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sábado, 26 de novembro de 2011

PADRE ANTÔNIO VIEIRA – IDÉIAS POLÍTICAS E ESTRATÉGICAS


O Período Iluminista, ao qual pertence o Padre Antônio Vieira (1608-1697), pode ser dividido em três grandes etapas: a primeira, centralizada ao redor da ilustração da sociedade pela razão encarnada no monarca absoluto, abarca o século XVII até 1680; a segunda identifica-se com o período denominado por Paul Hazard de “crise da consciência européia” [1] e se estende de 1680 até 1715, correspondendo ao declínio do absolutismo de Luís XIV (1638-1715) na França; a terceira, identificada com a apropriação das Luzes pela sociedade, vai de 1715 até 1789, culminando com a Revolução Francesa. O missionário jesuíta escreveu a sua obra, portanto, no contexto da primeira etapa, absolutista, da Ilustração. Daí a grande importância que na meditação vierina tem a figura do Monarca português, Dom João IV (1604-1656), que centraliza as iniciativas de racionalização do Estado após reaver a Coroa Portuguesa, em 1640.

Concentrarei a minha exposição do pensamento do Padre Vieira em torno a dois pontos: a idéia de Quinto Império, de um lado e, de outro, o aspecto estratégico e político da temporalidade luso-brasileira. Pretendo mostrar que a mística salvacionista do primeiro ponto complementa-se muito bem com o pragmatismo do segundo. O Padre Vieira acreditava firmemente na vinda do Reino definitivo de Deus na Terra e valorizava, ao mesmo tempo, a ação e a racionalidade políticas, como meio para tornar realidade, aqui e agora, esse ideal.



O QUINTO IMPÉRIO

O pensamento do Padre Vieira insere-se no contexto das grandes Teologias da História, vigentes nos sistemas filosóficos desenvolvidos nesse período, como, por exemplo, na obra de Leibniz (1646-1716) e de Espinosa (1632-1677). A sua será uma Teodicéia sui generis, porquanto incorpora temas tratados pela Teologia da História no seio da Gnose Medieval, de que é exemplo a obra do monge calabrês Joaquim de Fiori (1132-1202), sob cuja inspiração se coloca o padre jesuíta quando pretende relatar a sua “História do Futuro” [cf. VIEIRA, s/d: 9]. À luz dessa inspiração, o Pe. Vieira considera que, na economia da Providência Divina, sucederam-se, na História da Humanidade, cinco grandes Impérios: o Assírio, o Persa, o Grego (de Alexandre), o Romano (do qual forma parte, como último capítulo, a dinastia dos Áustrias) e o Quinto Império, que deverá ser presidido pelo rei Dom João IV de Portugal, falecido em tempos do pregador, mas que ressuscitaria para ficar à frente da grande obra, que coroaria a caminhada da Humanidade em direção à Unidade Plena, sob a inspiração do Espírito Santo, num processo escatológico que Paulo Borges denominou, com propriedade, de “plenificação da história” [Cf. BORGES, 1992: V, 516-524; BORGES, 1995: 13].

O contexto histórico próximo em que se situa a meditação do Padre Vieira é o da reação nacionalista portuguesa contra a invasão a Portugal, praticada pela Espanha sob Filipe II. Essa reação está toda ela inspirada no profetismo popular do Bandarra, do qual emerge um ideal messiânico-político forte, que se apropria centripetamente das várias vertentes que apregoavam o Quinto Império, a começar pelas obras da historiografia alcobacense e incluindo, também, fontes heterodoxas como a cabala judaica, além de escritos de astrólogos, cosmólogos como Tycho Brahe e Kepler, e visionários da época.

