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sábado, 30 de setembro de 2017

GRAMSCISMO E MORTE CULTURAL

Um dos quadros da exposição do Santander em Porto Alegre em que o Crucifixo, imagem central do Cristianismo, é ofendido. (Imagem: blog do Rodrigo Constantino).

Não podemos tolerar o atentado aos valores humanísticos e à tolerância religiosa perpetrado pelo Banco Santander, com a exposição realizada recentemente, em Porto Alegre, que viola princípios básicos do convívio civilizado. Não podemos tolerar que, num espaço público dedicado à cultura, como o MAM em São Paulo, seja montada exposição que corrompe criancinhas, induzidas a acariciarem o corpo de um homem nu. Isso em vivo e em direto.

Como petralhas e assemelhados foram chutados para fora do poder pela sociedade brasileira, essas minorias de dementes e corruptos partiram para o ataque gramsciano com todas as armas. O que estamos assistindo, nas últimas semanas, em Porto Alegre e em São Paulo, revela claramente o desespero dos totalitários. Querem tumultuar o ambiente atacando de forma descarada a denominada "moralidade burguesa". Só cabe uma resposta: polícia nessa turma de sem-vergonhas! Não podemos cair na esparrela políticamente correta de dar conselhos aos fascínoras para "melhorar" as suas demonstrações de niilismo cívico. Em face de um atentado descarado contra os valores em que acreditamos, a resposta deve ser clara e contundente. Não transigiremos com o ataque covarde aos valores em que acreditamos!

Chega de artimanhas gramscianas para destruir a família e os tradicionais valores cristãos, que formam parte da nossa herança cultural. Esses atentados são caso de polícia. 

Primeira providência: a pressão da sociedade funcionou no caso da exposição do Banco Santander em Porto Alegre. Os responsáveis tiveram de devolver já o dinheiro público que receberam (quase um milhão de reais) à sombra da Lei Rouanet.  Segunda providência: é necessário enquadrá-los criminalmente por esse atentado ao Cristianismo e à dignidade das nossas crianças. Nesse contexto inscreve-se também a exposição do MAM, em São Paulo, a que fiz referência no início deste comentário. 

Não é de hoje que minorias tentam impor o controle totalitário das manifestações culturais, tirando da família o sagrado dever de educar as crianças na preservação dos valores caros à sociedade. Já o filósofo Platão, na antiga Atenas, buscava sanar os excessos de libertinagem propiciados pelos Sofistas, entregando à Pólis (o poder político da Cidade) a educação das crianças, que não seriam mais formadas no seio da família, mas diretamente pelo Estado, que deveria programar a eugenia, com vistas a garantir a formação de defensores de Atenas. A medida platônica somente acelerou o que já estava em andamento: a definitiva derrota da bela cidade pelos seus inimigos, primeiro pelos espartanos e, logo pelos bárbaros, encarnados nas hostes de Filipo da Macedônia.

Felizmente de Atenas veio também o remédio contra o despautério platônico. O discípulo de Platão, Aristóteles de Estagira, de origem macedônica, não viu com bons olhos o enquadramento dos cidadãos pelo poder total da Pólis, tendo reabilitado a família como “célula mater” da sociedade e primeiro núcleo de educação, sem o qual ruiria todo o edifício social. Na construção da “classe média” majoritária que deveria governar a Cidade, o Estagirita colocou a família como primeiro degrau no processo educacional. Aristóteles restabeleceu o embasamento das práticas educacionais e culturais nas tradições ancestrais da Cidade, a fim de dar estabilidade a Atenas.

Não há dúvida de que a Filosofia Cristã, que se firmou na Idade Média, deve a Aristóteles o fato de ter colocado a família em papel de destaque na organização do Estado. São Tomás de Aquino, na sua magna obra, atualizou a herança aristotélica, colocando-a no contexto da concepção cristã da pessoa humana e à luz dos princípios de solidariedade e subsidiariedade, que pervivem na moral social ocidental.

