exercida a partir do monarca constitucional não se daria no seio de uma República, pois não haveria, aqui, clara distinção entre as esferas do poder supremo e daquele que exerce as funções executivas. "Um poder republicano que se renova periodicamente, frisava Constant,  não é um ser aparte, não impressiona em nada a imaginação, não tem direito à indulgência para os seus erros, já que buscou o posto que ocupa e não tem nada mais precioso que defender do que a sua autoridade, comprometida quando é atacado o seu ministério, integrado por homens como ele e dos que sempre é solidário" [Constant, 1970: 25]. Somente a monarquia constitucional garantiria a presença do poder neutro, que exerceria as funções moderadoras.
Eis a forma em que o pensador completava o quadro desse poder: "A monarquia constitucional oferece-nos, como já frisei, esse poder neutro, tão necessário para o exercício normal da liberdade. O rei, num país livre, é um ser aparte, superior à diversidade de opiniões, sem outro interesse que a manutenção da ordem e da liberdade, sem poder jamais cair na condição comum, inacessível, portanto, a todas as paixões que tal condição faz nascer e a todas as que a perspectiva de a ela voltar alimenta no coração dos agentes que estão investidos de uma potestade passageira. Essa augusta prerrogativa da realeza deve infundir, no espírito do monarca, uma calma e, na sua alma, um sentimento de tranqüilidade, que não podem ser patrimônio de nenhum indivíduo situado numa posição inferior. O monarca flutua, por assim dizer, por cima das agitações humanas e constitui um grande acerto da organização política ter criado, no seio mesmo dos dissentimentos sem os quais nenhuma liberdade é possível, uma esfera inviolável de segurança, de majestade, de imparcialidade, que permite a eclosão desses dissentimentos sem nenhum perigo, desde que não excedam certos limites, e que,  quando aquela se anuncia, lhe ponha término por meios legais, constitucionais e não arbitrários. Todo esse imenso benefício perde-se se o poder do monarca for rebaixado ao nível do poder executivo, ou se for elevado este ao nível do monarca" [Constant, 1970: 22].
Ficavam superadas na instituição da monarquia como poder neutro, no sentir de Constant, as velhas lembranças do rei-administrador de justiça, sentado debaixo de uma árvore e rodeado dos seus súditos, que enxergavam nele uma espécie de enviado dos deuses. A instituição régia, na prática da monarquia constitucional, se bem que delimitou os poderes do soberano, deu-lhe, no entanto, um perfil de salvaguarda da estabilidade política. A propósito, escrevia o nosso pensador: "Muitas coisas que admiramos e que nos parecem impressionantes em outras épocas são agora inadmissíveis. Representemos os reis da França fazendo justiça ao pé de um carvalho; esse espetáculo nos emocionará e reverenciaremos esse exercício augusto e simples de uma autoridade paternal. Mas, hoje, o que acharíamos de um julgamento efetivado por um rei, sem o concurso dos tribunais? A violação de todos os princípios, a confusão de todos os poderes, a destruição da independência judicial, tão energicamente querida por todas as classes. Não se constrói uma monarquia constitucional com lembranças e com poesia" [Constant, 1970: 30].
A prática da monarquia constitucional tirou do soberano a pecha de ser um poder arbitrário e o revestiu, em compensação, de uma auréola moral que se sobrepõe à luta rasteira pelo poder. Se os reis perderam funções políticas, conservaram, no entanto, um acúmulo de funções que les assegura o respeito da sociedade, ao torná-los a garantia viva da estabilidade das instituições.
Eis a forma em que Constant elencava as prerrogativas régias na sua concepção liberal moderada: "Numa Constituição livre restam aos monarcas nobres, formosas, sublimes prerrogativas. Pertence-lhes o direito de conceder graça, direito de uma natureza quase divina, que repara os erros da justiça humana ou os seus rigores demasiadamente inflexíveis, que também são erros; pertence-lhes o direito de investir os cidadãos distintos de uma ilustração perdurável, guindando-os a essa magistratura hereditária que reúne o brilho do passado e a solenidade das mais altas funções políticas; pertence-lhes o direito de nomear os órgãos das leis e de garantir à sociedade o gozo da ordem pública e a inocência da segurança; pertence-lhes o direito de dissolver as assembléias representativas e preservar, destarte,  a nação dos desvios dos seus mandatários, convocando novas eleições; pertence-lhes a nomeação dos ministros, o que proporciona ao monarca a gratidão nacional quando os ministros se ocuparem dignamente da missão que lhes foi confiada; pertence-lhes, enfim, a distribuição de graças, favores, recompensas; a prerrogativa de pagar com um olhar ou com uma palavra os serviços prestados ao Estado, prerrogativa que dá à monarquia um tesouro inesgotável de opinião, que faz de cada amor próprio um servidor e de cada ambição um tributário. Eis aí certamente uma ampla carreira, atribuições imponentes, uma grande e nobre missão; seriam maus e pérfidos os conselheiros que apresentassem perante um monarca constitucional,  como objeto de desejo ou de nostalgia, essa potestade despótica sem limites, ou melhor sem freio, equívoca porque ilimitada, precária porque violenta e que pesaria de modo igualmente funesto sobre o príncipe, a quem não pode menos de desviar, e sobre o povo, ao qual só pode atormentar e corromper" [Constant, 1970: 30-31].
V - A HERANÇA DE BENJAMIN CONSTANT NA TEORIA DA REPRESENTAÇÃO DE SILVESTRE PINHEIRO FERREIRA

A doutrina política de Constant de Rebecque foi a base sobre a qual o máximo expoente do liberalismo de início do século XIX entre nós, Silvestre Pinheiro Ferreira, deitou os alicerces da teoria da monarquia constitucional. Decorreu da concepção do pensador francês a teoria ferreiriana do poder conservador, que, posta em prática pela Constituição Imperial de 1824, transformou-se na instituição do Poder Moderador.

Pretendo, em primeiro lugar, mostrar de que forma Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) deitou os alicerces teóricos da prática do governo representativo na nossa tradição política. Em segundo lugar, é meu propósito ilustrar de que forma a Constituição Imperial de 1824 constituiu a passagem segura da Monarquia Absoluta para a Constitucional, preservando as instituições do Governo Representativo, num contexto jurídico e político (decorrente do patrimonialismo), em que se fazia necessário manter o centripetismo do Estado ao redor do Poder Moderador, mitigado com a prática do parlamentarismo, a fim de evitar os extremos do absolutismo e do democratismo. Este binômio, aliás, fez implodir o mundo hispano-americano em múltiplas Repúblicas submetidas aos azares do caudilhismo.

Serão desenvolvidos três itens nesta quinta parte: A) Tradição libertária X tradição patrimonial na cultura luso-brasileira; B) A contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira; C) A Carta de 1824 e a prática do parlamentarismo. Destacarei, notadamente nos itens B e C, a forma em que Pinheiro Ferreira e os estadistas do Império inspiraram-se em Benjamin Constant de Rebecque, para pensarem e darem forma às instituições do governo representativo no Império, no contexto da monarquia constitucional adotada por eles.

A)  Tradição libertária X tradição patrimonial na cultura luso-brasileira

Ficou claro, a partir das análises de Max Weber (1860-1920), que os Estados modernos não surgiram de forma unívoca, mas que a sua estruturação decorreu de um duplo modelo: contratualista e patrimonial.