Segundo Hernani Cidade, o Padre experimentou a “necessidade de uma transformação universal das condições da cristianização do Mundo. Um milagre divino viria atender à necessidade de milhões de almas, segundo era lógico esperá-lo da infinita bondade de Deus. E como cumpria que fossem humanos os instrumentos da obra divina, lógico era também admitir a previsão que o profeta nacional, Bandarra, aditava às dos profetas bíblicos – Daniel, Isaias e Jeremias: o cetro único a unir ao báculo único, no império que havia de condicionar o universal dilúvio da Graça, seria o do rei de Portugal – e ressuscitado, para que mais visível e inconfundivelmente fosse marcado por Deus para a divina missão que lhe confiara. Vieira radica esta fé na literatura autonomista que o nacionalismo exacerbado gerara sob o domínio filipino, principalmente a historiografia alcobacense, que dera todo o enlevo às promessas de Afonso Henriques, na aparição de Ourique. Ás profecias de Bandarra, juntavam-se, entre outras nacionais, a do Beato Amadeu e a de (...) Gil de Santarém; mas não faltavam profetas estrangeiros a fortalecer-lhe a convicção sobre a futura realidade do Quinto Império: Santo Isidoro de Sevilha, Santa Brígida, Santo Ângelo Carmelita, Mártir, Fr. Bartolomeu de Salucio e ainda astrólogos e visionários ou fantasistas como Tycho-Brahe, Kepler, Justo Lipsio, Jerônimo Vechietto, de todos os quais recolhe dados que, em sua pureza ou acrescidos do sentido que lhes empresta, adapta como esteios à sua atrevida arquitetura ideológica” [CIDADE, 1957: I, XXV-XXVI].

Que Portugal seria a nova Terra escolhida por Deus para ali construir o Quinto Império, disso não tinha dúvida o Padre Vieira. O Reino Lusitano e o vasto império ultramarino chegaram à expansão conhecida em meados do século XVII, por obra da Providência, a fim de que fosse uma síntese da Terra conhecida. A respeito, escrevia o missionário jesuíta, na sua Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício: “A terra de que foi formado Adão, diz S. Justino e outros Padres que foi trazida ao campo Damasceno de todas as quatro partes do Mundo; porque era bem que tivesse terra das quatro partes do Mundo aquele a quem Deus formava para lhe dar o império de todo ele. E pois vemos que Portugal tem terra e tanta terra de todas as quatro partes do Mundo e que desta terra e terras tem Deus formado o corpo político deste Reino, feito por suas mãos, não é contra a razão, senão mui conforme a ela, entendermos que o tem Deus também destinado para o império do Mundo” . [VIEIRA, 1957: II, 274].

De outro lado, o Quinto Império estaria destinado pela Providência para “a rápida e definitiva propagação da Fé”. Vieira colocava essa finalidade no contexto de outras determinações da Providência Divina, tais como o fortalecimento do Império de Dom Manuel para a conservação das Índias Orientais e o triunfo de Carlos V para a preservação das Índias Ocidentais (repartidas entre ambos os Impérios, o Espanhol e o Português, pelo Papa Alexandre VI). Nesses fatos revelava-se a convicção profunda do jesuíta acerca da utilidade do poder temporal para a atividade apostólica. Como frisa conhecido historiador português, na perspectiva do Pe. Vieira colocava-se a espada ao lado da cruz “para a proteger de ataques e lhe secundar a eficiência”. O religioso jesuíta situava-se, assim, no seio da razão prática do seu tempo, com a convicção firme no seguinte princípio: Hujus religio cujus régio [CIDADE, 1957: I, XXXIII-XXXIV].

O destemido missionário, como frisa Arnaldo Niskier, “participava de uma ordem diferente das demais, como soube ser diferente também dentro de sua ordem” [NISKIER, 2004: 18]. Pagou caro pela sua fé declarada na instauração do Quinto Império. A perseguição que lhe foi movida pelo Santo Ofício trouxe-lhe inúmeros dissabores. Fora essa ação, na verdade, motivada mais pela diminuição das receitas de que gozavam os censores eclesiásticos com os bens seqüestrados aos judeus portugueses que, segundo aconselhava o Padre Vieira ao Monarca, deveriam ser restituídos a estes, para que se utilizassem na defesa da Pátria, em face das ameaças representadas por Castelhanos e Holandeses. Falecido em 1656 o Soberano protetor, Dom João IV, que fez do missionário o seu consultor em política externa, ficou o Padre em poder dos seus inimigos. A acusação do Santo Ofício do Porto versava sobre a afirmação do Quinto Império, embora, como acaba de ser dito, a motivação profunda decorresse da proteção que o missionário dava à raça odiada e da iminente perda de receita dos Inquisidores. O cerne da doutrina messiânica do Padre encontra-se no famoso Sermão de São Roque, pregado em Salvaterra, em 1659, em que o jesuíta repetia o anúncio escatológico contido na carta que endereçara à Rainha viúva, intitulada: Esperança de Portugal, redigida, conforme salienta Silvano Peloso, “no quadro da mais abrangente visão escatológica ligada ao Novo Mundo”, nos confins imensos da Amazônia [PELOSO, 2007: 24; cf. CIDADE, 1957: I, XIV-XV].