Mas se a solução que sacrificava a família trouxe infelicidade para Atenas, no mundo moderno foi retomada pelos filósofos do Iluminismo, notadamente por Jean-Jacques Rousseau. O Estado deveria cuidar da formação do cidadão, a fim de resgatá-lo das deformações impingidas a ele pela sociedade mercantilista. Os “puros”, despidos da defesa dos interesses individuais, encarregar-se-iam de reeducar os indivíduos, a fim de matar, neles, os interesses individuais e formata-los de acordo ao “interesse público”. Assim nasceu, lembra Talmon (em As origens da democracia totalitária) o totalitarismo moderno, com os milhões de vítimas que o estatismo doentio produziu nos séculos XVIII a XX, e com as ameaças apocalípticas que se cernem sobre a Humanidade à sombra do totalitarismo hodierno, representado pelo déspota nor-coreano, Kim Jong Um.

No Brasil, o capítulo do totalitarismo começou a ser reescrito recentemente no ciclo lulopetista, que achou no gramscismo a forma de se justificar como “revolução cultural”. Tudo na política nacional deve girar ao redor do Estado, revivendo o princípio totalitário fascista de: “tudo dentro do Estado, nada fora dele”. Assim se configurou a maluca apologia totalitária copiada servilmente pela esquerda radical brasileira. Não contentes com afundar o Brasil na pior crise econômica e política da sua história, os gramscianos partem para aprofundar a crise moral da nossa sociedade, subvertendo os valores fundantes da nacionalidade pátria: família, religião, respeito à autoridade legitimamente constituída. O que vale são os princípios apregoados em alto e bom som pelos “intelectuais orgânicos”, para consolidar a hegemonia do PT, alçado à condição de “Novo Príncipe”.

Ora, como não conseguiram essa façanha nos terrenos econômico e político, os irresponsáveis pregoeiros do caos tentam inviabilizar a reação da sociedade brasileira que os enxotou do poder, tornando inviável a vida social, mediante a subversão e o aniquilamento dos valores caros à nossa tradição brasileira: família, religião, escola. A nova moral social apregoada por Lula e comparsas dedicou-se a corromper a juventude mediante as polpudas mesadas distribuídas com regularidade aos Diretórios Estudantis das Universidades Públicas, tendo sido elas tomadas de assalto pelos arquitetos do caos. A produtividade acadêmica foi substituída pela maconha e pelo grevismo crônico. Somente assim se explica a brutal descida das nossas Universidades públicas na escala de classificação internacional.

A sociedade brasileira reage, felizmente, contra o atentado à moral social perpetrado pelos gramscianos do Banco Santander, em Porto Alegre, e do MAM, em São Paulo, nessas fajutas "exposições culturais". Estamos atentos!


terça-feira, 26 de setembro de 2017

30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988: O AVANÇO DO RETROCESSO


 
Capa do livro organizado por Paulo Mercadante sob o título: Constituição de 1988: o avanço do retrocesso (Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1990).
A Constituição de 1988 completa 30 anos. Um período mais do que suficiente para fazermos uma avaliação do seu papel no caminho da democracia brasileira. A minha avaliação não é positiva. Foi mais o que não fizemos, à luz da mencionada Carta, do que aquilo que poderíamos ter feito. Isso em decorrência de que o seu texto somente ajudou a reforçar o Estado Patrimonial. É lamentável reconhecermos isso. Mas é necessário.

Lembro-me de que, logo assim que foi promulgada a Constituição, já se falava na necessidade de reformas substanciais à mesma. O motivo: a Carta de 88, que foi denominada pelo saudoso Ulisses Guimarães de “Constituição Cidadã”, somente tinha garantido direitos, não deveres. Esse contexto de irrealismo tornou a Carta de 88, como diziam alguns estudiosos, a “Constituição da ingovernabilidade”.

