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sexta-feira, 4 de maio de 2012

CAPITALISMO DE ESTADO OU NEOPATRIMONIALISMO?


Merval Pereira, na sua coluna de O Globo de 1º de Maio, intitulada: “Novos Tempos”, faz referência a dois pontos de reflexão importantes sobre a atual situação sociopolítica do país: menciona, em primeiro lugar, a entrevista concedida pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à Folha de S. Paulo e, em segundo lugar, refere-se à recente palestra proferida pelo historiador Boris Fausto na Academia Brasileira de Letras. 

À luz das análises citadas, estaria se consolidando, no nosso país, nova modalidade de poder vinculada ao capitalismo de Estado, potencializando o capital especulativo, sob o rígido controle do Executivo apoiado em “nova classe” (como diria Milovan Djilas). Essa nova elite dirigente está constituída ao redor da Presidência da República e do seu hipertrofiado Ministério, pelo sindicalismo emergente e integrada, também, pelos “burgueses do dinheiro alheio” (na feliz expressão de Reinaldo Azevedo). Ora, essa cúpula da pirâmide controla os fundos de pensão das estatais e as megaempresas multinacionais e está se enriquecendo rapidamente, deixando por fora do festim “o resto”, a sociedade brasileira, que vê despencar tragicamente a sua qualidade de vida, com crianças morrendo às portas de hospitais públicos pelo Brasil afora, com estradas intransitáveis e com o drama da insegurança matando cidadãos desarmados, na nova etapa da guerra do narcotráfico que assola ao nosso país. O festival de viagens internacionais com políticos e empresários se refestelando em Paris seria a contracapa da tragédia nacional e uma prova da rápida consolidação desse novo modelito de “peronismo à brasileira” (ao qual Fernando Henrique fez alusão em artigos anteriores à sua entrevista à Folha).

Nesta altura do campeonato convém, no entanto, dar nome aos bois, utilizando a terminologia que a sociologia weberiana cunhou há décadas no seio da cultura brasileira. Refiro-me especificamente, ao termo “capitalismo de Estado” com que integrantes da intelligentsia de esquerda (entre eles Boris Fausto e Fernando Henrique Cardoso) teimam, ainda, em caracterizar o que está acontecendo no nosso país. Acho muito mais pertinente falarmos em “neopatrimonialismo” ou em “patrimonialismo modernizador”. O termo “Capitalismo de Estado” deita, a meu ver, uma cortina de fumaça sobre o real processo histórico de consolidação das nossas instituições políticas. 

Nos anos setenta do século passado, dois pensadores, Antônio Paim e Simon Schwartzman, consideraram que o que estava acontecendo no Brasil, ao ensejo do ciclo militar, consistia numa nova etapa do que eles denominavam de “patrimonialismo modernizador” (Paim) ou “neopatrimonialismo” (Schwartzman). Ora, estes termos, considero eu, traduzem de forma muito mais adequada o que acontece no seio da sociedade brasileira, com motivo da atual etapa do nosso “capitalismo tupiniquim”. Weber deixou elaborada, em Economia e Sociedade, a teoria de que, ao ensejo do surgimento dos Estados modernos no longo período que vai do século XIV até o XIX, consolidaram-se dois modelos: contratualista e patrimonial. 

O primeiro, contratualista, teria acontecido ali onde houve “feudalismo de vassalagem”, tendo permitido a diferenciação da sociedade em classes que lutavam pela posse do poder, num processo que François Guizot identificou, pioneiramente, na terceira década do século XIX, como “luta de classes”. Não tendo resultado dessa luta a aniquilação de uma classe por outra (concretamente, na Europa Ocidental, a eliminação da nobreza pela burguesia), os litigantes tiveram de sentar à mesa de negociação e elaborar o “contrato social”: as antigas inimigas, burguesia e nobreza, no final do século XVII, na Inglaterra, negociaram a partilha do poder centralizado no Parlamento. Caberia a burguesia representar os seus interesses na Câmara Baixa, e à nobreza fazer o mesmo na Câmara Alta, tendo surgido, assim, o modelo de bicameralismo e de governo representativo, que passou a formar parte do ideário liberal, tematizado por John Locke nos seus Dois Tratados sobre o Governo Civil (1689). Esses escritos foram como que o marco teórico com que se encerrou o longo processo de surgimento do modelo de “monarquia constitucional”, culminado com a Revolução Gloriosa de 1688.

