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sábado, 19 de janeiro de 2013

PARIS DAS LUZES SEGUNDO O PLANO DE TURGOT (1739)

Paris, Plano de Turgot (1739), Île Saint Louis. (Pode-se observar o traçado cartesiano das ruas, uma prova da racionalidade geométrica dos urbanistas de Luis XIV)

Paris, Plano de Turgot (1739) - Cruzamento das Rues du Marais e des Petits Augustins

Paris, Plano de Turgot (1739) - Capa.


“Paris das Luzes”. O título que escolhi para este ensaio foi-me sugerido pela bela obra de Alfred Fierro e Jean-Yves Sarazin, recentemente publicada na capital francesa pela Réunion des Musées Nationaux, sob o título de Le Paris des lumières d’après le Plan Turgot [1]. Considerei a leitura dessa obra algo muito esclarecedor e plástico, em relação ao espírito da Ilustração e à mentalidade geométrica que se projetou na modernidade e que, de uma forma ou de outra, tem tido influência decisiva sobre o hodierno urbanismo. Mas não foram os aspectos técnicos desta última disciplina que me seduziram na obra em apreço. Chamou-me a atenção, sobremaneira, o caráter humanístico da mesma. A partir da janela do urbanismo, os autores foram descortinando a vida e costumes dos homens do século XVIII, com todas as suas angústias, incertezas, expectativas. Na verdade, já tinha eu ficado seduzido com a publicação, em edição fac-similar, do plano de Turgot, feita em 1999 pela Livraria Chapitre, de Paris. [2] A introdução a esta obra, de autoria de Laure Beaumont-Maillet (chefe do Gabinete de Ilustrações da Biblioteca Nacional francesa) é uma bela lição acerca dos aspectos existenciais e urbanísticos da Cidade Luz, nas primeiras décadas do século XVIII.
Estrangeiros e franceses que visitavam Paris, na primeira metade desse século, tinham da capital uma imagem bastante viva, que corresponde a uma abordagem nitidamente experimental, tratando de quantificar as riquezas da cidade, bem como a forma em que ela respondia às expectativas dos viajantes. É um ponto de vista decorrente da valorização das certezas obtidas a partir da própria vivência individual, deixando de lado os argumentos de autoridade e sem esquecer a razão matemática quando se trata de quantificar fenômenos. Ponto de vista cem por cento moderno. Eis um pequeno relato de uma testemunha da época, Pierre Prion, que conta, nos seguintes termos, a impressão que teve da sua permanência na capital durante vários dias, em 1738:
Paris pode se vangloriar de possuir novecentas e cinqüenta ruas, nas quais situam-se cerca de vinte e duas mil casas, iluminadas por cinco mil cento e trinta e duas lâmpadas (...). A cidade possui quarenta e quatro colégios, vinte e seis grandes hospitais, cinqüenta fontes públicas, oito portas ou arcos de triunfo, uma dúzia de pontes, outros tantos mercados, vinte e cinco portos, cinqüenta e dois açougues, cinqüenta peixarias, quatro feiras livres, vinte e cinco bebedouros para os cavalos, quarenta e cinco esgotos, oitenta e duas carroças com caçamba para retirar os detritos, oito jardins públicos, seis academias reais, quatro bibliotecas públicas e trinta tribunais para a administração da justiça”. [3]
A descrição do viajante Prion não parava aí. Calculava que, para a alimentação dos cerca de setecentos mil habitantes de Paris, eram necessários, a cada ano, “sessenta mil bois, quatrocentas mil ovelhas a quarenta mil porcos”. A cidade contava, outrossim, com vinte mil carroças e cento e vinte mil cavalos. (Só a título comparativo, para auferir a grande povoação da França, entre 1740 e 1744 a população do país estimava-se em 24 milhões e 600 mil habitantes).[4]
O Plano de Turgot, elaborado entre 1734 e 1739, compartilha com o relato anterior a preocupação com uma apreensão vivencial da cidade (“fenomenológica”, diríamos hoje) e tendo como norte, também, a expressão exata dos fenômenos observados. É o primeiro plano feito “a vôo de pássaro” no decorrer dos séculos XVII e XVIII, diferente, portanto, dos Planos rigorosamente geométricos que eram elaborados usualmente nesse período. Antecipa, certamente, os hodiernos Planos de Paris “à vol d’oiseau”, elaborados pelo Ministério dos Trabalhos Públicos, dos Transportes e do Turismo. O que prevalecia, nele, não era tanto a preocupação com a exatidão matemática, mas a possibilidade de ensejar, naquele que o observasse, a experiência de ver Paris desde cima, como se estivesse voando.
Michel Étienne Turgot (1690-1751), originário de uma família de nobres da Normandia e pai do famoso ministro liberal de Luís XV, Anne-Robert-Jacques Turgot (1727-1781), era membro da magistratura do Parlamento de Paris. Em 1729, Luis XV o nomeou preboste dos comerciantes de Paris (“Prêvot des marchands”), uma espécie de Prefeito para cuidar dos assuntos ligados à limpeza e abastecimento da cidade; nesse cargo permaneceu até 1740, tendo sido reconduzido cinco vezes. A escolha, segundo a praxe da época, devia ser ratificada pelos magistrados municipais. De acordo com o testemunho de Voltaire, a administração de Turgot foi muito positiva para a capital. “Seria conveniente – frisava o citado escritor – que Michel Turgot fosse nosso edil e nosso pretor perpétuo”. Em 1737, o preboste realizou a canalização do Grande Esgoto, situado na rive droite parisiense, a primeira obra de saneamento básico de que se tem notícia; providenciou, ademais, a reforma do “Quai de L’Horloge” na Ilha da Cidade, assim como o embelezamento dos bairros com numerosas obras de arte; desenvolveu uma hábil política de abastecimento e efetivou a construção de uma paliçada defronte à base da ponte oriental da ilha Louviers, para desviar os blocos de gelo carregados pelo rio Sena na estação invernal. [5]
Mas o preboste preocupou-se, também, com a preservação da memória municipal e com os estudos que hoje denominamos de “planejamento urbano”. No que tange à guarda da memória, criou os cargos de historiador e de geógrafo da cidade, e os preencheu com dois renomados estudiosos: Pierre Nicolas Bonamy, para o primeiro, e o abade Jean Delagrive (autor, aliás, de importante cadastro urbano), para o segundo. No relativo às atividades de planejamento, o administrador Turgot adquiriu, em 1737, para o acervo da Prefeitura, o denominado Plano da “Tapisserie” (elaborado em 1570 e desaparecido possivelmente nos incêndios da Revolução de 1789). Outra providência foi a ordem para elaborar o famoso Plano da cidade, entre 1734 e 1739. A idéia de Turgot era, sem dúvida, estabelecer uma comparação da Paris da sua época com a revelada no Plano da “Tapisserie”, a fim de enxergar a forma em que tinha se efetivado o seu crescimento, para prever os futuros desdobramentos. Mas o preboste pretendia, também, oferecer ao viajante uma guia confiável da cidade, que possibilitasse a rápida identificação de ruas, monumentos e bairros. Para isso foi adotado o modelo de plano “a vôo de pássaro”. Convém destacar que esse modelo foi introduzido, pioneiramente, pelo Plano da “Tapisserie”.
Em janeiro de 1734, Turgot contratou com um famoso desenhista, Louis Bretez, membro da Academia de Saint-Luc (organização rival da Academia Real de Pintura e Escultura), a elaboração do Plano pretendido. Bretez era considerado, na época, o maior especialista francês em matéria de perspectiva. Falecido antes de terminar o trabalho, os desenhos das pranchas que ainda faltavam, terminaram sendo feitos por Claude Lucas, membro da Academia Real. Apesar dos contratempos (que obrigaram a ampliar o prazo inicial de um ano), a obra esteve pronta em 1739. Esta constava de vinte pranchas, que foram editadas em formato de álbum de arquiteto, em edições de luxo, semiluxo e comum. A edição de luxo foi distribuída nas principais Cortes da Europa e de outros Continentes (como a de Pequim), e certamente constituiu a principal carta de apresentação da capital francesa no mundo da época. A propósito da repercussão que teve, na época da sua publicação, o Plano de Turgot, escreve Laure Beaumont-Maillet:
Como se pode comprovar, o plano de Turgot não vale somente pela sua beleza formal. É um documento de primeira ordem e basta examina-lo durante algumas horas para ficar cativado pelo entusiasmo que levou ao redator do Mercure de France a afirmar, não sem uma certa dose de lisonja: O autor desta imensa e laboriosa obra superou-se a si mesmo. Mas seria possível pensar na perfeição deste empreendimento sem a orientação e sem a guia das luzes do nosso ilustre Preboste dos Comerciantes, cuja memória será sempre uma bênção para Paris?[6]
O Plano de Turgot não poderia ser entendido sem compreender, previamente, a guinada efetivada pelo pensamento francês na época da denominada “crise da consciência européia”, [7] entre 1680 e 1715, ou seja, no final do governo de Luis XIV (cujo reinado estendeu-se de 1643 até 1715).[8] A fim de ilustrar esses aspectos prévios, bem como a situação do urbanismo francês no período apontado, me detendo, no final, no Plano de Turgot, desenvolverei os seguintes itens: I - O clima da Ilustração, II - Aspectos fundamentais do urbanismo francês nos séculos XVII e XVIII, e III - Análise do Plano de Turgot de 1739.
Não pretendo, de forma alguma, menosprezar os aspectos técnicos das reformas urbanas registradas por Turgot. Referir-me-ei às mesmas como leigo em assuntos urbanísticos, centrando a atenção na mentalidade que elas pressupõem, justamente na medida em que a configuração física da cidade revela escalas de valores e ideais de vida.
I – O clima da Ilustração.
Partamos da caracterização que, do ângulo do pensamento, Immanuel Kant (1724-1804) faz da Ilustração, chamando a atenção para o fato de que, se ela é o domínio da razão na vida de cada um, de outro lado não deixa de ser verdadeiro que é muito cômodo permanecer na menoridade intelectual. Para o pensador alemão, a Ilustração consiste na
Saída do homem da sua menoridade, da qual ele mesmo é responsável. Menoridade, ou seja, incapacidade de se servir do seu entendimento sem a orientação de outrem, menoridade da qual ele mesmo é responsável, pois a causa reside não na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem para se servir dele sem a tutela de outro. Sapere aude! Tem coragem para te servir do teu próprio entendimento! Essa é a divisa das Luzes. A preguiça e a covardia são as causas de que uma grande parte dos homens permaneça, prazerosamente, em minoria de idade ao longo da vida, apesar de que a natureza os liberou, já há bastante tempo, da direção alheia (naturaliter majorennes) e, por isso, é tão fácil para outros se erigirem em seus tutores. É tão cômodo ser menor de idade![9]
Ora, essa saída da menoridade intelectual realiza-se, na Europa, ao longo dos séculos XVII e XVIII. Conquistada no século XVI a liberdade de pensamento no plano religioso, com o livre exame, nos dois séculos subseqüentes esta liberdade alargar-se-á ao plano político, primeiro, com a consolidação, na França, da raison d’État iluminista, efetivada pelo absolutismo de Luis XIV, para depois se aplicar ao plano social, no decorrer do século XVIII. Esse processo culmina com a Revolução de 1789 e a derrubada da velha ordem, passando a sociedade a encarnar os ideais iluministas.
1) Primeiro momento da razão iluminista: o absolutismo de Luís XIV.
Para François Guizot, na sua História da civilização na Europa, a França conheceu o estabelecimento do Estado moderno, plenamente institucionalizado, com o reinado de Luís XIV. Até então não havia, propriamente, uma política de Estado, racional, coerente, continuada. Com Luís XIV aparece uma gestão pública totalmente devotada ao crescimento econômico, político e cultural da França, no cenário internacional, convertendo-a na grande potência da época e superando as Nações concorrentes: Inglaterra e Espanha.
A – O espírito do absolutismo iluminista na França.- O próprio Luís XIV deixou claro o espírito do absolutismo por ele institucionalizado, quando, nas suas Memórias, escreveu o seguinte, para expressar o tipo de relação existente entre os súditos e o governo, fazendo, evidentemente, tudo girar em torno deste:
Estes dois interesses [dos súditos e do governo] não são mais do que um (...). A tranqüilidade dos súditos só se encontra na obediência. (...) Sempre é menos ruim para o público suportar do que controlar incluso o mau governo dos reis, do qual Deus é único juiz. Aquilo que os reis parecem fazer contra a lei comum funda-se, geralmente, na razão de Estado, que é a primeira das leis, por consentimento de todo mundo, mas que é, no entanto, a mais desconhecida e a mais obscura para todos aqueles que não governam.[10]
A concepção do Estado centralizador pressupunha, para Luís XIV, a idéia de que a sua pessoa era o centro do poder, bem como a fonte legitimadora do mesmo nas várias áreas da administração. Mas se o soberano tinha os seus ministros e os seus intendentes, ele estava seguro de que as decisões fundamentais cabiam à sua inteira responsabilidade pessoal. Nas suas Memórias frisava a respeito:
Informado de tudo, escuto os meus súditos mais humildes; conheço a todo o momento o número e a qualidade das minhas tropas, bem como a situação das minhas praças; dou incessantemente as minhas ordens para todas as suas necessidades; trato imediatamente com os ministros estrangeiros; recebo e leio os despachos; redijo, eu mesmo, uma parte das respostas e passo aos meus secretários o cerne das demais; regulo os ingressos e os gastos do meu Estado; faço com que me prestem conta diretamente aqueles a quem coloco nos cargos importantes; conduzo os meus negócios de forma tão secreta quanto nenhum outro tinha feito antes de mim; distribuo as graças pelo meu próprio critério e conservo, se não me engano, aqueles que me servem, embora favorecidos com benefícios, destinados a eles mesmos e aos os seus, dentro de uma modéstia muito longínqua da elevação e do poder dos primeiros ministros.[11]
A preservação do Estado, o seu fortalecimento sobre a sociedade e, a partir daí, a política emergente através da legislação outorgada pelo monarca, somente isso garantiria a supremacia da França em face das outras potências da época. Acerca da racionalidade em torno ao fortalecimento do Estado Nacional, Guizot escreve o seguinte, se referindo especificamente às guerras travadas por Luís XIV:
Trata-se de guerras de um governo regular, estabelecido no centro dos seus Estados, e que trabalha para conquistar ao redor dele, para estender e consolidar o seu território; numa palavra, são guerras políticas. Elas podem ser justas ou injustas; podem ter custado muito caro à França; há mil considerações para fazer contra a sua moralidade ou contra os seus excessos. Mas, de fato, elas são portadoras de um caráter incomparavelmente mais racional que as guerras anteriores. Elas não são mais nem fantasias nem aventuras. Elas são decididas por motivos sérios: é tal limite natural que é preciso atingir, tal população que fala a mesma língua e que é desejável juntar, tal ponto de defesa que é preciso adquirir contra uma potência vizinha. Sem dúvida que aí está presente a ambição pessoal. Mas examinai uma a uma as guerras de Luís XIV, sobretudo as da primeira parte do seu reinado, e encontrar-lhes-eis motivos verdadeiramente políticos. Vê-las-eis pensadas no contexto do interesse francês, em prol do interesse do poder ou da segurança do país. [12]
Em relação à raison d’État  que presidiu, durante o longo governo de Luís XIV, à sua política externa, Guizot destaca que sob esse reinado consolidou-se, na França, uma diplomacia racional, alicerçada unicamente na busca da estabilidade do poder no interior do país e do equilíbrio do mesmo na Europa, tendo sido superadas as tendências que faziam da política exterior simples continuidade de interesses religiosos. A coisa mais importante do reinado de Luís XIV não foi o estabelecimento do modelo absolutista de governo, mas a busca da racionalidade na política exterior, sempre procurando a segurança e a estabilidade do Estado francês no contexto europeu. A propósito, escreve:
O poder da França, a sua preponderância na Europa, a submissão das potências rivais, numa palavra, o interesse político do Estado, a força do Estado, essa é a meta para a qual Luís XIV constantemente tendeu (...). Ele agiu muito menos em prol da propagação do poder absoluto, do que por um desejo de poder e de engrandecimento da França e do seu governo. [13]  
B – Absolutismo e administração moderna.- Luís XIV, no sentir de Guizot, foi o primeiro a tornar realidade plena o ideal da administração moderna, que consiste em dar ensejo a um conjunto de meios direcionados a tornar realidade, o mais rápida e prontamente possível, o indiscutível predomínio da vontade do poder central em todos os cantos da sociedade, fazendo com que esta comprometa com essa vontade todas as forças sociais, tanto humanas quanto econômicas. Em relação a este aspecto, Guizot frisa:
Tal foi a obra, efetivamente, da administração de Luís XIV. Até ele, nada havia de mais difícil, na França e no resto da Europa, do que fazer penetrar a ação do poder central em todos os cantos da sociedade e concentrar no seio dele os meios de força de que ela dispunha. Foi para isso que Luís XIV trabalhou e nisso teve um certo sucesso, incomparavelmente melhor do que o obtido pelos governos precedentes. [14]
Tocqueville, por sua vez, caracteriza assim a feição eminentemente centralizadora do absolutismo de Luís XIV, que se converteu na identidade do Antigo Regime e que terminou dando ensejo à ulterior tradição estatizante, que ressurgiu com o Primeiro Império:
Um corpo único colocado no centro do Reino, que regulamenta a administração no país todo; um mesmo ministro dirigindo a quase totalidade dos negócios interiores; em cada província, um só agente que cuida de toda a rotina; nenhum corpo administrativo secundário ou corpos podendo agir sem autorização prévia; tribunais de exceção julgando os negócios de interesse da administração e dando cobertura a todos os seus agentes. O que significa tudo isto a não ser a centralização que conhecemos?[15]
O predomínio indiscutível do Estado absolutista no seio da sociedade pressupõe uma série de medidas políticas, tanto internas quanto externas, que visam a reforçar a imagem do poder. Cuidar dela, no contexto europeu, significa, para o precursor do absolutismo moderno na França, o cardeal Richelieu, em primeiro lugar destruir todas aquelas forças que, no interior do Estado, pretendam diminuir o poder real. Em segundo lugar, o cardeal aconselhava cuidar da imagem externa do Monarca, exaltando, sempre, o seu nome nas nações estrangeiras, notadamente em Roma que era, naqueles tempos, como uma espécie de vitrine do poder. A respeito, escrevia o mencionado ministro de Luís XIII, no seu Testamento político (publicado em 1709):
Quando Vossa Majestade se resolveu a dar-me ao mesmo tempo a entrada em seus conselhos e grande dose de sua confiança para a direção de seus negócios, posso dizer com verdade que os huguenotes partilhavam o Estado; que os grandes se conduziam como se não fossem súditos, e os mais poderosos governadores das Províncias, como se fossem soberanos nos seus cargos. (...) Não obstante todas estas dificuldades, que representei a Vossa Majestade conhecendo o que podem os reis quando usam bem do seu poderio, ousei prometer-lhe sem temeridade, segundo penso, que Vossa Majestade encontraria o bem do Estado e que dentro de pouco tempo a prudência e a força de Vossa Majestade e as bênçãos de Deus dariam essa nova feição a este Reino. Prometi-lhe empregar toda minha indústria e toda autoridade que lhe aprouvesse dar-me, para arruinar o partido huguenote, rebaixar o orgulho dos grandes, reduzir todos os súditos ao seu dever e exaltar o Seu nome nas nações estrangeiras, ao ponto que devia ser.[16]
Parte essencial da administração moderna sob o absolutismo é o conhecimento objetivo, pelo Monarca, dos recursos humanos e materiais que o Reino possui. Os Intendentes serão os encarregados de fazer o levantamento minucioso das riquezas do país, bem como do número dos seus habitantes. Lembremos que em 1680 Luís XIV institui, para todas as regiões da França, os cargos de Intendentes de Justiça, Polícia e Finanças. Posteriormente, já no reinado de Luís XV (que se estende de 1715 até 1774), em 1730, o chefe dos Intendentes, Orry, que exercia o cargo de controlador-geral, ao efetivar um censo acerca do estado econômico da França, afirmava: “Porque sem este conhecimento, não é possível calcular a quantidade de alimentos necessários à subsistência dos habitantes”.[17]
C – Absolutismo e estética da ordem, no Classicismo.- O funcionamento do Estado Absolutista, centrado em Luís XIV, dá ensejo, nas Letras, à Geração Clássica (1661-1685), algumas de cujas características culturológicas são: - a celebração do reino da ordem (os privilégios do clero e do parlamento são garantidos pelo monarca, numa corte domesticada ao redor dele em Versailles, para onde o soberano transferiu a sua residência em 1682); - a legislação da conformidade às regras sociais (os “homens bons” são aqueles que, de forma mais perfeita, respeitam as convenções ditadas pela Corte. O “bom cortesão possui a cultura necessária para sustentar, com sucesso, qualquer conversa, e vigia as suas palavras, as suas roupas, as suas atitudes, de forma a jamais fugir ao bom tom”);[18] - a ortodoxia religiosa (o catolicismo é reforçado como religião do Estado, com a conseqüente derrota do jansenismo) e – o advento do bom gosto (os escritores submetem-se às regras da arte ditadas pelos protegidos da Corte. “A regra das regras consiste em agradar”, afirma Molière).