O primeiro modelo consolidou-se, de acordo com Weber, ali onde houve uma experiência feudal completa: na Europa Ocidental e nas Ilhas Britânicas. O segundo constituiu o arquétipo que pautou o surgimento e estruturação do Estado, ali onde a experiência feudal foi incompleta, ou substituída por práticas diretoriais oriundas do despotismo oriental. Este foi o caso específico dos países que se situam nos confins da Ilha européia e que, por isso mesmo, sofreram, ao longo da Idade Média, a influência das invasões provenientes do extremo e do médio oriente. Os casos paradigmáticos desta versão  foram constituídos pela Rússia (que sofreu as invasões da Horda Dourada de Gengis Khan) e pela Península Ibérica (que entre 710 e 1490 ficou submetida, em boa extensão do seu território, à dominação muçulmana).

O modelo contratualista foi caracterizado por Weber [Cf. 1944, I: 226-227; 235-236; 240-244; 267-272; 276-278. Weber, 1944, IV: 131-251] como aquele em que o Estado surge a partir da negociação e do pacto entre as classes que lutam pela posse do poder. Esse modelo vingou, como já foi anotado, na Europa Ocidental e nas Ilhas Britânicas, tendo dado ensejo, no século XX, à prática do parlamentarismo e ao aparecimento, na administração pública, de uma burocracia racional. Foram influenciados por esse modelo os países que, embora não tendo experimentado o feudalismo de vassalagem, sofreram no entanto a influência do liberalismo anglo-saxão, como Estados Unidos, Canadá e outros pertencentes à Commonwealth.

Já o modelo patrimonial foi caracterizado por Weber como aquele em que o Estado surge a partir da hipertrofia de um poder patriarcal, que estende a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extra-patrimoniais, que são administrados como se fossem propriedade familiar (patrimonial) do governante. Weber, e também Karl Wittfogel (1896-1989) [cf. Wittfogel, 1977] estenderam, nos seus estudos, a vigência do modelo de Estado patrimonial para além das fronteiras do mundo moderno, arrolando sob esse conceito-tipo os antigos Estados hidráulicos (o Egito dos Faraós, o Império chinês, notadamente sob a dinastia Liao, os Califados árabes, os Impérios pré-colombianos inca e asteca, etc.).

A caraterística fundamental das formações políticas patrimoniais é, segundo Wittfogel, o fato de constituírem Estados mais fortes do que a sociedade. Nelas, o poder político não é entendido como instância pública, como busca do bonum commune, como res  publica, mas como res  privata ou coisa nossa. Há uma confusão radical entre público e privado. Weber e também Wittfogel anotaram outras caraterísticas típicas dos Estados Patrimoniais: neles surge, como instância auxiliar do soberano,  um estamento burocrático pré-racional, porquanto não pautado por regras impessoais, mas alicerçado na fidelidade pessoal. De outro lado, a lei não exprime uma ordenação que vale para toda a sociedade, mas apenas constitui casuísmo a ser utilizado pela autoridade central a seu bel prazer. A sociedade, outrossim, comporta-se de forma passiva e insolidária, sendo a única força a autoridade do soberano absoluto, que é invocada para solucionar qualquer pendência. A religião, que na Europa feudal constituiu instância de poder espiritual irredutível ao imperium, no contexto patrimonial passa a ser cooptada pelo poder temporal.

O Estado português, já desde a Revolução de Avis (1385) [Cf. Faoro, 1958: I, 39-72] consolidou-se como Estado patrimonial. Alexandre Herculano [1914: I] destacou a ausência de feudalismo em Portugal e a forma em que os príncipes cristãos, que venceram os sarracenos, passaram a administrar o Reino como propriedade particular, tendo sido nesse ponto contaminados pela cultura política muçulmana. Lúcio de Azevedo (1855-1933), na sua obra Épocas de Portugal econômico [Azevedo, 1978], identificou o Reino de Portugal como empresa do Rei, que presidia inicialmente uma monarquia agrária, para se tornar depois "Mercador de mercadores". O mercantilismo da empresa ultramarina esteve indissociavelmente ligado à caraterística centrípeta e privatizante do exercício do poder monárquico. Raymundo Faoro, no seu clássico estudo de 1958, intitulado Os donos do poder, analisou detalhadamente a forma em que se consolidou o estamento burocrático da monarquia portuguesa, alicerçado esse processo na fidelidade pessoal ao monarca, na progressiva substituição da nobreza de sangue pela de funcionários públicos, na submissão da burguesia à empresa do Rei, bem como na incorporação do direito romano, a partir da ação decisiva do Mestre de Avis. Oliveira Vianna, no magistral estudo intitulado Introdução à história social da economia pré-capitalista no Brasil [Vianna, 1958], mostrou claramente que o comportamento da nobreza decadente portuguesa pautou-se, a partir dos "fumos da India", pelos critérios da improdutividade e do consumo suntuário, ensejando assim a forte tendência orçamentívora que a caracterizou.

O Brasil herdou de Portugal a estrutura patrimonial do Estado. Esse fato tem sido estudado, além de Raymundo Faoro (que foi o pioneiro, no meio brasileiro, nesse tipo de análise), por Simon Schwartzman [1982], Antônio Paim [1978], Fernando Uricoechea [1978], Wanderley Guilherme dos Santos [1978] e José Osvaldo de Meira Penna [1988].

Mas se o Brasil herdou de Portugal a estrutura e a tradição patrimonial do Estado, herdou também a luta que se travou, ao longo de séculos, no seio das sociedades ibéricas, entre o estatismo centrípeto e a tradição consuetudinária e libertária do antigo direito visigótico. Weber, aliás,  já tinha chamado a atenção para o fato de que sociedades presididas por Estados patrimoniais pudessem abarcar, no seu seio, tradições contratualistas, que entrariam em atrito com o caráter centrípeto das instituições políticas e que, dinamizadas em virtude de processos endógenos e exógenos, poderiam faze-las progredir até formas de tipo contratualista. A evolução de Espanha e Portugal  nas últimas três décadas do século XX corresponderia a um processo desse tipo.

Convém destacar que Weber reconhece também a possibilidade de involução de sociedades de caráter contratualista para sociedades de tipo patrimonial, em virtude do predomínio da tendência autocrática e do esfacelamento da solidariedade social. Esse seria o caso ocorrido na Rússia, a partir da adoção dos processos diretoriais, de origem mongólica, pelo Principado de Moscou (no século XIII) [cf. Thambs, 1979: 8] .

Essas duas tradições, a patrimonial-tuteladora e a libertária, são bem antigas. A primeira, a patrimonial [cf. Vélez, 1984: 81-136], deita raízes, como já foi explicado, no duradouro e profundo influxo que exerceu, na Península Ibérica, a cultura muçulmana, com a sua tendência centrípeta e paternalista em política. A dominação dos Califados árabes, entre 710 e 1490, certamente foi responsável pela incorporação às práticas administrativas dessa carga de nepotismo, de clientelismo, de indiferenciação entre público e privado, que vieram a florescer na América Latina no conhecido fenômeno do caudilhismo. Trata-se, evidentemente, de uma tradição cultural paradoxal, que de um lado renovou a intelligentsia ibérica com o legado das Universidades de Córdova e Toledo, nos brumosos confins do final da Idade Média, mas que, no terreno político, revelou-se claramente despótica, até o ponto de pretender cooptar a variável religiosa como raison d'État do absolutismo. É o que aconteceu na Espanha e em Portugal sob a dominação dos Austrias, ao ensejo da tutela exercida sobre o catolicismo, considerado pelos soberanos espanhóis como religião de cruzada, destinada a reforçar o Império no contexto da contra-reforma, fato que levou o pensador português Fidelino de Figueiredo a caracterizar as políticas estatizantes de Carlos V e Filipe II como instauradoras de uma "alfândega cultural" [cf. Figueiredo, 1959].

