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quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A REVOLUÇÃO SENTIMENTAL - UMA LÚCIDA ANÁLISE DO CHAVISMO


Capa e conbtracapa da obra de Beatriz Lecumberri, intitulada: La revolución sentimental.




Quem quiser entender, de forma equilibrada, o que se passa na Venezuela atualmente, pode ler uma obra de referência: o livro que a jornalista espanhola Beatriz Lecumberri (1972-), lançou recentemente, em Caracas, com o sugestivo título de: La revolución sentimental: viaje periodístico por la Venezuela de Chávez (Prólogo de Cristina Marcano. Caracas: Ediciones Puntocero, 2012, 398 páginas). 


Diretora da Agência France Presse em Caracas e República Dominicana durante quatro anos, entre 2008 e 2012, Lecumberri entrou em contato com os principais atores políticos da Venezuela, bem como com cidadãos comuns de várias classes e tendências políticas e conseguiu desenhar, na sua obra, o mais completo quadro jornalístico desse país, no que tange: I – à economia; II – à política (incluindo uma abrangente descrição dos aspectos estratégicos, bem como das relações internacionais e das políticas públicas na área social); III – à cultura.


A elaboração da obra de Beatriz Lecumberri constituiu uma difícil empreitada, levando em consideração a profunda cisão ensejada pela revolução bolivariana no país caribenho, fato que passou a dividir as opiniões de forma praticamente irreconciliável, entre partidários de Chávez e detratores dele e da sua gestão. Tudo por conta da radicalidade e do teor messiânico-ufanista do governante. A obra em apreço consta de quatro partes: Pátria, Socialismo, Muerte e Venceremos. Centrarei a minha abordagem numa sucinta análise dos itens mencionados no parágrafo anterior que abarcam, a meu ver, os aspectos essenciais da sociedade venezuelana contemporânea. Concluirei destacando as perspectivas que, segundo Beatriz Lecumberri, se descortinam para a Venezuela nos atuais momentos e adicionarei o meu ponto de vista do que da experiência venezuelana se depreende para o Brasil, que foi polarizado, também, nos governos petistas, no âmbito de um socialismo análogo ao proposto por Chávez.

 

I – No que tange à economia, Lecumberri mostra que Hugo Chávez propendeu, ao longo da sua permanência no poder, entre 1999 e os dias atuais, por dois esforços correlatos: instaurar um sistema produtivo centrado no crescimento estatal da economia, tendo como eixo a indústria petroleira e, em segundo lugar, desmontar a grande empresa capitalista, notadamente a transnacional, em todas as áreas, desde a agrobusiness até a prestação de serviços nos terrenos da comunicação, cultura, informação, educação, saúde, transportes, etc. Ainda no campo econômico, Chávez tem procurado estimular a pequena e média empresa nacional substituindo, no entanto, a dinâmica do mercado por um rígido colbertismo econômico que termina asfixiando a iniciativa privada.


Esse centripetismo econômico ao redor do Estado empresário tem uma finalidade clara: a instauração de um modelo socialista, nos parâmetros do que é praticado no mundo comunista em Cuba, seguindo a tradição estatizante da antiga União Soviética e da China de Mao, principalmente. A autora ilustra da seguinte forma o preconceito de Chávez em relação à agroindústria, no âmbito de uma ambígua política de estatização das terras mais produtivas para colocar, à frente delas, o Estado empresário. A propósito, frisa Beatriz Lecumberri: “Desde 1999, o Governo venezuelano apropriou-se de aproximadamente 3,6 milhões de hectares em todo o país, onde se calcula que há uns 30 milhões de hectares cultiváveis. É o denominado resgate de terras, a revolução agrária de Chávez: acabar com os latifúndios e estatizar as grandes propriedades para devolvê-las aos produtores, com a finalidade de incrementar a produção nacional de alimentos, acabar com os altos preços que freqüentemente afetam ao país e conseguir que a Venezuela, que importa a maior parte dos produtos que consome, se torne auto-suficiente. A agricultura representaria atualmente um 5% do Produto Interno Bruto (PIB). As terras sob controle governamental aumentam praticamente a cada mês, mas a Venezuela dedica anualmente maiores quantidades de dólares para importar produtos de primeira necessidade, embora continuem faltando itens básicos nos supermercados, fato que faz com que a inflação dispare. Somente em 2011, a Venezuela comprou no exterior, por um montante de 46,44 bilhões de dólares, um total de 20% a mais do que em 2010, segundo cifras do Banco Central. Desse total, 6,3 bilhões destinaram-se à importação de alimentos”.[1]


Ao analisar as contraditórias medidas tomadas pelo Governo de Chávez no terreno econômico, salta à vista que a preocupação do mandatário não consiste propriamente, como é propalado pela propaganda oficial, em combater o latifúndio: trata-se, melhor, de atacar a iniciativa privada, mesmo em pequenas e médias propriedades produtivas. Foi o fenômeno que se observou nas sucessivas desapropriações efetivadas numa das regiões mais produtivas da Venezuela, o conjunto de fazendas de médio porte situadas ao Sul do Lago de Maracaibo, na região conhecida como Santa Bárbara.


Eis o relato que Lecumberri faz do que aconteceu nessa outrora próspera região: “Em torno à mesa, entre um bocado de deliciosa carne e de aipim, a maioria tem uma história para contar. Todos nasceram em Santa Bárbara, criaram-se entre vacas e bananais, aprenderam a dirigir trator desde crianças, herdaram a terra quando morreram os seus pais, sentem-se orgulhosos de serem criadores de gado e não imaginam fazer outra coisa. Quando são chamados de latifundiários, muitos não podem conter uma gargalhada. ‘Tenho 50 hectares. Que tipo de latifundiário sou eu?’, me diz Julio Luzardo, proprietário da fazenda Costa Verde, confiscada e posteriormente devolvida. Alguns dos presentes votaram em Chávez em 1998 e inclusive voltaram a votar nele até 2006, mas já faz anos estão decepcionados com o rumo que toma o Governo. – ‘Esta região é muito especial. Representa o sucesso empresarial privado em face do fracasso do público. Roubam-nos para fazer acreditar ao país que estão construindo alguma coisa. Venezuela precisa olhar para o Sul do Lago (de Maracaibo), porque isto pode acontecer com qualquer cidadão. Nós estamos observando os dentes e as garras de Chávez’ – frisa Joaquín Urdaneta, dono de Las Mercedes, outra das fazendas desapropriadas”.[2]  