A fé messiânico-política do Padre Vieira é, assim, aspecto central do seu pensamento. A obra do missionário, segundo afirma Paulo Borges, pode ser caracterizada como “uma intuição profético-messiânica acerca do fim último de todas as coisas e da privilegiada cooperação da nação e de um monarca português na sua consumação”. Tal intuição, na mente do Padre Vieira, converte-se, ao longo da sua vida, em “singular paixão que une o missionário e defensor dos direitos dos Índios contra as ambições escravagistas dos colonos, ao pregador, e estes ao político e diplomata, até ao drama do confronto com o Santo Ofício, sobrevivendo à só aparente abdicação das teses visionárias” [BORGES, Paulo, 1992: V, 518].

PENSAMENTO ESTRATÉGICO E POLÍTICO

Se é indiscutível que o pano de fundo da meditação do Padre Vieira é constituído pela inabalável fé no Quinto Império, também não deixa de ser igualmente certo que, paralelamente a essa convicção, o missionário professa um interesse muito vivo em face da política, como meio que tornará realidade essa alta finalidade. Forma parte do plano da Providência a instauração do Quinto Império, que garantirá a dupla eclosão da fé cristã e da ordem política, universalmente implantadas sob o cetro de Dom João IV, ressuscitado. A racionalidade com que deve ser pensada a ação política é essencial. Esta não constitui dom gratuito que se realize sem o esforço humano. À luz destas idéias pode-se entender a preocupação do Padre em face da moral social que devia presidir à gestão do Estado, visando, como frisa o jurista Bernardo Cabral, a “introduzir novos instrumentos de participação, controle e fiscalização, da atividade administrativa” [CABRAL, 2008: 11].

Lúcio de Azevedo frisa, em relação a este último aspecto: “Loquaz por condição, e até à extrema velhice atento ao mundo exterior e interessado na política, não houve caso, dos que podiam apaixonar a opinião do seu tempo, sobre que a este ou àquele não comunicasse o seu parecer. Aos 90 anos, valetudinário, cego e quase surdo, dita ainda cartas onde o inquieta a morte iminente de Carlos II da Espanha, e dá arbítrios sobre a situação econômica do Brasil. Oito dias depois expirava, e a mesma nau trouxe à metrópole a nova do passamento e aquelas cartas” [AZEVEDO, 1997: I, IX].

A raison d´État forma parte do Plano de Deus. Alicerçado nessa convicção, o missionário jesuíta aceita prontamente a indicação do Monarca Português para, no período compreendido entre agosto de 1647 e novembro de 1648, tratar, em Paris e Haia, de dois assuntos urgentes: acertar o casamento do Príncipe Dom Teodósio com Mademoiselle de Montpensier, filha do Duque de Orléans, ou com a filha do Duque de Longueville. O segundo negócio que o padre Vieira deveria tratar seria o relativo ao resgate, a ser pago aos Holandeses, para a devolução da Província de Pernambuco.