A tradição libertária é, contudo,  mais antiga e se filia ao direito consuetudinário de origem visigótica, que veio a florescer nas "cartas de foral" e na vida municipal, tão fortemente enraizada nas práticas políticas ibéricas. Essa é a tradição que permitiu o renascimento das instituições do governo representativo e a prática da democracia parlamentar na Espanha e em Portugal, no final do século passado, de forma a se integrarem esses países plenamente à Comunidade Européia. Testemunho bastante antigo dessa tradição libertária é dado pelos Foros Aragoneses, na fórmula recitada pelo justiça-mor no ato de coroação do Rei: "Nós, que valemos cada um quanto vós e que juntos valemos mais do que vós, vos fazemos nosso Rei e Senhor, com a condição de que conserveis nossos foros e liberdades, ou se não, não!" [Jaramillo Uribe, 1974: 104, nota].

Foi essa tradição libertária a que inspirou os príncipes cristãos, no início do século VIII, na luta da reconquista,  que se estendeu até o final do século XV. Apesar de que os cristãos tivessem se deixado contaminar pela cultura política muçulmana, conforme foi referido acima, no entanto preservaram-se, nas práticas políticas ibéricas, elementos fundamentais da tradição libertária. Esse núcleo poderia ser identificado com a valorização das Câmaras Municipais, cuja origem remonta, segundo Martínez Marina, às Cortes medievais. "O autenticamente tradicional em Castela  -- escreve Ots Capdequí [1968: 10] sintetizando o pensamento liberal de Martínez Marina --  tinha sido a existência de um regime político que descansava igualmente na autoridade dos monarcas e na pujança autônoma das cidades, representadas nas altas esferas do governo pelos seus procuradores, que tiveram parte ativa e destacada nas reuniões das Cortes. O contrário dessas boas tradições democráticas foram os ideais absolutistas, exaltadores sem freio do poder pessoal dos Reis, que introduzimos na Espanha, como em outros povos da Europa Ocidental, com a adoção do Direito Romano justiniano, e que chegaram a culminar no governo político da nação, com a entronização infeliz das dinastias estrangeiras". A tradição municipalista foi portadora do ideal libertário e contribuiu eficientemente, ao longo dos séculos, para mitigar a tradição patrimonialista.

Tão forte foi a presença da tradição liberal municipalista na mentalidade política ibérica, que chegou a inspirar um dos mais importantes teóricos da Segunda Escolástica, o jesuíta Francisco Suárez que, na sua obra De legibus ac de Deo legislatore, publicada em 1613, defendia a idéia da soberania popular [cf. Gallegos Rocafull, 1946: 37-56]. Com razão escreve o historiador colombiano Jaime Jaramillo Uribe, se referindo à repercussão dessas idéias no meio ibero-americano: "Não era (...) absolutamente necessário o contato com as correntes do pensamento francês e inglês do século XVIII, para que fossem divulgadas, nas últimas gerações neo-granadinas da época colonial, as idéias de soberania popular, de poder limitado por normas jurídicas e de livre eleição dos governantes pelo povo, porque essas idéias eram patrimônio comum do pensamento escolástico espanhol e da escola do direito natural, ambos estudados nas Universidades coloniais desde o século XVII. De tal espírito estava impregnada a geração dos precursores da Independência  -- inclusive a educação de Nariño, o tradutor dos Direitos do Homem --  e ainda na primeira geração republicana" [Jaramillo Uribe, 1974: 103-104].

Em relação à presença, no meio colonial brasileiro, da tradição municipalista ibérica, escreveu a historiadora Mury Lydia [1973: 46]: "Entre as instituições dignas de menção, encontram-se as câmaras municipais. Herdeiras das vereanças ibéricas e dos parlamentos municipais e comunas europeus, vieram manter aqui a noção viva da representação popular e da ascendência da deliberação no processo político  -- bem como a da decisão pluripessoal no jurídico (...). Já se observou, com razão, que as atribuições oficias daquelas câmaras superavam, mesmo, às das municipalidades contemporâneas, pois inclusive enfeixavam competências hoje correspondentes às do Ministério Público. Realmente, certas experiências, então trazidas e mantidas, como a da eleição de juizes  -- indireta e oligárquica, embora --, foram muito interessantes e a situação era suficiente para poder-se dizer, hoje, que o município colonial foi embrião de nossas estruturas políticas e sociais posteriores".

A Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, ao definir no Título I, artigo 3º que "O (...) governo é monárquico hereditário, constitucional e representativo" [Brasil, 1948: 35], afastou-se da feição patrimonial do Estado e se aproximou da tradição libertária, tendo dado ensejo à prática do parlamentarismo. Os fundamentos filosóficos dessa mudança estão na obra de Silvestre Pinheiro Ferreira.

B) A contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira

A grande contribuição de Pinheiro Ferreira consistiu em ter deitado as bases que possibilitaram o trânsito pacífico, no Brasil, da monarquia absoluta para a constitucional, o que correspondeu à mitigação da tradição patrimonial-tuteladora pela libertária-contratualista. Antônio Paim sintetizou da seguinte forma a atuação do pensador português: "Com a Revolução Constitucionalista do Porto e sua repercussão no Brasil, decide o Monarca entregar a chefia de seu governo a Silvestre Pinheiro Ferreira, em fevereiro de 1821, que nele acumula as pastas de Exterior e de Guerra. Nessa condição regressa com o Monarca a Portugal, afastando-se do governo em 1823, em vista dos propósitos absolutistas que logo se configurariam. Coube portanto ao ilustre pensador a espinhosa missão de efetuar o trânsito da monarquia absoluta para a constitucional, e em meio a clima de todo desfavorável, lutando contra os que apenas ganhavam tempo e somente desejavam a volta da situação antiga e, simultaneamente, cuidando de isolar o radicalismo" [Paim, 1983: 55].

Analisarei a concepção política de Silvestre Pinheiro Ferreira, me detendo no que tange à sua teoria da representação. Antes, contudo, convém salientar com Vicente Barretto que a sua obra "constituiu marco fundamental na história do pensamento político português e brasileiro. O estadista e pensador português desenvolveu de forma sistemática, pela primeira vez em língua portuguesa, a teoria do Estado liberal constitucional. Encontramos nos seus diversos livros a preocupação de construir uma teoria política que, antes da Independência do Brasil em 1822, servisse de fonte inspiradora para a reforma das instituições da monarquia luso-brasileira e, depois da separação do Brasil de Portugal, constituísse o modelo para a organização política de ambos os países" [Barretto, 1976: 11].