O Estado tudo controla. Nada escapa aos Intendentes do Rei. Todas as atividades culturais sofrem o carimbo da censura oficial. A Comunidade de Livreiros e Impressores de Paris, rigorosamente controlada pelos emissários do Monarca, exerce o seu domínio irrestrito sobre os produtos culturais. A religião passa a girar ao redor do Soberano. O Catolicismo é a religião do Estado, situação que leva à revogação, por Louis XIV, do Edito de Nantes, em 1685. A língua francesa, como escreve o filósofo Pierre Bayle, em 1680, “é, a partir de agora, o ponto de comunicação de todos os povos da Europa”.[19] O governo absolutista, frisa a respeito Robert Darnton,
Tentava controlar a palavra impressa submetendo-a a instituições que representavam o absolutismo de Luís XIV: censura (censeurs royaux ligados à Direction de la Librairie, ou administração do setor livreiro); polícia (inspecteurs de la librairie especializados, comandados pelo chefe da polícia parisiense); e uma guilda monopólica (corporações provinciais e sobretudo a Communautée des Libraires et des Imprimeurs de Paris, que detinha a maior parte dos privilégios e os impunha inspecionando os carregamentos locais). Para ser publicado legalmente, um livro precisava transpor todos os obstáculos desse sistema e estampar um privilégio real impresso com todas as letras. Como um copyright moderno, o privilégio conferia a seu possuidor o direito exclusivo de reproduzir o texto. No entanto, servia também como um selo real de aprovação. Garantia a qualidade e a ortodoxia do texto, asseguradas ainda pela aprovação dos censores, que costumava figurar no começo ou no final do livro. Para ser totalmente legal, um livro tinha de conformar-se aos complexos padrões estabelecidos pelo Estado. [20]
 É o universo da estabilidade, depois do sopro vital da Renascença e das agitadas jornadas das guerras de religião, eventos que marcaram, respectivamente, os séculos XV e XVI. Essa estabilidade repercute na arquitetura da cidade de Paris, que segue, nas suas obras, as prioridades assinaladas pelo Poder Real, seja privilegiando os locais de comércio (à luz do colbertismo econômico), seja destacando as Places Royales, que simbolizam o caráter centrípeto da Monarquia absoluta, que, aliás, já tinha eclodido no pacífico monumentalismo de Versailles.[21] A respeito dessa idéia de estabilidade, escreve Hazard:
O espírito clássico, na sua força, ama a estabilidade: ele gostaria de ser a estabilidade mesma. Após a Renascença e a Reforma, grandes aventuras, é chegada a época do recolhimento. A política, a religião, a sociedade, a arte são subtraídas às discussões intermináveis e à crítica insatisfeita. O pobre navio humano encontrou o porto: possa ele aí repousar por longo tempo, permanecer ali para sempre! A ordem reina na vida. Para que tentar experiências que tudo colocam no pelourinho da crítica, por fora do sistema fechado que foi reconhecido como excelente? Há temor em face do espaço que contém surpresas, e há a vontade de, se possível, fazer parar o tempo. Em Versailles, o visitante tem a impressão de que as águas não caem; elas são suspensas, são forçadas a algo novo, são relançadas em direção ao céu: como se houvesse a vontade de faze-las servir eternamente.[22]
Se o centro de tudo é o Rei, o escritor não precisa se afastar do seu lugarejo, conquanto cumpra com os requisitos estéticos e comportamentais fixados pela Corte. Esse “provincianismo estetizante” foi caracterizado assim por Hazard:
Quando Boileau tomava as águas de Bourbon, pensava se encontrar no limite do mundo; Auteuil bastava-lhe. Paris bastava a Racine; e os dois, Racine e Boileau, ficaram bem chateados quando tiveram de seguir o Rei nas suas expedições. Bossuet jamais foi à Roma, nem Fénelon. Molière jamais foi rever a butique do barbeiro de Pézenas. Os grandes clássicos são estáveis. Errantes serão Voltaire, Montesquieu, Rousseau; mas não se passou dos uns aos outros, sem um obscuro trabalho.[23]
2) Segundo momento da razão iluminista: a sociedade racional e a derrubada do Antigo Regime.
A harmonia desse processo centralizador ensejado pelo absolutismo de Luís XIV entrou em declínio, já no final do século XVII e começo do XVIII. Toda a racionalidade de que era portador o monarca e que lhe possibilitou fazer girar as forças sociais ao seu redor, passou à sociedade que, paulatinamente, foi tomando conta do Estado. A respeito dessa mudança essencial, frisa Guizot:
O fato é incontrovertível. No século XVII, o governo francês está à testa da civilização européia; no século XVIII, ele desaparece: é a sociedade francesa, separada do seu governo, muitas vezes voltada contra ele, que precede e guia nos seus progressos o mundo europeu. É aí que encontramos o vício incorrigível do poder absoluto (...). O que faltava essencialmente à França de Luís XIV eram instituições, forças políticas que subsistissem por si mesmas, capazes de ação espontânea e de resistência.[24]
Trata-se de um período de grande turbulência, mas de enorme riqueza intelectual, algo assim como o surto de vida e de valorização da razão individual que ocorreu na Renascença Italiana, após séculos de estagnação ensejados pelo domínio da Escolástica no mundo do saber. Um escritor do período, o irlandês Laurence Sterne (1713-1768) dá o seu testemunho acerca da forma em que ele enxergava essa explosão de vitalidade e de aplicação indiscriminada da razão a todos os aspectos da realidade, no seio da ilustração francesa:
É uma época tão cheia de luz, que mal existe um país ou recanto da Europa cujos raios não se cruzem e se mesclem uns com os outros. O conhecimento em muitas de suas ramificações é, em muitos casos, como a música numa rua italiana, na qual podem tomar parte aqueles que não pagam nada. (...). Mas não existe nação abaixo do céu em que haja abundância de maior variedade de saber, em que as ciências sejam mais competentemente perseguidas, ou mais firmemente conquistadas do que aqui, onde a arte seja encorajada e, em breve, se erga bem alto, onde a Natureza (tomada em seu todo) tenha tão pouca coisa pela qual se responsabilizar e, para encerrar tudo isso, onde haja mais engenho e variedade de caracteres para alimentar o espírito.[25]
Em decorrência da riqueza que encobre essa aplicação indiscriminada do princípio do livre exame, vale a pena que nos detenhamos um pouco nos seus aspectos mais marcantes. Alguns deles, aliás, como teremos oportunidade de ver mais adiante, influirão, de forma decisiva, sobre o perfil multifacetado do urbanismo francês e, mais particularmente, revelar-se-ão no audacioso plano de Turgot/Bretez.
Os aspectos que desenvolverei são os seguintes: em primeiro lugar, o livre exame como reação social ao absolutismo. Em segundo lugar, a crise da consciência européia ensejada pelo livre exame. Em terceiro lugar, a importância atribuída às viagens e o conseqüente surgimento de um gênero literário utópico-heróico. Em quarto lugar, a crise da história enquanto disciplina do conhecimento. Em quinto lugar, a valorização do princípio da experimentação e da sua conseqüência no plano da sensibilidade, o prazer. Por último, em sexto lugar, analisarei o pano de fundo do cientificismo (sobre o qual pretende ser organizado esse disperso tabuleiro de conhecimentos e de sensações), polarizado pelo espírito rousseauniano, que já prenuncia os horrores da Revolução de 1789 e do terror jacobino.
A – Livre exame: reação social contra o absolutismo.- Aplicado à sociedade, o princípio do livre exame enfraqueceu o governo e passou a submeter tudo (instituições, tradições, crenças) ao seu implacável crivo. É a revanche da sociedade contra o poder avassalador do monarca. O uso da razão, que inicialmente se espraiou nas revoluções religiosas do século XVI, terminou sendo encampado pelas monarquias absolutas no século seguinte. As respectivas sociedades passaram, paulatinamente, no decorrer do século XVIII, a usufruir desse direito do livre exame. Ora, a universalidade desse processo é o que mais espanta aos observadores da história francesa do período.
O caráter do livre exame, no século XVIII, - frisa a respeito Guizot - consiste na universalidade. A religião, a política, a filosofia pura, o homem e a sociedade, a natureza moral e material, tudo se converte em objeto, ao mesmo tempo de estudo, de dúvida, de sistema.  As antigas ciências são desestruturadas, elevam-se as novas ciências. É um movimento que avança em todos os sentidos, embora surgido de um mesmo e único impulso.[26]
Uma vez de posse da iniciativa, as diversas forças sociais e os indivíduos passaram a submeter tudo ao crivo implacável da razão crítica, demolindo velhos princípios, enxergando novos horizontes, submergindo instituições e tradições na mais radical análise que pretendia checar tudo à luz da experiência. Nada, nem a história, nem o calendário, nem as unidades de pesos e medidas, nem a divindade, puderam se evadir dessa maré montante do racionalismo iluminista, cujo grande orgasmo foi a Revolução Francesa, da qual pretendia sair o homem novo, imaginado por Rousseau no seu Contrato Social.[27]
Esse processo ocorreu na Inglaterra, primeiro, com a Gloriosa Revolução de 1688, e depois na França, já no final do século XVIII. As semelhanças entre ambas as revoluções são grandes, no sentir de Guizot. As diferenças correm por conta da forma extremada em que, na França, ocorreu a revolução do livre exame, que terminou sendo encampada pelo democratismo rousseuniano, tendo dado ensejo a um modelo mais radical de absolutismo, o exercido pelo déspota em nome das massas.[28] Na Inglaterra, diversamente, a revolução do livre exame foi mais mitigada, coexistindo os anseios renovadores com a preservação da tradição monárquica, tendo sido todo o processo enquadrado na prática da representação de interesses, com a adoção da Monarquia Constitucional e Parlamentar. O autor que inspirou essa mudança nas Ilhas Britânicas foi John Locke[29]. A respeito desse complexo fenômeno escreve o historiador francês:
No século XVIII, eu teria dificuldade para dizer, em verdade, quais eram os fatos exteriores que o espírito humano respeitava, que exerciam sobre ele qualquer domínio. Ele se aborrecia com o estado social na sua totalidade e o menosprezava. Concluiu que estava chamado a reformar tudo, e chegou a se considerar a si próprio como uma espécie de criador. Instituições, opiniões, costumes, a sociedade e o homem mesmo, tudo apareceu como devendo ser refeito, e a razão humana encarregou-se da empreitada. (...) Eis o poder que, no decorrer do século XVIII, encontrou-se em face do que restava do reino de Luís XIV. (...) O fato dominante da revolução da Inglaterra, a luta do livre exame e da monarquia pura, deveria, também, eclodir na França. Sem dúvida que as diferenças eram grandes e deveriam se reproduzir nos resultados. Mas, no fundo, a situação geral era semelhante e o acontecimento definitivo possui o mesmo sentido.[30]
B – A crise da consciência européia.- Mas a passagem entre o predomínio do absolutismo iluminista (tipificado, na França, por Luís XIV) e o racionalismo encarnado pela sociedade não foi tranqüila. Paul Hazard com muita propriedade denominou essa transição de “a crise da consciência européia,”[31] ocorrida no período que se estende de 1680 até 1715. Nesse momento de crise, tudo foi posto em dúvida. Cada um, no seio da sociedade, atribuiu-se o direito de tudo submeter ao crivo da razão, sem que importassem as conseqüências. A propósito, frisa Hazard:
Então ocorreu uma crise na consciência européia; entre a Renascença, da qual ela procede diretamente e a Revolução francesa, que ela prepara, não há nada de mais importante na história das idéias. A uma civilização fundada sobre a idéia de dever, os deveres em relação a Deus, os deveres para com o príncipe, os “nouveaux philosophes” ensaiaram antepor uma civilização fundada sobre a idéia de direito: os direitos da consciência individual, os direitos da crítica, os direitos da razão, os direitos do homem e do cidadão.[32]
Os efeitos desse estado de espírito foram, em primeiro lugar, a morte das antigas tradições e das crenças recebidas dos antepassados; o agnosticismo em matéria religiosa; a quebra da autoridade dos antigos líderes e a sua derrubada, junto com as instituições que tinham sido erguidas em séculos de história; o triunfo do ceticismo em matéria filosófica, enfim, uma ruptura fundamental com o passado.
Era necessário – frisa a respeito Hazard – construir uma filosofia que renunciasse aos sonhos metafísicos, sempre enganadores, para estudar as aparências que as nossas frágeis mãos podem atingir, e que devem ser suficientes para nos satisfazer. Era necessário edificar uma política sem direito divino, uma religião sem mistério, uma moral sem dogmas. Era preciso forçar a ciência a não ser mais um simples jogo de espírito, mas decisivamente um poder capaz de submeter a natureza. Graças à ciência, seria conquistada, sem nenhuma dúvida, a felicidade. Reconquistado assim o mundo, o homem o organizaria em prol do seu bem-estar, de sua glória e da felicidade do futuro.[33]
Eric Voegelin (1901-1985) define como uma “revolta egofânica do Ocidente” (na trilha da gnose, repassada ao mundo moderno, no final da Idade Média, por Joaquim de Fiore), essa perda de abertura à transcendência, típica da modernidade, que encontra na Ilustração um dos seus pontos altos. Para Voegelin[34], o fracasso da maior parte das revoluções modernas, a Francesa, a Alemã e a Russa, (excetuada a Revolução Americana de 1776), decorre do fato de se terem inspirado nessa morte da transcendência apregoada pelos escritores e philosophes do período da crise da consciência européia.
C – Importância atribuída às viagens e conseqüente surgimento de um gênero literário utópico-heróico.- O período acima apontado de “crise da consciência européia” é muito rico em literatura de viagens. O fato de terem se integrado, nessa época, à economia e à cultura européias, as mais remotas regiões do Planeta, fez com que a imaginação acompanhasse tal epopéia. Ocorreu algo assim como o que acontece, hoje, com a literatura de viagens interplanetárias, que romanceia o esforço de conquista do Cosmo pelo homem.
Esse gênero literário novo possuía, na Ilustração, mais ou menos a mesma estrutura nas mais variadas obras. A fórmula era simples: no início contava-se a história de um manuscrito que foi transmitido ou encontrado de forma prodigiosa. O manuscrito narrava a história de um herói, que enfrentou perigos de toda índole, na maior parte das vezes tendo sido vítima de naufrágio, e que miraculosamente se salvava, chegando a uma terra incógnita, geralmente situada no hemisfério sul. A narrativa descrevia as riquezas e a civilização dessa nova terra, que reproduzia o esquema ideal das Utopias.
O verdadeiro jogo – frisa a respeito Hazard – consiste em se transportar a uma terra imaginária e em examinar o estado religioso, político e social do velho continente. Trata-se de mostrar que o Cristianismo, em geral, e o Catolicismo, em particular, são absurdos e bárbaros; que os governos, em geral, e a monarquia, em particular, são iníquos e detestáveis, que a sociedade deve ser refeita desde as suas raízes e na sua totalidade. Quando esta demonstração fica completa, o herói da viagem fictícia não tem mais o que fazer senão regressar à Europa para ali morrer.
Embaladas nesse novo estilo, foram postas em circulação, no período apontado, numerosas obras que ganharam a popularidade dos hodiernos best-sellers. As modalidades eram as mais variadas: narrativas, descrições, relatos, antologias curiosas, memórias de missionários em regiões longínquas, etc. O cidadão comum, que não saía da sua casa, viajava no grande mundo da imaginação, sentado no canto da sua sala aquecida pela pequena lareira. A literatura do extraordinário o seduzia, o homem comum tinha acesso aos grandes vôos da fantasia, nas asas dessa enorme torrente literária que tudo abarcava e que se projetava sobre o desconhecido dos novos mundos, tornando-os familiares.