Colaborei num livro que alguns amigos organizaram com o intuito de levantar os pontos que deveriam ser levados em consideração numa revisão constitucional, que se mostrava necessária já no pouco tempo de vigência da Carta de 1988. A obra, coordenada por Paulo Mercadante, tinha o seguinte título, bastante provocativo, aliás: Constituição de 1988: O avanço do retrocesso (Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1990, 164, p.). Participaram da obra os seguintes autores: Paulo Mercadante (organizador, que escreveu: “Uma introdução histórica”); José Guilherme Merquior (“Liberalismo e Constituição”); Miguel Reale (“A ordem econômica liberal na Constituição de 1988”); Antônio Paim (“Organização e poderes do Legislativo”); Vicente Barreto (“Dos direitos individuais e coletivos”); Ubiratan Borges de Macedo (“Os princípios fundamentais da Constituição de 1988”); Wilton Lopes Machado (“O avanço do retrocesso”); Ives Gandra da Silva Martins (“Partição de rendas tributárias e finanças públicas”); Ricardo Lobo Torres (“A nova Constituição financeira”); Oscar Dias Corrêa (“Do poder judiciário”); Roberto Campos (“Razões da urgente reforma constitucional”); Diogo de Figueiredo Moreira Neto (“Dois aspectos da Constituição de 1988”); José Carlos Mello (“Política brasileira de Meio Ambiente”); o meu capítulo intitulava-se: “Estatismo, marginalismo e Constituição”.


Desenvolverei neste texto os seguintes pontos: I – Duas tradições perniciosas: marginalismo e estatismo. II - Estado e sociedade.

I – Duas tradições perniciosas: marginalismo e estatismo.

A Constituição de Outubro de 1988 precisa ser reformada. Para isso, faz-se necessário, primeiro, compreender os pressupostos culturais sobre os que se alicerça o convívio político brasileiro. Dois pressupostos são fundamentais: os representados pelas nocivas tradições do marginalismo e do estatismo.

O vício do marginalismo foi identificado por Oliveira Viana[1] como a tentativa de modificar o comportamento do povo por decreto. Inspirando-se no pensador argentino José Ingenieros, Oliveira Viana define assim as condições sob as quais vinga um ideal: “O destino de um ideal, o êxito de um ideal, não dependem nem da sua beleza, nem da sua grandeza; mas sim, da sua conformidade com a vida (...)” [2]. Ora, considera o sociólogo fluminense, foi exatamente o contrário o que as elites brasileiras sempre praticaram: a negação do direito costumeiro pela legislação formal, conduzindo irremediavelmente à inoperância das Constituições e das leis.

Particularmente alheia aos costumes políticos brasileiros foi, no sentir de Oliveira Vianna, a Constituição de 1891, cujo idealismo manifestar-se-ia na suposição de que conviria ao Brasil a adoção de um regime federativo (que se baseava mais na admiração pessoal de Rui Barbosa pela Constituição de Filadélfia, do que na consideração da nossa história). A adoção do federalismo tout-court supunha que todos os Estados estavam em pé de igualdade, sem enxergar as profundas diferenças geográficas, climáticas, etnográficas, culturais, econômicas e políticas existentes entre eles. Somente iriam progredir aqueles Estados que contavam com uma aristocracia política organizada e numerosa (São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul).

Da sina apontada não escapa a Constituição de 1988, que passou a exprimir, em muitos pontos, os confusos ideais dos seus formuladores, mais do que as tendências reais da sociedade brasileira. A respeito, escreveu com propriedade Paulo Mercadante: “A emoção e o açodamento, unidos numa intersecção de nacionalismo e populismo, produziram uma Constituição que prima pela idealidade. Um diploma ilusório por razões fortuitas, nascido sem o selo do necessário. O descompasso entre os dois requisitos para um saldo positivo – o acaso e a necessidade – gerou, paradoxalmente, o fenômeno do pretensioso parto dos montes, segundo o verso de Horácio (...). Tomados pela euforia, decidiram os constituintes redigir um texto minucioso e bombástico, sujeito, por inadequação, à morte prematura. Esqueciam-se os ‘progressistas’ que uma Carta não pode contrapor-se ao projeto histórico de uma nação”.[3]