Em dez itens poderíamos resumir a concepção liberal moderada de Silvestre Pinheiro Ferreira, que buscava garantir o exercício da liberdade, num contexto jurídico que permitisse a organização constitucional do Estado [cf. Paim, 1979: 11-17; Barretto, 1976: 11-18]:

Base moral do pacto político.- Pinheiro Ferreira retomou a tese, defendida por John Locke no seu Segundo Tratado sobre o governo civil (1689) [cf. Locke, 1965], da antecedência dos direitos naturais individuais aos direitos da sociedade. Esta surgiu, precisamente, para garantir os direitos naturais à vida, à liberdade e às posses. O ponto de  partida do pensador português era, portanto, nitidamente liberal e haveria de informar toda a sua restante concepção política.

Finalidade imediata da sua teoria política: reestruturar a monarquia para salvá-la e fortalecé-la.- Pinheiro Ferreira,  em face dos extremos do democratismo jacobino (que conduziu à Revolução e ao Terror, na França), e do absolutismo monárquico (que tanto sangue fez verter na Península Ibérica), optou decididamente pela hegemonia do Estado entre os demais grupos sociais e pela sua reformulação no contexto da Monarquia Constitucional, conforme tinha sido pensada pelos publicistas franceses do período da Restauração, notadamente por Benjamin Constant de Rebecque.

Iniciativa da reforma política a partir da Coroa.-  Esta idéia de Pinheiro Ferreira orientava-se a impedir que se fizessem as reformas pela via revolucionária. Os desmandos acontecidos na Revolução Francesa decorriam, no sentir do pensador português, do fato de se ter perdido o controle sobre os acontecimentos. Pinheiro Ferreira defendia ardentemente a luta contra o imobilismo e contra qualquer forma de regresso às instituições absolutistas. Mas o caminho que assinalava era, basicamente, o das reformas promovidas a partir do Estado.

Criação do governo pela Constituição.-  Este ponto constituía a pedra angular das reformas políticas propostas por Pinheiro Ferreira. O pensador português seguiu, nesse aspecto, o pensamento liberal de Thomas Paine [1961: 420], para quem "uma Constituição não é um ato de governo mas de um povo constituindo um governo; e o governo sem Constituição é poder sem direito". O constitucionalismo representou, na verdade, no contexto da evolução histórica do liberalismo, a tentativa de institucionalização jurídica da teoria política lockeana [Cf. Macedo, 1987: 33-44].

Existência de cinco poderes: o eleitoral, o legislativo, o judicial, o executivo e o conservador.- Pinheiro Ferreira inspirou-se, sem dúvida, nos cinco poderes propostos por Benjamin Constant de Rebecque, nos seus Princípios de Política (1815) [Cf. Constant, 1970: 18-31]. O "Poder Neutro" de Constant seria denominado  pelo filósofo português de "Poder Conservador" e inspiraria o "Poder Moderador" da Constituição do Império do Brasil de 1824. A sua finalidade consistiria em restabelecer o equilíbrio, no momento do choque dos demais poderes.

Problema principal da reforma política: a representação.- Pinheiro Ferreira retomou aqui a tradição liberal lockeana. O pensamento constitucional do estadista português tinha quatro grandes preocupações: definição dos direitos individuais, fixação dos limites ao poder estatal, estruturação equilibrada dos poderes governamentais e, fundamentalmente, a representação política. A função desta consistiria, no sentir de Vicente Barretto, em "através do voto ou da representação virtual (do Imperador), fazer com que os problemas sociais e políticos fossem debatidos por uma elite" [cf. Barretto, 1976: 17].

Não há dúvida de que é liberal (à la John Locke e à la Benjamin Constant) a inspiração política de Silvestre Pinheiro Ferreira. Detenhamo-nos um pouco na sua teoria da representação. O pensador português não duvidava de que os males que afetavam ao Reino de Portugal nas duas primeiras décadas do século XIX, decorriam do seu afastamento da verdadeira tradição liberal-contratualista no terreno constitucional. Não foram os franceses os que fizeram afundar a Península Ibérica quando da invasão napoleônica, mas a rapacidade dos ineptos Ministros de Espanha e Portugal, que administravam corruptamente o Estado mergulhando-o na bancarrota.

Eis as palavras que o estadista dirigia a dom João VI, em carta escrita no Brasil, em 1814: "Não foram os franceses os que precipitaram a Península no abismo, em que se acha: eles nada mais fizeram do que apoderar-se sem honras e sem glória de uma fácil presa, que os ministros de V. A. R. e os de seu augusto sogro [Fernando VII da Espanha], parte por perfídia, parte por inépcia, apresentaram sem defesa à sua rapacidade. Eu não remontarei a épocas mais antigas do que o ano de 1790. Não foram estes ministros os que de vinte anos a esta parte não cessaram de esgotar o real erário com o pagamento das dívidas de tantos dissipadores? Não foram eles os que a título de melhor administração sobrecarregaram com inúteis juntas, mesas e inspeções a real fazenda que, à sombra destes corpos imorais, imunes por sua natureza, se viu mais dilapidada do que antes? Não foram eles os que, com escárnio dos estrangeiros e insensato desperdício das rendas públicas, desfiguraram a marinha e o exército com uma tão numerosa quanto imperita oficialidade? Não foram eles os que a peso de ouro, ajustaram um ou outro general estrangeiro para organizar os exércitos de V. A. R. e em nada mais cuidaram para impedir a decadência, em que todo o mundo os via precipitarem-se com a monarquia?" [Pinheiro Ferreira, 1976: 28].

Mas se a inépcia e a corrupção do absolutismo eram as culpadas pela negativa situação dos países ibéricos, era também causa responsável o vício do democratismo revolucionário, em que eles tinham descambado, à sombra da Constituição espanhola, inspiradora da Revolução Constitucionalista do Porto (1820). A respeito, escreve Pinheiro Ferreira: "Se governos tais como o de Espanha e provavelmente o de Portugal não fossem condenados pelo democratismo das suas constituições a serem o ludíbrio de partidos incapazes de razão e de sistema, mui fácil seria à Península, não digo já resistir, mas até fazer passar à Santa Aliança toda a vontade de se intrometer nos seus negócios internos" [Pinheiro Ferreira, 1976: 74].

Qual seria o caminho para sair dos males presentes? Somente um: institucionalizar o sistema representativo. A adoção deste correspondia, para Silvestre Pinheiro Ferreira, não a uma quebra das tradições portuguesas, mas à retomada da mais sadia de todas elas: a tradição contratualista, que fazia do Rei mandatário da Nação, única depositária da soberania. Em detalhada exposição histórica no seu Manual do Cidadão em um Governo Representativo, Pinheiro Ferreira destaca que a tradição mais antiga, a que acompanha Portugal desde a sua consolidação como Nação independente, é a da soberania popular que delega o poder no Rei, mas que não duvida em tirá-lo dele nos momentos em que o Monarca esquecer a busca do bem comum.

Concluindo a sua exposição, escreve o pensador português: "Não há povo algum na Europa, exceto o espanhol, onde a origem da monarquia seja mais popular, e os limites da realeza mais bem estabelecidos do que no português. (...) Fica pois provado além de outros muitos documentos da história portuguesa pela Ata das Cortes de 1641, no reinado de dom João IV, e pela Exposição remetida ou autorizada por dom Pedro II, não só a verdadeira origem, mas as condições essenciais do poder monárquico em Portugal; e que neste reino o princípio da soberania do povo tem prevalecido sobre a doutrina do chamado direito divino, doutrina falsa e subversiva enquanto considerada como imediata origem do poder civil. Por esta ocasião  é de notar que o princípio da soberania do povo foi expressamente reconhecido e adotado pelos dois primeiros reis da casa de Bragança; que foi depois renegado por outros monarcas da mesma dinastia tornando-se absolutos; e ultimamente foi restabelecido por dom Pedro I, outro príncipe da mesma dinastia e imperador do Brasil, no artigo 12 da constituição daquele império onde se diz: Todos os poderes políticos no Império do Brasil são delegações da Nação" [Pinheiro Ferreira, 1976: 154-156, nota].