Acompanhando essas medidas atabalhoadas, injustas e agressivas do governo venezuelano contra as propriedades produtivas, os fazendeiros da região de Santa Bárbara queixam-se do terrorismo desatado pelo Estado. A propósito, Lecumberri escreve: “A todos falta informação oficial e os rumores multiplicam-se no seio do povo, estimulados pela presença de mais de 1.600 militares, dezenas de funcionários do Ministério da Agricultura e do Instituto Nacional de Terras (INTI) e grupos de camponeses de todo o país reclamando essas terras. ‘Enquanto garantimos a produção de comida, ouço rumores de todo tipo: o Governo estaria dando refúgio na região a ativistas do grupo terrorista basco ETA ou teria feito um acordo com o governo da Rússia para ceder parte dessas terras, para um projeto agrícola e pagar assim uma dívida. Estamos acuados – diz-me Júlio Luzardo -. Pediram-me praticamente que renunciasse aos meus direitos de proprietário. Essa fazenda é minha, ali vivo, é produtiva, os meus trabalhadores estão comigo e eu quero defender tudo isso. Os militares foram embora, mas pressionam-me para que venda a minha produção a empresas do Estado’ – me explica. Os criadores de gado sentem que o fato de o Zulia ser, há anos, um estado governado pela oposição, torna-os ainda mais indefesos em face das decisões imprevisíveis do Governo. ‘É vergonhoso ver como um corpo armado, criado para nos proteger e cuidar dos nossos bens, hoje se presta a obedecer a um homem que está errado e viola a Constituição’ – reclama Barboza”.[3]
 

Se, de um lado, o governo venezuelano é claro na sua prepotência e preconceito contra a empresa privada, de outro fica evidente que não tem definido os contornos do vaporoso “socialismo do século XXI” apregoado pelo líder. A propósito, Lecumberri escreve: “Se for lido o inventor do termo socialismo do século XXI, Heinz Dieterich, antiga pessoa de confiança de Chávez, uma democracia plenamente participativa, um verdadeiro poder popular e uma sociedade onde o Estado não esteja por cima dos indivíduos, esses seriam os pilares de tal ideologia. Contudo, vai o presidente venezuelano por esse caminho? O rentismo venezuelano está evoluindo em direção a outro modelo? Segundo Dieterich, não. A Venezuela não soube implantar esse novo socialismo genuíno, adaptado às circunstâncias e às realidades do século XXI. ‘A grande oportunidade de Chávez de construir o primeiro socialismo científico e democrático do século XXI perdeu-se para sempre. E a estrutura apresentada como tal, efetivamente, não passa de ser mais do que uma humilde choupana levantada sobre os alicerces do arranha-céu construído por Marx e Engels’ – afirma este professor alemão”.[4]


O desinteresse do governo chavista em face da definição do termo “socialismo do século XXI” ficou claro quando, em evento que intelectuais venezuelanos organizaram, em Caracas, para debater o tema, nenhum representante oficial apareceu. A propósito, Lecumberri anota: “Margarita López Maya, historiadora e coordenadora dos dois volumes intitulados: Ideas para debatir el socialismo del siglo XXI, contava-me que, quando realizaram os works-shop que serviriam de base para o livro, ninguém do governo participou. Isso provocou uma grande decepção. As contadas exceções foram o general Alberto Müller Rojas, hoje falecido, e Marta Harnecker. Se aventurar a proferir opiniões sobre algo que muitos adeptos do Governo tampouco tinham muito claro que era, com o risco de que o dito fosse contrário ao pensamento do Presidente, fazia tremer de medo a mais de um”.[5]


O que resta na prateleira dos modelos econômicos é, pois, a retórica chavista acerca do “socialismo do século XXI” ou “socialismo bolivariano”. É parte dessa ideologia qualquer coisa que convier a Chávez e aos seus incondicionais seguidores. Puro oportunismo para, na sombra da intimidação, os “donos do poder” se perpetuarem no governo e se enriquecerem às custas dos venezuelanos. A respeito deste ponto, Lecumberri comenta as palavras da historiadora López Maya, da seguinte forma: “Para esta esquerda crítica, nos últimos 13 anos os câmbios na Venezuela parecem ser guiados desde cima e o poder real das missões sociais, os conselhos comunais ou as bases do partido no poder, o PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela), limita-se ao que o Governo lhes outorga. – ‘Isso não é democracia participativa. É outro projeto. Chávez o entende como um aprofundamento da democracia participativa, mas não, é algo personalista, autoritário, onde tudo depende do Presidente da República. Até os setores populares dependem dele’ – frisava López Maya”.[6]


Lecumberri conclui: “Justamente nesses bairros populares de Caracas onde Chávez gerava uma ilusão sem medida, sente-se já um crescente desencanto em relação ao sistema de governo. Os altos índices de violência, a pressão para que os seus habitantes se inscrevam no partido do Presidente, o PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela), ou os procedimentos pouco claros de alguns líderes comunitários incomodam cada dia mais, embora Chávez continue alimentando esperanças e receba agradecimentos pelos subsídios, pelo médico cubano ou pelas bolsas de estudos”.[7]


Do ângulo da previsão do desenvolvimento econômico da Venezuela para os próximos anos – e este ponto se reveste de capital importância, após o triunfo eleitoral de Chávez em 8 de Outubro de 2012, que ainda não tinha acontecido quando a obra que comentamos foi publicada – as perspectivas são realmente sombrias.  A respeito, escreve Lecumberri: “Desde 2007, o governo venezuelano converteu-se num grande empresário e tomou o controle de múltiplas indústrias de praticamente todos os setores da economia. Estatização, expropriação, aquisição forçada e resgate: os termos são múltiplos para finalmente definir uma mesma realidade. O Executivo tem o controle de empresas chave da cadeia alimentícia, desde produtores de fertilizantes até fabricantes de vasilhames ou cadeias de supermercados e decretou estatizações ou expropriações de empresas de cimento, petróleo, siderurgia, telecomunicações, eletricidade, transporte, entidades financeiras e bancárias, entre outros. Ao longo dos últimos dez anos, calcula-se que o Governo tomou o controle, por diversas vias, de mais de 1.400 empresas de tamanhos e setores diferentes e pagou unicamente a um 10% delas, segundo dados da confederação de industriais (CONINDUSTRIA)”.[8]    