Em relação à primeira missão, Lúcio de Azevedo escreve: “Não se tendo composto os negócios com a Holanda, resolveu D. João IV mandar outra vez a esse país Antônio Vieira e, conjuntamente, tratar em França o casamento do Príncipe D. Teodósio com Mademoiselle de Montpensier, filha do Duque de Orléans, sobre que já antes tinha feito tentativas. Tão pouco segura julgava o soberano em si a coroa que propunha abandoná-la ao filho e retirar-se para os Açores, declarando-se Rei de um novo Estado, com Angra por capital, constituído pelo arquipélago e, juntamente, o território do Pará e do Maranhão. A noiva podia ser, já aquela princesa, já a filha do Duque de Longueville. O essencial era que, pelo consórcio, ficasse a defesa do Reino assegurada pela França. Até a maioridade do Príncipe, o sogro, qualquer dos dois que fosse, governaria por ele” [in: VIEIRA, 1997: I, 93]. (Anotemos, marginalmente, à luz desta citação, que a idéia de transferência estratégica da Corte portuguesa para a sede de um novo Estado datava, pelo menos, de meados do século XVII, sendo, portanto, a decisão posterior da Monarquia, de se transferir para o Brasil, em 1808, uma alternativa que tinha sido pensada, um século e meio atrás, como política de Estado).

Em relação à segunda missão, o padre Vieira defendia o resgate da Província de Pernambuco, mediante pagamento a ser efetivado pela Coroa Portuguesa aos Holandeses. Por que pagar resgate? Vieira considerava que uma guerra contra Holanda sairia cara demais e enfraqueceria a Monarquia portuguesa para enfrentar, no campo de batalha, o inimigo que devia ser combatido imediatamente: Castela. De onde proviria o dinheiro para o pagamento do vultuoso resgate? Proviria, com certeza, de fontes portuguesas: seria pago pelos Judeus refugiados na França, que encontrariam, assim, as portas abertas para a sua volta à Pátria. No entanto, em decorrência das acintosas exigências feitas pelos Holandeses, que desconheciam sumariamente os interesses dos Portugueses e dos nativos habitantes de Pernambuco, terminou prevalecendo na Corte parecer contrário ao do padre Vieira, que tentou, por último, criar uma companhia de comércio em que entrassem Franceses e Suecos. Conclui Lúcio de Azevedo: “Nesse tempo, uma só preocupação o domina: servir à Pátria e o Rei; talvez o Rei primeiro que a Pátria. Separado do ambiente religioso, trajando à secular, em convivência com homens de Estado e diplomatas, com eles intriga, discute negocia. Nas cartas deste período nada revela o sacerdote; tudo, o apaixonado político” [AZEVEDO, 1997: I, 95].

Embora a idéia proposta ao Monarca pelo Padre Vieira de pagar resgate aos Holandeses para a libertação de Pernambuco não tivesse dado certo, vale a pena, no entanto, aprofundar um pouco este ponto, a fim de apreender o alcance das idéias políticas do religioso jesuíta. Para o Padre Vieira, o dinheiro dos comerciantes que obtêm sucesso, deve ser posto a serviço da segurança do Estado. Diante dos perigos que Castelhanos e Holandeses representavam para o Reino, era plenamente justificável abrir as portas aos comerciantes judeus. [2] Pensava Vieira que o Estado não podia brigar com os que produziam riquezas; muito pelo contrário, deveria pô-los ao seu serviço. O dinheiro haurido do comércio é bom, pois as atividades comerciais exprimem a liberdade que Deus deu aos homens. O “dinheiro sujo” (proveniente de atividades ilícitas) deve ser utilizado pelo Estado em benefício da comunidade. [3] A respeito da importância que o comércio tinha para garantir os bens de que a Coroa precisava, o missionário considerava que a única forma possível consistia em dar aos comerciantes plena liberdade, como outrora fizeram os Holandeses na guerra que travaram contra a poderosa Espanha.

Eis o que escrevia o Padre Vieira a respeito, no escrito intitulado: Proposta feita a El-Rei D. João IV, em que se lhe representava o miserável estado do Reino e a necessidade que tinha de admitir os Judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa: “Enfim, Senhor, Portugal não poderá continuar a guerra presente e muito menos a que infalivelmente haverá de ter, sem muito dinheiro. Para este dinheiro não há meio mais efetivo, nem Portugal tem outro, senão o comércio, e comércio considerável não pode haver sem liberdade e segurança das fazendas dos mercadores. Libertando-os V. M. e fazendo toda a largueza ao comércio, poderá V. M. sustentar a guerra, ainda que dure muitos anos, como vimos no exemplo dos Holandeses, que, fundando sua conservação na mercancia e tendo menos comodidades para ela que Portugal, não só tiveram cabedal para resistir a todo o poder da Espanha, mas se fizeram senhores do Mundo” [VIEIRA, 1957: I, XI-XII].

