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sábado, 4 de fevereiro de 2012

CRIMINOSO DESLEIXO


Nascemos, vivemos e morremos no município. Mas agimos como se esta unidade político-administrativa nada tivesse a ver com as nossas vidas. A atitude que nos anima, em face dela, é o tradicional desleixo. O Município não conta. Não nos interessa. Agimos visualizando a nossa realidade mais próxima, com “vista cansada cívica”. Vemos muito bem o que acontece longe de nós. Mas, quando se trata de enxergarmos a realidade mais próxima, não vemos nada. É como se ela não existisse. Ora, é aí, no Município, na localidade em que moramos, onde se joga a sorte da nossa qualidade de vida. Ignorar o lugar onde vivemos é uma atitude estúpida. Nem chegaria a qualificá-la de “animal”, pois os bichos se caracterizam por cuidar do seu entorno, são essencialmente “territoriais”.
Um evento desastroso deixou claro, no Rio de Janeiro, semanas atrás, essa atitude tresloucada de desleixo municipal, quando o edifício Liberdade, no centro do Rio, desabou, levando consigo uma jóia arquitetônica, o edifício Colombo e mais outra construção, com o saldo trágico de vidas humanas ceifadas. A realidade é que os prédios que desmoronaram no centro do Rio, perto da Cinelândia, foram objeto de vários atos de desleixo por parte da administração municipal, de um lado, e, também, por parte dos cidadãos. O primeiro ato de desleixo ocorreu, ainda na década de 30 do século passado, quando, por volta de 1938, foi autorizada, pela prefeitura, a construção de um “puxadinho” nos últimos andares do edifício Liberdade, comprometendo, como destacaram peritos posteriormente, a estabilidade da edificação. O segundo ato de desleixo ocorreu no início dos anos 70, quando da construção do metrô do Rio. A galeria da Cinelândia terminou comprometendo  a estabilidade da mencionada edificação, como ficou patente pelo laudo técnico levantado na época. As fissuras na fachada do prédio foram maquiadas criminosamente e tudo ficou na santa paz de Deus. O terceiro - e trágico - ato de desleixo correu por conta da firma proprietária de um escritório que, na altura do 9º andar, efetivou obras que abalaram a estrutura, tendo sido guardados os dejetos da reforma num dos andares superiores do prédio. Nos três episódios é visível, em primeiro lugar, a irresponsabilidade da autoridade municipal, que não tomou medidas para garantir a segurança da construção, ou que as tomou justamente no sentido contrário, ao permitir reformas que abalassem os alicerces do prédio. Nos três episódios, de outro lado, fica visível a passividade dos cidadãos que tomaram conhecimento do fato e que não fizeram nada. É bem verdade que, em 1938 e em 1970, a passividade cidadã era induzida por regimes autoritários que pouco se interessavam pelo que dizesse relação à segurança dos cidadãos, no contexto do princípio despótico: “Estado forte, cidadão fraco”. Já no episódio hodierno, que levou à queda dos prédios, ficou patente, além da irresponsabilidade do poder municipal que deixou rolar uma obra sem autorização, a pouca sensibilidade cívica dos indivíduos, que tiveram conhecimento do fato e que nada fizeram para comunicar às autoridades os riscos que estavam correndo todos os que transitavam pelos prédios derrubados.
O que há de fundo nesses tristes fatos é o fenômeno cultural apontado por Oliveira Vianna em Instituições Políticas Brasileiras: não temos, como valor sedimentado no fundo das nossas almas, o apreço pelo bem público. Somente nos ocupamos da perspectiva individual e familiar. Quando lidamos com algo que ultrapasse esta fronteira, temos três atitudes: ou procuramos privatizá-lo, levando-o para a nossa casa, ou o ignoramos, ou pior, o destruímos. Privatizamos o espaço público ou os bens públicos, quando isso é possível, nos apropriando de terras, praias ou bens comuns (sendo um destes os recursos do Tesouro, tão desejados por políticos corruptos nos dias de hoje). Ignoramos o espaço público, quando não damos a mínima para a rua que passa em frente da nossa casa ou emporcalhamos pracinhas e passeios. Destruímos o que é de todos, quando, após o jogo de futebol, descarregamos a agressividade sobre orelhões e equipamentos urbanos.
Nas minhas aulas e palestras costumo ilustrar essa atitude negativa com um exemplo: a pior coisa que pode acontecer a um brasileiro é se tornar síndico do prédio onde mora. Imaginemos que é necessário aprovar uma reforma urgente em assembléia de condôminos. Fixamos a data e hora da reunião, com a seguinte anotação: “assembléia extraordinária para tal dia, em tal horário (19 horas, por exemplo), sendo que a assembléia começará às 20 horas com o número de condôminos presentes”. E anotamos: “as despesas aprovadas na assembléia valem para todos”. Passam os dias e, quando é efetivada a cobrança da taxa aprovada na assembléia, aparece sempre o condômino esperto que se recusa a pagá-la, “porque não fui consultado”. Temos o perverso hábito de nos refugiarmos no interior da nossa vida privada, ignorando olimpicamente o que diz relação ao bem comum. Nisso consiste a nossa falta de espírito público. Ora, se não damos a mínima para o nosso condomínio, muito menos vamos nos preocupar com o bairro onde moramos, com a cidade, com o Estado, com o país. Esse espaço de “individualismo insolidário” é preenchido pelo Estado autoritário e pela sua burocracia corrupta.
É bem verdade que esses defeitos não são exclusividade brasileira. Integram a tabela de anti-valores em que são ricos os países formados no modo de ser patrimonialista, ali onde o Estado se formatou ao ensejo da hipertrofia de um poder patriarcal original, que foi incorporando à sua dominação doméstica territórios, pessoas e coisas extra-patrimoniais, passando a administrá-los como propriedade familiar ou patrimonial. No México, apontado pelo escritor Octavio Paz, como um dos exemplos mais vivos de privatização do poder pelos clãs e patotas e denominado, por ele, de “Ogro Filantrópico”, no terremoto de 1968 ruíram a maior parte dos prédios públicos, que tinham sido construídos com base em maracutaias sem fim pela corrupta burocracia do Partido Revolucionário Institucional. É triste - e suicida - a atitude de individualismo insolidário cultivada pela nossa tradição de Patrimonialismo político!