Os narradores eram viajantes comuns, médicos, missionários, comerciantes, aventureiros. A própria produção filosófica não se furtava a esse clima do extraordinário. Descartes (1596-1650), de forma pioneira, ainda em tempos do classicismo, deu largada à sua sistemática reflexão em torno à razão, a partir de uma viagem ao interior de si mesmo, aventura que devia ser refeita por cada leitor, de acordo com o convite formulado pelo filósofo, no seu Discurso do Método.[35] Isso para não falar da obra de ficção por excelência da época, O Quixote de Cervantes, cuja narrativa estruturava-se, como era praxe, a partir da pressuposição do achado de um manuscrito de autor desconhecido (o misterioso Cide Hamete Benengeli), que o legou à posteridade, em árabe. O grande romancista espanhol teceu o seu relato com magistral ironia, de um lado agradando o leitor com as maravilhosas aventuras do seu herói e dos personagens que, aos poucos, iam sendo engolidos pela fantasia, mas, também, apresentando uma nova modalidade de herói moderno, ícone da Ilustração ibérica.[36]
O curioso é que essa literatura do maravilhoso projetava-se, também, sobre a vivência religiosa. Nunca antes se publicou tanto nesse terreno. Os grandes livreiros desse segmento editorial eram inicialmente os judeus, que montaram verdadeiras empresas que procuravam atender a todas as necessidades: as dos próprios judeus, ashkenazi ou sefarditas, e as dos cristãos. Os testemunhos dados pelos historiadores da comunidade judaica de Amsterdã (de finais do século XVII e começos do XVIII), mostram que a mencionada comunidade não só destacou-se nos trabalhos do comércio de cereais, mas também nos relativos à produção bibliográfica. Mas nessa empresa editorial, iniciada por judeus holandeses e portugueses, entraram também os editores cristãos. O historiador Henry Méchoulan escreve a respeito:
Judeus e não judeus iriam unir os seus esforços pelo amor de Deus e pelo lucro nas associações comerciais que excluíam toda e qualquer discriminação. Menasseh bem Israël, que tinha comparecido em 1634 à feira do livro de Fraknfurt, compreendeu a importância da demanda (editorial) na Polônia e, um ano mais tarde, associou-se a Johannes Jansonius que financiou a impressão de bíblias, de rituais e de saltérios para a Europa do leste. Um pouco mais tarde, dois comerciantes judeus alemães encomendaram-lhe 3000 Pentateucos com comentários de Rachi. Quando se tratava de edições em grandes tiragens, os investidores não judeus estavam sempre presentes. Foi assim que Arent Dirk Bos e Ameldonc financiaram a impressão de 4000 exemplares de uma edição vocalizada da Michna.[37]
Os intelectuais, outrossim, viajavam, como os aventureiros. O filósofo e o cientista não ficavam mais trancafiados nos seus gabinetes. As viagens constantes e os debates com os seus pares, constituíam duas atividades essenciais. Vê-se que a ciência já obrigava os que a praticavam, a uma das suas exigências básicas: o confronto das opiniões com a comunidade científica. A respeito, frisa Hazard:
Os sábios enriqueciam a sua ciência de cidade em cidade, como Antônio Conti, natural de Pádua, que viajou em 1713 a Paris e em 1715 a Londres, a fim de intervir na querela do cálculo infinitesimal; foi a Hannover para conferenciar com Leibniz e, de passagem pela Holanda, teve o cuidado de visitar Leuwenbroeck. Os filósofos viajavam, não certamente para ir meditar em paz numa sala aquecida, mas para conferir as curiosidades do mundo, tal como fizeram Locke e Leibniz. Os reis também viajavam. Cristina de Suécia morreu em Roma em 1689. E o Czar Pedro partiu para a Europa em 1696. [38]
Conseqüentemente, as obras publicadas revestiam esse caráter de best-sellers do gênero em voga, que não se prendia a um único estilo, mas que tinha como denominador comum dar notícia de algo maravilhoso ou atraente para o gosto do leitor. Vejamos alguns títulos: O gentil-homem estrangeiro viajante na França; Il buratino verídico, ou instruções gerais para quem viaja; Guia dos caminhos para ir por todas as províncias da Espanha França, Itália e Alemanha; A cidade e a República de Veneza; Descrição da cidade de Roma para uso dos estrangeiros; Guia para os estrangeiros desejosos de ver e entender as mais notáveis coisas da real cidade de Nápoles; Nova descrição do que de mais notável há na cidade de Paris; As delícias da Itália; Delícias e encantos da Dinamarca e da Noruega; Delícias da Grã Bretanha e da Irlanda; O Estado e as delícias da Suíça; As maravilhas da Europa. Até a filosofia pegou carona nesse gênero do efêmero, como diria, hoje, Gilles Lipovetsky.[39] Lembremos que um dos maiores pensadores da época escreveu livro intitulado Filosofia para princesas.[40] Com razão Paul Hazard define de forma muito ampla o estilo dessas obras, que são escritas tendo como pano de fundo o gosto pelas viagens e a feição, digamos turística, de apreender o mundo:
Gênero literário de fronteiras indecisas, cômodo porque podia tudo abarcar, tanto as dissertações eruditas, como os catálogos dos museus, ou as histórias de amor, a Viagem triunfava. Esse gênero poderia ser uma relação maçante, carregada de dados científicos, ou bem um estudo psicológico, ou também um puro romance, ou bem tudo isso ao mesmo tempo. Havia quem o criticava, e quem o louvava. Mas, tanto elogios quanto críticas mostravam, todos eles, o lugar importante que esse gênero tinha ganhado e de que forma não seria possível se afastar dele. O mesmo gosto que o fazia prosperar, favorecia, também, a indústria dos itinerários e das guias.[41]
A valorização do estranho e do maravilhoso implicou numa hieratização do bon sauvage. Via de regra, as mais afastadas culturas eram modelos de humanidade e civilização. Bastava que fossem desconhecidas e longínquas, sociedades inteiras eram endeusadas. Maometanos, budistas tibetanos e chineses eram considerados arquétipos de refinamento e de ética pública. De todas as culturas exóticas, talvez tenha sido a chinesa a mais valorizada, fato que levou um grande pensador, Leibniz (1646-1716), a deixar obra marcante que louvava o pensamento e as instituições do grande Império, os seus Escritos sobre a China.[42] Um viajante da época, Boulainvilliers, destacava o seguinte:
Os Chineses são privados da Revelação; eles conferem ao poder da matéria todos os efeitos que nós atribuímos à natureza espiritual, da qual eles rejeitam a existência e a possibilidade. Eles são cegos e, possivelmente, obstinados. Mas são assim depois de quatro ou cinco mil anos e a sua ignorância, ou teimosia, não privou ao seu estado político de nenhuma dessas maravilhosas vantagens destinadas aos homens razoáveis (...): comodidade, abundância, prática das artes necessárias, estudos, tranqüilidade, segurança. (...). É de se admirar que, dentre as grandes religiões da Humanidade, não haja nenhuma que, sem o auxílio da Revelação e rejeitando igualmente os maravilhosos sistemas e os fantasmas da superstição e do terror tenha podido, como (a Cultura Chinesa), oferecer um fundamento útil para a conduta dos homens, alicerçando tudo apenas sobre as bases do dever natural.[43] 
O gênero literário utópico heróico em ascensão tinha a sua utopia: as civilizações longínquas. E assinalava uma tarefa ao herói, o homem comum da Europa de fins do século XVII e começo do XVIII: destruir tudo o que lembrasse a civilização ocidental, considerada como a anti-utopia. Tarefa deveras trágica, pois deixaria sem chão um país, como a França, que na segunda metade do século XVIII faria as maiores mudanças sofridas por uma nação européia ao longo da sua história. Acerca desse quadro de destruição que se anunciava, assim escreve Paul Hazard:
O que impressiona nesses romances, é uma vontade continuada de destruir. Nenhuma tradição que não seja contestada, nenhuma idéia familiar que seja aceita, nenhuma autoridade que possa subsistir. São demolidas todas as instituições; tudo é contraditado à vontade. Velhos sábios aparecem oportunamente para substituir, com os seus sermões laicos, os ministros do culto; eles cantam as vantagens das repúblicas incorruptíveis e das oligarquias tolerantes, da paz que é obtida pela persuasão, da religião sem sacerdotes e sem igrejas, do trabalho suave que se converte em prazer. Eles pregam a sabedoria que reina nas suas terras, terras admiráveis que esqueceram a noção do pecado. Lá em cima, um salto de imaginação reconduz à aventura, uma obscenidade alegra por um instante o leitor; pelo menos, o autor pensa nisso. Logo a seguir, continua a mostrar como nossa vida cotidiana é fatigante, rasteira, não razoável, triste. E volta a pintar os dias felizes que se vivem nesse país que não existe. [44]
D – A crise da história enquanto disciplina.- Este aspecto é paradoxal. Pois se o que interessa é o novo, o maravilhoso, o que se passa alhures, bem poderíamos supor que se valorizasse, nessa época, a ciência histórica. Mas não acontece isso. A historiografia é simplesmente impossível. Porque os pressupostos das sociedades, situados no nevoeiro dos tempos, são inatingíveis. Não há uma idéia clara e distinta que nos permita fazer entender o que se passava nas cabeças dos nossos antepassados, e nas dos antepassados dos outros povos. A humanidade seria como uma assembléia de doidos, cada um contando de que forma vivem os seus fantasmas.
O Iluminismo simplesmente jogou pela janela o senso do histórico. O homem, na sua individualidade, é necessariamente passional, crédulo, mal instruído, negligente. Para fazer história, como dizia Fontenelle, seria necessário achar um ser humano que “tivesse sido expectador de todas as coisas, ao mesmo tempo que indiferente e dedicado.”[45] O historiador seria como o metafísico que, de posse de determinados fatos, elabora uma interpretação deles puramente teórica, sem condição de verificar a validade desse esquema conceitual, e sem que tenha certeza de que apreendeu os fatos como eles são. A conclusão que podemos tirar dessa situação é que
No profundo das consciências, a história entrou em falência, e o sentimento mesmo da historicidade tende a ser abolido. Se o passado é abandonado, é porque ele parece inconsistente, impossível de ser apreendido, e sempre falso. Perdeu-se a confiança naqueles que pretendiam conhece-lo. Eles, ou bem se equivocavam, ou bem mentiam. Houve como que um grande desabamento, depois do qual não se viu já mais nada de certo, senão o presente; e todas as miragens tiveram de refluir em direção ao futuro.[46]
No seio do Iluminismo surge, na segunda parte do século XVIII, uma tentativa de pôr ordem na irracionalidade da história, atrelando os fatos humanos a fatores inamovíveis, como as causas físicas que movimentam os astros. É a física de Newton aplicada aos fatos humanos, trabalho de que se desincumbe Laplace na sua obra intitulada Ensaio filosófico sobre as probabilidades, na qual propunha o seguinte: “Apliquemos às ciências morais e políticas o método fundado na observação e no cálculo, método que nos tem servido tão bem nas ciências naturais”.[47] Tocqueville, aliás, alertou para a perda do senso histórico, bem como para o esquecimento da dimensão humana, aspectos que se escondem por trás desse historicismo cientificista. A propósito, escreve:
Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam, pois, apenas atribuir a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo; ainda tiram aos próprios povos a faculdade de modificar a sua própria sorte e os submetem ora a uma providência inflexível, ora a uma espécie de cega fatalidade. Segundo eles, cada nação é invencivelmente ligada, pela sua posição, sua origem, seus antecedentes, sua natureza, a certo destino que nem todos os esforços poderiam modificar. Tornam as gerações solidárias umas das outras e, remontando assim, de época em época e de acontecimentos necessários em acontecimentos necessários, à origem do mundo, compõem uma cadeia cerrada e imensa, que envolve todo o gênero humano e o prende. Não lhes basta mostrar como se deram os fatos; comprazem-se, ainda, em mostrar que não podiam dar-se de outra forma. Consideram uma nação que chegou a certo ponto da sua história e afirmam que foi obrigada a seguir o caminho que a conduziu até ali. Isto é muito mais fácil que mostrar como teria podido fazer para seguir um melhor caminho.[48]
E – Valorização do princípio da experimentação e da sua conseqüência no plano da sensibilidade, o prazer.- Robert Darnton deixou um acabado estudo acerca da forma em que o corpo humano, no Iluminismo, entendido como máquina perfeitíssima inserida no grande mecanismo do cosmo, abria a porta para a busca do prazer, não na forma um tanto ingênua da descoberta do mesmo como eclosão primaveril da vida (como em Boccaccio, na Renascença), mas na versão investigativa de quem pode desmontar essa maravilhosa máquina, conhece-la nos seus mais escondidos parafusos, a fim de extrair dela o máximo de satisfação, algo perfeitamente calculável. Esse constituiria, no sentir de Darnton, o leitmotiv dos denominados por ele de “best-sellers proibidos da França pré-revolucionária”.[49]
Certamente encontraremos uma diferença bastante grande entre o frescor das Carmina Burana renascentistas e as anatômicas e nada poéticas abordagens do corpo humano numa obra típica do século XVIII, como o relato intitulado Thérèse philosophe, atribuída a um certo Jean-Baptiste de Boyer, marquês de Argens. A poesia erótica cede lugar à tentativa cartesiana de descrever a realidade apreendida à luz de um princípio que tudo explica, em função da estrutura das nossas máquinas corporais, pois, como diz o autor de Thérèse philosophe,
A disposição de nossos órgãos, o arranjo de nossas fibras, certo movimento de nossos fluidos – tudo determina o tipo de paixões que agem sobre nós, dirigindo nossa razão e nossa vontade nos menores e nos maiores atos que realizamos. Assim são formados os fanáticos, os sábios e os tolos.[50]
Busca constante do prazer, exposição minuciosa das molas corporais do mesmo, narrativa licenciosa que, por vezes, chega às raias do cabotinismo libertino e da pornografia, os autores que fazem sucesso nesse gênero são numerosos. Lembremos a obra do Marquês de Sade (1740-1814),[51] bem como a de outros escritores menos famosos, mas nem por isso menos lidos na sua época, como o visconde de Guillerages (1628-1685), aristocrata amigo de Racine e próximo a Luís XIV, Claude-Prosper Jolyot de Crébillon, conhecido como Crébillon Filho (1707-1777) e o barão Dominique Vivant Denon (1747-1825), que foi o primeiro diretor do Museu do Louvre.[52]
Destaquemos, para finalizar este item, que a literatura que deu vazamento a estas idéias era claramente subversiva para os padrões de moralidade do Estado Absolutista. Ela contribuiu à sua derrubada. Os controles oficiais, rigorosamente exercidos nos tempos de Luís XIV, com o avanço do século XVIII foram arrefecendo, pressionados pelos editores piratas, que se subtraiam à férula do absolutismo. A respeito, frisa Robert Darnton:
Dezenas de editoras surgiram junto às fronteiras francesas. Centenas de agentes atuaram num sistema clandestino para levar os livros aos leitores. Entretanto, essa vasta indústria desviou grande parte da riqueza do reino e ao mesmo tempo difundiu em seus domínios muitas idéias nada ortodoxas. Vendo-se incapaz de destruir a concorrência que ajudara a criar, a administração francesa inventou categorias para permitir a comercialização dos livros que não podiam receber um privilégio real, porém não atacavam a Igreja, o Estado ou a moralidade convencional. Em 1750, inspetores de livros distinguiram num espectro amplo variadas nuanças de legalidade que iam de privilèges a permissions tacites, permissions simples, permission de police e simples tolérances. Pouco a pouco, de maneira quase imperceptível, a legalidade descambou na ilegalidade. Entrementes, porém, uma literatura libertina florescera, minando todos os valores ortodoxos do Antigo Regime.[53]
A literatura pornográfica do século XVIII mantinha uma característica comum aos demais romances de aventuras: queria seduzir o leitor já a partir do título. O tempo urge, novas experiências estão a ser oferecidas ao público e o escritor que trata acerca de temas despudorados procura chamar a atenção dos seus fregueses – medida perfeita de marketing literário – carregando as tintas nos títulos das suas obras e ilustrando vivamente as capas. A respeito, escreve o estudioso Jean-Marie Goulemont: “O livro seduz pela sua capa, seu título, sua página de título, antes de enfeitiçar pela leitura”.[54] De fato, é só dar uma olhada em alguns títulos desse tipo de literatura, para chegar à conclusão de que os escritores de temas pornográficos tinham chegado a um vale-tudo para conquistar a atenção dos seus leitores. Eis uma pequena mostra: Vênus no claustro ou a religiosa de camisola (1746); Memórias de Suzon, irmã do porteiro dos cartuxos, escritas por ela mesma (1783); Minha conversão ou o libertino de qualidade (1783); A arte priápica, por um octogenário (1787); Ciência prática das mulheres da vida (1787); A Messalina francesa ou as noites da Duquesa de Pol... (1789); Vênus no cio ou vida de uma célebre libertina (1790); As crianças de Sodoma na Assembléia Nacional, ou deputados da ordem da Manchete (1790); Os repousos secretos ou as partes finas de vários deputados da Assembléia Nacional (1790); Os furores uterinos de Maria Antonieta, mulher de Luís XVI (1791), etc.
F – Pano de fundo cientificista.- O disperso tabuleiro de conhecimentos e de sensações, ensejado pela reação ao absolutismo a partir da crise da consciência européia, estava solidamente amarrado numa concepção determinística do homem e do cosmo, que terminaria dando lugar à concepção mecânica e matemática do universo humano, claramente presente em autores de finais do século XVIII como Condorcet.[55] Mas não se tratava, apenas, de uma visão abstrata e matemática do homem. Havia algo de mais perigoso: tudo foi colocado a serviço da procura incessante da felicidade geral, numa concepção sociológica que bania o dissenso, estabelecendo as bases da democracia de massas. Foi Rousseau quem, no seu Contrato Social, deitou as bases dessa nova filosofia política, concepção que recebeu o nome técnico de democratismo ou de democracia totalitária.[56]
O arrazoado roussoista era mais ou menos assim: a felicidade humana está fundamentada na unanimidade de opiniões e de crenças; logo deve ser banido, a qualquer preço, o dissenso. A melhor forma de banir o dissenso é o terror imposto pelos puros, no interior do Estado. O espírito geométrico, aliado à concepção unanimista da sociedade, triunfa definitivamente. A eclosão desse fenômeno deu-se na Revolução Francesa e no terror por ela desencadeado. A respeito, escreve Hazard:
O que impressiona, ainda, é o triunfo do espírito geométrico. Regular tudo com metro, ordena-lo tudo seguindo o número e a medida: esse desejo persegue os autores, persiste até nos seus sonhos e nas suas loucuras. Poderosa, inflexível, é assim essa tendência niveladora. Ela aplica-se a todas as manifestações da vida, mesmo à linguagem, que não deve ter nada de empírico, que deve ser totalmente racional (...).  Ruas regulares, grandes construções portadoras, todas elas, de uma mesma fachada: eis uma cidade bem construída. Jardins perfeitamente geométricos, onde as árvores são enfileiradas de acordo a se portam frutos mais ou menos úteis e agradáveis: que belos jardins! Tudo é ensaiado com os números. (...) Quando se está inebriado com esse espírito e o sujeito se depara com o concreto, vem o sofrimento. Ou, melhor, o concreto mesmo é submetido, de bom ou mau grau, a uma transformação geométrica (...). De todos os utopistas, aquele que mais pensou e pesquisou, Tyssot de Patot, autor de Voyages et aventures de Jacques Massé (1710), escreve nas suas Cartas: “Há tantos anos que viajo pelos caminhos amplos e luminosos da geometria, que enfrento, com pena, as sendas estreitas e obscuras da religião (...). Eu busco, sempre, a evidência ou a sua possibilidade”. São livros nos quais encontramos muitas bobagens, em meio a muitas quinquilharias. Neles aparecem idéias mal delineadas, mas violentas; sentimentos expostos desastradamente, mas poderosos. Eles prenunciam não somente Swift, Voltaire, Rousseau, mas também o espírito jacobino e Robespierre.[57]
II - Aspectos fundamentais do urbanismo francês nos séculos XVII e XVIII.
Utilizarei aqui o conceito de urbanismo em sentido lato, como a aplicação da razão no esforço em prol de tornar habitável a cidade, definida, fundamentalmente, na modernidade, como núcleo humano construído ao redor de um poder político e de um mercado.[58] Não me aterei, portanto, ao conceito estrito de urbanismo, cunhado no final do século XIX como “ciência da cidade”.
Três grandes idéias acompanharam, na França, o surgimento do urbanismo moderno: 1) as preocupações de ordem prática, 2) a estética urbana e 3) as relações entre urbanismo e política.
1)      As preocupações de ordem prática.
A principal delas consiste na recusa do gigantismo urbano. Os autores do período eram conscientes, como frisavam Delamare e Le Cler du Brillet no seu Traité de la police, de 1738, de que “é necessário (...) fixar a extensão ou o tamanho de uma cidade, para que ela não pereça pelo seu próprio peso”.[59] Destarte, o Rei procura, mediante medidas legais, impedir que Paris ultrapasse os 500 mil habitantes que possui no século XVIII. O controle sobre o crescimento urbano torna-se, no entanto, ineficiente. Em que pese a legislação que fixa pesadas multas àqueles que construírem além dos limites estabelecidos por Luís XIV,  no entanto, em 1670 são recenseadas aproximadamente 1300 casas construídas de forma irregular. Contudo, embora a legislação continue sendo desrespeitada, o poder central não esmorece na sua luta para fixar limites ao crescimento urbano. Em 1724 Luís XV formula importante “Declaração real”, que fixa os limites da cidade. Embora bem concebida (com relação aos textos legais anteriores), a ordem real não é respeitada, obrigando o governo a promulgar nova legislação restritiva. O crescimento da cidade é fruto, portanto, de duas forças: uma, centrífuga, que quer limitar a expansão urbana, centrando a vida da cidade ao redor do núcleo do poder. A segunda força que interage, centrípeta, é protagonizada pelos atores econômicos, que buscam a expansão dos seus negócios, alargando os limites estabelecidos pelo Rei. A propósito, frisa Jean-Louis Harouel:
O governo continua, portanto, fiel ao princípio de uma limitação de Paris, embora se resignando a um crescimento semi-clandestino da cidade, que ele ratifica entretanto pelo amplo traçado do cinturão dos Fermiers Généraux. [60]
A posição contrária ao crescimento urbano, adotada pela Monarquia, alicerça-se em razões que hoje denominaríamos de estratégicas. O gigantismo urbano é perigoso porque:
-                           Torna difícil o abastecimento de gêneros alimentícios, aumentando o preço das mercadorias.
-                           Dificulta a preservação da ordem pública e o bom funcionamento da administração.
-                           Complica as comunicações entre os bairros, ao aumentar a distância entre eles.
-                           Esvazia o centro da cidade, com a conseqüente depreciação dos imóveis públicos.
-                           Torna difícil a manutenção de um “cinturão verde” ao redor da cidade, que garanta a produção de frutas e legumes.
Mas, se o Rei quer impedir o crescimento descontrolado da cidade, é preocupação central sua, de outro lado, dotar a urbe de vias de comunicação amplas, que facilitem a circulação entre os vários bairros e as áreas centrais. Em 1607 Sully é nomeado por Henrique IV inspetor-chefe de vias, com a finalidade de fiscalizar o traçado das ruas, eliminando obstáculos e alargando-as. É de 1783 a declaração real que ordena que as ruas de Paris tenham, no mínimo, dez metros de largura. São construídas grandes avenidas que comunicam a periferia com o centro da cidade (tornando facilmente acessíveis bairros como os Inválidos ou da Escola Militar).