A Carta aos Judeus de Rouen (datada de abril de 1646) é bem significativa da idéia estratégica que animava ao padre Vieira. Considerava que a grandeza do Reino de Portugal exigia que fossem repatriados aqueles que produziam riqueza, os Judeus foragidos. [4] A respeito, escrevia a estes: “S. M. Saberá muito cedo por cartas quão leais vassalos tem em Rouen, e quão merecedores de os ter perto de si, e, se Deus me leva a seus reais pés, eu prometo a Vossas Mercês que fique muito mais confirmado no bom ânimo com que o deixei, porque até agora o persuadia com argumentos do discurso, e daqui por diante o poderei fazer com experiências de vista” [VIEIRA, 1997: I, 89]. A respeito desta carta, anota Lúcio de Azevedo: “Desde antes trabalhava o padre para que fossem readmitidos no Reino os Judeus foragidos e se moderassem as práticas da Inquisição. Em 1643 publicou um escrito (Proposta feita a El-Rei D. João IV em que se lhe representava o miserável estado do Reino e a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa, Obras Inéditas, 2º, 30) advogando essas idéias, que foi apreendido por ordem do Santo Ofício” [in: VIEIRA, 1997: I, 88-89].

Considerava o Padre Vieira que a admissão dos Judeus exilados na França, além dos resultados econômicos acima apontados, contribuiria para tirar fôlego ao governo de Castela, ao passo que ajudaria a reforçar a imagem benevolente do Monarca Português. Em carta dirigida desde Paris, em 1647, ao Secretário de Estado da Corte de D. João IV, Pedro Vieira da Silva, o missionário escreve as seguintes palavras, lamentando a perseguição movida pelo Rei de Castela e pelo Santo Ofício contra os seus súditos na América, sendo os Portugueses os mais condenados por judaísmo:

Todos estão muito sentidos de El-Rei de Castela, pela destruição que se tem feito nas Índias, e porque de presente tomou todas as consignações a todos os assentistas portugueses”. E conclui: “Agora é o tempo de que experimentem favor em seu Rei natural, para que tratem de o servir antes a ele[VIEIRA, 1997: I, 101-102]. Os benefícios que decorreriam da colaboração dos Judeus, com as suas riquezas, para o Reino de Portugal, seriam evidentes e colocariam Lisboa como uma das praças fortes da Europa. A respeito, o missionário escrevia: “Se Vossa Majestade for servido de os favorecer e chamar, será Lisboa o maior império de riquezas e crescerá brevissimamente (em) todo o Reino a grandíssima opulência e se seguirão infinitas comodidades a Portugal, juntas com a primeira e principal de todas, que é a sua conversão[VIEIRA, 1957: I, X-XI].