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O jornal Tribuna de Minas realizou, entre os dias 17 e 20 de Junho de 2010, uma série de reportagens sobre a interiorização da criminalidade, decorrente do narcotráfico, em Juiz de Fora e outras cidades da Zona da Mata. Várias matérias foram preparadas pelos jornalistas Guilherme Áreas, Sandra Zanella e Renata Brum. Ao ensejo da pesquisa jornalística empreendida pelo jornal, respondi ao repórter Guilherme Áreas as perguntas que ora seguem:


- Como você já escreveu vários artigos sobre a criminalidade no Rio e mora em Juiz de Fora, você percebe alguma semelhança entre o perfil da criminalidade nas duas cidades?

Bom, há uma semelhança básica, embora os números da criminalidade em Juiz de Fora ainda não tenham, felizmente, chegado ao grau de violência em que mergulhou a capital carioca. A semelhança é, basicamente, a seguinte: o estouro da criminalidade acompanhou, em ambas as cidades, ao aumento no consumo de narcóticos. Segundo o “Balanço do Carnaval na Região” (Tribuna de Minas, 10-02-10), a apreensão de crack foi, em 2009, de 37 gramas, e em 2010, de 58 gramas. A criminalidade acompanhou esse aumento de circulação de crack na área estudada (86 cidades atendidas pela 4ª Região da Polícia Militar de Minas Gerais). Os índices foram, respectivamente, os seguintes, em 2009 e 2010: acidentes de trânsito urbano (126/138); acidentes com vítimas fatais na área urbana (0/3); homicídios consumados (3/7); tentativas de homicídio (3/5); lesões corporais (211/242); furtos qualificados em residências (40/44); furtos qualificados na zona rural (4/7); número de operações realizadas (523/600); número de armas de fogo apreendidas (13/21) fuga de presos (0/1) foragidos (0/2); autuações de trânsito municipal (223/287). Repete-se, aqui, constatação que já tinha sido feita nas cidades colombianas, bem como no Rio de Janeiro e em São Paulo e que está sendo registrada, hoje, com pavor, pelos mexicanos, por exemplo, em Ciudad Juarez (a nova capital mundial do narcotráfico), onde a criminalidade decorrente da ação dos cartéis da droga praticamente explodiu, se tornando questão de segurança nacional.