Num país em que grande parte da atividade econômica depende do petróleo, a inversão privada sempre foi fraca. Segundo FEDECÁMARAS, esta participava de um 19% do PIB em 1970. Mas, com o chavismo, essa situação se tornou mais precária: a inversão privada passou a um 4% atualmente.[9] Em proporção direta à estatização, a corrupção corre solta no governo de Chávez. Os grandes projetos petroleiros na região do Orenoco estão enriquecendo os amigos do líder bolivariano. A produção de PDVSA alimenta, por outra parte, sem nenhuma transparência, os programas sociais (denominados de “Missões”) do Presidente, com muita publicidade que se faz presente nos períodos eleitorais. E sedimenta, de outro lado, o espírito rentista do venezuelano médio, que se revela na aspiração ao enriquecimento rápido à sombra do Estado. O petróleo é, para Chávez, moeda imprescindível de troca para desenvolver a sua política de expansão da “revolução bolivariana” aos demais países da bacia do Caribe e da América do Sul. A propósito dessas políticas, a autora frisa: “Chávez supõe um antes e um depois na política petroleira. O Presidente, que é o chefe de Estado que maiores ingressos têm recebido com a venda do petróleo cru, é o grande distribuidor da riqueza que a todos pertence. Uma espécie de grande justiceiro. Para os críticos de Chávez, esses ingressos milionários, mais do que gerar desenvolvimento duradouro para o país, têm-se transformado em benesses, em programas sociais dependentes do ouro negro, que só servem para aumentar o caráter rentista do país. Acreditar que o petróleo é de todos faz com que na Venezuela a gasolina seja praticamente gratuita, muitíssimo mais barata do que na Arábia Saudita, primeiro produtor mundial do petróleo cru. Mas, na Venezuela de Chávez, este não é um tema que seja debatido com freqüência. Todos concordam em que o fato de pagar um dólar para encher o tanque de um veículo é, além de uma barbaridade e uma sangria financeira, uma medida que favorece somente àquele que tem um automóvel, ou seja, aos mais ricos. Mas o Presidente não tem tratado do assunto, embora esta situação seja muito capitalista e burguesa, diante do risco de ficar na corda bamba, se for objeto de manifestações multitudinárias de protesto, como já ocorreu com outros governos que ousaram decretar um aumento de preço”.[10]


Gastos atabalhoados com os dólares do petróleo, quase nenhuma transparência na gestão pública, desorganização do governo, corrupção sem controle, violência crescente que tornou as cidades venezuelanas redutos da criminalidade: eis os itens que projetam sombras sobre as perspectivas do desenvolvimento na Venezuela. A propósito, a autora escreve: “A desorganização do executivo e uma corrupção que corrói as entranhas do Estado e do país inteiro, do menor ao maior, do policial do bairro ao alto funcionário, colocam na corda bamba o bem-estar do venezuelano”. A propósito dessa situação, Lecumberri cita as palavras de Antonio Ledesma, prefeito metropolitano de Caracas, da oposição: “Chávez fala da oligarquia, enquanto os seus trocam a casa em Coche [bairro de classe média] pelo apartamento em Cerro Verde [bairro de classe alta], decolam do aeroporto de La Carlota com destino a Miami, passeiam em carros de luxo e bebem whisky de 18 anos à vista de todos. A corrupção no chavismo é tão grande que um dia vão afanar a carteira de Chávez em pleno conselho de ministros”.[11]


Em que pese esse conjunto de aspectos negativos, resta, no entanto, ainda, um ponto firme: as rendas do petróleo conseguem sustentar o projeto chavista. Há uma espécie de “racionalidade administrativa variável”,[12] ao nosso modo de ver, que dá oxigênio ao patrimonialismo chavista, lhe permitindo ganhar eleições, como as acontecidas em meados de Dezembro de 2012, quando os candidatos governistas ganharam o poder em quase todos os Estados venezuelanos. Uma das exceções foi o Estado Miranda, onde o líder oposicionista Henrique Capriles ganhou a reeleição. Os rios de dinheiro provenientes da venda do petróleo, notadamente aos Estados Unidos, alimentam com regularidade as “missões” chavistas, nome dado aos projetos sociais do governo. As benesses aumentam, é lógico, em períodos eleitorais.


II – No que tange à política, a autora consultou a opinião de vários historiadores,[13] a fim de identificar a causa da concepção centrípeta e personalista do poder que anima a Chávez. O resultado das suas indagações foi claro: o líder venezuelano se inspira no pensamento de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e de Simón Bolívar (1783-1830), que foi formado no mais estrito rousseaunianismo pelo seu tutor, Simón Rodríguez (1771-1854).  Essa é a conclusão a que chega, por exemplo, o historiador Elias Pino, cujas palavras são estas: “Creio que Chávez leu as cartas e os documentos de Bolívar, quase como nenhum historiador tem feito e deles extraiu a parte autocrática do Libertador. Chávez encontra, em Bolívar, os elementos que vão lhe permitir justificar um governo sem freios nem contrapesos e que correspondem com o projeto de país que ele deve guardar em algum lugar da sua cabeça; a monarquia sem coroa, o presidente vitalício ou a criação de um poder moral. Chávez teria feito uma leitura do seu jeito orientada ao total controle da sociedade. Esse é o lado bolivariano de Chávez (...). É um filão quase inexplorado, um tema sobre o qual seria possível escrever páginas e páginas. No discurso de Angostura de 1819, Bolívar proclama a incapacidade do povo venezuelano para caminhar sozinho pelas trilhas da democracia e da liberdade. ‘Um povo ignorante é um instrumento cego da sua própria destruição; um povo pervertido, se atingir a sua liberdade, bem cedo volta a perdê-la’, frisa o Libertador. Bolívar usa o mito da caverna e compara os venezuelanos com um povo que sai da escuridão, da cangalha espanhola, mas se deslumbra e é um gigante cego que deve aprender a caminhar. Porque a liberdade é um alimento suculento de difícil digestão, considera o Libertador, parafraseando Jean-Jacques Rousseau”.[14]


Convém lembrar aqui que Bolívar, alimentado pelo pensamento de Rousseau, terminou claudicando diante de um modelo de governo unipessoal, identificado com o Legislador moralizante imaginado pelo filósofo de Genebra e disposto a implantar a unanimidade, como expressão da “vontade geral” imaginada no Contrato Social, e que se concretizaria no império da moral ao redor dos “puros”. Estes, na imaginação de Rousseau, se identificavam com o líder e os seus seguidores. Tendo-se comprometido totalmente com o bem público, mediante o esquecimento dos seus interesses individuais, eles implantariam o regime da unanimidade, que conduziria a sociedade à felicidade geral. Para isso, o líder, que seria o grande Legislador, implantaria uma “religião civil” cujas premissas, segundo constava no VIII capítulo do Contrato Social,[15] permitir-lhe-iam sufocar, por qualquer meio, o dissenso no seio da sociedade. Quem divergisse do líder atentaria contra a felicidade geral e deveria ser excluído do convívio político. O líder e os puros seriam, então, portadores de uma soberania sem limites, pelo fato de se identificarem como salvadores do povo contra o egoísmo representado pela sociedade burguesa. 