Não tendo sido possível liberar Pernambuco mediante pagamento de resgate aos Holandeses, pela cupidez destes e pela sua falta de bom senso em face dos interesses dos nativos, o Padre Vieira mudou a sua proposta: que o dinheiro dos judeus portugueses servisse para financiar uma força naval, que fizesse frente aos invasores nas costas brasileiras. O ouro dos judeus serviria, também, para sufragar os gastos da Coroa na guerra com Castela,. Qual foi o resultado prático desta proposta? Hernani Cidade sintetiza assim os fatos: “Vieira sonhara demais. Os milhões com que contava vieram reduzidíssimos. Em todo o caso, sempre foi melhor sonhar do que imobilizar-se nas comodidades do pessimismo. Obtidas do Rei as providências que aconselhara, logo se conseguiu o capital necessário à organização, mercê do ouro judaico, da frota comercial com que foi possível substituir os velhos e poucos navios que eram as escolas de fugir, com a dupla vantagem de socorrer Portugal na guerra com Espanha, pelos recursos que do Brasil lhe eram enviados, e socorrer Pernambuco na resistência tenaz do Holandês. Quando este, ainda hesitante em abandonar a presa, viu em frente do Recife a poderosa frota, pronta a intervir, reconheceu a inutilidade da resistência e aceitou negociar a paz e abandonar seu último reduto brasileiro” [CIDADE, 1957: I, XII]
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O missionário jesuíta estava atento a todos os aspectos da técnica bélica que podiam contribuir ao triunfo das armas portuguesas contra os Holandeses. No seguinte trecho encontramos revelada a sua concepção de estratégia naval, inserida no contexto da luta que se travava na Bahia. Escrevia o Padre ao Embaixador português em Paris, em 1647, fazendo referência aos navios que o governo português tinha intenção de comprar: “Também entendo que a conveniência de irem as fragatas de S. Maló é tão grande que, sem ordem de S. M., deve V. Exa. fazer que se aprestem logo logo, não só quatro, mas seis ou oito, se houver quem as queira armar, e sobre isto mesmo havia eu falado com Luís Hiens, um mercador francês de S. Maló que esteve muitos anos em Pernambuco, e há-de ir logo buscar a V. Exa. para este mesmo negócio (...). E importaria muito que a maior parte desses navios fossem antes à Baía que a outros portos, para ali ajudarem a nossa armada, porque o poder que vai da Holanda entendo que será superior, posto que ouço diferentes opiniões; mas na minha é de tanta importância acharem-se com a nossa armada mais alguns navios de força que, para os convidar a ir à Bahia, se lhe podia conceder que pagassem menos a quarta parte dos direitos, no que a Fazenda de S. M. não perde nada, pois assegura tanto” [VIEIRA, 1997: I, 104-105].

Igual acuidade de estrategista encontramos nos textos em que o Padre Vieira relatava a forma em que os missionários jesuítas organizaram-se para fazerem frente ao invasor holandês, primeiro na Bahia e, depois, em Pernambuco, no Espírito Santo e no Rio de Janeiro. A estratégia descrita pelo escritor poderia ser caracterizada, hoje, como de guerra de guerrilhas, consistente em não atacar de frente, mas partir para táticas de desgaste continuado do invasor, utilizando as armas que estivessem à disposição e que pudessem ser manipuladas por todos, cidadãos comuns, índios e padres.

Na luta contra o invasor Holandês, mais numeroso e muito bem armado, era necessário, antes de tudo, elevar os ânimos dos defensores com a idéia de que é possível resistir ao invasor, mesmo com armas simples. O poder na luta não provém do ouro, mas das armas e da coragem. O exemplo dos exércitos de Alexandre, menos armados do que os Persas, deveria ser uma imagem a ser transferida para as mentes dos defensores da Bahia. A respeito, escrevia o missionário: Mas não há que espantar serem vencidos os que viviam nesta abundância. Bem ensinava Alexandre Magno aos seus soldados que a pobreza era a única mestra da milícia, e por isso os Macedônios venciam tudo, porque nada tinham; que as cidades com ferro se defendem e não com ouro; com homens armados e não com casas ornadas, como depois de bem experimentado o confessou El-Rei Dario. Bem coube deste trabalho muita parte aos nossos padres, particularmente aos velhos e enfermos, que não podiam aturar o caminho nem suportar a calma (...)” [VIEIRA, 1997: I, 21].

As forças defensoras da Bahia tinham uma estrutura militar; estavam organizadas em pequenas unidades, que pudessem se embrenhar por matos e caminhos estreitos, sob as ordens de capitães que obedeciam a um comando central. Eis a descrição – feita pelo missionário jesuíta - dessa organização bélica rudimentar, à qual não faltava a base logística necessária, garantida pelo Bispo Dom Marcos Teixeira, que assumiu o comando supremo das forças defensoras, enquanto não chegava o exército português (comandado por Francisco Nunes Marinho de Eça), que vinha do Maranhão: “Eram os capitães vinte e sete, e as companhias de vinte e cinco até quarenta soldados, porque a multidão, em matos e caminhos estreitos, não impedisse ou dificultasse a peleja. Entre todos os capitães só dois eram os principais, a que obedeciam todos os outros, um dos quais tinha à sua conta a porta de S. Bento e o outro a do Carmo. Para sustentar toda esta gente eram necessários grandes gastos, e para eles estava a Fazenda Real nesta capitania impossibilitada; porém, Sua Senhoria deu traça com que houve todo o necessário, obrigando-se a si e a sua renda, por maneira que não faltou nada” [VIEIRA, 1997: I, 27].