A essas razões de circulação das pessoas, a partir de 1740 junta-se outra de caráter sanitário: vias mais largas possibilitam a renovação do ar da cidade, necessário à saúde pública. A preocupação de Michel Etienne Turgot como Prêvot des Marchands é grande nesse sentido; lembremos que ele desempenha esse importante cargo entre 1729 e 1740, culminando a sua administração justamente no momento em que começam a ser levadas em consideração, na legislação, as razões ambientais. A legislação ulterior incorpora definitivamente essa preocupação. Os decretos reais de 1783 e 1784, relativos à fixação da largura das ruas e da altura das casas, visam precisamente a “possibilitar um ar mais salubre, facilitando sua circulação”.[61]
Igual preocupação ambiental acompanha, nesse período, à abertura de jardins. Tendo desaparecido muitos jardins medievais ao longo do século XVI, era necessário substitui-los por jardins públicos e passeios, aos quais vêm se somar jardins particulares abertos ao público. Datam dessa época os jardins das Tuileries, do Palácio Real, de Luxemburgo, bem como o Jardim do Rei (Jardim das Plantas). A moda dos passeios e dos jardins difunde-se, ao longo do século XVIII, até às pequenas cidades de província.
A preocupação com a circulação do ar é acompanhada, em meados do século XVIII, do cuidado para com o saneamento básico. É do Prêvot des Marchands, Turgot, em 1740, a primeira iniciativa a respeito, com a abertura da valeta de Ménilmontant. Essa obra deu início à construção da rede de esgoto parisiense, com o intuito de substituir as anti-higiênicas sarjetas que, desde a Idade Média, ocupavam o meio das ruas. Preocupação com o saneamento do meio-ambiente conduz à legislação que, a partir de meados do século XVIII, concentra os matadouros – outrora espalhados pela cidade – na Ilha dos Cisnes e centraliza os curtumes, que acompanhavam os matadouros, no subúrbio de Saint-Marcel.
Prisões e hospitais – considerados fontes de poluição do ar – devem ser situados na periferia da cidade, segundo as recomendações de administradores e higienistas. As realizações neste terreno ficam, no entanto aquém do esperado. No que tange aos cemitérios, as tendências urbanísticas do século XVIII visam ao estabelecimento de uma separação entre vivos e mortos, indo em contra da tradição medieval de pacífico (e anti-higiênico) convívio entre uns e outros. A propósito, frisa Jean-Louis Harouel:
Exíguos, sobrecarregados, mal-conservados, geralmente abertos ou mal fechados, o que possibilita que freqüentemente animais venham ali pastar e até cachorros e porcos desenterrem cadáveres, em alguns casos depósitos de imundícies, constituem uma área de lazer para as crianças, um local de encontro para os amantes, um espaço onde os tecelões secam as lãs ou mesmo uma verdadeira via de comunicação. O cemitério é propriedade, portanto, ao menos tanto de vivos quanto de mortos, o que aumenta, acredita-se, o risco de contaminação. [62]
Para fazer frente a essa realidade, o Rei proíbe, em 1776, os enterros dentro de igrejas e ordena a transferência dos cemitérios insalubres para a periferia da cidade. Essa determinação, no entanto, encontra séria oposição de parte da sociedade, acostumada ainda à velha praxe medieval de convívio entre vivos e mortos.
No que tange à infra-estrutura, deve-se destacar que, nos séculos XVII e XVIII, há um grande esforço de construção de igrejas, hospitais, edifícios públicos, albergues, intendências, mercados, casernas e particularmente teatros. Estes últimos constituem centros que animam a vida dos novos bairros. Em relação à arquitetura, prevalece o estilo denominado de “expressivo”, que liga a aparência do imóvel à sua função social. A propósito deste item, escreve Harouel:
Remonta ao século XVIII a idéia muito moderna de uma arquitetura expressiva, notadamente no que diz respeito aos edifícios públicos: a função de um imóvel deve ser expressa pela sua arquitetura. Essa preocupação é bastante visível nos principais edifícios parisienses da segunda metade do século XVIII: Monnaie, Escola de Medicina, Mercado de Cereais, Odéon.[63]
O abastecimento de água da cidade aperfeiçoa-se. No século XVII são instaladas duas bombas hidráulicas: a da Pont-Neuf (Samaritaine) e a da Pont Notre-Dame. Elas alimentam dois reservatórios, de onde é distribuída a água por carregadores. Em 1777, os irmãos Perrier instalam uma dezena de bombas a vapor. No início do século XIX é adotado o sistema de captação, com o desvio do rio Ourcq pelo engenheiro Bruyère, que executa plano do seu mestre Perronet.
As preocupações de ordem prática com as questões urbanísticas exigiam um elenco de servidores públicos, que ajudassem o Rei a manter a ordem urbana. Nas Províncias, esses funcionários eram basicamente três: o Inspetor-chefe de limpeza pública, o Diretor de Construções do Rei (que, no caso de Versailles, exercia as funções de Inspetor-chefe da cidade) e o Intendente do Rei (que era o ancestral do Prefeito). Já no caso de Paris, a administração urbana contava com os seguintes funcionários: Prefeito (cargo que era desempenhado pelo Prêvot des Marchands), Inspetor-chefe de limpeza pública, Diretor de Construções do Rei, Secretário de Finanças de Paris, Fermier Général (Secretário da Receita) e Tenente de Polícia (encarregado das questões de segurança).
Todo o conjunto de medidas práticas visando a tornar a cidade habitável, exigia, certamente, uma base legal. A Monarquia preocupou-se, ao longo dos séculos XVII e XVIII, com três aspectos essenciais da legislação urbana: circulação, segurança e estética. Quem aplica as leis emanadas do Conselho Real é a autoridade do serviço de limpeza pública, que é a instância governamental que concede licença para construir casas ou prédios. Em nome dessas três variáveis, a autoridade pode impedir construções que não se enquadrem dentro dessas exigências. Não é raro a autoridade do serviço de limpeza pública (bem como a do sistema viário) ordenar a demolição de imóveis mal-conservados ou que tenham sido construídos fora das determinações legais.
Duas exigências, que datam de início do século XVII, em Paris, visam garantir a segurança das construções, bem como o seu enquadramento nas exigências viárias e estéticas: é fixada a altura máxima dos prédios em 22,5 metros e, para obter a autorização para construir ou reformar, é decretada a obrigação de requerer à autoridade do serviço de limpeza pública, um alinhamento do imóvel em questão.
Em duas circunstâncias o Rei intervém diretamente – mediante o seu Diretor de Construções -, a fim de consolidar, num único decreto real, todas as exigências (de circulação, de segurança e estéticas) a serem cumpridas, num grande projeto que abarca a totalidade de uma cidade: em Versailles (onde o Monarca fixa as vias, a distribuição das casas e a sua estética, em harmonia com o Palácio Real) e em Rennes, em 1723, a fim de organizar a reconstrução da cidade. Em ambos os casos, em Versailles e em Rennes, o Conselho do Rei promulga decretos que regulamentam as exigências urbanísticas. Essa legislação, no sentir de Harouel,
Comporta uma regulamentação de urbanismo que especifica os materiais a serem utilizados, prevê subterrâneos com abóbadas, proíbe as saliências. Encontram-se, ainda, anexados ao decreto um plano de alinhamento e um desenho de fachada obrigatório em todas as ruas. O urbanismo regulamentado do Antigo Regime chega, portanto, neste caso preciso, a uma planificação urbana integral.[64]
O Direito das Operações de Urbanismo vai se consolidando aos poucos, na medida em que as necessidades o exigem. O órgão legiferante é o Conselho do Rei. Ao longo dos séculos XVII e XVIII vai surgindo, assim, a legislação urbanística. No caso específico da desapropriação para efetivação de obras públicas, um decreto do Conselho estabelece quais os terrenos ou imóveis que devem ser cedidos pelos proprietários; o decreto também fixa os procedimentos a serem postos em prática: o Intendente nomeia um perito, o proprietário outro e, no final, o funcionário fixa um valor intermediário, para proceder à correspondente indenização. Destarte, podemos concluir que reivindicações constantes num documento revolucionário como A Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão (na qual se reivindicava o direito à justa indenização), tinham raízes na legislação vigente no Antigo Regime. Os problemas ficavam por conta da crônica falta de dinheiro que a Monarquia enfrentava para pagar aos cidadãos pelas desapropriações feitas. Será necessário, neste ponto, esperar a Restauração e o saneamento na gestão das finanças públicas, para que o pagamento das indenizações se torne, de fato, prévio.
A política de desapropriações do Antigo Regime ancorava na teoria do “direito real universal”, que permitia ao Rei, “senhor de domínio eminente”, exercer a desapropriação mediante indenização. Os litígios nas operações de urbanismo são resolvidos pelo Intendente assistido por um Conselho de Intendência. O mencionado funcionário torna-se, aos poucos, o juiz de direito comum no que concerne às desapropriações. Podemos concluir afirmando que na França do século XVIII, o direito urbanístico constituía já uma parte do direito administrativo.[65]
2)      A estética urbana.
Segundo o clássico livro de Freminville, Dictionnaire ou traité de la police générale des villes, bourgs, paroisses et seigneuries de la campagne (Paris, 1758), “a beleza das cidades consiste principalmente no alinhamento das ruas”. [66] Este é um axioma do urbanismo clássico. O traçado urbano, para ser belo, deve obedecer a uma figura retangular. Mas os traçados em forma de estrela também são utilizados a partir do século XVIII. No terreno da arquitetura, prevalece a preocupação com a regularidade das fachadas, como na Place Vendôme. O essencial é a aparência, a fachada. Uma vez edificada esta, é vendida, podendo o comprador construir nos fundos como quiser, sem ter o direito de modificar a parte externa.
A cidade de Paris vai, aos poucos, se integrando à natureza. A respeito, escreve Harouel:
Esse movimento se esboça em Paris desde o século XVI, com a criação dos primeiros cais do Pont-Neuf, concluído em 1606. Assiste-se a uma verdadeira revolução em relação à cidade medieval, na qual ladeava-se ou atravessava-se o rio sem mesmo perceber sua existência: sobre as margens, sobre as pontes, o pedestre caminhava em uma rua como nas outras. A partir de então abre-se a cidade para o rio, e a realeza, em 1769 e, mais tarde, em 1786, ordena à municipalidade parisiense a demolição de todas as casas das pontes e margens. Mas esse trabalho está longe de ser concluído em 1789.[67]
O contato com a natureza dá-se, também, com a abertura de passeios, ali onde as velhas muralhas foram demolidas.[68] Esse processo de demolição das muralhas medievais ocorre ao longo do reinado de Luís XIV e acelera-se no decorrer do século XVIII. A explicação é simples: o Estado nacional já foi devidamente consolidado. A segurança não depende mais de muralhas nas cidades, mas de uma política externa habilidosa, em que os interesses da França são respeitados, em decorrência de tratados assinados com os soberanos estrangeiros, estreitamente vigiados pelos exércitos do Rei francês. Luís XIV consolidou, assim, uma estratégia de demarcação de fronteiras e de respeito a elas, reforçando a idéia de soberania nacional. Este aspecto entrará definitivamente na cultura política da França. O alargamento de fronteiras, ocorrido após a Revolução de 1789, com as guerras napoleônicas, alicerçar-se-á sobre essa concepção de estratégia moderna. O que Napoleão pretendeu fazer foi garantir a segurança das fronteiras da França, mediante uma série de alianças com os principados estrangeiros, que garantia a supremacia do país no cenário europeu. A idéia napoleônica do “bloco continental” confirmava, não negava, a estratégia de soberania formulada por Luís XIV.
3)      As relações entre urbanismo e política.
As praças reais são, nos séculos XVII e XVIII, os espaços urbanos onde se torna visível a presença do soberano e o culto a ele devotado pelos seus súditos. Elas são uma criação do urbanismo francês, a partir da união de dois elementos que os urbanistas italianos utilizavam separadamente: a praça programada e a estátua do soberano. Vale a pena mencionar as mais importantes praças, algumas das quais encontraremos destacadas no Plano de Turgot, como terei oportunidade de mostrar mais adiante. Eis as principais delas:
-                           Place Dauphine: ela é triangular e encontra-se situada na ponta da Ilha da Cidade, em ligação com o Pont-Neuf. Foi construída por Henrique IV, no início do século XVII. A praça foi reformada por Maria de Médicis, que em 1605 ofereceu a Paris uma estátua eqüestre do marido, erigida sobre o terrapleno do Pont-Neuf, diante da entrada da praça. Destinada inicialmente aos cambistas, parece que os construtores inspiraram-se na antiga Place de Change, que era também triangular e cercada por arcadas, e se encontrava na cidade de Metz, capital do banco judeu. Em relação ao significado desta obra no contexto da monarquia absoluta, frisa Harouel:
É à idéia de uma italiana que se deve a primeira estátua eqüestre de Paris. Mas o resultado é o nascimento de um elemento urbano tipicamente francês, a praça real, conjugação da praça programada e da estátua. É o reflexo urbanístico da monarquia absoluta, então em plena ascensão. Aliás, Richelieu não se engana e faz erigir uma estátua eqüestre de Luís XIII no centro da praça real de Henrique IV.[69]
-                           Place Royale (ou des Vosges): criada por Henrique IV, no início do século XVII. De forma quadrada, parece que os construtores inspiraram-se nas praças italianas e nas cidades novas do Leste da França, como Vitry-le-François. As duas praças mencionadas (Dauphine e des Vosges) são, em sentido estrito, segundo os historiadores do urbanismo, as precursoras das Places Royales.
-                            Place des Victoires: realizada no século XVII por Mansart para honrar Luís XIV. Trata-se de um “sublime servilismo” do marechal La Feuillade e consiste numa capela do culto ao absolutismo, ao ar livre. No centro do espaço ocupado pela praça há uma estátua eqüestre do soberano, iluminada dia e noite por quatro grandes faróis de navegação.
-                            Place Vendôme ou Place Louis le Grand: Construída num momento em que a estrela de Luís XIV começava a se apagar, já no final do seu reinado (entre 1685 e 1699). Antes deste momento, contudo, ao ensejo dos triunfos do monarca absoluto, cidades e assembléias, pela França afora, solicitam, ao soberano, permissão para erigir praças em seu nome. No entanto, as derrotas militares da segunda metade do reinado de Luís XIV retardam essas iniciativas. Apenas em 1713 é criada a Praça Real de Lyon, em 1718 a de Montpellier e em 1726 a de Rennes.
O período em apreço viu surgirem, posteriormente a Luís XIV, algumas Places Royales em homenagem a Luís XV. Tais são, por exemplo, a Place de la Concorde, em Paris, bem como, na Província, a segunda Place Royale de Rennes e as que se encontravam situadas nas cidades de Valenciennes, Nancy e Reims. Simbolizando as desgraças da monarquia, já no final do século XVIII, vale recordar que as Places Royales projetadas em homenagem a Luís XVI ficaram só no esboço, com exceção da situada na cidade de Nantes, que jamais chegou a receber, no entanto, a estátua real. Valha, também, anotar que o modelo das Places Royales atingiu outros países pela Europa afora, como o testemunham as praças reais de Bruxelas, Copenhague e Lisboa.
Figura central das Places Royales é a estátua do Soberano, cuja atitude vai evoluindo desde o triunfalismo do Monarca guerreiro e conquistador - à la Luís XIV -, e chegando à etapa mais tranqüila do Rei pacificador – Luís XV –. Eis a avaliação feita por Bachaumont, em 1752, acerca das estátuas reais: 
Elas são uma maneira de exaltar o fervor monárquico. Até a metade do século XVIII, aproximadamente as estátuas das praças reais apresentam um príncipe guerreiro e vitorioso enquanto que as esculturas do pedestal evocam os triunfos militares do reino. Mas a partir de 1750 as vozes se exaltam para pedir uma estátua do rei em pé ou sentado tranqüilamente... pacificador e reproduzindo nele a Paz, a Abundância, as Ciências e as Belas-Artes.[70]
Certamente a Place Royale, incluindo a estátua do Monarca, é o cartão de visita da Paris da Ilustração. Cartão de visita que vai mudando conforme o espírito da época: agressivo e solene, seguindo as pegadas do modelo absolutista com Luís XIV, portador de boas-novas no terreno da riqueza, com o espírito burguês predominando no reinado de Luís XV e quase tirando o Monarca de cena, com o ambiente pré-revolucionário, em que o que mais aparece é a Nação. Eis a bela síntese feita, a respeito, por Jean-Louis Harouel:
Uma vez que as praças reais contribuem para a manutenção da fidelidade ao monarca, elas tendem a reforçar a unidade do reino.  Na verdade, o rei é, em princípio, a única ligação entre as diversas províncias. A nação francesa é, em grande medida, o fruto dos esforços da monarquia: segundo o direito público do Antigo Regime, ela encarna-se na pessoa do soberano. Dito isto, à medida que se avança no século XVIII, é possível perguntar-se sobre a eficácia política das praças reais. Com efeito, a elite urbana à qual elas são particularmente destinadas encontra-se, a partir de então, sob a influência do espírito das Luzes e das sociedades intelectualizadas e, em decorrência disso, não possui mais o fervor real das classes populares. Ainda, no espírito dos elementos esclarecidos da sociedade, as estátuas das praças reais não são dedicadas ao verdadeiro rei, muito cristão, descendente de São Luís, mas ao déspota esclarecido que se desejaria que fosse, bem mais autoritário, colocando todo seu poder a serviço do racionalismo, do direito natural laico e das teorias dos filósofos. Quanto aos projetos das praças Luís XVI, muitos parecem vazios de todo fervor real e portadores somente de uma ideologia geralmente vaga. Em suma, quanto mais se aproxima o final do século XVIII, mais o gênero urbanístico da praça real veicula abstrações antinômicas ao sistema político e ao direito público em vigor. Atrás da praça real esboça-se, cada vez mais, a praça da Nação.[71]
As Places Royales simbolizavam a supremacia do Rei, tanto no plano absolutista do século XVII, quanto do ponto de vista do importante papel que a Monarquia desempenhou no século seguinte, como caixa de ressonância dos anseios da população, em que pese o malogro do reinado de Luís XVI, malogro paradoxal, uma vez que, como lembrava Tocqueville em O Antigo Regime e a Revolução, foi deposto justamente o soberano que decidiu responder melhor às pressões populares. A respeito, escrevia o pensador francês:
O rei continuava a falar como quem manda, mas obedecia, na realidade, a uma opinião pública, que o inspirava ou arrastava diariamente e que consultava, temia e lisonjeava constantemente: absoluto quanto à letra da lei, limitado pela sua prática. Já em 1784, num documento público, Necker mostrava como um fato incontestado que “a maioria dos estrangeiros encontra dificuldades em visualizar a autoridade exercida hoje, na França, pela opinião pública e compreender qual é esta potência invisível que comanda em tudo, até no palácio do rei. Entretanto, é assim que as coisas acontecem”.[72]
Mas, se as Places Royales simbolizavam o poder da Monarquia absoluta, com o alargamento das fronteiras do Reino sob Luís XIV, assiste-se, na França, no final do século XVII e no início da seguinte centúria, a uma reformulação da estratégia de defesa: visa-se a defender, já não só a cidade de Paris, mas o território nacional, onde o Soberano exerce o seu poder. Assim, a partir de Luís XIV, e com maior ênfase no reinado do seu sucessor, as antigas muralhas de Paris desaparecem, mas surgem, em compensação, portos de guerra e lugares fortificados que garantem, de um lado, a tranqüila circulação das mercadorias e, de outro, a submissão à França das regiões conquistadas.
A idéia de defesa alarga-se à dimensão do Estado nacional. Paralelamente, mediante a incorporação de nova tecnologia guerreira, notadamente no terreno da infantaria, os exércitos do Rei modernizam-se, de forma a atender rapidamente aos requerimentos da segurança do país. Richelieu, já no final do reinado de Luís XIII, fixou o número de efetivos do Exército Francês em cem mil homens, tendo-se este tornado, assim, a maior força da Europa.[73] A organização definitiva do Exército, com uma estrutura hierárquica e disciplinada foi obra de Louvois, em 1689. Esse trabalho será completado no século seguinte; efetivamente, em 1761 Choiseul reorganiza o Exército, que passa a contar com a artilharia modernizada por Gribeauval. (Bonaparte tirará dessa estrutura grande vantagem, no Consulado, em finais do século XVIII, e no Império, a partir de 1805). Eis as principais realizações do reino de Luís XIV, em matéria de construções defensivas:
-                           Construção, por Colbert, de dois portos fortificados: Rochefort e Brest.