De posse dessa inspiração messiânica, Chávez partiu para a concretização de um modelo savífico da sociedade na “revolução bolivariana”. Ela deveria ser concretizada, primeiro, na Venezuela, para depois estendê-la a todo o continente sul-americano, bem como às vizinhanças das ilhas caribenhas e da América Central, reforçando o papel salvacionista do comunismo cubano para a América Latina, conforme os postulados do Foro de São Paulo.


Do castrismo Chávez tirou, sem dúvida, o arquétipo prático e o apoio estratégico que lhe permitiu completar, na Venezuela, a sua “revolução bolivariana”. Duas agressivas organizações são os seus instrumentos de ação: as Forças Armadas depuradas pelo espírito revolucionário e as “milícias bolivarianas”. As primeiras, integradas por 136 mil homens, estão sendo brutalmente submetidas a um processo de depuração com a finalidade de destruir a antiga hierarquia militar alicerçada no mérito e no profissionalismo. Trata-se da transformação das Forças Armadas em Exército Revolucionário, no qual o progresso na carreira decorre única e exclusivamente da obediência cega ao Chefe. Nessa empreitada, Chávez conta com a estreita colaboração de militares cubanos. Eles estão presentes, também, na organização das “milícias bolivarianas” que chegam, atualmente, a 126 mil homens e mulheres, armados e treinados pelo Estado sob o rígido controle de oficiais do Exército definidamente chavistas. Essas “milícias”, uma espécie de “guarda pretoriana” [16] do Executivo, constituem a força que aglutina, pelo país afora, os “comitês de defesa da revolução”, organizados sob a supervisão de peritos cubanos. A finalidade destes “comitês” é clara: fazer surgir e manter viva, no seio da sociedade venezuelana, a unanimidade dos cidadãos ao redor do Chefe do Estado. Chávez traduz esse estado de entropia social com a expressão: “Bolívar somos todos nós”. Os “comitês” podem apelar, (como os “puros” de Rousseau), para a utilização de quaisquer meios na sua ação moralizadora, inclusive utilizando o terror policial e a “ação direta”, intimidando e assassinando dissidentes (como aconteceu na favela “La Piedrita”, perto de Caracas).[17]
 

Em relação à organização revolucionária das Forças Armadas, Lecumberri centra a sua abordagem na entrevista que fez ao general Jesús González González, diretor do Comando Estratégico Operacional (CEO), o organismo que planeja e dirige operações militares destinadas à defesa integral da Venezuela. Antes, porém, a autora sintetiza, assim, os aspectos orçamentários da área militar: “Em números do orçamento venezuelano de 2009, dedicaram-se à Defesa 8,9 bilhões de bolívares (4,139 bilhões de dólares no câmbio da época, de 2,15 bolívares por um dólar), um 5,3% do total. Em 2012, o orçamento global do Ministério da Defesa representa 21,299 bilhões de bolívares (5,114 bilhões de dólares no câmbio atual de 4,3 bolívares por dólar), ao redor de 7% do total. Comparativamente, no orçamento para 2012 será destinado à Saúde, um dos pontos fortes do governo de Chávez, um montante de 19,5 bilhões de bolívares (4,534 bilhões de dólares)”.[18]


Para o general González González, a política venezuelana em matéria estratégica é puramente defensiva. Contra quem? O militar, na longa entrevista que concedeu a Lecumberri, cita dois inimigos: as FARC, de um lado, e o governo americano, de outro. Não importa que as suas afirmações sejam pouco convincentes. É sabido que as FARC recebem proteção e suprimentos militares da Guarda Nacional e do Exército venezuelanos. Segundo denúncias do governo colombiano, de finais de 2010, protocoladas na OEA, o governo chavista dava guarida, em território venezuelano, a pelo menos quinze acampamentos das FARC. E, apesar dos pesares, os Estados Unidos são o grande comprador do petróleo venezuelano. A pouca objetividade do militar entrevistado levou Lecumberri a tirar esta conclusão: “Mais do que palavras de um militar profissional, parecia-me estar escutando as de um líder do partido de Chávez. Ou inclusive as palavras do próprio Chávez. Inteligente, sem histrionismos, com conhecimento e bem estruturado, o discurso do general era, também, tremendamente militante. Sem fissuras”.[19]


A reforma revolucionária das Forças Armadas conta, na estratégia de Chávez, com a intimidação dos quadros dirigentes, mediante a punição exemplar daqueles oficiais que, embora companheiros do Líder desde a primeira hora, ousaram dele divergir. É o que a autora mostra ao ensejo da longa entrevista que fez ao general Baduel, preso político que acompanhou a Chávez desde a Escola Militar, mas que se afastou dele quando, em 2005, decidiu se transformar em chefe inapelável.


As palavras do general Baduel deixam ver o esquema mafioso e totalitário do governo Chávez: “Chávez quer que eu seja um proscrito. Ameaçam a minha família, pressionam os visitantes. Disseram aos companheiros presos e aos guardas que não tenham consideração comigo, que nem sequer me cumprimentem. Companheiros militares têm medo de me visitar por causa das represálias. Mas isto é Venezuela (...). Temos caído em um esquema mafioso, o futuro da Venezuela é difícil (...)”.[20]


De outro lado, o controle do governo chavista sobre a sociedade efetiva-se, como já foi frisado, através dos “Comitês de Defesa da Revolução Bolivariana”, que utilizam um eficaz mecanismo de intimidação pela TV estatal e pelas emissoras radiofônicas do governo, em cuja programação o líder aparece diariamente. Nesses espaços, sendo um dos mais populares o programa radial “alô Presidente”, o grande comunicador que preside o país fala de tudo: economia, religião, arte, vida sentimental, saneamento básico, educação, relações internacionais, etc. Um item está sempre presente nas alocuções chavistas: as violentas denúncias do Presidente contra os que tenham divergido da sua política. Uma vez feita a denúncia pelo programa radial ou pela TV, os jornalistas “chapa-branca” se encarregam de ampliar as críticas do chefe, e os “Comitês de Defesa da Revolução” passam, então, a infernizar a vida dos “indiciados” pelo Executivo imperial. A eficácia terrorista dos “Comitês de Defesa da Revolução” do chavismo é realmente impressionante. 