Uma força especial de apoio aos combatentes era constituída pelo conjunto de índios flecheiros das aldeias, especialistas na arte de surpreender o inimigo na calada das florestas ou nos descampados. Esta força era comandada pelos próprios missionários que, além da evangelização, transmitiam aos aborígines o ideal de fidelidade ao Rei de Portugal e de defesa da fé. Eis a descrição que deste aspecto faz o Padre Vieira: “Não ficaram aquém nesta empresa os índios flecheiros das nossas aldeias; antes eram a principal parte do nosso exército, e que mais horror metia aos inimigos, porque, quando estes saíam e andavam pelos caminhos mais armados e ordenados em suas companhias, estando o sol claro e o céu sereno, viam subitamente sobre si uma nuvem chovendo flechas, que os trespassavam, e (...)  não se atreviam a resistir, porque,  enquanto eles preparavam um tiro de arcabuz ou mosquete, já tinham no corpo despedidas do arco duas flechas, sem outro remédio senão o que davam os pés, virando as costas; mas nem este lhes valia, porque, se eles corriam, as flechas voavam e,  descendo como aves de rapina, faziam boa presa; e ainda que não matavam algumas vezes de todo, todavia, como muitas eram ervadas, ia o veneno lavrando por dentro até certo termo, em que lhes dava o último da vida” [VIEIRA, 1997: I, 38-39].

A defesa de Salvador teve, pois, essa base de forças organizadas pelos missionários e comandadas pelo Bispo, além, evidentemente, das tropas portuguesas que tinham sido precedidas por esses grupos armados. Não faltaram à estratégia jesuítica da época as obras de engenharia militar, para garantir a defesa dos lugares mais importantes. É o que conta o Padre no relato que faz acerca dos trabalhos de fortificação levados a cabo pelo governador do Rio de Janeiro, com a colaboração dos índios dirigidos pelos missionários, no antigo Colégio de Santa Cruz, incorporado posteriormente à Coroa portuguesa, após a expulsão dos jesuítas, no período pombalino: “Fortificaram-se todos os lugares deste Estado, esperando pelo inimigo, o qual estava já senhor do principal, segundo as novas certas que corriam. Particularmente na cidade do Rio de Janeiro se pôs todo o cuidado, para não perder agora o bom nome e reputação que antigamente, e que há poucos anos, noutras ocasiões de guerra, alcançaram. A este fim determinou o Sr. Governador Martim de Sá fortificar em primeiro lugar o recebimento da praia, e para isso pediu aos nossos padres ajuda de índios. Foram chamados com toda a brevidade, e com a mesma chegaram e se distribuíram pelos moradores, para que cada um com eles trabalhasse na parte que lhes coube. Mandou o padre reitor em particular entrincheirar a testada do nosso Colégio e ajuntar grande número de arcos e flechas para, no conflito, acudir e prover os que estivessem faltos de armas. [5] O mesmo cuidado houve da nossa parte em fazer ajuntar os índios para o edifício de uma fortaleza que, no mesmo tempo, se levantou na barra. Gastaram-se nela alguns meses, e do Colégio se dava a maior parte dos mantimentos para os trabalhadores, até que de todo se acabou, e dizem que é a melhor ou das melhores de todo este Estado” [VIEIRA, 1997: I, 48-49].