- De que forma o crime organizado no Rio pode interferir na criminalidade em Juiz de Fora? Os 184km que separam as duas cidades são uma distância curta quando o assunto é violência?

Como destacou o estudioso Julio Jacobo (autor do Mapa da Violência no Brasil), em entrevista concedida em 24 de maio passado à TV Estadão, de São Paulo, houve, nos últimos anos, um fenômeno de interiorização da violência decorrente do narcotráfico nas cidades brasileiras. Como nas grandes capitais (Rio de Janeiro e São Paulo, especialmente) as autoridades começaram a desenvolver políticas agressivas de combate ao narcotráfico, os criminosos interiorizaram os seus negócios, passando a estocar drogas e a organizar o comércio da morte a partir de cidades do interior. As autoridades dessas localidades ainda não estavam preparadas para fazer frente a essa nova realidade e, então, os índices de criminalidade dispararam. Esse é um fenômeno que o citado estudioso constata ao longo de todo o país. Juiz de Fora, assim, não foi exceção. A presença de narcotraficantes cariocas e paulistas certamente tem mudado, na nossa cidade, o perfil da criminalidade. E a sociedade civil ainda não acordou para essa nova realidade, ao contrário do que já está acontecendo nas grandes cidades litorâneas, onde os cidadãos ficaram muito mais espertos em face do narcotráfico, passando a colaborar estreitamente com os organismos policiais. O consumo de entorpecentes ainda não perdeu o seu charme para setores expressivos da nossa sociedade. É tolerado e até estimulado em festinhas e raves.

- A ocupação das favelas cariocas pela Polícia Militar (Unidade de Polícia Pacificadora - UPP) deixa claro que um dos objetivos é expulsar os traficantes dos morros. Mas nem por isso eles deixam de ser traficantes. Para onde vão esses criminosos? Para o asfalto carioca ou para cidades vizinhas? Há notícias de que traficantes tenham ido para outros municípios devido à ocupação pela PM? Eles poderiam ter ultrapassado os limites do estado do Rio e vindo para Minas, por exemplo?

Não há dúvida de que isso vem acontecendo. Tranqüilas cidades do interior brasileiro, como Atibaia, em São Paulo ou Mar de Espanha, na Zona da Mata mineira, por exemplo, passaram a receber “investimentos” de notórios traficantes, porque nestas localidades ficavam os testas-de-ferro muito mais tranqüilos em relação ao combate sem trégua que, nas capitais, estava sendo desfechado pelas autoridades policiais. Não que as polícias militar e civil tivessem menos empenho na luta contra os bandidos nas cidades do interior. Mas a presença mais agressiva dos traficantes, nestas localidades, não foi acompanhada de um reforço da segurança pública condizente com a nova realidade. E, o que é mais grave, os cidadãos ainda se sentem alheios ao problema.

- Informações apontam que traficantes cariocas já começam a deixar de lado a venda de crack, devido ao alto poder destrutivo da droga, e voltando o foco novamente para a maconha. Isso procede? É uma tendência natural? Será que Juiz de Fora, que vive uma verdadeira "epidemia" de crack, seguirá essa tendência daqui a alguns anos?