O segundo modelo de Estado moderno, o patrimonial, segundo Weber, surgiu ali onde o poder central se consolidou ao ensejo da hipertrofia de um poder patriarcal original, que alargou a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a administrá-los como propriedade familiar (patrimonial). Esse foi o modelo de Estado que vingou na Rússia, nos Califados árabes, na Península Ibérica, na China, na Índia, etc., e que perpetuou o antigo arquétipo de “despotismo hidráulico” (estudado detalhadamente por Karl Wittfogel na sua obra, dos anos 50 do século passado, intitulada: Despotismo oriental). O “despotismo oriental” se manifestou muito cedo nos impérios da antigüidade (Egito, Mesopotâmia, Pérsia, China e impérios ameríndios pré-colombianos inca e asteca), ao ensejo da necessidade do controle da água por uma pre-burocracia central (o que levou Wittfogel a denominar esses regimes, também, de “hidráulicos”). O Império Romano sofreu a influência deles, notadamente daquele que vingou no Egito dos Faraós, na fase de influência macedônica (no longo ciclo que vai do III século antes de Cristo até o século IV da nossa era). 

Ora, conforme mostraram inicialmente Alexandre Herculano (na sua História de Portugal) e, posteriormente, no caso brasileiro, Gilberto Freyre (em Casa grande e senzala), Oliveira Vianna (em Instituições políticas brasileiras e Populações meridionais do Brasil) e Raymundo Faoro (em Os donos do poder), o modelo político que terminou vingando, na metrópole portuguesa e entre nós, não foi certamente o contratualista, mas o patrimonial. O poder no Brasil, como diz Faoro, “sempre teve donos”. Houve, certamente, momentos de modernização (e na análise deles aprofundaram Paim com A querela do estatismo, de 1978 e Schwartzman, com São Paulo e o Estado nacional, de 1975, e Bases do autoritarismo brasileiro, de 1982). Os principais momentos de modernização foram o Segundo Reinado e o Estado getuliano, sendo que o Império introduziu e consolidou a prática da representação, ao passo que Getúlio elaborou eficaz sistema de gestão tecnocrática, substituindo a representação pela cooptação. 

O mérito de Juscelino consistiu em ter adotado como parâmetro o modelo de modernização getuliano, mas preservando a representação. Algo semelhante pode-se afirmar do regime militar, no qual, em que pese o viés autoritário decorrente da gestão do Estado manu militari, no entanto foi construída uma base de representação ao redor do bi-partidarismo (lembrando a última fase do getulismo). Com o petismo, certamente, temos a volta do patrimonialismo menos modernizador (como destacou, com pertinência, mestre Antônio Paim no seu livrinho, de 2002, intitulado: Para entender o PT). Na atual quadra da vida política brasileira, a representação foi trocada pela cooptação e as agências reguladoras tornaram-se objeto de barganha política. Assim, o capitalismo sindical e estatizante que ora nos assoberba é mais um modelo de patrimonialismo que derrapa para um viés arcaico, pelo fato de gerir a economia como “obra do príncipe” (ou do “novo príncipe”, no jargão gramsciano). Os novos “donos do poder”, o Executivo hipertrofiado e os seus asseclas encarapitados nos 43 ministérios da era petista, distribuem os benefícios do enriquecimento entre os amigos da classe política, os membros da elite sindical e os megaempresários escolhidos a dedo pelo Estado, deixando a ver navios o resto da sociedade. Esta é contemplada com as sobras do banquete mediante as “bolsas” dos programas sociais, que garantem eleições e reeleições e tornam a iniciativa privada refém da máquina do Estado e eterna pagadora de escorchantes impostos. Tornamo-nos, assim, cronicamente, retomando o título da obra de Stefan Zweig escrita nos anos 40 do século passado, o “país do futuro”.

2 comentários:

  1. Obrigado, mestre. Fez-me lembrar suas estupendas aulas.

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    1. Caro Selvino, obrigado digo eu, você é um fiel e construtivo leitor dos meus artigos, é bom te reencontrar por aqui!

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