Bibliografia

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[1] Cf. HAZARD, Paul. La crise de la conscience européenne 1680-1715. Paris: Arthème Fayard, 1961.
[2] A idéia estratégica de Vieira é clara: negociar com os Holandeses, a fim de poupar recursos para poder fazer a guerra contra Castela. Em carta ao Embaixador português em Paris, o Marquês de Nisa e Conde da Vidigueira, o Pe. Vieira explica as razões expostas ao Rei de Portugal para resgatar, mediante pagamento aos Holandeses, a Província de Pernambuco: “Entendo que se deve intentar a paz ou continuação da trégua por qualquer caminho, porque não estamos em tempo de romper uma guerra”. Com a sua mediação, o Pe. Vieira busca que “se consiga não haver hostilidades” com a Holanda, a fim de que se possa praticar o comércio “enquanto se trata de composição mais geral”. Paralelamente, Portugal se prepara para a eventualidade da guerra contra Castela, com uma força de “vinte mil infantes e quatro mi cavalos” [VIEIRA, 1997: I, 75]. Em março de 1646, em carta ao mesmo Marquês, o padre diz ter aconselhado o Rei Dom João IV a fazer a paz com a Holanda, por duas razões: em primeiro lugar, porque essa República é muito poderosa: “São homens os Holandeses com quem não só vizinhamos no Brasil, senão na Índia, na China, no Japão, em Angola, e em todas as partes da terra e do mar onde o seu poder é o maior do Mundo”; em segundo lugar, porque a prioridade estratégica de Portugal consiste em fazer a guerra a Castela [VIEIRA, 1997: I, 82].

[3] O Padre Vieira desenvolveu um argumento original para mostrar que o Rei poderia utilizar os dinheiros dos comerciantes judeus, mesmo diante das reservas que a Santa Sé opunha, de Roma, a essa idéia, que pressupunha serem devolvidos os bens confiscados aos originários proprietários. Em Sermão pronunciado na Festa de São Roque, na Capela Real, frisou o Padre: “Não houve no mundo dinheiro mais sacrílego do que aqueles trinta dinheiros por que Judas vendeu Cristo. E que se fez deste dinheiro? Duas coisas notáveis: a primeira foi que daquele dinheiro se comprou um campo para sepultura de peregrinos; assim o diz o Evangelista, e assim o tinha Deus mandado pelo Profeta. Houve no mundo maior impiedade que vender a Cristo? Não a pode haver. Há no mundo maior piedade que sepultar peregrinos? Não a há maior. Pois eis aqui o que faz Deus, quando obra maravilhas: que o dinheiro que foi instrumento de maior impiedade, passe a servir a obra de maior piedade...”. A respeito, escreve Hernani Cidade: “A audaciosa idéia teve pleno triunfo. A Inquisição apelara para Roma, contra a deliberação do Rei de isentar os cristão-novos do fisco, e Roma, então sob a influência de Espanha (...) enviou um Breve em que tudo se repunha no primeiro estado. Conta um documento existente na Biblioteca Municipal do Porto (621-I), que, quando os Inquisidores, orgulhosos da vitória, foram ao Paço dar a novidade ao Monarca, perguntou-lhes este: - A quem se devem adjudicar as consignações de que o Breve não permite se libertem os Cristão-novos? – A Vossa Majestade – respondem. – Nesse caso, como posso dispor do que é meu, confisquem-se os bens, pois que o mandou a Santa Sé; mas restituam-se depois de inventariados, a quem eles pertencerem, porque a esses os dôo como proprietário”. [CIDADE, 1957: I, 12].


[4] De fevereiro a julho de 1646 o padre Vieira vai, em missão oficial (representando o Rei de Portugal, Dom João IV), a Paris e Haia. Trata, na França, com o ministro do Rei, o cardeal Mazarino. Finalidade da missão: obter o apoio da França para evitar a guerra com a Holanda, com a mediação, também, da Companhia Ocidental Holandesa, “resgatando com dinheiro Pernambuco”. Em Rouen recebe “dos judeus portugueses, já estabelecidos, créditos bancários para Amsterdão”. Ou seja, o resgate de Pernambuco deveria ser pago pelos judeus portugueses de Rouen. [Cf. VIEIRA, 1997: I, 71-72].
[5] Os engenheiros militares encontraram, na década de 1970, no antigo Colégio de Santa Cruz, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, hoje sede de uma divisão do Exército brasileiro, um estratégico túnel que conduzia do interior do prédio até a estrada que comunicava com a sede do governo. Era evidente a finalidade desta obra: garantir o suprimento de armas e de mantimentos aos defensores, encastelados no Colégio dos Jesuítas.

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