Pinheiro Ferreira considerava que somente a adoção do sistema representativo permitiria ao Brasil superar os males que afetavam Portugal, vítima, sucessivamente, do absolutismo e do democratismo. Eis as palavras com que o nosso autor inicia o seu Manual do Cidadão em um Governo Representativo: "O Projeto de código constitutivo que hoje publicamos é a pura expressão das opiniões políticas que de quarenta anos a esta parte havemos constantemente professado. Consultados em 1814 pelo monarca, a quem naquela época estavam confiados os destinos da nação, sobre o meio de atalhar os males de que o reino estava ameaçado, dissemos sem rebuço que a adoção do sistema representativo era o que unicamente podia obstar à iminente catástrofe da monarquia" [Pinheiro Ferreira, 1976: 107].

Feita a defesa incondicional da soberania popular e do sistema representativo, os restantes pontos da teoria da representação revelam também a mais ortodoxa inspiração no liberalismo lockeano e na interpretação elaborada por Benjamin Constant, a que já fizemos referência na parte inicial deste capítulo. A representação é, fundamentalmente, de interesses [cf. Pinheiro Ferreira, 1976: 121]. Para que a representação seja autêntica, é necessário a sua vinculação a uma base territorial definida, bem como a sua institucionalização permitindo a representação das várias ordens de interesses presentes na sociedade; o nosso autor defendia a divisão do território em cantões (proposta que deu ensejo aos distritos eleitorais do Império). A respeito dessas exigências da representação, escreve:  "O que importa pois determinar é a extensão do território que, em regra geral, é de presumir que os conhecimentos do deputado possam abranger na sua especialidade. Ora nós entendemos que todo o homem é capaz de representar e conhecer, mesmo em todos os pormenores, não a província, mas decerto o cantão onde é domiciliado. De onde se segue que cada cantão deve mandar ao congresso um deputado por cada um dos três estados, comércio, indústria e serviço público" [Pinheiro Ferreira, 1976: 133].

No que tange às várias ordens de interesses a serem representados, Pinheiro Ferreira frisa: "O que porém distingue essencialmente o nosso método do que vulgarmente está recebido, é que nós exigimos em cada deputado a especialidade de conhecimentos requerida para bem representar cada uma das três sortes de interesses relativos às três seções de que se deve compor o congresso legislativo; enquanto nos métodos vulgares cada eleitor escolhe sem saber que condições deve reunir o candidato. Por isso vemos que os interesses dos diferentes estados são mui imperfeitamente representados nos congressos de quantas nações se presumem viver debaixo do regime constitucional; pela simples razão que a lei não dirigiu a atenção do eleitor afim de que ele se concentrasse no círculo de seus conhecimentos, e procurasse entre as pessoas do seu mesmo estado as mais capazes de representar os respectivos interesses [Pinheiro Ferreira, 1976: 133-134].

O Congresso deve representar todos os interesses presentes na sociedade. A respeito, Pinheiro Ferreira escreve: "O Congresso deve ser dividido em três seções (...). Destas seções duas são destinadas a representar os interesses especiais do comércio e da indústria, e a terceira os interesses gerais de todas as classes, à qual por isso daremos o nome de estadística. Para cada uma das três mencionadas seções deve ser eleito um deputado por cantão, sendo eleitores os cidadãos aí estabelecidos, e que em razão de seus empregos ou profissões pertençam àquela das sobreditas ordens de interesses, que o deputado tem de representar, quer ele pertença à seção do comércio, quer à da indústria. Quanto à seção da estadística não se faz diferença de profissão ou emprego" [Pinheiro Ferreira, 1976: 136].

O pensador português considerava que a principal vantagem do sistema representativo surgido das eleições, consistia na conquista da verdadeira estabilidade política. Contrariamente ao preconceito dos espíritos absolutistas, que criticavam a democracia representativa pelo fato de ensejar a instabilidade política decorrente dos contínuos pleitos eleitorais, Pinheiro Ferreira achava que a história prova exatamente o contrário: ali onde se concretizou a institucionalização da representação a partir das eleições, conquistou-se a verdadeira estabilidade política e a paz social, como nos Estados Unidos. A respeito, escreve o nosso autor: "Bastaria citar o exemplo dos Estados Unidos da América setentrional para mostrar quanto é falsa a asserção dos perigos inerentes ao sistema eletivo" [Pinheiro Ferreira, 1976: 165].

O pensador português deixa claro, evidentemente, que pode haver pleitos eleitorais viciados. Daí a grande importância que confere à elaboração de uma apropriada legislação eleitoral, que impeça as fraudes, ou que o processo democrático termine sendo manipulado por uma minoria, como no caso extremo do democratismo. Refletindo acerca das medidas que devem ser tomadas para salvaguardar os pleitos eleitorais, escreve: "Uma observação, que não podemos passar em silêncio vem a ser: que as comoções populares de que as eleições têm sido algumas vezes acompanhadas, tiveram origem nos defeitos em que elaboravam os métodos para esse efeito adotados. Mas desde que estes forem fundados nos princípios que havemos desenvolvido na conferência em que tratamos da teoria das eleições, os erros que se introduzirem (porque o erro é inevitável em toda a instituição humana) serão tão fáceis de reconhecer como de reparar. Quando as eleições não forem o monopólio de alguns, mas sim o direito de todos; quando nenhum cidadão capaz de emitir voto com conhecimento de causa puder ser excluído, nem dispensado de o fazer; quando todo o cidadão que reunir as condições de elegibilidade requeridas for necessariamente objeto de votação, e esta se fizer por via de uma simples remessa de listas, com a maior independência e publicidade, sem tumulto, confusão, nem surpresa, todo o acesso à intriga será impossível, pois é evidente que não se pode intrigar à face de toda a gente" [Pinheiro Ferreira, 1976: 165-166].

Uma vantagem adicional para a institucionalização de regimes representativos a partir do sufrágio popular, é a garantia que daí decorre, no que tange ao zelo dos administradores da coisa pública. À pergunta: "Por que se fazem as eleições anualmente?" o nosso autor responde: "Há para isso duas razões: 1ª porque a experiência tem provado que mesmo as eleições feitas com o maior escrúpulo nem sempre correspondem à expectação; 2ª porque a dependência em que ficam os administradores dos votos dos seus (eleitores) em uma determinada época, é a única verdadeira garantia de zelo com que hão de cumprir as suas obrigações" [Pinheiro Ferreira, 1976: 138].

Construção dos canais de comunicação entre a sociedade e o poder.- Isso se conseguiria mediante a representação, que faria com que as instituições políticas correspondessem às relações sociais. Esse era o caminho que Silvestre Pinheiro Ferreira enxergava para vencer o perigo da guerra civil. A respeito, escrevia em 1834 o nosso pensador: "Sobre o meio de atalhar os males de que o Reino estava ameaçado, dissemos sem rebuço que a adoção do sistema representativo era o que unicamente podia obstar à iminente catástrofe da monarquia" [Pinheiro Ferreira, 1976: 107].