-                           Criação das cidades-fortalezas de Huningue, Sarrelouis, Longwy, Montdauphin, Neubrisach e Mont-Louis, a partir dos planos estratégicos de Vauban.
-                           Fundação, por Colbert, do porto comercial de Lorient, na desembocadura do canal de Deux-Mers. Lembremos que, sob Luís XIII, Richelieu já tinha ordenado a construção do entreposto comercial de Port-Louis.
-                           Construção, na segunda metade do século XVII, por ordem de Luís XIV, da cidade de Versailles, inaugurando o modelo de cidade-principesca. O plano de construção foi organizado a partir de três avenidas, Saint-Claud, Paris e Sceaux, a fim de fazer da cidade um prolongamento do Castelo real e do seu parque.
-                           Construção, no início do século XVIII, de Port-Vendres, sob a direção do marechal de Mailly, comandante-em-chefe do Rousillon. 
III - Análise do Plano de Turgot, de 1739.
O Plano de Paris a vôo de pássaro, ordenado por Turgot em 1734 teve vários desenhistas. O primeiro foi – como já destaquei no início deste ensaio - Louis Bretez, que trabalhou na elaboração do Plano entre janeiro de 1734 e 1738, ano em que faleceu. Bretez, por sua vez, foi auxiliado por um desenhista de nome Saury. O desenhista falecido foi substituído imediatamente por um gravador de topografia muito conhecido, Antoine Coquart, que passou a ser auxiliado por um outro gravador, Claude Lucas. Segundo informa a inscrição que aparece na capa do Plano, a obra foi terminada em 1739. Tanto Bretez como os outros desenhistas tiveram total apoio da Prefeitura de Paris para procederem à elaboração do levantamento dos prédios e monumentos que deveriam constar no Plano. Foram munidos, pelo preboste Turgot, de um passaporte especial, a fim de que pudessem entrar em qualquer domicílio, convento, centro de estudos, casa de comércio ou repartição pública, a fim de fazerem os esboços que deveriam servir de base para o desenho final da obra.
As dimensões do Plano eram: 7 pés de altura por 10 de largo (ou seja, aproximadamente 2 metros por 3).  Constava de 20 pranchas ornadas, na capa, com uma figura alegórica da cidade de Paris. A primeira edição do Plano (que ficou completa em 1740) constava de 550 exemplares em formato de luxo, 472 exemplares em formato de semiluxo e 684 exemplares em formato simples. Ao todo, portanto, a primeira edição foi de 1706 exemplares. Como destaquei na introdução a este trabalho, o Plano na sua edição de luxo foi distribuído entre as grandes cortes européias, bem como entre as mais importantes monarquias de outros Continentes (como a turca e a chinesa). Foi igualmente distribuído na França com certa liberalidade. Sabe-se, por exemplo, que os 85 membros da Academia de Pintura e Escultura receberam exemplares da obra, na edição de semiluxo.
Entre a Renascença e o final do século XVIII, foram elaborados onze grandes planos de Paris.[74] Eis a enumeração deles:
-                           O mais antigo foi o denominado Plano da Tapisserie (elaborado em 1570) e, que como já frisei, foi comprado em julho de 1737 por ordem de Turgot, para a Prefeitura de Paris.
-                           O Plano de Paris, desenhado por Antoine Coquart para o Traité de Police, de Nicolas de la Mare (1705).
-                           O Plano de Paris, desenhado por Antoine Coquart para a Histoire de Paris de Félibien e Lobineau (1725).
-                           O Grande Plano de Paris, elaborado por Roussel entre 1729 e 1730.
-                           Os Quatro Planos Geométricos de Paris, elaborados pelo abbé Delagrive, que se tornaria o geógrafo da cidade (1728).
-                           O Plano Turgot/Bretez, (1734-1739).
-                           O Plano de Paris e os seus subúrbios, elaborado por Claude Lucas e Antoine Coquard para Bernard Jaillot (1748).
-                           O Plano de Paris, de Deharme (1763).
-                           O Plano de Paris, que foi publicado por Bernard Jaillot na sua obra Recherches critiques, historiques et topographiques sur la Ville de Paris (1772-1775)
-                           O Plano da Cidade, mandado elaborar pelo arquiteto Edne Verniquet, Comissário de la Voirie (1775).
-                           O Plano dos Artistas, elaborado, em 1793, por antigos membros da Academia Real de Arquitetura e que terminou inspirando boa parte das reformas feitas na cidade, no início do século XIX.
Dentre todos eles, o Plano Turgot/Bretez sobressai pela dimensão humana que o caracteriza. É, como já frisei, um “plano a vôo de pássaro”, feito do ponto de vista não do Estado absolutista, mas levando em consideração a perspectiva do cidadão. Nesse sentido, o Plano em questão exprime, de forma muito clara, os valores que passavam a imperar nessa quadra da Ilustração Francesa. O Estado absolutista abria a porta para a encarnação, na Sociedade, da Razão iluminista. O texto do contrato assinado pelo preboste Turgot com Bretez, em 17 de janeiro de 1734, deixa claro esse espírito de predominância dos interesses dos cidadãos, por sobre os interesses exclusivos da Monarquia. Eis o teor do mencionado contrato:
Nós (...) da Repartição da Cidade [Le bureau de Ville], levando em consideração que os diferentes Planos que, até o presente, têm sido feitos acerca do crescimento desta capital do reino, acompanhando as suas diversas mudanças e acréscimos, em que pese o fato de terem sido exatos nas suas perspectivas e justos nas suas medidas, não são capazes, contudo, de satisfazer a curiosidade dos súditos do Rei e dos estrangeiros, que, para aqui chegar, precisariam de que a cidade fosse representada levando em consideração a perspectiva e o relevo, e com essa regularidade que torna possível reconhecer, de forma individualizada, os edifícios e os monumentos públicos e, ainda, aqueles prédios que, postos a serviço de muitos cidadãos, lembram a memória dos grandes mestres da arquitetura. Enfim, estamos convencidos de que, ora os monumentos sejam considerados separadamente, ora olhados como integrando um único conjunto na sua espécie, temos realizado um dever (...) ao chamar à nossa presença o senhor Louis Bretez, com quem pactuamos o seguinte: ele entregará em dezembro de 1735 (...) um plano desenhado, de forma acabada, à mão, e gravado sobre pergaminho fino (...), representando, em perspectiva e a vôo de pássaro, tanto esta vila de Paris, quanto os subúrbios dela, onde serão identificados todas as igrejas, edifícios, praças, hotéis e mansões particulares, bem e claramente definidos.[75]
A data de entrega do Plano à Prefeitura de Paris foi, como se pode observar do exposto nas páginas anteriores, alterada pelo preboste para 1739. Dezembro de 1735 era uma data muito próxima! Já nos tempos em que foi publicado, o Plano de Turgot suscitou muitos debates, movidos principalmente pelos que achavam que não era suficientemente “geométrico”. Mas a posição que prevaleceu na época foi, em geral, positiva, mesmo reconhecendo as licenças geométricas adotadas. Justamente em virtude de se tratar de um mapa que dava conta dos prédios, tornando-os visíveis, o seu valor como preservador da memória arquitetônica foi reconhecido desde os primórdios. Um autor como Auguste de Mauperché, por exemplo, no seu conhecido livro Paris ancien, Paris moderne, publicado em 1814, escrevia:
O Plano (...) converteu-se em documento muito útil depois que os revolucionários destruíram um tão grande número de templos do Eterno, dos quais ele tem preservado para nós as representações exteriores, de forma que, tomando-o como guia, o desenhista pode, ainda, reproduzi-los. Este Plano terminará por ser de um valor extraordinário quando o mestre dos mestres (o Tempo) tenha feito desaparecer o resto das magníficas construções com as que Paris estava engalanado antes de 1789.[76]
O Plano de Turgot certamente congelou, para a posteridade, uma urbe que seria profundamente alterada na sua aparência no final do século XVIII. Outras cidades européias foram violentamente modificadas, antes de Paris, em virtude de desastres naturais ou provocados acidentalmente pela mão do homem. Tal foi o caso, por exemplo, de Londres, no incêndio que consumiu boa parte da cidade antiga em 1666, ou de Lisboa, arrasada pelo terremoto de 1755. Mas a cidade de Paris foi destruída sistematicamente na Revolução de 1789, que varreu de cena tudo aquilo que lembrasse o Antigo Regime. A respeito do valor historiográfico do Plano de Turgot, frisa Laure Beaumont-Maillet:
É um documento inapreciável para a história da arquitetura parisiense do final do século XVIII. Apresenta-nos, efetivamente, todos os monumentos da capital e ainda o desenho dos jardins, com uma certa garantia de exatidão, pois Bretez fez visitas in loco graças à autorização que lhe tinha sido concedida. Este Plano possui o inconveniente de ter sido desenhado muito rapidamente; mas, pelo menos, esta rapidez na sua execução permite-lhe dar uma imagem muito homogênea da capital nos anos 1734-1736. (...). A imagem que o Plano de Turgot oferece de Paris apresenta muito interesse para o não especialista e fornece muitas informações ao historiador e ao arqueólogo. Reproduz muitos prédios ignorados pelos artistas, ou que, em virtude do destino, simplesmente não deixaram nenhum traço iconográfico. Tal é o caso, por exemplo, da Igreja dos Teatinos, bem como de muitas construções conventuais de infinidade de comunidades religiosas, mesmo de alguma importância.[77]
1)      Perspectiva e técnica do Plano de Turgot/Bretez.
O Plano de Turgot foi impresso com uma inscrição ritual que lembrava todos os burocratas da Corte direta ou indiretamente relacionados com o projeto. A parte intitulada “Observations” apresentava algumas informações importantes quanto ao ponto de vista estético que prevaleceu, relativizando os rígidos padrões geométricos então imperantes. Eis o texto das mencionadas “Observations”:
Foi decidido, ao mandar gravar este plano da Cidade de Paris, fazer ver de um só golpe de vista todos os edifícios e todas as ruas que ela comporta, o que não poderia ter sido executado senão tomando algumas licenças que as regras austeras da geometria e da perspectiva condenam. Mas, sem essas licenças, teria sumido uma parte dos objetos mais interessantes, que se encontrariam escondidos por outros, ou totalmente desfigurados. Alguns dos faubourgs entraram só em parte neste plano, que teria se convertido em algo muito extenso se se pretendesse fazê-los aparecer por inteiro. Em que pese o fato de ter se pretendido dar com esta obra uma justa visão desta cidade, não nos gabamos de tê-lo conseguido com perfeição, não sendo possível dar conta, ao mesmo tempo, do tamanho imenso desta capital, bem como da magnificência de todas as partes que a compõem.[78]
O Plano encomendado pelo preboste Turgot inovava, pois, do ângulo técnico. Os Planos realizados anteriormente por Roussel e o abbé Delagrive tinham adotado uma rigorosa perspectiva geométrica, segundo o costume da época. Para os trabalhos de planejamento de vias e demais obras públicas esta era, certamente, mais apropriada. Mas o Plano de Turgot visava, como foi dito acima, servir aos cidadãos e aos estrangeiros que visitavam a cidade. Tratava-se, mais, de um Plano geral, com vistas a orientar os viajantes, ou aqueles que gostariam de se situar em algum ponto da cidade. A técnica utilizada foi, por isso, inovadora, e definida como “perspective à la cavalière, sans point de vue ni point de distance” (perspectiva cavaleira, ou projeção oblíqua, própria de quem observa a cidade como se pairasse por cima dela num cavalo alado, sem ponto de vista nem ponto de distância).  Trata-se, certamente, de uma completa dessacralização da urbe, a serviço da visão particular do observador. O Iluminismo estético cumpria assim a sua função. Já não se trata mais de manter a ordem geométrica perfeita do classicismo, a serviço de um poder absoluto, inamovível. Trata-se de esmiuçar a cidade, nos seus vários ângulos e esconderijos, em função de uma finalidade eminentemente prática: servir ao viajante e ao cidadão que transita por ruas e avenidas, a fim de saber onde está.
Justamente pelo fato de o Plano Turgot ser inovador, adotando o gênero que hoje denominamos de “fotografia aérea”, era preciso que o desenhista fosse uma figura de prol das técnicas da perspectiva: para nega-las era necessário conhece-las a fundo. Foi o que o preboste previu ao escolher Louis Bretez, autor, aliás, do mais importante manual de perspectiva do século XVIII, publicado em 1706 e reeditado em 1751 com o seguinte título: La perspective practique de l’architecture contenant par leçons une manière nouvelle, courte et aisée pour représenter em perspective les ordonnances d’architecture et les places fortifiées, ouvrage très utile aux peintres, architectes, ingénieurs et autres dessinateurs.[79]
A respeito dessa novidade técnica, escreve Laure Beaumont-Maillet:
A escala dos objetos ali é constante; não poderia ser de outra forma, pois sem isso o plano teria se convertido em algo incompreensível. Se as ruas não fossem três ou quatro vezes mais largas do que na realidade, os tetos das casas as ocultariam completamente. A perspectiva é disposta de tal forma que cada prédio, cada ilhota de casas é vista em três quartas partes. O lado que olha para o oeste apresenta-se um pouco mais de frente, o que olha para o norte apresenta-se um pouco mais de perfil. O autor, efetivamente, derrogou o uso geralmente estabelecido, de orientar os mapas segundo o meridiano, pois querendo dar de Paris uma imagem em elevação, deveu escolher um meio que permitisse observar de frente os portais das igrejas, a maior parte dos quais orientados, de fato, para o Ocidente. O noroeste da capital está situado na parte baixa do plano.[80]
2)      La vie parisienne.
Paris, no século XVIII, vira uma festa que se prolonga pelo século seguinte, em que pese às desgraças da Revolução de 1789 e do Terror jacobino. Testemunho da festa parisiense é dado pelo jovem general Bonaparte, que, em carta ao seu irmão José, escreve o seguinte, em 1795: 
Tudo está tranqüilo (...). Este grande povo entrega-se ao prazer: as danças, os espetáculos e as mulheres que aqui são as mais belas do mundo tornam-se a grande preocupação. A abastança, o luxo, o bom tom, tudo voltou: não se recorda mais o terror senão como um sonho (...) Vive-se aqui muito bem, com muita preocupação de alegria; dir-se-ia que cada um procura descontar o tempo de sofrimento e que a incerteza do futuro leva a nada poupar dos prazeres do presente (...).  Esta cidade é sempre a mesma: tudo para o prazer, para as mulheres, os espetáculos, os bailes, os passeios, os ateliês dos artistas.[81]
A grande rival de Napoleão, Madame de Staël (1766-1817) considerava que não se podia ser plenamente feliz senão em Paris. A capital da França, frisava a notável escritora, “reunia tanto homens ilustres da Inglaterra quanto homens inteligentes da França. (...) A permanência em Paris tem-me parecido sempre a mais agradável de todas” [82]. Nessa bela cidade podia-se dar liberdade criativa à imaginação, no campo das artes, como desfrutar de todos os prazeres mundanos e participar das mais agradáveis e ilustradas conversas nos salões. Paris, segundo Madame de Staël, iluminava ao resto do mundo. Daí por que sofreu tanto quando Napoleão a condenou ao exílio.