Eis o que afirmava, em entrevista, Valentin Santana, líder do “Comitê” da favela “La Piedrita”, nos arrabaldes de Caracas, na véspera de uma eleição: “(...) Nós temos um exército organizado, mas agora o povo também está armado. Não acredite você que só existe Força Armada. Este povo aprendeu, quer a revolução bolivariana e vai sair à rua quando seja necessário defendê-la pela via das armas – me explica. – E quem paga as suas armas os seus veículos? São de alguma forma financiados pelo Governo? – Isso é mentira – me diz violentamente -. Nós fazemos coletas. A comunidade apóia-nos em tudo isso. (...). - Cremos nos candidatos da Revolução. Se a direita desconhece o triunfo dos companheiros teremos de agir de outra forma porque eles já decidiram que o caminho é a violência. Se eles vierem aqui, nós temos armas e vamos enfrentá-los militarmente. Não se trata apenas do projeto de Chávez; este é o projeto de todo um povo. A Revolução nasceu para ficar. Como revolucionários temos a obrigação de fazer com que isto siga caminhando. Durante esta conversa, meses antes que a emenda constitucional sobre a reeleição ilimitada fosse aprovada em fevereiro de 2009, Santana já fez menção a ela, argumentando que Chávez era, por enquanto, imprescindível e deveria governar pelo menos ‘até 2030’, para fortalecer o processo. – Se a Revolução se detém, andaríamos 20 anos para trás e isso seria uma guerra civil. Mas a frase não é sua, é de Chávez. Textual. Fica claro que Santana passa o tempo escutando o Presidente”.[21]
 

Foram vítimas desse processo de denúncia presidencial e de perseguição sumária atrás descrito, importantes figuras da oposição, ou que simplesmente divergiram dos rumos tomados pela “Revolução Bolivariana”. Entre os perseguidos contam-se militares como o general Baduel, o humorista Carlos Lovera, a juíza Lourdes Afiuni, o jornalista Peña Esclusa, o ex-oficial da Guarda Nacional Gabriel Gómez, etc.


No terreno das relações internacionais, parece que a diretriz de Chávez consiste em se relacionar preferencialmente com aqueles países cujos governos apóiem a sua “Revolução Bolivariana”.  Nicolás Maduro, ministro das Relações Exteriores e atual vice-presidente e sucessor de Chávez caracterizou, assim, em entrevista concedida a Lecumberri, a orientação efetivada da sua pasta: “É uma política exterior que foi sendo construída para tecer laços de união com esse mundo que está se configurando por novos pólos emergentes como a China, Índia, Rússia, Irã ou África e, é claro, América Latina (...) Nós lutamos contra qualquer império. Chávez estabeleceu, desde há anos, [como alicerces] a soberania e a independência da nossa política externa e a articulação com novos pólos emergentes do mundo, passando pela construção do eixo de forças que surge na América Latina. Cremos que o futuro da humanidade deve ser o socialismo, porque é a única forma de sobreviver. O capitalismo está fracassado e eu confio em que esta crise geral recolocará, na Europa e no mundo, o debate das idéias socialistas”.[22]


Para antigos diplomatas críticos da política chavista, há muita improvisação e gasto exagerado de dinheiro público na agenda exterior do governo. Uma dessas vozes críticas, o diplomata Ramón José Medina, frisava o seguinte, em entrevista concedida à autora: “Mas por trás dessa popularidade mundial de Chávez e da sua revolução, lateja um grande fracasso. Venezuela tem gastado muito dinheiro em construir um eixo com a Rússia, com a China e com o Irã, mas não tem funcionado. Saiu da Comunidade Andina de Nações (CAN) e tem tardado em ingressar como sócio pleno do MERCOSUL; a ALBA (Aliança Bolivariana para los Povos de América) é um bloco que não caminha e a União de Nações Sul-americanas (UNASUR) não é, finalmente, um órgão regional de importância estratégica (...). Há uma improvisação em termos de política exterior, consistente em não ter definido o que se quer”.[23]


III – No que tange à cultura, tudo, na Venezuela de Chávez, passou a girar ao redor do culto à personalidade do Líder. A “Revolução Bolivariana”, pensada, como foi mostrado no item anterior, a partir da ação messiânica dos puros, ou seja, de Chávez e dos seus irrestritos colaboradores, enraíza-se num misticismo que cultua a figura do Líder Carismático. Chávez, que no início de sua pregação revolucionária se aproximou da Teologia da Libertação, se identificando com Cristo Libertador dos Oprimidos, evoluiu, nos últimos anos, para uma representação religiosa mais heterodoxa ainda, no terreno da santeria afro-caribenha.


Na madrugada de 16 de Julho de 2010, os restos de Bolívar foram exumados por ordem de Chávez, nessa data simbólica que coincide com a festa da Virgem do Carmo representada, no culto yoruba, por Oyá, deusa que comanda o espírito dos defuntos. Eis aqui o relato do transe místico vivido por Chávez naquela noite, segundo a narração de Beatriz Lecumberri: “O mandatário diria depois que, ao se aproximar do esquife, sentiu um fogaréu, foi como se, desde o fundo da caveira, uns olhos o fitassem e contemplou o seu pai, Bolívar, como uma criança e sentiu desejos de abraçá-lo. Então pediu a Deus que repetisse o milagre de Lázaro e o fizesse levantar e andar antes de perceber que o Libertador continuava vivo no seio do seu povo. ‘Tive algumas dúvidas, e não sou o primeiro, ao longo destes anos. Mas ontem à noite, vendo os restos de Bolívar, não sei, o coração me disse: sim, sou eu. Choramos, quem não vai chorar? Bolívar é mais do que um esqueleto. É Bolívar vivo e lutador que hoje se colocou à frente desta revolução e deste povo’. Chávez estava visivelmente emocionado e comovido. Não era para menos. (...) As imagens de um grupo de pessoas, científicos, membros do Governo e guardas de honra, fundamentalmente, vestidos com roupas brancas e máscaras de proteção, ao redor do esqueleto do Libertador, herói da independência da região, deram volta ao país, uma e outra vez, durante vários dias”.[24]