Teoria da dupla representação.- Constant de Rebecque tinha formulado a existência de uma dupla representação: da continuidade (desempenhada pela assembléia hereditária) e da opinião (desempenhada pela assembléia eletiva). O Rei, outrossim, para o publicista francês, era independente do Poder Executivo [cf. Constant, 1970: 19-24]. Em Pinheiro Ferreira, em que pese a influência recebida de Constant, encontramos uma reformulação desses princípios: de um lado, a dupla representação consistia em representação virtual, exercida pelo Monarca e que não dependia de eleições, e representação dos interesses dos estados sociais (comércio, indústria e serviço público), proveniente das eleições. A representação virtual espelhava os interesses permanentes da Nação (ou seja, salvaguardava aquelas exigências sem as quais  -- como no caso da defesa da soberania --  desapareceria o corpo político), ao passo que a representação dos estados sociais espelhava os interesses mudáveis da sociedade. De outro lado, Pinheiro Ferreira [cf. 1976: 144-145] conferia ao Monarca o privilégio de ser o chefe supremo do Poder Executivo. Mas, de acordo com os princípios que tinham sido desenvolvidos por Constant, o pensador português preservava o rei de ser objeto da luta política ou das invejas da sociedade, em virtude do caráter de "inimputabilidade" de que a pessoa do monarca estava revestida.

Caráter nacional e não individual da dupla representação.-  Para Pinheiro Ferreira, tanto a representação virtual do Monarca, quanto a relativa aos estados sociais, não era individual mas nacional, o que significava que o representante não defendia os interesses de cada eleitor individualmente. A respeito, escreve Vicente Barretto: "Tanto no Brasil, como em Portugal, o Estado continuava a ser o centro da vida política nacional e as reformas propostas, ainda que com justificativas liberais, terminavam sempre no aperfeiçoamento das instituições estatais. O patronato político brasileiro subsistiria em função do Estado, não se encontrando caraterísticas individualistas em suas manifestações liberais" [Barretto, 1976: 18].

A idéia da relação entre civilização e dependência.- No terreno das relações internacionais, Pinheiro Ferreira elaborou interessante teoria acerca da interdependência das Nações. O cerne dessa teoria foi expressado assim pelo estadista português: "E portanto pode-se dizer, que o máximo de civilização é inseparável do máximo de dependência: tanto em extensão de artigos de que se precisa, como pelo grande número de homens e países, cujo concurso se torna necessário" [Pinheiro Ferreira, 1970: 281].

O pensador português considerava, no entanto, que havia uma diferença na dependência das nações ricas e das nações pobres. A das primeiras era positiva e consistia no pleno funcionamento da economia de mercado livre, que evitava o monopólio ao aceitar a pluralidade de fontes produtoras. Os três princípios de economia internacional obedecidos pelas nações ricas, eram os seguintes: "a) Não depender de outra Nação para bens que interessem essencialmente à própria existência; b) não depender de outra Nação de modo que não se possa por outro meio conseguir os bens por ela fornecidos; c) dar preferência no mercado à Nação melhor compradora dos produtos primários ou industriais" [Pinheiro Ferreira, 1970: 281].

Como fundamento desta teoria da interdependência, o pensador português desenvolveu uma espécie de eudemonismo moral, válido tanto para os indivíduos quanto para as Nações. Vicente Barretto sintetizou da seguinte forma esse aspecto do pensamento de Pinheiro Ferreira: "Para o autor das Preleções filosóficas a felicidade era entendida como a predominância de gostos sobre as dores encontradas na vida humana. Tanto nos indivíduos, como nas Nações, a felicidade, que se busca, pode ser avaliada levando-se em conta a suficiência de meios, que protegem os indivíduos e as Nações; e em meios que possibilitam o aumento do número e variedade dos prazeres. A riqueza e opulência, individual ou nacional, é atingida quando se combinam as duas condições referidas, ficando assim o indivíduo ou a sociedade aptos a superar a adversidade e desenvolver, plenamente, as suas potencialidades" [Barretto, 1976: 12-13].

José Esteves Pereira, o mais importante estudioso contemporâneo da obra de Pinheiro Ferreira, caracterizou da seguinte forma a singular concepção moral deste autor, que oscila entre o espiritualismo (de inspiração leibniziana) decorrente da moral cristã e o mais puro benthamismo: "No autor se recupera uma matriz que sublinha o primado da personalidade e adivinha o enfrentamento com a transcendência. Quanto a este último aspecto, segundo o autor, das ciências que têm por objecto as faculdades do espírito acedemos àquelas que nos permitem entender um sistema geral do mundo. Deparamos, neste caso, com a nítida inspiração leibniziana (O presente está prenhe de futuro) que também o motiva para uma mathesis universal (Pasigrafia), constituindo a meditação sobre o mundo o enfrentamento com a criação e a necessidade de uma Teologia Natural que coroará o relacionamento entre a realidade física e espiritual do homem abrindo-se ao mistério e à revelação. Mas, esta abertura à transcendência que passa pela aceitação de uma moral fundada no decálogo, nem por isso deixa de admitir, também, o princípio utilitarista, como em Bentham, do maior bem para o maior número através de uma consideração dos móbeis da acção e dos resultados experienciais de prazer e de dor. É certo, porém, que o teor empirista do utilitarismo de Silvestre Pinheiro Ferreira tem um alcance espiritual inegável. Tratava-se de promover uma pedagogia intencionada a, em época de definição teórica do liberalismo, reconduzir a palavra a uma precisão sintáctica e pragmática para o aperfeiçoamento espiritual, social e político, mediando o entendimento da perenidade e da transcendência dos valores com as possibilidades de uma sociedade que se procurava para lá do puro formalismo dos direitos individuais e do amor próprio excessivo ou egoísta. Neste sentido,  talvez se perceba a admissão, não incontestavelmente conflitual, entre a esfera moral de matriz transcendente e uma ética de acção liberal de base solidarista, que as suas reflexões sociais indiciam aproximando-o do krausismo (embora o seu empirismo e sensualismo de base pareçam dificultar tal aproximação" [Pereira, 1995: 40]

C) A Carta de 1824 e a prática do parlamentarismo

A Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824, no seu Título V, Capítulos I e II, estabeleceu o Poder Moderador nos moldes cogitados por Silvestre Pinheiro Ferreira. Lembremos os aspectos fundamentais: "O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos. (...) A pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma" [Brasil, 1948: 42]. O Imperador exerce o Poder Moderador nomeando os senadores vitalícios, a partir das listas tríplices surgidas das eleições provinciais, convocando a assembléia geral extraordinária, sancionando os decretos e resoluções da assembléia geral, aprovando e suspendendo interinamente as resoluções dos conselhos provinciais, prorrogando ou adiando a assembléia geral, dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos em que o exigir a salvação do Estado, nomeando e demitindo os Ministros de Estado, suspendendo os Magistrados, etc. O Imperador é, outrossim, o chefe do Poder Executivo e o exercita  pelos seus Ministros de Estado [Brasil, 1948: 42].