Se esta era a situação do final do século, na época do preboste Turgot a cidade ainda é uma grande mistura de idade média e de modernidade, sem que isso queira dizer que a capital francesa não possa ostentar já, em 1740, o título de “cidade luz da Europa”. Mas os contrastes são evidentes. Prevalecem, nos subúrbios e nas áreas populares próximas ao centro, aglomerações humanas como as das cidades medievais. Arlete Farge escreve a respeito, traçando um quadro fiel dessas verdadeiras cabeças-de-porco que constituíam a maior parte das habitações:
O imóvel do mercado dos Quinze-Vingts, situado na paróquia de São Roque, assemelha-se a todos os outros imóveis parisienses: entulhado de lojas, de ateliês, cortado por ruelas e passagens, cheio de alojamentos e dormitórios sob os tetos, exibe seus esconderijos e suas entradas, não permite quase o refúgio, mas garante sempre o descanso e uma soneca, tirados sem conforto e quase sem privacidade. Formigueiro geralmente úmido abriga uma população que o ocupa de alto a baixo, sem deixar vazios e aproveitando o menor espaço. Posto que os muros transpiram água, no térreo, a viúva Cochard zela pelo seu bacalhau e a Rambure decidiu organizar um posto de vendas de endívias e de ervas. O mercado está na praça para vender, a cada manhã, algumas reservas acumuladas. Os balcões dos açougues deixam pouco espaço aos operários e aos ajudantes que, uma vez terminado o trabalho, dormem sobre estrados de madeira. Na ultima sala que dá sobre o pátio, uma cozinheira assa alguns perus até o amanhecer, a fim de tê-los prontos na parte da manhã. Janelas abertas, o marceneiro chama ao trabalho os seus dois ajudantes que, fazendo algazarra, aliviam os bolsos dos clientes, assim como os rapazes da frente. Mais abaixo, a Simone tem um pequeno alojamento: vendedora de alimentos cozidos, compra durante o dia sobras de comida, pratos deixados pelos ricos, e os conserva em grandes tijelas, antes de dispô-los sobre o seu balcão de mercado. Balcão cuja localização ela defende com furor, tão bem situado está, sendo por isso muito disputado; ela deve mesmo preserva-lo aos pontapés e socos, desferidos contra os pequenos vendedores que acordaram mais cedo do que ela. A porta do seu quarto dá para um reduto sem janelas, onde moram um cocheiro e a sua mulher lavadeira. Nesse imóvel moram muitas lavadeiras: o cheiro do linho sujo mal se distingue do proveniente das águas do Sena, trazidas a cada dia pelos carregadores d’água. É necessário encher os reservatórios dos andares. Por entre duas portas entreabertas na sobreloja, escapam panos de linho que tentam secar apesar da umidade. Abaixo, na entrada da loja da vendedora d’ervas, fardos de roupas esperam para ser entregues à tarde aos clientes. O vapor d’água tudo molha e deixa opacas as janelas e derrapantes os degraus das escadas. Na sobreloja, os eflúvios dos perus assados misturam-se aos provenientes das águas estancadas e fétidas. Pelo menos esses eflúvios devem ser menos ásperos do que os provenientes do bacalhau seco.[83]
Esse quadro de precariedade habitacional é completado com a descrição da população nas ruas. “Há, muitos mendigos em Paris – queixava-se um viajante da época – célebres nas artes da adulação para tirar dinheiro aos pedestres, especialmente às mulheres”.[84]  A população, certamente, tem muito de rude, abrigando personagens que na Espanha do mesmo período eram chamados de pícaros, ou seja, aqueles que, para conseguir alguns trocados, fazem qualquer negócio, algo assim como o quadro (líder da TV popular brasileira), batizado com o sugestivo nome de: “Se Vira nos Trinta”, do apresentador dominical Faustão. A pobreza aparece aqui e acolá, rivalizando com o engenho do povão. Nas ruas, ao caminhar, o pedestre precisa ter cuidado com a sujeira das valetas e, também, com a que pode vir de cima, como quando alguém grita “garde d’eau!” e despeja, sem maior cerimônia, o conteúdo do urinol pela janela.[85] Mendicidade, nanismo e jeitinho são como que três marcas registradas da geografia humana parisiense, numa época em que a dieta alimentar não era das melhores. A propósito desse quadro humano, escrevia Laurence Sterne:
Aquilo que me abalou (...) foi a inexplicável brincadeira praticada pela natureza ao produzir tamanha quantidade de anões. Sem dúvida, em certas ocasiões ela brinca com isso, em quase todos os recantos do mundo; mas, em Paris, não há limite algum para suas diversões. A deusa parece quase tão brincalhona quanto é sábia. Ao levar comigo essa idéia ao sair da Opera Comique, medi de acordo com ela todo mundo que eu via caminhando nas ruas.  Que exercício melancólico! Especialmente quando o tamanho era extremamente reduzido. (...) Ver tantos seres miseráveis expulsos, por força das circunstâncias, de sua própria espécie (...). O que me dá tristeza registrar (é que) em cada três homens, um é pigmeu! Um viajante médico poderia dizer que é devido a bandagens exageradas; um mal-humorado, à falta de ar e um viajante inquisitivo, para fortalecer o sistema, pode calcular a altura de suas casas, e em quantos pés quadrados nos sexto e sétimo andares de suas moradias estes vários membros da Bourgeoisie comem e bebem juntos (...). Mas a desgraça era que os cidadãos de Paris estavam tão confinados que não tinham realmente espaço suficiente para ter crianças.[86]
Pobreza e amontoamento. Essas duas realidades eram rigorosamente controladas pelo tenente geral de polícia, à frente das 48 comissarias (delegacias), por ele chefiadas nos vinte bairros parisienses. A polícia tem, em cada quarteirão, os seus informantes, que diligentemente comunicam ao alto funcionário qualquer distúrbio que se apresente no bairro. Este é um lugar rigorosamente circunscrito. Todo mundo se conhece. A referência de cada um é a representação que os vizinhos têm dele. Ocupação e lugar de moradia são rapidamente registrados pelos vizinhos da rua. Quando a polícia chega, em minutos lhe é transmitida a informação desejada. Fulano de tal, que exerce tal ocupação, que mora na rua tal, com tais pessoas. O forasteiro é facilmente identificado. Registra-se, na época de Turgot, a tradição de que um bandido demora ao máximo três dias para ser encontrado: a polícia fica de olho na Pont Neuf, por onde fatalmente o meliante deverá passar, a fim de se dirigir aos faubourgs mais distantes, que rodeiam o centro da cidade. A respeito desse contexto de referências mútuas que é o bairro, escreve Arlette Farge:
Ao mesmo tempo em que um lugar, o bairro é uma referência, uma espécie de ser vivo. Ele reage aos acontecimentos, ao sucesso e às desgraças de cada um. Nos interrogatórios ou nos testemunhos, a sua presença é constante. Ser conhecido do bairro é sempre um bom augúrio; pelo contrário, passar por estranho ou vagabundo, não pressagia nada de bom. Ofendê-lo é, sempre, algo de muito grave. Ele acolhe os seres e as situações, pondera as reputações e as transmite, dirige um jogo complexo no qual não se pode perder, pois as conseqüências não são nunca fáceis. É um ator, exemplar pelo seu poder; ao mesmo tempo em que não tem um rosto definido, pois pode possuir, pelo menos, mil faces (...). É, assim, um formidável receptor; entre o momento da ação e o da reação, ele mostra a sua razão, que a polícia e o Estado caracterizam, segundo o caso, como febre ou como loucura, como doçura ou passividade, como candura ou fidelidade. [87]
A polícia é o olho do Rei nos bairros e nos subúrbios parisienses. Nada lhe escapa. Preocupa ao tenente geral de polícia a administração do que passou a ser denominado de opinião pública, que é constituída pelo que se diz e se pensa no bairro. Policiamento é, portanto, interpretação das reações da coletividade, algo assim como uma “caça às palavras, às intenções e aos cochichos”.[88] O tenente de polícia tem os seus informantes, que estendem o raio de escuta das autoridades até os cafés e os lugares de diversão pública, como os cabarés situados nos distantes subúrbios, onde os parisienses podem comprar e consumir vinho, ao mesmo tempo em que se divertem nas guinguettes ou bailes populares de rua, atividades que lhes são vedadas na zona central da cidade. No Plano de Turgot aparece, aliás, uma referência aos divertimentos populares: é identificado, nele, o curioso local denominado de Combat des animaux, situado na rue de Sèvres. Ali os parisienses assistiam a lutas entre animais variados como um lobo contra um cachorro, um porco contra ratos, num espetáculo de mundo-cão em que “a crueldade, às vezes, atingia uma imaginação sem limites”.[89]
Nessa sociedade pautada verticalmente pela Monarquia, abre-se um espaço especial para os regozijos populares, ao ensejo da liturgia real. As principais datas são generosamente celebradas, com farta distribuição, pelos funcionários públicos, de comida e bebida. As celebrações acontecem em espaços abertos, como a Place de Grève, situada em frente ao Hotel de Ville, centro administrativo da cidade. Mas as festas reais também acontecem nos bairros. A respeito dessas celebrações, Arlette Farge escreve:
É (...) solicitado ao bairro que palpite ao uníssono com o tempo real, do corpo físico, místico e guerreiro do príncipe de Deus. Toda circunstância real deve permitir celebrar as núpcias do rei e do seu povo. O povo-rei e o rei-povo são convidados a se reencontrar numa celebração coletiva, na qual não há mais escassez, onde o pão e a carne abundam sob as luzes e os fogos. É a festa da outorga (octroi ou folguedo com abundância), e esse tempo assim ritmado (minuciosamente preparado pelos comissários e intendentes, sendo tudo relatado, nos mínimos detalhes, ao subtenente de polícia e, portanto, ao rei) significa, também, a suspensão do tempo privado do pobre.[90]
Mas se a vida nos bairros perde quase totalmente a privacidade, tanto nas festas da realeza quanto no dia a dia do trabalhador, a intimidade ainda permanece incólume no que tange às relações homem-mulher. É aí que se dá a luta do cidadão pela defesa da honra. Em relação a este ponto, Arlette Farge escreve:
Nesse clima inseguro, a aliança entre o homem e a mulher é necessária para sobreviver: é a relação mínima que sedimenta a esperança e constrói uma relativa estabilidade. As condições da aliança (convivência, sedução, concubinato, mau comércio, casamento, gravidez legítima ou ilegítima) pressupõem conflitos e estratégias em face da honra. O espaço que se constrói ou se desfaz entre o homem e a mulher é, assim, um lugar onde se produz o pensamento de si. Acontecidos os conflitos, explicitados nos interrogatórios e nos testemunhos, revelam a forma em que um e outra, o homem e a mulher, encaram a existência, o cuidado do outro, o cuidado de si e a consciência de uma normalidade nas relações masculino-feminino.[91]   
Na relação homem-mulher, parece ser o povão que leva a melhor parte: ao passo que nos estratos populares prevalecem a espontaneidade nos relacionamentos e a alegria de viver[92], nas camadas altas as regras do jogo são bem demarcadas, a partir dos interesses que acompanham a dote da esposa. Uma vez contratado o casamento, a dote converte-se em elemento de discórdia. A mulher, aliás, detém um claro privilégio nesse terreno: é ela que detêm o gosto pelo luxo e pelos bens, que gasta as economias familiares, que faz circular o dinheiro nos seus compromissos sociais e nas frivolidades da vida dos salões. “Coquette e dispendiosa - testemunha um cronista da época, Mercier - ela arruína o marido e faz reinar a desordem econômica por onde passa” [93]. Napoleão, aliás, dava testemunho dessa realidade, nas reprimendas que dirigia à Imperatriz Josefina, em decorrência dos seus gastos excessivos, chamando-a de “minha fera terrível” [94].
3)      O Rio Sena e a economia da cidade.
A imagem do Rio como artéria viva da cidade foi uma constante no imaginário social parisiense, a partir da Ilustração. Na Idade Média, os cidadãos davam as costas ao Sena, ou melhor, viviam como se ele não existisse, edificando casas nas pontes e sem maiores preocupação urbanísticas para com as suas margens. O Rio ganha personalidade no decorrer dos séculos XVII e XVIII e, já no século XIX, a sua imagem incorpora-se ao cotidiano para simbolizar a vida da Nação – a democracia, frisava Royer-Collard após o ciclo napoleônico, em 1822, corre “a margens cheias”.[95] – Os projetos urbanísticos valorizam a vizinhança do Rio. Os bairros novos que são construídos no século XVII na Île de la Cité, por exemplo, apresentam a parte frontal de hotéis e mansões para o Sena. Definitivamente, o Rio passava a formar parte da vida dos parisienses.
O Plano de Turgot focaliza, basicamente, a cidade: ruas, prédios, avenidas, praças, parques. A urbe está vazia de pessoas, de movimento. Esta variável fica por conta do Rio Sena, das suas águas, das suas margens, das pontes, das ilhas: aí aparecem as pessoas e o movimento da vida. O Rio cruza uma cidade bastante grande, a mais populosa da Europa na época (cerca de 700 mil habitantes). Eis a bela e detalhada descrição do fluxo vital e comercial do Sena (em que marcam encontro todos os atores econômicos, bem como os burocratas que os atazanam com a cobrança de impostos), segundo Laure Beaumont-Maillet:
Miríades de barcos e barcaças navegam ao longo do rio, ora cheios de sacos e de forragem, ora vazios. Por vezes um pescador pôde ter se acomodado aí. Outros tipos de embarcações podem ser distinguidos. Unidas ou não à margem por um pontão, cobertas por um teto de madeira ou munidas de grandes arcos que sustentam toldos, são barcos-lavadouros. Ao longo do convento dos Teatinos, vê-se distintamente alguém lavar um lençol. Um pouco mais acima, remontando o rio, ou bem próximos ao Porto Saint-Paul, o seu ancoradouro, aí estão os barcos destinados ao transporte dos passageiros, identificáveis pelo seu grande mastro. (...) Há, enfim, defronte ao hotel de Lassay, bem como na altura da ponte do Arsenal, os patachos. São chamadas assim pequenas construções, verdadeiros escritórios flutuantes para a cobrança dos impostos sobre gêneros de consumo, nos quais trabalham os funcionários da fazenda encarregados de visitar os barcos e de arrecadar os direitos de entrada para as mercadorias que se destinam à cidade vindas pelo rio. (...) As margens do rio não estão ainda plenamente desenvolvidas. É preciso dizer que as atividades comerciais obstaculizam e retardam a construção de verdadeiros cais em vários lugares.  As margens ainda estão pontilhadas por uma dezena de portos para atividades específicas e que devem permanecer de fácil acesso. [96]
A - Os Portos.- O rio Sena apresenta ao viajante da época uma série de Portos, a maioria deles destinados ao comércio, fato que indica a grande vitalidade da economia parisiense. Vejamos, rapidamente, a descrição desses lugares que ganham grande destaque no Plano de Turgot. São, ao todo, onze Portos:
-                           Sobre a margem direita, encontra-se, de entrada, o Porto de la Rapé.
-                           A seguir, e quase geminado com a localidade anterior, acha-se o Porto d’Arsénal, que serve essencialmente para o transporte de madeira.
-                           Depois se encontra o Porto Saint-Paul, no cais dos Célestins, destinado ao serviço dos coches de água.
-                           Bem ao lado, na extremidade do cais de Ormes, acha-se o Porto do Feno, cujo nome indica claramente a sua função, justificada pela vizinhança da praça des Veaux.
-                           Não longe dali está o Porto do Trigo, à direita da rua de la Mortellerie, onde estão agrupados os comerciantes de cereais da capital.
-                           Vem, em seguida, o Porto Saint-Nicolas, sob o Louvre.
-                           Finalmente, completa a paisagem de pontos comerciais da margem direita, o Porto das Pedras, em frente à cidadela do Gros-Caillou.
-                           Do lado esquerdo do Rio encontram-se, sucessivamente, o porto Saint-Bernard, no qual prevalecia o comércio de madeira.
-                           Um pouco depois, o Port au Vin, perto do Mercado dos Vinhos.
-                           A seguir, acha-se o longo Porto de la Grenoiullère.
-                           Mais adiante, na Ilha da Cidade, perto do Pont Rouge, encontra-se o mais antigo Porto da cidade, Saint-Landry, construído na alta Idade Média.
B – As Ilhas.- Na época, o Rio Sena formava, ao passar pela cidade, quatro ilhas:
-                           Île Saint-Louis. Antigamente, ao longo da Idade Média, esta Ilha sofria com as periódicas inundações decorrentes do aumento do caudal do Sena. Nela pastava gado e as lavadeiras a utilizavam para secar roupas. Entre 1356 e 1359 a Ilha foi dividida por um fosso defensivo, sendo que a parte leste foi denominada de Ilha das Vacas e a parte oeste recebeu o de Ilha Notre-Dame. Em 1614 foram feitas obras de grande importância na Ilha, sob a direção de um arquiteto de renome, Cristophe Marie, que recebeu do rei o direito a explorar o espaço que seria preparado: foi preenchido, em primeiro lugar, o fosso aberto na Idade Média; em segundo lugar, para evitar as inundações, o solo foi elevado em oito metros e, em terceiro lugar, foram construídas duas pontes em pedra, que passaram a unir a Ilha à cidade e procedeu-se à urbanização do espaço, tendo sido abertas cinco ruas e construídos, entre 1618 e 1660, os hotéis e mansões que, unificados no mesmo estilo simples da época, deram esse traço de elegância clássica que se conserva até os dias atuais. Em 1725, pouco antes de Turgot ordenar o Plano, a Ilha recebeu o nome de Saint-Louis.
-                           Île de la Cité. É, desde a Antigüidade, o coração de Paris. Aparentemente constitui um obstáculo situado no meio do Sena, mas é, ao mesmo tempo, a ponte natural entre as duas margens do Rio. Nela, os Romanos, na época primordial de Lutetia, fizeram grandes obras de engenharia para impedir as crônicas inundações. Nos tempos de Turgot, a Ilha era cortada por tortuosas ruas dos tempos medievais, como as denominadas Lanterne, de la Juiverie e du marché Palu. A Ilha, na época do preboste, está longe de merecer a aparência que a sua importância histórica exigiria. As construções se aglomeram, umas coladas às outras, conferindo-lhe aquele sujo aspecto de cidadezinha medieval. Nos extremos da Ilha, duas imponentes construções dominam o espaço: a Catedral de Notre Dame e o Palácio. Doze minúsculas paróquias distribuem-se pela Ilha, que não é procurada pelas elites para nela fixarem residência, em que pese a proximidade do Parlamento, sediado no Palácio. Trata-se, portanto, na época de Turgot, de um centro desvalorizado.
-                           Île Louviers. No século XV era chamada de Île aux Javelles (ou dos Feixes), em virtude da vegetação selvagem que ali crescia, pois, por ser inundada com freqüência pelo Rio Sena, era desabitada. No final desse século recebeu o nome do seu comprador, Charles de Louviers. Ao longo dos séculos XVI e XVII, a ilha permanece desabitada e é utilizada como campo de treinamento dos arqueiros e dos arcabuzeiros do Rei. Serve, na época de Turgot, como entreposto comercial para guardar as toras de madeira que garantirão o abastecimento de lenha da cidade, preocupação marcante do preboste. Um dado curioso: calcula-se que a quantidade de madeira consumida pelos parisienses, ao longo do século XVII, daria para encher, a cada ano, mais de seis vezes a Catedral de Notre-Dame. Generosa utilização dos recursos naturais que, certamente, acabou com as riquezas florestais da França, numa época em que a idéia de “desenvolvimento auto-sustentado” nem sequer era cogitada! Esta ilha desaparecerá, posteriormente, em 1843, tendo sido anexada à margem do Sena, para formar o Boulevard Morland.
-                           Île des Signes (ou dos Cisnes). Na época de Turgot, mudou o seu nome primitivo de Île Maquerelle. É uma longa faixa de terra que se estende acompanhando o Gros Caillou, e que será cedida pela Prefeitura da Cidade em 1773 à Escola Militar, cujos administradores a anexaram à margem do Rio, recheando o canal que a separava dela. Nos tempos de Turgot, a mencionada ilha servia de lugar de pastagem para os rebanhos vacuns da Paróquia de Saint-Sulpice, bem como de entreposto para as toras de madeira que iriam abastecer o comércio e os lares da cidade. Em meados do século XVIII foram concentrados, na ilha, os matadouros da cidade.
C – As Pontes.- Não ficaria completa a paisagem parisiense sem estas construções, bem típicas da cidade. As Pontes foram, até bem entrado o século XVII, apenas lugares onde se morava, dando ensejo a verdadeiras tragédias quando o leito do Rio crescia, no período de chuvas, e desabavam as construções feitas com bases precárias. Tinha-se, na Idade Média, a falsa idéia de que o que garantiria a solidez dessas pontes-cabeças-de-porco era o peso delas, não o aprofundamento dos seus alicerces. Laure Beaumont-Maillet assim sintetiza o quadro das Pontes Parisienses na época de Turgot:
Uma dúzia de pontes, somente, (contra trinta e cinco de hoje) permitem atravessar o Sena. As mais antigas são a ponte Notre-Dame e a ponte Au Change sobre o grande braço, às quais correspondem a Petit-Pont e a ponte Saint-Michel, sobre o braço pequeno. A partir do final do século XVI, o crescimento considerável da capital exigiu a construção de outras pontes. Foram sucessivamente edificadas a Pont-Neuf, a primeira a unir o rio diretamente de uma margem à outra (apoiando-se, na verdade, sobre um dos extremos da Ilha da Cidade),  iniciada no reinado de Henrique III, em 1578, e terminada sob o de Henrique IV, em 1607; depois a ponte Marie (1614-1635), a ponte De la Tournelle (1620), a ponte Royal (1685). O Hôtel-Dieu é servido por duas pontes: a ponte Au Double (1634), cujo nome provém do pedágio cobrado de cada pedestre, um double tournois (...) e a ponte Saint-Charles. Quanto à ponte Rouge e à ponte De Gramont, são simples passarelas de madeira que ligam, uma, a Ilha da Cidade à Ilha Saint-Louis, outra, a Ilha Louviers ao cais de Célestins. Destaca-se, também, a paliçada destinada a reter os blocos de gelo carregados pelo rio durante o inverno, de forma a proteger a gare de navios do Arsenal.[97]
A Ponte mais valorizada na época de Turgot parece ser, ainda, a Pont Neuf, acerca da qual um viajante dos tempos do preboste afirmava entusiasmado:
Todo mundo que já passou pela Pont Neuf deve admitir que, de todas as pontes jamais construídas, ela é a mais nobre – a mais bela, a mais grandiosa e a mais leve, a mais comprida, a mais larga - que jamais uniu terra a terra na face do globo terráqueo.[98]
Sem dúvida que esta obra marca o início da reformulação da arquitetura de pontes em Paris. Ela possibilitou, pela primeira vez, que os pedestres contemplassem a perspectiva do Sena e ensejou, paulatinamente, o planejamento de outras pontes livres de construções. A Pont-Neuf converteu-se, já no século XVII, após a sua inauguração em 1607, no principal passeio turístico da cidade. Após essa ponte, outras foram planejadas sem habitações, como a Pont Royal. Ao longo do século XVIII as pontes parisienses foram sendo desobstruídas, notadamente após a gestão de Moureaux-Desproux como Maître Général des Bâtiments, que culmina em 1769. Mas será somente na Revolução de 1789 que as pontes se verão definitivamente desimpedidas.

4) Boulevards, passeios e ruas.
A Paris dos tempos do preboste Turgot é uma cidade meio medieval, meio moderna. Do passado feudal, a cidade herdou a velha muralha na qual encontravam-se as seguintes vinte portas: Saint-Cloud, d’Auteil, Dauphine, Maillot, Champerret, Clichy, de Saint-Ouen, de Clignancourt, de la Chapelle, de la Villette, de Pantin, des Lilas, de Montreuil, de Vincennes, de Picpus, de Choisy, d’Italie, d’Orléans, de Châtillon, de Versailles.[99] O tecido urbano possui alta densidade. As ruas são estreitas e sinuosas, sendo que muitas delas não passam de caminhos de terra batida. A exceção parece ser a Île Saint-Louis, na qual, já no século XVII, as artérias foram traçadas com perspectiva. No centro antigo da cidade, somente a rue Saint-Antoine conta com um traçado moderno. É conveniente lembrar que o Plano de Turgot dá a falsa impressão de retratar uma cidade onde prevalecem a ordem e o espaço. Na perspectiva à vôo de pássaro adotada pelos desenhistas a serviço do preboste, como já vimos, as ruas aparecem mais largas do que na realidade, a fim de garantir a visão de conjunto e permitir ao viajante a rápida identificação de vias e logradouros.