Para o historiador Elias Pino, a encenação montada por Chávez no túmulo de Bolívar era absolutamente desnecessária e abriu a porta para interpretações heterodoxas. A respeito, frisa a autora: “No caso dos restos do Libertador, os rumores não se fizeram esperar. Um deles ganhou especialmente força: tudo teria um símbolo. Chávez teria escolhido conscientemente a data, dia da Virgem do Carmo, e a hora, três da madrugada, e um momento preciso do ciclo lunar, para realizar um ato de bruxaria no Panteão Nacional. Entre os homens vestidos de branco haveria ‘paleros’, que realizaram um ritual para dar mais força política ao mandatário, e os restos do Libertador teriam servido para uma cerimônia de santeria. ‘Não o toquei. Dizem que fizemos bruxaria. Eles são loucos. Somente fui para ver. Não podia não fazê-lo, tinha de ir’, respondeu Chávez, quase se justificando. – ‘É uma hipótese peregrina, mas a verdade é que com Chávez, este culto que antes era marginal tem-se popularizado muito. E a tentação de pensar em ritos mágicos não deixa de ter sentido’ frisa Pino. Os paleros são os iniciados num culto que chegou a países do Caribe, notadamente Cuba, com os escravos da África. Essa variante da santeria é freqüentemente criticada pelo seu obscurantismo e por fundamentar as suas práticas no relacionamento com os defuntos”.[25]


É claro que o que interessa a Chávez é se firmar, no imaginário social do povão, como messias salvador, aquele que, encarnando a figura lendária de Bolívar, é o “Novo Adão”. Efetivamente, Chávez é o criador de uma “novilíngua” caracterizada por retórica chula em que mistura expressões do povão e da caserna e dá novos nomes às coisas e às pessoas. Para o lingüista Germán Flores, Chávez apresenta-se, no seu discurso, como o “Adão do século XXI que dá nome às coisas”.[26] Não é uma tentativa nova dentre as muitas que, ao longo dos dois últimos séculos, têm emergido das sombras do espírito rousseauniano. Já os jacobinos de 1789 tinham partido, também, para empresa lingüística equivalente, no seu esforço totalitário de “gerar o novo homem” apregoado pelo filósofo de Genebra, o que ensejou o surgimento de um novo calendário com nomes grotescos para dias, estações e meses. Tanto Chávez quanto a Revolução Francesa adotaram o estilo das revoluções religiosas que apregoam a nova humanidade. Lembremos a apropriada análise que Tocqueville faz deste fenômeno, em face dos acontecimentos de 1789, no seu clássico livro O Antigo Regime e a Revolução.[27]


Chávez expande a sua imagem aos quatro ventos, utilizando fartamente, e com eficiência, a mídia. A sua onipresença lembra a perenidade de um outro ditador venezuelano, Juan Vicente Gómez (1857-1935), que inspirou a García Márquez para recriar a figura do ditador em O outono do patriarca. Acerca da personalidade oceânica de Chávez veiculada pela mídia, escreve Lecumberri: “O Presidente venezuelano é o único protagonista desta aventura revolucionária. Não há sequer atores secundários, somente figurantes. Chávez é a Revolução Bolivariana. Concentra um grande poder, converteu-se praticamente na única fonte de informação do país, marca a agenda, mantém uma onipresença na TV e enche as páginas políticas dos jornais. Chávez não é só o motor do seu próprio partido e o seu melhor embaixador, mas até alguns anos atrás também parecia ser, de alguma maneira, a pedra angular da oposição, desunida, perdida e sem programa próprio, além de criticar o chefe do Estado. Chávez está em todas partes, em todos os temas de atualidade”.[28]


Na base da comunicação chavista está a tremenda capacidade midiática do Presidente. Ele é um showman de si próprio e da sua ditadura. A respeito, frisa Lecumberri: “Mas, violento ou não, o discurso do Presidente penetra fundo nas pessoas porque ele se parece muito com elas. Chávez é um venezuelano que em direto e pela TV canta e dança joropos, espalha gargalhadas ou vomita insultos, fala de suas noivas, de fracassos sentimentais de juventude, explica qual é a sobremesa preferida, conta o que lê quando não consegue dormir e até descreve com detalhes os seus problemas digestivos. O operário de Boconó, a dona que faxina casas em Altamira, o taxista de Catia, a secretária de Chacaíto e a empregada do Metrocable de San Agustín sentem que é um Presidente próximo, que lhes fala, usando palavras claras e parecendo conhecer os seus problemas. O desembaraço de Chávez, mais estudado do que se poderia imaginar, o faz falar durante longas horas e consegue que as pessoas o escutem também durante horas (...). O estilo do mandatário provoca, ademais, um contágio generalizado, uma imitação de parte de simpatizantes e opositores. Não é fácil dizer se o Presidente fala com os venezuelanos ou se são os venezuelanos que falam com ele. Porque, já faz anos, Chávez consegue impor as suas formas. É comum escutar as expressões usadas pelo chefe do Estado na rua, na TV e nos titulares dos jornais,  independentemente de sua orientação política”.[29]



IV - Conclusões. A seguir, destacarei as três principais conclusões que se podem tirar das análises de Beatriz Lecumberri e destacarei, no final, numa quarta conclusão, as lições que podemos tirar para o Brasil.

1 – Do messianismo ao continuísmo pragmático do chavismo. Quais são as alternativas que restam para a Venezuela nestes momentos em que o fim do Ditador se insinua no horizonte, ao ensejo da sua doença incurável? Como numa espécie de relâmpago no final da tempestade, o próprio Chávez acenou com a sua sobrevivência para além da doença, fazendo sentir, aos venezuelanos, que venceria mais essa etapa na tumultuada aventura da sua existência. Porém, nem o segredo dos médicos cubanos, nem a praticamente nula transparência do governo venezuelano (acerca da evolução da moléstia), foram capazes de fazer com que as sombras do ocaso não se projetassem sobre a figura mítica do Líder. 