O conjunto de leis denominado de "Regresso", em 1841, corrigiu os excessos de desconcentração do poder e de exagerada autonomia provincial do período regencial, consubstanciados no Ato Adicional de 1832 [cf. Brasil, 1948: 50] e deu ensejo ao período de maior estabilidade política da história brasileira. O princípio formulado por Bernardo Pereira de Vasconcelos, de que "é preciso deter o carro da revolução", lembra muito bem a convicção dos constituintes de Filadélfia, que reagiram, pela boca de Jefferson, contra a "retórica utópico-democrática" que ameaçou deitar por água abaixo a unidade das 13 ex-colônias americanas, após o excessivo federalismo dos "Artigos da Confederação". Lá como no Brasil, o equilíbrio entre o princípio hobbesiano da unidade e da centralização do poder e o princípio lockeano da defesa da liberdade mediante a representação, seria a fórmula salvadora.

Enxergadas as instituições imperiais à luz do hodierno parlamentarismo, é evidente que impressiona o acúmulo de poderes de que gozava o Imperador. Esses poderes centravam-se, fundamentalmente, no exercício do Poder Moderador e no fato de o Imperador ser o chefe do Executivo. O exercício da função moderadora permitia ao soberano prorrogar ou adiar a assembléia geral (integrada pelo Senado e pela Câmara dos Deputados), dissolver a Câmara e convocar imediatamente outra que a substituísse. Moderando o exercício do Poder Legislativo, controlando, de outro lado, a Polícia e a Magistratura, acúmulo enorme de poderes descansava nas mãos do Imperador. A Guarda Nacional, a maior organização pré-burocrática de homens livres do Hemisfério Ocidental [Cf. Uricoechea, 1978], que em 1851 arregimentava 250 mil pessoas livres, cooptadas pelo Imperador, era o instrumento básico, típico instituto do Poder Patrimonial, para ganhar qualquer eleição. Daí o famoso sorites do senador Nabuco de Araújo: "O Poder Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios: esta pessoa faz a eleição, porque há de fazê-la e esta eleição faz a maioria" [cit. por Torres, 1968: 18]. A centralização, pelo Imperador, dos poderes de polícia e de controle sobre a magistratura, decorreu da reforma do Código de Processo (1841). "Graças a essas medidas  -- frisa João Camillo de Oliveira Torres --  foi possível ao Governo Imperial implantar a sua autoridade sobre todo o território nacional" [Torres, 1968: 59].

Tratava-se, sem dúvida, de uma prática de democracia induzida, como se o Imperador chamasse a ganhar as eleições aqueles que garantissem o funcionamento das Instituições. Heitor Lyra, o biógrafo de dom Pedro II, pretendia desmontar assim o sorites de Nabuco, destacando, no entanto, o caráter induzido já apontado: "Este raciocínio era, sem dúvida, exato, quer dizer, todas as suas proposições de fato se verificavam. Mas, convinha indagar: era por culpa do Imperador? Por culpa da Constituição? Ou por culpa da escassa cultura das massas eleitorais? Se as proposições que formavam o 'sorites de Nabuco' se verificavam de fato, uma delas, pelo menos, de direito, era falsa e tirava, assim, ao  sorites, todo o fundamento legal. Os presidentes de Província, dizia Nabuco, faziam as eleições. De fato, assim era: os presidentes de Província faziam bem as eleições, a mando e sob o controle dos Gabinetes, que fabricavam eles mesmos as Câmaras, as quais, teoricamente, os deviam sustentar. Mas onde estava o fundamento legal da atribuição que se arrogavam os presidentes de Província, de fazerem as eleições?" [cit. por Torres, 1968: 18].

A razão que justificava este modelo de exercício programado e vertical das eleições era, portanto, a fragilidade do tecido social num meio eivado de práticas familísticas. Oliveira  Torres identificou com clareza essa razão: "O drama do Império, que pouca gente sentia na época e que muitos até hoje não compreenderam, residia, exatamente, no fato de quererem que as práticas da democracia representativa à inglesa (nascida num país industrializado e de forte concentração demográfica) vigorassem num país cuja população era escassa e rala, quase toda espalhada pelos campos, vivendo em função da autoridade semi-feudal dos senhores de terras" [Torres, 1968: 31].

Em que pese o fato do poder concedido ao Imperador, é válida, contudo, esta afirmação: o Segundo Reinado (1842-1889) deitou as bases para a prática da representação política, uma representação dos interesses de proprietários, comerciantes e funcionários públicos, é bem verdade, alicerçada no voto censitário (como, aliás, tinha acontecido na Inglaterra e no resto da Europa Ocidental, ao longo dos séculos XVII a XIX), mas que se encaminhava à ampliação da base social a ser representada. Convém enumerar aqui os aspectos em que a Constituição Imperial de 1824 e a legislação subseqüente (até 1889), contribuíram à valorização e ao alargamento da representação e dos direitos dos cidadãos. Esses aspectos são os seguintes:

1) Reconhecimento do Poder Legislativo como "delegado (pela Nação) à assembléia geral", integrada pela câmara dos deputados e a câmara dos senadores. As funções da assembléia geral eram claramente definidas no Título IV, Capítulo I da Constituição de 1824 e entre elas figuravam: tomar juramento ao Imperador, ao Príncipe Imperial, ao Regente ou Regência; eleger a Regência ou Regente e marcar os limites de sua autoridade; reconhecer o Príncipe Imperial como sucessor ao trono; resolver as dúvidas sobre a sucessão da Coroa; instituir exame da administração anterior, quando da morte do Imperador ou quando da vacância do trono, "e reformar os abusos nela introduzidos"; escolher nova dinastia, em caso de extinção da imperante; fazer leis, interpretá-las, suspendé-las e revogá-las; velar pela guarda da Constituição, e promover o bem geral da Nação; fixar anualmente as despesas públicas, e repartir a contribuição direta; fixar anualmente as forças de mar e terra; conceder ou negar permissão para a entrada de forças estrangeiras dentro do Império ou dos portos dele; autorizar o governo para tomar empréstimos; regular a administração dos bens nacionais e decretar a sua alienação; criar ou suprimir empregos públicos, etc.

2) Reconhecimento da inviolabilidade dos membros de cada uma das Câmaras pelas opiniões que proferissem no exercício de suas funções, bem como da sua imunidade durante a respectiva deputação.

3) Institucionalização do Conselho de Estado "composto de conselheiros vitalícios, nomeados pelo Imperador" (Título V, Capítulo VII, art. 137). Os conselheiros deveriam ser ouvidos sempre que o Imperador fosse exercer o Poder Moderador. Eles seriam responsáveis pelos conselhos que dessem opostos aos interesses do Estado. Acerca da forma como funcionou o Conselho de Estado, escreve Oliveira Torres: "O Conselho de Estado não seria, como pensaram os alarmados liberais mineiros de 1842, a concentração da oligarquia conservadora, mas um tribunal político admirável, no qual tinham assento gregos e troianos, que diziam ao Imperador o que ele devia ouvir, nem sempre, talvez, o que gostasse de ouvir. E com isto tivemos a única experiência que o mundo conheceu de participar a oposição, conservada a sua condição oposicionista, na direção da coisa pública [Torres, 1968: 60]. Tão significativa foi a atuação do Conselho de Estado na tarefa de moldar a opinião do Imperador, que chegou a ser chamado de "o quinto poder" [cf. Rodrigues, 1978].

4) Funcionamento das câmaras eletivas "em todas as cidades e vilas ora existentes, e nas mais que para o futuro se criarem (...), às quais compete o governo econômico e municipal das cidades e vilas" (Tit. VII, cap. II, art. 167-168). Essa disposição vinha equilibrar o centralismo contido no poder do Imperador de nomear os presidentes das Províncias (Tit. VII, cap. I, art. 165).