O fator de racionalização urbana corre por conta da iniciativa real. A respeito, Jean-Louis Harouel escreve:
A cidade de Paris situa-se diretamente sob a supervisão do poder real. É a ele que cabe a difícil tarefa de dirigir o urbanismo da capital. A realeza executa diretamente alguns embelezamentos tais como os Champs-Elysées. Mas, sobretudo, ela coordena a ação das autoridades locais: a prefeitura, tendo em sua direção o chefe dos comerciantes, que na prática é escolhido pelo rei; a Secretaria de Finanças de Paris, muito mais ativa que aquelas das províncias; o tenente de polícia, criado sob Luís XIV, que exerce em nome do rei um embargo geral sobre a administração da capital.[100]
Após 1724, a abertura de uma rua só pode ser feita mediante a apresentação de um plano, que deverá ser estudado e aprovado pelo Maître Général des Bâtiments. A abertura de ruas, no decorrer do século XVIII, tornou-se possível graças ao loteamento de terrenos de antigas mansões. Esses loteamentos ocorrem no bairro do Odéon (no local onde ficava a mansão de Condé), no bairro de Halle au Blé (Mercado de Cereais, no terreno da mansão Soissons) e numa parte do jardim do Palais Royal (onde o duque de Chartres mandou abrir ruas). As vias antigas são objeto de melhoramentos progressivos, graças ao trabalho desenvolvido, no decorrer do século XVIII, pela Secretaria das Finanças. As indenizações por desapropriação são geralmente de responsabilidade dos proprietários das casas que não foram demolidas. Esse sistema de indenização é abandonado em 1720. A partir de então não se concebem grandes alargamentos, nem a abertura de eixos de circulação. Falta o mecanismo financeiro que somente será elaborado no final do Ancien Regime, a fim de a própria municipalidade bancar as obras públicas em profusão.
Nos séculos XVII e XVIII, o poder real, incapaz de conter o crescimento da cidade, deve resignar-se a organizar, um tanto precariamente, a expansão urbana, que se efetua principalmente do lado direito do rio. A dinâmica do crescimento urbano acelera-se a partir da decisão de Luís XIV, de suprimir as antigas muralhas da cidade. A respeito dessa política de desobstrução, escreve Beaumont-Maillet:
Seguro, em decorrência dos seus sucessos militares, e convicto de que Paris não deve temer mais uma invasão inimiga, Luís XIV resolveu fazer da sua capital uma cidade aberta, livre dos grilhões das suas muralhas. Um decreto do Conselho, em 1670, ordenou a demolição da velha muralha de Carlos V e, além dela, de todos os baluartes construídos ulteriormente, desde a Bastille até a porta Saint-Denis e depois, em 1676, da porta Saint-Denis até a porta Saint-Honoré, a fim de dar lugar a um passeio plantado com árvores, ao qual foi dado o nome de boulevard (do flamengo bohlwerk, ou seja, fortificação), mas que se denomina, preferencialmente, de murada.[101]
Surgem, assim, os Passeios Públicos ou Boulevards. Eis os principais deles:
-                           Passeio do Rempart repleto de árvores (ou Muro arborizado), criado sob Luís XIV em substituição às antigas fortificações, nos atuais Grands Boulevards. As portas da antiga muralha medieval são substituídas pelos arcos do triunfo: Portas São Denis e Saint Martin.
-                           Champs-Elysées, iniciado sob Luís XIV e terminado sob Luís XVI, que mandou eliminar a pequena colina da Étoile, prolongando a avenida até a Ponte de Neully.
-                           Passeio público de Vincennes e avenidas circunvizinhas aos Invalides, obras de Luís XIV e Colbert.
-                           Os Passeios que acompanham a Escola Militar, obra de Luís XV.
Essas obras tinham sido precedidas pela abertura, no século XVII, de duas vias de menores dimensões do que os Boulevards: o Passeio do Arsenal, construído, no início do século XVII, por Sully (no lugar do atual Boulevard Morland) e o Cours-de-la-Reine, aberto por Maria de Médicis em 1616.
No decorrer do século XVIII, notadamente a partir de 1760, e, sobretudo, no século XIX (culminando com as grandes reformas urbanas de Haussmann), a abertura de Boulevards vai se multiplicar, dando ensejo à malha de grandes passeios que conhecemos atualmente. Tudo isso com um grande preço, denunciado por escritores como Victor Hugo: a definitiva desaparição da Paris medieval, da qual, talvez, a última resenha seja o Plano de Turgot, que se situa, como temos dito anteriormente, entre o antigo e o moderno.
Vale a pena registrar as dimensões dos primeiros Boulevards, bem como o que eles significavam para os parisienses, na época do preboste Turgot. A propósito, escreve Beaumont-Maillet:
O passeio assim criado é muito largo: quatro fileiras de árvores delimitam, de uma parte e de outra da via central, reservada à circulação das carroças, larga ela mesma de dezesseis tosas (ou seja, ao redor de trinta e dois metros), duas vias paralelas de dezoito a vinte pés (um pouco mais de seis metros), para uso dos pedestres. Aparece, assim, uma nova forma de via urbana, que era já prefigurada, mas em menor escala, pelo Cours la Reine e o Passeio de l’Arsénal. A caminhada pelos Boulevards é, no século XVIII, muito popular. É o lugar de encontro dos elegantes, das costureirinhas galantes, dos gentis-homens, dos militares bonitões, dos padres mundanos e dos vendedores ambulantes. Esses passeios jogam um papel decisivo na vida política, literária e galante de Paris.[102]    
5) Hotéis, mansões e palácios.
O traslado da Corte a Paris pelo jovem soberano Luís XV, em 1715, bem como o deslocamento das fortunas provocado pela bancarrota do financista Law, em 1720, fazem com que burgueses e nobres apliquem os seus rendimentos em construções, evitando as aplicações financeiras. É chegada uma idade de ouro para o desenvolvimento da capital francesa, notadamente dos Faubourgs ocidentais. O centro da Corte passa a se fixar no Louvre (residência de Luís XV) e no Palais-Royal (moradia de Philippe d’Orléans). Perto desse centro do poder são construídos Hôtels (Mansões), nos Faubourgs Saint-Germain e Saint-Honoré. Eis algumas dessas novas construções, registradas no Plano Turgot:
-                           Hôtel d’Évreux (hoje Palácio do Eliseu), construído por Mollet, em 1718, para Louis-Henri de la Tour d’Auvergne, conde D’Évreux.
-                           Hôtel da condessa de Feuquières.
-                           Hôtel do chanceler d’Arguesseau.
-                           Hôtel do duque de Charost.
-                           Hôtel do duque de Duras.
-                           Hôtel de Belle-Île, construído por Bruant, em 1720, no Quai d’Orsay, e que foi incendiado, posteriormente, pela Comuna de Paris.
-                           Palais-Bourbon, construído por Girardini, em 1722, para a princesa de Bourbon, quarta filha legitimada de Louis XIV com Madame de Montespan.
-                           Hôtel Matignon, construído por Jean Courtonne, em 1721, na rue de Varenne (no bairro dos Invalides), para o marechal de Montmorency.
-                           Hôtel du Maine, ou du Fermier General Peyrenne de Moras, hoje Musée Rodin, também situado na Rue de Varenne, nos Invalides.
6) Parques e jardins.
As reformas sofridas pela cidade de Paris, ao longo dos séculos XVII e XVII, fizeram com que os jardins medievais praticamente desaparecessem. No entanto, novos Jardins públicos foram abertos. O Plano Turgot registra a existência deles. Estes são os mais importantes:
-                           Jardins des Tuileries. Este conjunto constituiu o primeiro jardim público da cidade e serviu de inspiração para que outros fossem abertos, ao longo do século XVIII. Destaca-se a idéia de que o soberano zela pela saúde e pelo divertimento dos seus súditos.
-                           La promenade du Mail.
-                           Jardins de l’Arsenal.
-                           Jardin de l’Hôtel de Valois.
-                           Jardin de l’Hôtel de la Reine Margot.
-                           Jardin de Luxembourg.
-                           Jardin du Cours de la Reine, que foi reconstruído, em 1720 pelo duque d’Antin.
-                           Jardin du Palais-Royal.
-                           Jardin Royal des Plantes Médicinales, criado por Guy de la Brosse em 1633, num terreno situado do lado de fora da Porte Saint-Victor, na colina de Coupeaux, antigo depósito de lixo dos açougueiros.
-                           Jardin de l’Infante, aberto ao sul do Louvre para a jovem princesa espanhola prometida de Louis XV.
-                           Jardin de l’Hôtel de Soubise.
-                           Jardin de l’Hôtel du Grand Prieur du Temple.
7) Mercados e Indústrias.
A Revolução Industrial ainda não tinha chegado à França na época de Turgot. Lembremos que a primeira manifestação desse modo de produção, na Europa, acontece na Inglaterra, em 1730. Na França, apenas em 1756 será fundada a manufatura de porcelanas de Sèvres. O comércio e algumas manufaturas são as atividades econômicas que prevalecem na cidade de Paris. A agricultura está ausente, só sendo possível cultivar vinhedos e hortigranjeiros na parte exterior da cidade, onde, aliás, florescia, no século XVIII, uma incipiente indústria vinícola, que garantia o abastecimento de bares e cabarés. Todo o esforço econômico do período de Luís XIV voltou-se para o reordenamento das guildas de trabalhadores e de manufatureiros ao redor do poder real, cioso controlador de todas as atividades produtivas. É o espírito do colbertismo.
No reinado de Louis XV, em que pese a presença, na segunda metade do século XVIII, de ministros liberais como Anne-Robert-Jacques Turgot, filho do preboste, a preocupação que prevalecia era com o cobro de impostos a nobres, comerciantes e artesãos, bem como em relação ao abastecimento da cidade. Louis XV herdou do seu pai uma política tributária muito forte, que deu ensejo a não poucas revoltas dos comerciantes. De um lado, os Decretos do Conselho do Rei, de 1660, tinham restabelecido com rigor a organização corporativa do trabalho, no melhor estilo das guildas medievais. De outro, foram criados numerosos impostos, que visavam onerar não apenas os nobres proprietários de terras, mas todos aqueles que desenvolvessem atividades produtivas, não importando a classe social. Exemplo desse tipo de tributação foi o dixième, criado em 1708, já no final do reinado de Louis XIV, e que gerou não pouco descontentamento popular. Em 1726, Louis XV criou a Ferme Générale des Droites du Roi, uma espécie de Receita Federal, com poderes ampliados para que executasse com rapidez as dívidas dos contribuintes e recenseasse novos pagantes. Essa política orçamentívora continuará firme ao longo de todo o século XVIII, culminando, dez anos antes da Revolução, com a construção, ao redor da cidade de Paris, do conjunto de repartições pertencentes ao “Escritório dos Cobradores de Impostos” (Enceinte des Fermiers Généraux), obra belamente realizada pelo arquiteto Ledoux, em 1785.
A respeito da forma em que o Plano revela as atividades comerciais da cidade, escreve Beaumont-Maillet:
O plano não nos fornece somente indicações sobre a utilização do espaço urbano, mas também acerca da vida cotidiana dos parisienses. Indica, com extremada precisão, a localização dos balcões de impostos municipais. Duas grandes manufaturas unicamente aparecem: a dos vidros, em Reuilly e a dos gobelinos. A terceira grande manufatura, a de sabões, em Chaillot, fica por fora do seu quadro. Paris não é, aliás, uma cidade que produz muito: o consumo é, de longe, a função mais importante.[103]
Paris é uma cidade que constrói de forma bastante acelerada, ao longo do século XVIII. As matérias primas para esse tipo de atividade são, muitas delas, provenientes de minas e pedreiras situadas nos Faubourgs mais remotos. O Plano Turgot registra esse aspecto da economia urbana. A respeito, escreve Beaumont-Maillet:
Vemos, também, minas suburbanas, especialmente as de gesso, na colina Montmartre, minas a céu aberto que aparecem como crateras irregulares, no fundo das quais foram traçados caminhos para permitir a circulação de pesadas carretas. Túneis vão, às vezes, de uma à outra. Vêem-se, igualmente, pedreiras (sem dúvida, de materiais para construção) no Faubourg Saint-Marcel, ao lado do caminho do Moulin-des-Prés, e ao fundo da rua do Faubourg Saint-Denis aparece um depósito de areia. As partes altas dos arredores ostentam moinhos de vento: na colina Montmartre, nos Faubourgs Saint-Jacques e Saint-Michel. Um único moinho d’água é desenhado: o moinho do Hospital Geral, sobre o Bièvre.[104]
O comércio recebe, no Plano, uma atenção toda especial. Eis a detalhada descrição que de mercados, feiras, açougues e matadouros faz o mencionado autor:
Vêem-se as feiras Saint-Germain e Saint-Laurent, esta última mais detalhadamente, verdadeira cidadela de galpões de madeira dispostos em forma de tabuleiro de xadrez, à sombra de castanheiras. Mercados, como o d’Aguesseau (...). O mercado de cavalos, no Faubourg Saint-Antoine, chama nossa atenção. Ele foi instalado lá em 1687. Recordemos que o cavalo é o meio de locomoção e que Paris conta com aproximadamente vinte mil deles. Muitos açougues são desenhados, especialmente o da rua do Faubourg Saint-Antoine, o do Apport Paris, atrás do Grand Châtelet, o dos Invalides na vila de Gros-Caillou. Por açougue é preciso entender: matadouro. Os animais são, efetivamente, conduzidos vivos a Paris, seja por tratadores, seja por comerciantes de fora, e eles são mortos nestes abatedouros, em plena cidade. Não é necessário chamar a atenção para os riscos à higiene decorrentes dessa prática, tanto por causa da sujeira causada pela passagem de animais de grande porte pelas ruas, quanto pelos restos de sangue que desses lugares escoam para as vias públicas, formando riachos infectos e podres.[105]
O Plano Turgot documenta, também, a existência, na periferia da cidade, de lixões, que constituem verdadeiras montanhas de dejetos, aos que se soma o produto infecto proveniente da limpeza das fossas. Esses lixões encontram-se no vilarejo de Pincourt, bem como no Faubourg du Temple. Jardineiros e cultivadores de hortigranjeiros acodem a esses soturnos lugares para tirarem daí abono para os seus jardins e plantações.
8) Conventos e estabelecimentos de ensino.
A cidade de Paris estratificou, nas suas construções, a raison d’État do absolutismo de Louis XIV, que fazia do catolicismo a religião oficial. Em que pese o fato da crise da fé, decorrente da Ilustração e das críticas dos philosophes, encontramos uma forte presença, na cidade, das comunidades religiosas e das construções próprias delas, além, é lógico, das antigas abadias e igrejas que se conservaram da Idade Média, das quais os Plano Turgot dá um testemunho valioso, uma vez que, como foi destacado em páginas anteriores, a Revolução de 1789 destruiu muitas dessas edificações.
Quanto às construções provenientes da Idade Média, o Plano destaca as grandes abadias como a de Saint-Martin-des-Champs, a de Sainte-Geneviève e a de Saint-Antoine. É também caracterizado o convento dos antigos templários, le Temple, junto com o Palácio do Grande Prior. Igrejas do período medieval são, também registradas, como a de Saint-Pierre de Montmartre e as quatorze paróquias existentes na Île de la Cité. Dá-se notícia, também, dos cemitérios, que aparecem um pouco escondidos entre os prédios. O que mais se destaca (embora, na realidade, não fosse o maior), é o dos Inocentes.
Ao longo dos séculos XVII e XVIII, aproximadamente uma centena de novas casas religosas foram construídas em Paris, dando a alguns faubourgs (como Saint-Sulpice e Val-de-Grâce, por exemplo) uma fisionomia toda particular, ainda visível. Algumas edificações desse tipo são, por exemplo:
-                           A da comunidade dos Bernardines, situada inicialmente na Abbaye-aux-Bois e, posteriormente, após o ano de 1654, localizada em Noyon, na rue de Sèvres. A igreja desta comunidade data de 1718.
-                           O Seminário das Missões Estrangeiras, construído, em 1663, na rue de Babylone.
-                           O convento dos Benedictinos de Panthémont, que se instalaram na rue de Grenelle.
-                           A casa das Damas de Saint-Thomas-de-Villeneuve, situada na rue de Sèvres.
-                           O convento das Filhas da Conceição, construído na rue de Charenton.
-                           A igreja e o convento dos Capucines du faubourg Saint-Honoré, construídos em 1722.
-                           A residência dos Frères de la Doctrine Chrétienne, reconstruída na rue de Berey, em 1733.
Quanto aos estabelecimentos de ensino, Beaumont-Maillet assim sintetiza a imagem que nos passa o Plano Turgot:
A celebridade das escolas atraiu as ordens religiosas, desde meados do século XII, para as ladeiras do monte Sainte-Geneviève. Multiplicou-se a fundação de colégios, abrigados pela muralha de Filipe Augusto (da qual são representados alguns vestígios, especialmente uma torre com teto cônico na rue des Prêtres Saint-Paul). Mas esses registros são escassos. Sente-se que Bretez estava mais preocupado em fixar as construções realizadas recentemente, do que em registrar os vestígios de um passado ao qual não se dava quase nenhuma importância. No século XVIII, esses colégios estão em total declínio, mas as suas construções subsistem.[106]
9) Faubourgs e Quartiers.
Ao longo dos séculos XVII e XVIII, Paris experimentou um crescimento vertiginoso, decorrente do fato de a França ter garantido a segurança nas fronteiras do país. Foi de Louis XIV a decisão de tornar Paris uma cidade aberta, mediante um decreto do Conselho, em 1670. Nesse instituto legal era tomada uma providência fundamental ao alargamento da cidade: ordenava-se a demolição do que restava a muralha de Carlos V, bem como de todas as fortificações construídas ulteriormente, desde a Bastille até a Porte Saint-Denis. Em 1676 foram removidas todas as fortificações existentes entre esta Porta e a Saint-Honoré, a fim de dar lugar a um passeio protegido por árvores, que recebeu o nome de boulevard.
Essas providências deram ensejo a uma pressão crescente dos setores da sociedade ligados à política e ao comércio, no sentido de ocupar áreas centrais da cidade e dos seus arredores. Ora, essa pressão tentou ser contrabalançada pelo poder real, mediante numerosas leis e decretos que visavam limitar o crescimento da cidade. Assim, por exemplo, em 1672, o Monarca estabelecia trinta e cinco novos limites para fixar o crescimento dos faubourgs. No entanto, estes continuam a se alargar, acompanhando o alongamento das vias radiais, como a rue Saint-Antoine. É assim como, progressivamente, nesse contrapeso de forças, de um lado da sociedade, de outro lado, do trono, vão surgindo e se consolidando novos faubourgs, como Saint-Germain e Saint-Honoré. Já no final do século XVII, com a abertura da Place Louis-le-Grande (a conhecida Place Vendôme), abre-se espaço para um novo crescimento da cidade ao redor dela.
O crescimento urbano continua ao longo do século XVIII, em que pese os esforços da Monarquia, no sentido de estabelecer limites à expansão urbana. Decretos de 1724, 1726 e 1728 repetem a proibição de construir aquém dos limites fixados. Novas pressões sociais levam a novas negociações com o poder real, que termina abrindo brechas habilmente ocupadas pelos atores econômicos e sociais. É assim que, em 1728, os donos de curtumes são autorizados a construir em lugares até então vedados, como as rues Lourcine (hoje Édouard Quénu), du Feria-Moulin, Censier, Mouffetard e Saint-Victor (conhecida atualmente como Geoffray-Saint-Hilaire). Em 1740, os habitantes do faubourg Saint-Honoré beneficiar-se-ão de concessões semelhantes, que liberavam o espaço para construções até o hôtel d’Évreux.[107]
O próprio preboste Turgot, em 1737, toma a iniciativa de sanear ampla região afetada pelo canal de esgoto que desaguava no Sena, denominado impropriamente de rue de Ménilmontant. A fim de acabar com o mau cheiro que impedia a ocupação urbana dos arredores, o preboste comanda a maior obra de engenharia do século XVIII, abrindo um novo canal, com maior pendente. Essa obra será encerrada dois anos depois, em 1739, um tempo recorde para a magnitude do empreendimento, no qual trabalharam dois mil operários.
Conclusão
Paris das Luzes. Ao longo destas páginas tentei mostrar de que forma a capital francesa tornou-se, nos séculos XVII e XVIII, a “cidade luz” da Europa, cantada por poetas, visitada por imperadores e reis, imitada por urbanistas. Fi-lo interpretando o Plano Turgot/Bretez, à luz dos comentários suscitados, hodiernamente, entre os especialistas, em decorrência da feliz reedição do mencionado documento.