Sabemos, pelos jornais, que o próprio Chávez já fala do seu fim e da indicação do seu vice, o fidelíssimo ex-condutor de metrô e chanceler Nicolás Maduro para substituí-lo nas funções presidenciais, caso se veja obrigado a abandonar o poder. Esta alternativa, segundo a imprensa internacional, parece inspirada por Fidel Castro, que a pôs em prática em Cuba. Conseguiria Maduro manter o chavismo nas bases centralizadoras e messiânicas que ostenta? Será possível que o chavismo resista a uma oposição que dá mostras de estar mais bem organizada? O futuro dirá.


Mas o que o líder venezuelano queria, em primeira instância, era inserir a doença no processo simbólico de perpetuação da sua presença na mídia venezuelana e na imaginação do povo. A propósito, Lecumberri escreve: “(...) Chávez sempre fez catarse em público com mandatários, amigos, ministros, seguidores anônimos ou jornalistas internacionais. É um exercício necessário, no mandatário, purgar interpretando, ridicularizando ou relativizando no palco as coisas que lhe desagradam ou o angustiam. (...) Chávez contou pormenores de sua operação, a sua angústia, as suas dores, as suas conversas com Fidel Castro, os seus pensamentos antes de entrar na sala de cirurgia. Os venezuelanos tiveram o direito de saber de que tamanho era o tumor, quantas horas durou a operação, quem lhe deu a notícia, como reagiu ele, quanto come, quando pratica esporte, o quadro que está pintando, mas jamais foi divulgado um comunicado médico oficial nem se informou exatamente onde estava o tumor maligno. A cura de Chávez parecia e parece ser, até hoje em dia, uma questão de fé”.[30]


A respeito da manipulação da informação sobre a saúde de Chávez, alguns intelectuais consideram que quem comanda todo o processo é o governo cubano. Em relação a este ponto, afirma a conceituada historiadora Margarita López Maya: “Estamos em mãos dos cubanos que nos desenham a estratégia, que decidem até quanta informação nos é passada. É uma coisa inédita. É um país que tem a sua soberania depositada na ilha de Fidel e de seu irmão. Mas é, sem dúvida, o país que está doente, vivendo uma divisão desnecessária. Chávez quis governar por cima da Constituição e o país está destroçado (...)”.[31]


2 – Aumento descontrolado da violência e insatisfação crescente na sociedade venezuelana. Em que pese a propaganda oficial e a presença obrigatória do Líder na mídia, os problemas sociais não esperam. Segundo Américo Martín, um velho militante esquerdista do MIR (“Movimiento de Izquierda Revolucionaria”), há, hoje em dia, 500 protestos por mês contra os desmandos do governo Chávez.[32] A violência urbana, principalmente, está fora de controle. A respeito do crescimento descontrolado do fenômeno, Lecumberri registra o seguinte: “Segundo cálculos extra-oficiais, em 1999, ano em que Chávez começou a governar, houve 4.500 homicídios na Venezuela, enquanto que, em 2011, os assassinatos superaram os 19.000. Entre 2001 e 2011 ocorreram no país mais de 141.000 homicídios”.[33] Depois de anos tentando ignorar a questão, Chávez viu-se obrigado a reconhecer que a violência é um problema sério na Venezuela de hoje. Porém a culpa não é dele, segundo sua interpretação, mas dos inimigos da Revolução Bolivariana: os paramilitares colombianos, os agentes da CIA, a imprensa que divulga dados inverídicos, os empresários contra-revolucionários, etc.


Em 2009, a ONG Programa Venezolano de Educación-Acción (PROVEA) denunciou a trágica situação do país, mediante o seguinte comunicado: “Apesar das declarações dos altos mandos do Executivo nacional a respeito, registra-se um incremento sustentado da criminalidade. Há uma falta de capacidade do Governo para abordar, de maneira efetiva, os graves problemas de insegurança e uma negativa a promover o diálogo nacional para abordar a situação”.[34]


A verdade é que o governo de Chávez já não tem a força de antigamente, porque a sociedade venezuelana está reagindo contra a falta de transparência, o autoritarismo e a incompetência. O já citado líder esquerdista Américo Martín destacava a respeito: “No caso de Chávez, a sua vocação totalitária se expande, pretende ocupar todos os espaços e criar um sistema absolutamente dominado por ele, até que é detido por algo que lhe impede fechar o círculo e declarar uma ditadura. Ele não pensa com a implacabilidade de Fidel e o tema dos direitos humanos lhe produz uma verdadeira dor de cabeça, porque teme a reação popular (...).[35]


3 – Reorganização da oposição e aumento da sua capacidade eleitoral. Apesar de a oposição venezuelana ter-se mantido dividida e sem uma clara agenda política ao longo dos primeiros dez anos da dominação chavista, a situação, de um tempo para cá, começou a se desenhar de forma diferente. Em que pese o fato de proliferarem, entre os oposicionistas a Chávez, vários agrupamentos com idéias diferentes, parece que a oposição conseguiu definir uma rota de ação progressiva para ir tirando força ao governo. Insinua-se, no horizonte, a possibilidade de um triunfo eleitoral. 


A campanha presidencial de Outubro de 2012, se bem deu a vitória a Chávez, no entanto manifestou que praticamente a metade dos venezuelanos é partidária de um candidato como Henrique Capriles, que apresenta propostas moderadas de governo e que se dispõe a criar uma agenda comum com outros grupos oposicionistas. Surge, assim, no panorama venezuelano, uma oposição com capacidade de pôr fim ao ciclo chavista, por meios democráticos. A vitória de Capriles como governador do Estado de Miranda, em meados de dezembro de 2012, reforçou esta possibilidade.


Para Capriles, o chavismo pode ser substituído por um governo democrático e pluralista, que conserve o lado bom dos programas sociais realizados por Chávez, sem, no entanto, polarizá-los ideologicamente como faz o atual presidente. A respeito, afirmava Capriles em entrevista a Beatriz Lecumberri: “Não acredito na forma de fazer política que faz chantagem atemorizando as pessoas. Falo com muita gente na rua que simpatiza com o atual governo e que me pergunta: ‘É verdade que você vai tirar isto?’ Ora, não faria isso nem que fosse louco. Você acredita que alguém pode lhe tirar a casa ou um serviço de saúde? Ninguém pode tirar essas coisas. As missões[36] devem ser melhoradas. Para ninguém é um segredo a crise que se instalou na prestação desses serviços. Se quisermos fechar os olhos, nunca veremos o problema”.[37]