Bom, neste caso seria interessante consultar os números que a 4ª Região da Política Militar tem em relação às apreensões de narcóticos. Uma eventual substituição do comércio de crack pela maconha ainda deve, no entanto, preocupar. Porque, como está provado por especialistas e pela experiência de outros países, a maconha é a porta de entrada para drogas mais pesadas. É lamentável ver figuras públicas, como o ex-ministro do meio ambiente Carlos Minck, em passeatas em prol da liberação da maconha. Essa é uma canoa furada.  

- Aqui em Juiz de Fora os jovens envolvidos com a criminalidade se identificam muito com as facções criminosas do Rio. Nossa reportagem mapeou as gangues de Juiz de Fora e descobriu que elas necessariamente assumem uma posição entre Comando Vermelho (CV) ou Amigos dos Amigos (ADA), por mais que as facções originais não tenham ligação direta com os jovens daqui. A que você atribui toda essa idolatria às facções e de que forma esses grupos criminosos organizados influenciam em comunidades a quilômetros de distancia deles?
CV e ADA viraram verdadeiras logomarcas?

Infelizmente as siglas dos narcoterroristas viraram logomarcas. Nos morros Medellín, na Colômbia, o traficante era, há quinze anos atrás, o herói da parada, como acontece ainda hoje em áreas faveladas das nossas cidades. Diante de um quadro de desemprego grande para os jovens, os traficantes oferecem a miragem do enriquecimento rápido e do consumo suntuário daí decorrente. Os jovens sem perspectivas de trabalho ficam, evidentemente, impressionados. Andar na garupa de uma moto com tênis de grife e portando um AR-15, faz do adolescente que caiu na cantada do narcotráfico um herói momentâneo. Em Juiz de Fora não chegamos ainda a esse extremo. Mas os traficantes teimam em botar a sua logomarca em locais públicos. Moro na pracinha de São Mateus e é comum, nas imediações, ver pichações com as logomarcas CV e ADA. A Prefeitura, há algum tempo, tomou providências e na quadra de esportes (que constituía uma verdadeira feira livre de logomarcas criminosas) foram convidados artistas do grafite para que decorassem os muros da quadra, que fica a metros de distância do posto policial. Essa ação, de reforçar a presença do Estado, em lugares públicos que os marginais pretendem se apropriar, é fundamental. Não pode, no entanto, ser episódica. Tem de ser constante. A atual administração municipal (imagino que pela escassez de verbas decorrente da má administração anterior), praticamente abandonou a limpeza urbana. Isso é muito negativo. Porque dá, para os meliantes, a impressão de que o espaço público está aberto para colocarem a sua propaganda deletéria e instalarem, ali, os seus postos avançados de venda de entorpecentes. Gostaria de fechar esta entrevista lembrando o excelente exemplo que a Polícia Militar está dando na Vila Olavo Costa, onde, ademais da ação repressiva contra os bandidos, o Posto Policial está incrementando ações de cultura, mediante a criação de uma pequena biblioteca comunitária destinada aos jovens do bairro. Isso é importantíssimo. Em cidades como Medellín (que era, há quinze anos atrás a cidade mais violenta do mundo, com 350 assassinatos por 100 mil habitantes) a violência do narcotráfico caiu verticalmente graças ao binômio repressão policial contra os traficantes e ações massivas de cultura popular (implementadas pela prefeitura). Nessa cidade, em 2007, foram inauguradas cinco mega-bibliotecas populares nos bairros mais violentos. A fórmula deu certo e hoje Medellín é uma cidade procurada por investidores do mundo inteiro. Essa fórmula, não tenho dúvida, dará certo também em Juiz de Fora.
 

Um comentário:

  1. A função precípua do político é representar os interesses da comunidade. Isto valia quando foi criado o sistema representativo. Atualmente as funções dos políticos - mormente as parlamentares - foram esvaziadas. Passaram para o executivo, judiciário e a mídia. Talvez proporcionando ferramentas capazes de o povo entrar em contato com esses órgãos poderá haver um cuidado maior com o que nos rodeia localmente, isto é, o município.

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