O Plano do preboste revela, certamente, uma cidade um tanto asséptica. Não aparecem identificados os núcleos de pobreza e miséria que grassavam nas cidades européias da época. Mendigos e prostitutas, aliás, sumiam de cena, com regularidade, internados pelas autoridades da cidade em lugares de “tratamento social” (a pobreza e a criminalidade eram consideradas uma doença, que precisava ser tratada em lugares adequados, sendo prisões e centros de internamento o destino desses miseráveis). O Hospital Geral, criado em 1656, possui, na época de Turgot, dois centros: Bicêtre (para mendigos e vagabundos) e la Salpêtrière (para prostitutas), este último resenhado no Plano. É famosa a tela de Étienne Jeaurat, de 1757, intitulada: “A conduite des filles de joie à la Salpêtrière”, na qual é representada a cena da prisão e condução de prostitutas a essa instituição correcional, perto da porta Saint-Bernard.
A respeito da função social desempenhada por esses centros, frisam Alfred Fierro e Jean-Yves Sarraszin:
Na margem (esquerda) do Sena estende-se o imenso hospício de la Salpêtrière. Com Bicêtre, é o principal estabelecimento do Hospital Geral, criado em 1656 para lutar contra a mendicidade: seguindo o princípio de que um problema dissimulado é um problema resolvido, trancafia-se ali os indigentes para esconder a miséria do Grande Século. Ali são submetidos a trabalhos forçados e a condições de vida muito rigorosas, os homens em Bicêtre, as mulheres na Salpêtrière. Mais de quatro mil inválidos, indigentes ou prostitutas, apinham-se na proporção de seis mulheres por leito, que vão ocupando em rodízio. La Salpêtrière possui os seus próprios serviços: lavanderia (com um longo tanque coberto e ligado à margem por uma passarela), e moinho para moer os grãos destinados aos prisioneiros. Um moinho d’água, chamado do Hospital, encontra-se perto da confluência do rio Bièvre com o Sena e dois moinhos de vento localizam-se nas ladeiras de la Butte aux Cailles. O caminho que os une, chamado dos dois Moinhos, recebeu, em 1867, o nome de Jenner, médico inglês que inventou a vacina. É na Salpêtrière onde a monarquia encontra as candidatas para povoar, à força, as suas colônias das Antilhas, de Louisiana, do Canadá, dando ensejo a uma trata de brancas oficial, descrita pelo abade Prévost em Manon Lescaut, romance aparecido em 1731 e que teve um grande sucesso. A ala leste dos edifícios antigos do hospital recebeu, aliás, o nome de ala Manon Lescaut.[108]
Mas embora a Paris dos séculos da Ilustração esconda a suas mazelas, a cidade é, como ficou demonstrado nestas páginas, cada vez mais, o espaço que vai sendo ocupado pelos seus habitantes, que passam a exercer o domínio sobre o espaço urbano, tirando-o, paulatinamente, das mãos do monarca absoluto. Também pudera! A França, com os seus vinte e tantos milhões de habitantes, é – nos tempos do preboste - o país mais populoso de uma Europa que, no decorrer do século XVIII, experimenta a explosão de uma verdadeira bomba demográfica, passando a sua população de 118 milhões, em 1700, para 185 milhões, em 1800. São os prolegômenos do fenômeno que Ortega y Gasset denominou de “a revolução das massas”.[109] Em que pese este fato, o Plano Turgot/Bretez apresenta-nos, também, restos da Paris medieval, com a ingenuidade do nome de algumas ruas desses antigos tempos, tais como rue du Bout-du-Monde, ou rue de Mauvaises-Paroles.
Nessa sociedade de massas Paris descobre o charme da vida urbana, com os boulevards, com os salões povoados de belas damas, com os passeios dos seus habitantes por esses espaços que serão as passarelas da nova moda e dos affaires amorosos. O Rio Sena, progressivamente liberado do entulho medieval construído desordenadamente sobre as pontes, passa a se integrar à vida citadina como paisagem que será, no século XIX, leitmotiv permanente de poetas e pintores. O grande valor da obra de Turgot/Bretez consiste em ter sido testemunha plástica dessas modificações, que alteraram profundamente a estrutura da cidade de Paris e que deram ensejo ao surgimento do moderno conceito de urbanismo. Modelo que, na trilha da Ilustração Francesa que passou a falar “para toda a Humanidade”, tornou-se paradigma da cidade hodierna.
 


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[1] FIERRO, Alfred; SARAZIN, Jean-Yves. Le Paris des lumières d’après le Plan Turgot 1734-1739. Paris: Éditions de la Réunion des Musées Nationaux, 2005.
[2] TURGOT, Michel Étienne. Plan de Paris. 1735-1739. (Primeira edição fac-símile, constando de 20 planos parciais; introdução de Laure Beaumont-Maillet; litografias de Michel Casse; pasta de Dermont-Duval; composição do texto a cargo de Blanchard e Filhos). Paris: Claude Tchou & Sons / Livraria Chapitre, 1999.
[3] Apud FIERRO e SARAZIN, Le Paris des lumières d’après le Plan Turgot  1734-1739. Ob. cit., p. 7.
[4] DUPÂQUIER, Jacques. La population française aux XVIIe.  et XVIIIe. siècles. 2ª. Edição. Paris> Presses Universitaires de France, 1993, p. 98.
[5] Cf. FIERRO – SARAZIN, Le Paris des lumières d’après le Plan Turgot  1734-1739. Ob. cit., ibid. BEAUMONT-MAILLET, Laure, “Portrait d’une ville à vol d’oiseau”, in: TURGOT, Michel Étienne. Plan de Paris 1735-1739. (Primeira edição fac-símile, constando de 20 planos parciais; introdução de Laure Beaumont-Maillet; litografias de Michel Casse; pasta de Dermont-Duval; composição do texto a cargo de Blanchard e Filhos). Paris: Claude Tchou & Sons / Livraria Chapitre, 1999, p. III.

[6] Apud BEAUMONT-MAILLET, Laure, “Portrait d’une Ville à vol d’oiseau”, ob. cit., p. XII.
[7] Cf. HAZARD, Paul. La crise de la conscience européenne 1680-1715. Paris: Arthème Fayard, 1961.
[8] Luís XV era bisneto de Luís XIV. Luís XVI, sucessor de Luís XV, era neto deste.
[9] KANT, Immanuel. “Respuesta a la pregunta: Qué es la Ilustración?”, in: ERHARD, VON MOSER, et alii. Qué es Ilustración? (Estudo preliminar de Agapito Mestre; tradução española de Agapito Mestre e José Romagosa). 3ª. Edição. Madrid: Tecnos, 1993, p. 17-18.
[10] LUÍS XIV, Rei da França. Memorias. (Versão espanhola de Aurelio Garzón del Camino). México: Fondo de Cultura Económica, 1989, p. 37.
[11] LUÍS XIV, Rei da França. Ob. cit., p. 28.
[12] GUIZOT, François. Histoire de la civilisation en Europe depuis la chute de l’Empire Romain jusqu’à la Révolution Française. 8ª. Edição. Paris: Didier, 1864, p. 391.
[13] GUIZOT, ob. cit., p. 393-394.
[14] GUIZOT, ob. cit., p. 396-397.
[15] TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. (Tradução de Yvonne Jean; apresentação de Zevedei Barbu; introdução de J. P. Mayer). 3a. Edição. Brasília: Universidade de Brasília; São Paulo: Hucitec, 1989, p. 93.
[16] RICHELIEU, Cardeal Duque de (Armand du Pleissis). Testamento político. (Tradução e apêndice de David Carneiro). São Paulo: Atena Editora, 1959, p.  17-19.
[17] Apud DUPÂQUIER, ob. cit., p. 36.
[18] Cf. CASTEX, Pierre-Georges; SURER, Paul. Manuel des Études Littéraires Françaises – XVIIe. Siècle. (Colaboração de Georges Becker). Paris: Hachette, 1947, p. 3.
[19] Apud DUCHET-SUCHAUX, Guide chronologique de l’histoire du monde. Paris: Hachette, 1992, p. 242. No Congresso de Rastadt, em 1714, o francês é utilizado, pela primeira vez, como língua diplomática, em substituição ao latim.
[20] DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária. (Tradução de Hildegard Feist). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 11.
[21] Cf. FRANCASTEL, Pierre (organizador). L’Urbanisme de Paris et l’Europe 1600-1680. (Apresentação de Pierre Francastel). Paris: Klincksieck, 1969, p. 16-17.
[22] HAZARD, ob. cit., p. 15.
[23] HAZARD, Paul. Ob. cit., p. 17.
[24] GUIZOT, ob. cit., p. 400-401.
[25] STERNE, Laurence. Uma viagem sentimental através da França e da Itália. (Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro; revisão, introdução e notas de Marta de Sena). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 22.
[26] GUIZOT, ob. cit.,  p. 403-404.
[27] Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. Paris: Garnier/Flammarion,  1966.
[28] Uma das mais lúcidas análises sobre o absolutismo exercido em nome das massas foi feita por Benjamin Constant de Rebecque, na sua clássica obra intitulada Princípios de Política, (tradução espanhola de Josefa Hernández Alonso, introdução de José Alvarez Junco), Madrid; Aguilar, 1970, p. 132 seg.
[29] Guizot analisa o processo revolucionário na Inglaterra, na sua obra intitulada Histoire de la Révolution d’Anglaterre 1625-1660. (Edição preparada por Laurent Theis, com introdução deste autor). Paris: Laffont, 1997.
[30] GUIZOT, ob. cit., p. 405-406.
[31] HAZARD, Paul.  La crise de la conscience européenne 1680-1715. Paris: Arthème Fayard, 1961.
[32] HAZARD, Paul. Ob. cit., p. 9.
[33] HAZARD, Paul. Ob. cit., p. 8-9.
[34] Cf. VOEGELIN, Eric. Les religions politiques. (versão francesa de Jacob Schmutz). Paris: Les Éditions du Cerf, 1994.
[35] Cf. DESCARTES, Renato. Discurso do método e Tratado das paixões da alma. (Tradução, prefácio e notas de Newton de Macedo).  Lisboa: Sá da Costa, 1937.
[36] O herói cervantino, Dom Quixote, efetivamente, é apresentado como a antítese do herói clássico, que busca a estabilidade e o sossego. Com muito acerto Hazard chama a atenção para o fato de Dom Quixote ser um herói da aventura que busca uma utopia, em contraposição, por exemplo, ao “Cavaleiro da Capa Verde”, que no capítulo XVIII da segunda parte de Dom Quixote encarna o Classicismo, ao pronunciar estas palavras: “Me da la vida el temor de lo que será después”, às quais se contrapõem as razões quixotescas, que centram toda a finalidade da vida do homem em optar pelo estreitíssimo caminho da cavalaria andante, que não sossega diante do conquistado, mas que busca novas aventuras. Cf. CERVANTES, Don Quijote de la Mancha, (edição do IV Centenario, com estudos introdutórios de Mario Vargas Llosa, Francisco Ayala e Martín de Riquer), Madri: Alfaguara / Real Academia Espanhola / Associação das Academias da Língua Espanhola, 2004, p. 686 seg,
[37] MÉCHOULAN, Henry. Etre Juif à Amsterdam au temps de Spinoza. Paris: Albin Michel, 1991, p.  92.
[38] HAZARD, ob. cit., p. 18.
[39] Cf. LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero – A moda e seu destino nas sociedades modernas. (Tradução de Maria Lúcia Machado). São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
[40] LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Filosofia para princesas. (Versão espanhola, prólogo e notas de Javier Echeverría). Madrid: Alianza Editorial, 1989.
[41] HAZARD, ob. cit., p. 19.
[42] Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Writings on China. (Versão inglesa, notas e comentários a cargo de Daniel J. Cook e Henry Rosemont Jr.). Chicago: Open Court, 1994.
[43] Apud HAZARD, ob. cit., p. 32-33.
[44] HAZARD, ob. cit., p. 34.
[45] Apud HAZARD, ob. cit., p. 56.
[46] HAZARD, ob. cit., p. 38.
[47] Apud ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Paris: Gallimard, 1985, p. 22.
[48] TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. (Tradução de Neil Ribeiro da Silva). 2a. Edição em português. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977, p. 377.
[49] DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária. (Tradução de Hildegard Feist). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
[50] Apud DARNTON, ob. cit., p. 268.
[51] Cf. SADE, Donatien Alphonse François – Marquês de. Os 120 dias de Sodoma. São Paulo: Hemus, 1969.
[52] Cf. A excelente seleção de escritos destes três autores feita por Samuel Titan Jr.: GUILLERAGUES, CRÉBILLON & DENON. Na alcova – Três histórias licenciosas, (tradução, seleção e posfácio de Samuel Titan Jr.), São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[53] DARNTON, ob. cit., p. 11-12.
[54] GOULEMONT, Jean-Marie. Esses livros que se lêem com uma mão só – Leitura e leitores de livros pornográficos no século XVIII. (Tradução de Maria Aparecida Corrêa). São Paulo: Discurso Editorial, 2000, p. 172.
[55] CONDORCET. Matemáticas y sociedad. (Introdução e seleção de textos de Roshdi Rashed; tradução espanhola de José Antonio Robles García). 1a. Edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Econômica, 1990.
[56] Cf., a propósito do termo democracia totalitária, TALMON, J. L. Los Orígenes de la democracia totalitaria. (Tradução ao espanhol de M. Cardenal Iracheta). México: Aguilar, 1956.
[57] HAZARD, ob. cit., p. 34-35.
[58] Cf. WEBER, Max. “Conceito e categorias da cidade”. In: VELHO, Otávio Guilherme (organizador), O fenômeno urbano. (Tradução do ensaio de Weber a cargo de Antônio Carlos Pinto Peixoto). Segunda edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, p. 68-89. Na página 70 desta obra, Max Weber caracteriza a cidade nos seguintes termos: “É normal que a cidade, tão logo se apresenta com uma estrutura diferente do campo, seja por sua vez sede de um senhor, ou de um príncipe, e lugar de mercado, ou possua centros econômicos de ambas as espécies – oikos e mercado – e também é freqüente que tenham lugar periodicamente na localidade, além do mercado local regular, feiras de comerciantes em trânsito. Porém a cidade – no sentido que usamos o vocábulo aqui – é um estabelecimento de mercado”.
[59] Cit. Por HAROUEL, Jean-Louis. História do urbanismo. (Tradução de Ivone Salgado).  4a. Edição. Campinas: Papirus, 2004, p. 61.
[60] HAROUEL, ob. cit., p. 63.
[61] HAROUEL, ob. cit., p. 64.
[62] HAROUEL, ob. cit., p. 66.
[63] HAROUEL, ob. cit., p. 67.
[64] HAROUEL, ob. cit., p. 88.
[65] Cf. HAROUEL, ob. cit., p. 90.
[66] Cit. Por HAROUEL, ob. cit., p. 68.
[67] HAROUEL, ob. cit., p. 69.
[68] A preocupação com o equilíbrio entre cidade e natureza aparece já na legislação, notadamente no decreto real de 1669, em que Colbert fixa os princípios que devem presidir a exploração das florestas e os cuidados com o meio ambiente, em dois institutos legais intitulados: Principes de la Gestion des Forêts e Grande Ordonnance des Eaux et Forêts.
[69] HAROUEL, ob. cit., p. 71.
[70] BACHAUMONT, Essais sur la peinture, la sculpture et l’architecture, Paris, 1752, apud HAROUEL, ob. cit., p. 72.
[71] HAROUEL, ob. cit., p. 72-73.
[72] TOCQUEVILLE, O Antigo Regime e a Revolução, ob. cit., p. 165-166.
[73] Cf. GERLAC, Henry. “Vauban – O impacto da ciência na guerra”. In: PARET, Peter. Construtores da estratégia moderna. (Tradução de Joubert de Oliveira Brízida). Rio de Janeiro: Bibliex, 2001, vol. I, p. 98-99.
[74] Cf. FIERRO – SARAZIN, ob. cit., p. 7-15. BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. IV.
[75] Apud BEAUMONT-MAILLET, “Portrait d’une ville á vol d’oiseau”, ob. cit., p. IV.
[76] Apud BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. VI.
[77] BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. VI.
[78] Apud BAUMONT-MAILLET, Laure, ob. cit., p. V.
[79] BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. III –IV.
[80] BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. VI.
[81] Apud LÉVY, Artur. A vida íntima de Napoleão. (Tradução de Emil Farhat). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943, p. 35.
[82] STAËL-HOLSTEIN, Germaine Necker Madame de. Dix années d’exil. (Edição crítica preparada por Simone Balayé e Mariella Viannello Bonifácio). Paris: Fayard, 1996, p. 135-136.
[83] FARGE, Arlette. La vie fragile - Violence, pouvoirs et solidarités à Paris au XVIIIe. Siècle. Paris: Hachette, 1986, p. 17-18. Autores da época, como Laurence Sterne, dão testemunho da precariedade em que vivia a classe média parisiense; a propósito, escreve: “Pois bem, acontecia que havia apenas uma cama na casa, os outros dois quartos não tendo mobília alguma, como é de costume em Paris...” (Uma viagem sentimental através da França e da Itália, ob. cit., p/ 126).
[84] STERNE, Laurence. Uma viagem sentimental através da França e da Itália. Ob. cit., p. 133.
[85] Cf. STERNE, Laurence. Ob. cit., p. 157, nota 66.
[86] STERNE, Laurence. Ob. cit., p.  74-75.
[87] FARGE, Arlette. La vie fragile. Ob. cit., p. 20.
[88] FARGE, Arlette, ob. cit., p. 20-21.
[89] BEAUMONT-MAILLET, Laure. “Portrait d’une ville à vol d’oiseau”. Ob. cit., p. XII.
[90] FARGE, Arlette. La vie fragile, ob. cit., p. 27.
[91] FARGE, Arlette. La vie fragile, ob. cit., p. 29-30.
[92] A propósito da “alegria de viver” do povinho francês, o escritor Laurence Sterne dá o seguinte testemunho, descrevendo o comportamento jovial do seu criado: “O charme de La Fleur (pois sua própria experiência era um passaporte) logo pôs à vontade todos os criados na cozinha; e como um francês, quaisquer que sejam as suas aptidões, não tem nenhuma espécie de pudor em mostrá-las, em menos de cinco minutos, La Fleur retirava a sua flauta e, dando ele próprio início à dança com a primeira nota, pôs a dançar a fille de chambre, o maître d’hôtel, o cozinheiro, o ajudante de cozinha e todo o pessoal da casa, cães e gatos, além de um velho macaco; suponho que nunca houve uma cozinha mais alegre desde o Dilúvio” (Uma viagem sentimental através da França e da Itália, ob. cit., p. 59).
[93] Apud FARGE, Arlette, ob. cit., p. 33.
[94] LÉVY, Artur. A vida íntima de Napoleão. (Tradução de Emil Farhat). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1943, p. 96.
[95] Apud MÉLONIO, Françoise. Tocqueville et les Français. Paris: Aubier, 1993, p. 16.
[96] BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. VI-VII.
[97] BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. VII.
[98] STERNE, Laurence. Uma viagem sentimental através da França e da Itália. Ob. cit., p. 126.
[99] Cf. OGRIZEK, Doré. France. (Colaboração, para os textos, de Dominique LE BOURG e Jean DESTERNES). Paris: Odé, 1953, p. 250-251.
[100] HAROUEL, Jean-Louis, História do Urbanismo. Ob. cit., p. 76.
[101] BEAUMONT-MAILLET, “Portrait d’une ville à vol d’oiseau”, ob. cit., p. IX.
[102] BEAUMONT-MAILLET, “Portrait d’une ville à vol d’oiseau”, ob. cit., p. IX.

[103] BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. XI.
[104] BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. XI.
[105] BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. XI.
[106] BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. VIII.
[107] Cf. BEAUMONT-MAILLET, ob. cit., p. X.
[108] FIERRO-SARAZIN, ob. cit., p. 138.
[109] Cf. ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas.  (Tradução de Marilene Pinto Michael). 2a. Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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