Em que pese a situação de deterioro institucional em que o país se encontra, não pode ser negado, segundo Beatriz Lecumberri, que o saldo social do governo chavista é a realização mais importante. A própria oposição o reconhece ao pretender manter esses programas, como destacava Capriles na sua campanha recente, libertando-os, no entanto, do peso autoritário, personalista e messiânico. Esse tipo de avaliação foi feito pela historiadora Margarita López Maya, com as seguintes palavras: “O que para mim fica claro é que, se o governo de Chávez terminasse amanhã, o seu grande legado será essa prioridade no combate e redução da pobreza, bem como o fato de ter colocado todo o aparelho do Estado nessa direção (...). Neste país era fundamental dar de comer às pessoas. Na prática, ele o tem feito de forma péssima, mas conceitualmente há coisas muito valiosas. Por exemplo, a Missão Bairro Adentro. O fato de ter colocado ali esses médicos cubanos, 24 horas por dia, prestando serviços gratuitos, é uma idéia maravilhosa conceitualmente. Igualmente, os modelos de alfabetização. É necessário massificar a educação como apregoa este governo, mas claro, deve ser educação de qualidade e não ideológica. As missões sociais deveriam ser parte das instituições do Estado e estar garantidas pelo orçamento nacional, não unicamente pelo Presidente. Tudo deverá ser corrigido um dia para que continue funcionando, porque hoje tudo depende do Presidente para que todos votemos nele”.[38]


4 – Reflexão em face da realidade brasileira. A análise crítica do chavismo feita na sua obra por Beatriz Lecumberri é de grande valor para, no Brasil, pensarmos acerca do que de aproveitável há na era lulopetista, a fim de corrigir os rumos que ameaçam com levar por água abaixo a estabilidade econômica e o funcionamento das instituições democráticas. Assim como o chavismo na Venezuela, a era lulopetista apresentou-se, perante a sociedade, como uma salvação tipificada naquele chavão de Lula: “Nunca antes na história deste país”. 


O sistema de bolsas sociais com que os governos petistas tentaram combater a desigualdade teve, certamente, um aspecto positivo: diminuiu a pobreza dos setores mais carentes, beneficiários das mesmas. Mas trouxe um aspecto negativo: a não suficiente avaliação do impacto desses benefícios, aliada às dificuldades do empresariado (às voltas com pesadíssima carga tributária), criou obstáculos para a geração de empregos em novas indústrias e a inserção no mercado de trabalho dos beneficiários dos programas sociais, que, nas regiões mais carentes, passaram simplesmente a depender do favor oficial, configurando massa de manobra política em períodos eleitorais. De outro lado, a improvisação em matéria de gestão, bem como a índole autoritária da militância que ocupou os cargos da alta burocracia, emperrou a racionalidade da administração pública, com medidas atabalhoadas e quase nenhuma transparência. 


A idéia de que, em lugar de incentivar a iniciativa privada, era necessário estimular o surgimento de empresas estatais, fez com que voltasse o antigo fantasma da inflação. Os preconceitos contra setores modernos da economia, como a agroindústria, têm criado sérios problemas para o progresso desse setor, responsável em boa medida pela preservação das nossas reservas. E as práticas perversas da cooptação de parlamentares pelo Executivo terminou fazendo deslanchar a onda de corrupção ao ensejo do “Mensalão”, “como nunca na história deste país”.


Corrigir esses rumos implica, certamente, em diminuir o peso do Estado na economia, como se faz necessário na Venezuela de hoje. Torna-se imperativa, mais do que nunca, a transparência na gestão da Petrobrás e dos Bancos estatais, notadamente o BNDES. É imprescindível, também, efetivar uma séria crítica ao populismo. Segundo esse tipo de dominação (uma variante hodierna do Patrimonialismo), o líder carismático, com a sua capacidade de fazer promessas irresponsáveis, termina comprometendo a governabilidade e gera fantasmas que irão assombrar as gerações futuras, com a volta do velho estatismo salvacionista e do seu corolário, a inflação, na melhor tradição familística, tão em voga na América Latina.



[1] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental: viaje periodístico  por la Venezuela de Chávez. Prólogo de Cristina Marsano. Caracas: Puntocero, 2012, p. 125.
[2] LECUMBERRI,  Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 127.
[3] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 126-127.
[4] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 144. A autora faz alusão à entrevista concedida por Heinz Dieterich à página web Kaos, em agosto de 2011.
[5] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 144. A obra mencionada nesta citação é: Margarita LÓPEZ MAYA e Vladimir ACOSTA (organizadores), Ideas para debatir el socialismo del siglo XXI, Caracas: Editorial Alfa, 2007, 2 volumes.
[6] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 145.
[7] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 145.
[8] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 134-135.
[9] Ce. LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 140.
[10] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 157.
[11] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 155.
[12] A expressão é do cientista político russo Paul Miliukov (1859-1943), um dos estudiosos mais destacados das bases econômicas do Patrimonialismo, no contexto dos despotismos hidráulicos. Cf. A respeito, WIITFOGEL, Karl (1896-1988), Le despotisme oriental. (Trad. de Micheline Pouteau), Paris: Minuit, 1977.
[13] Foram entrevistados pela autora os seguintes historiadores, membros da Academia Nacional de História de Venezuela: Inês Quintero, Elias Palomino e Germán Carrera Damas.
[14] Apud LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit, p. 307-308.
[15] Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social. Paris: Gallimard, 1987.
[16] A expressão tem sido utilizada por alguns oposicionistas para caracterizar a natureza violenta dessa organização, a serviço do projeto chavista. Cf. LECUMBERRI, Beatriz, La revolución sentimental, ob. cit., p. 114-115.
[17] Cf. LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 101-102.
[18] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 108-109.
[19] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 109.
[20] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 32-33.
[21] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 101-102.
[22] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 170.
[23] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 174.
[24] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 300.
[25] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 302-303.
[26] ECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 280.
[27] Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. (tradução brasileira de Y. Jean). Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1979.
[28] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 201-202.
[29] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 282.
[30] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 290-291.
[31] LÓPEZ MAYA, Margarita, apud LECUMBERRI, Beatriz, La revolución sentimental. Ob. cit., p. 291.
[32] Apud LECUMBERRI, Beatriz, La revolución sentimental, ob. cit., p.  50.
[33] LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 218.
[34] Apud LECUBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 229.
[35] Apud LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 50.
[36] Nome dado por Chávez aos programas sociais do governo.
[37] Apud LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental. Ob. cit., p. 379.
[38] Apud LECUMBERRI, Beatriz. La revolución sentimental, ob. cit., p. 57.

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