Decorrente do idealismo que a afeta, frisava Miguel Reale, a nova Constituição pautou-se pelo irracional movimento pendular que sofrem os institutos legais, quando desvinculados do contexto histórico, chegando a pôr em risco a execução de um projeto que responda aos anseios nacionais. “Uma nova Constituição – escrevia o pensador paulista – pode não redundar, de per si, em possibilidades de cultura e riqueza, que só o trabalho perseverante e metódico proporciona. Mas pode embaraçar e até mesmo travar o progresso de uma nação. Infelizmente, a Carta que vai reger o nosso destino pertence a esta segunda categoria, por termos sido, mais uma vez, vítimas das oscilações pendulares que têm marcado nossa vida política ao longo do tempo”.[4]

Em que sentido se efetivou o movimento pendular da Constituição de 1988? Reale respondia: “Como sinal de nossa imaturidade, carecemos do devido senso histórico (...). Assim é que, se em 1945, reagimos à ditadura do Estado Novo reduzindo em demasia as atribuições do Poder Executivo, forçando uma política de barganha ou de confronto com o Legislativo, foi este que foi duramente atingido com o advento dos Atos Institucionais e as Cartas de 1967 e 1969. Agora, legislando novamente sob o signo do revide, voltamos a fortalecer o Congresso Nacional além do necessário. Eram esquecidas, sem dúvida, medidas de contenção contra os excessos do nosso presidencialismo caudilhesco, mas não até o ponto de subordiná-lo às deliberações precárias de um Poder Legislativo apoiado em clientelas personalistas e não em partidos distintos, não digo por seus programas, que seria exigir muito em nossas circunstâncias, mas pelo menos por seus planos de governo”.[5]

Esse marginalismo pendular que empolgou a nova Constituição, produziria, sem dúvida, efeitos nocivos na sociedade brasileira. O efeito da excessiva e desarticulada descentralização federativa, em matéria político-financeira, fortaleceu, paradoxalmente, o fantasma que se pretendia esconjurar: o estatismo orçamentívoro. A respeito, escrevia Reale: “Pelos mesmos motivos de suspicácia e prevenção, passamos da máxima centralização político-financeira das União para uma extremada descentralização federativa, fortalecendo os Estados e Municípios em detrimento do governo federal, sem que tivesse havido correspondente redistribuição de competências. Como Estados e Municípios, por sua vocação perdulária, continuarão a recorrer a Brasília, são previsíveis novos tributos e empréstimos compulsórios federais, estancando-se as fontes produtivas da iniciativa privada. Quem não prevê as sombras gélidas do estatismo federalista, geradas pela partilha tributária aprovada pela nova Constituição? Quem não sente que nos afastamos ainda mais da democracia liberal que deveria realizar os fins sociais em harmonia com o que cabe aos valores intocáveis dos indivíduos, única base real do desenvolvimento e da cultura? ” [6]

O vício do marginalismo que afeta a Constituição de 1988, conduz, como sugere Reale, a um outro extremo: o do estatismo, que constitui a segunda tradição nociva da nossa cultura política. O Brasil consolidou-se, ao longo da sua história, como um Estado mais forte do que a sociedade. A formação política brasileira -  como a dos restantes países latino-americanos e a da Espanha e Portugal – aproximou-se mais do modelo patrimonial do que do modelo contratualista (segundo as tipologias definidas por Max Weber).[7] O Estado moderno, segundo o modelo contratualista, surgiu da luta entre as classes pela conquista do poder, que ensejou, não o seu aniquilamento, mas a efetivação de um pacto ou contrato social; esse modelo consolidou-se naqueles países em que houve uma experiência completa de feudalismo de vassalagem, altamente contratualista, como nas Ilhas Britânicas e nos restantes países da Europa Ocidental. Já o modelo patrimonial surgiu ali onde o Estado emergiu da hipertrofia de um poder patriarcal, que estendeu a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, tratando-os como instâncias familiares (patrimoniais).