5) Reconhecimento da "Inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade" (Tit. VII, art. 179).

6) Abolição de "todos os privilégios que não forem essencial e inteiramente ligados aos cargos para utilidade pública" (Tit. VII, art. 179, par. 16).

7) Aperfeiçoamento da representação e alargamento do voto, mediante as reformas eleitorais: a de 1846 (que organizava o eleitorado permanente); a de 1855 (que organizava os distritos eleitorais) e a de 1881, a famosa Lei Saraiva (que adotava o sistema da eleição direta). Expressão do cuidado com que o Imperador tratava a questão do voto e da representação, é o seguinte trecho da Fala do Trono de 1º de fevereiro de 1877: "Na execução da nova lei que regulou o processo eleitoral, a expressão do voto popular tivera plena liberdade e, no decurso da eleição, não fora perturbada a ordem pública. Conviria, entretanto, examinar se as disposições da mesma lei asseguravam suficientemente a desejada e possível pureza da eleição, base fundamental do sistema representativo" [cit. por Barretto, 1982: 75]. A Lei Saraiva, de 1881, viria culminar esse processo de aperfeiçoamento da representação, pois como escreve Vicente Barretto, "viria consagrar o estabelecimento final das instituições liberais no Império. Passava o regime a ser fundado na eleição direta e censitária, onde todos os participantes do processo político, os cidadãos ativos, encontravam-se em igualdade de condições jurídicas para escolher os governantes, desde que satisfeitas as exigências econômicas para participar do processo político" [Barretto, 1982: 77-78].

8) O equilibrado revezamento de liberais e conservadores no poder, graças à ponderada atuação do Poder Moderador. Ao longo do reinado de dom Pedro II, entre 1840 e 1889, somaram ao todo 36 gabinetes, sendo que os conservadores permaneceram no poder 26 anos e os liberais 18. Calógeras escreveu a respeito desse fato, no seu livro Da Regência à queda de Rosas: "Ritmicamente, alternavam-se em prazos de cinco a seis anos, com um máximo, para os conservadores, de 10 anos no período de 1868 a 1878" [cit. por Tapajós,  1963: 374].

9) A presença atuante de uma elite de homens públicos, formados ao redor de dom Pedro II e que constituíram a elite de homens de 1000, que permitiram fazer surgir, num contexto de cultura patrimonialista e privatizante, o ideal do bem público e que, a partir daí, construíram o sentimento de Nação, num amplo processo de paideia política [cf. Barros, 1973]. Esses homens de 1000  -- frisa Oliveira Vianna --  caracterizavam-se pela sua "inata vocação ao bem comum da Nação" e eram "homens que aborrecem a avareza (...) como os da vocação mosaica. Conselheiros, senadores, ministros, altos dignatários da Coroa, eles passaram pela administração (di-lo a história do Império) nutridos do sentimento do seu dever público, impregnados do desejo de bem servir ao país, colocando os interesses da Nação e o cumprimento das suas obrigações cívicas acima dos seus interesses pessoais e de família, e mesmo de partido. Todos eles timbravam  -- como os cavalheiros do antigo regime --  em morrer pobres e de mãos limpas. Todos eles eram trabalhados pelo fogo dessas preocupações, dessas absorventes preocupações do patriotismo e do serviço público" [Vianna, 1982: 582].

Essa elite ensejou importante reflexão de cunho filosófico-jurídico, que contribuiu decisivamente para firmar e desenvolver as Instituições imperiais. Eis algumas das mais representativas contribuições teóricas: Pimenta Bueno (Direito público brasileiro, 1857); Domingos José Gonçalves de Magalhães, visconde de Araguaia (Fatos do espírito humano, 1858; A alma e o cérebro, 1876; Comentários e pensamentos, 1880); Paulino José Soares de Sousa, visconde de Uruguai (Ensaio sobre o direito administrativo, 1862); Affonso d'Albuquerque Mello (A liberdade no Brasil, 1864); Brás Florentino Henriques de Souza (Do poder moderador, 1864; Dos responsáveis nos crimes de liberdade de exprimir os pensamentos, 1866); José Soriano de Souza (Compêndio de filosofia, 1867; Lições de filosofia elementar racional e moral,  1871; Estudos de filosofia do direito, 1880); Américo Brasiliense (Os programas dos partidos e o II Império, 1878); M. Sá e Benevides (Elementos de filosofia do direito, 1884); Tavares Bastos (Cartas do solitário, 1862); etc.

Weber previu que era possível evoluir de sociedades marcadas pela tradição patrimonial, até sociedades de tipo contratualista. No caso ibérico, isso se tornou possível graças a causas exógenas (a influência da tradição liberal anglo-saxônica, por exemplo), ou endógenas (a retomada de tradições de inspiração libertária e contratualista na Península Ibérica, ao longo do século XX). A evolução do mundo ibérico e ibero-americano ao longo dos últimos trinta anos (o amadurecimento da democracia representativa e a modernização da economia na Espanha, em Portugal, no México, na Argentina, no Brasil, no Chile, etc.) parece sugerir que esse processo de abertura pode ser dinamizado a partir da sociedade, tendo por base um novo pacto político e sob a inspiração de uma nova Constituição ou de reformas constitucionais significativas.

O que ocorreu no Brasil no século XIX insere-se neste contexto. O Império do Brasil e as instituições do governo representativo que lhe eram inerentes constituíram-se a partir de nova concepção do Estado, no terreno do direito constitucional, sob a inspiração de Constant de Rebecque e dos doutrinários como Guizot. Essa concepção, no entanto, como destacou Silvestre Pinheiro Ferreira, não era alheia à cultura luso-brasileira, porquanto retomou a tradição de defesa da liberdade presente no antigo direito visigótico, sem contudo esbarrar no extremo do democratismo. Essa tradição, reforçada pelo conceito de soberania elaborado pelos filósofos do século XVII (entre os quais sobressai a figura do padre Francisco Suárez), veio ser vivificada pela abertura de Pinheiro Ferreira à filosofia liberal, nas versões moderadas de Locke e de Constant.

O efeito dessa magna obra criativa foi o Império do Brasil, uma nação organizada nos moldes do que Simon Schwartzman [1982] e Antônio Paim [1978] convencionaram em chamar de patrimonialismo modernizador ou neopatrimonialismo, em que a variável da democracia representativa constituía elemento essencial do processo, apesar do evidente centripetismo do Estado.

A marcha modernizadora do Estado patrimonial brasileiro no período republicano, em decorrência do primado exercido pela filosofia positivista, abandonou as preocupações com a democracia representativa e acirrou o centripetismo do executivo hipertrofiado, no modelo de ditadura científica implantado por Júlio de Castilhos e seus seguidores, no Rio Grande do Sul (entre 1891 e 1930) [cf. Vélez, 2000]. Esse modelo seria aplicado a nível nacional por Getúlio Vargas, a partir de 1930. As atuais ambigüidades da política brasileira, ainda às voltas com a síndrome arcaizante do estatismo que teima em se manter, explicam-se em boa medida pelo abandono da tradição liberal que o Império soube preservar, graças à têmpera de teóricos da talha de Silvestre Pinheiro Ferreira e de estadistas como dom Pedro II ou o visconde de Uruguai.

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