No caso brasileiro, como acertadamente assinalaram Raimundo Faoro,[8] Simon Schwartzman,[9] Antônio Paim,[10] Fernando Uricoechea,[11] José Osvaldo de Meira Penna,[12] Ricardo Vélez Rodríguez[13] e outros, consolidou-se um Estado mais forte do que a sociedade, pautado pelo modelo patrimonial. Em que pese o caráter modernizador de que se revestiu o Estado patrimonial brasileiro (nos momentos pombalino, imperial, getuliano e tecnocrático dos anos 60), segundo mostraram Schwartzman, Paim e Wanderley-Guilherme dos Santos,[14] conservou-se inalterada a ideia do Estado-empresário, que se consolidou já a partir das reformas pombalinas, na segunda metade do século XVIII. Assim, o intervencionismo que pautou o processo modernizador ao longo do século XX, não seria propriamente o keynesiano, mas o positivista-pombalino, na linha defendida por Aarão Reis e efetivada pela segunda geração castilhista, ao longo dos anos 30.[15]

Oliveira Viana interpretou o patrimonialismo centrípeto que acompanhou o processo modernizador do Estado brasileiro, como decorrência do “complexo de clã” ou falta de sentido da coisa pública, que caracterizaram sempre a nossa cultura política, como decorrência dos hábitos parentais incorporados na longa experiência privatizante do latifúndio, berço da nacionalidade. Gilberto Freyre, por sua vez, analisou o contexto vivencial em que emergiram e se consolidaram esses hábitos, ao ensejo da influência doméstica da Casa Grande.[16] Oliveira Viana, de outro lado, estudou o complexo de antivalores de consumo suntuário, horror ao trabalho produtivo, burocratismo orçamentívoro, etc., herdados pelas elites brasileiras da nobreza decadente portuguesa.[17] Paulo Mercadante, por sua vez, analisou os aspectos conservadores que inspiraram, nesse complexo familístico, a moral social brasileira, aproximando-a dos parâmetros tradicionalistas das classes médias portuguesas (notadamente no que diz relação à perpetuação do código de honra).[18] Todas essas contribuições teóricas delinearam claramente o perfil da tradição estatizante brasileira, que age como redemoinho implacável, capaz de sugar todas as propostas modernizadoras, aí inserido o esforço em prol da construção da democracia.

A inexorável tendência estatizante da nossa cultura política levou Antônio Paim a escrever: “O Brasil vive uma circunstância onde o Estado, sem sombra de dúvida, é mais forte do que a sociedade. Imaginava-se que essa situação fosse típica do período autoritário. Mas pelo menos nesse aspecto a chamada Nova República não apresentou nenhuma novidade. De modo que as relações entre o Estado e a Sociedade constituem questão chave na Constituição de 1988”.[19]

A questão estatizante age como segunda natureza da cultura política brasileira e abarca as ideologias, tanto de esquerda quanto de direita. Já no fim dos anos 60, o economista Mário Henrique Simonsen analisava, com preocupação, o alto índice de estatização da economia brasileira, bem como o desproporcionado crescimento do gasto público: “Desde o término da Segunda Guerra Mundial até a presente data, o setor público brasileiro cresceu a taxas verdadeiramente espantosas. Entre 1947 e 1965, em percentagem do PIB, a despesa do governo aumentou de 10,7% para 14,2%. A formação bruta de capital fixo pelas entidades públicas (inclusive autarquias e sociedades de economia mista), de 3,2% para 8,0%. A carga tributária bruta, de 14,7% para 25,1%. E o dispêndio total do governo (inclusive subsídios e transferências), de 18,0% para 31,0%. Tendo em vista que neste período o produto real cresceu 3,64 vezes, conclui-se que, em termos reais, as despesas de consumo do governo se multiplicaram por 3,5; os investimentos, por 6,6; o dispêndio total e os impostos, por 4,5. Estima-se que os índices de estatização ainda se tenham acentuado em 1966 e 1967. Essa evolução acelerada do setor público é das mais rápidas de que se tem notícia no mundo não socialista (...). Os índices de pressão do setor público sobre a economia situam-se, entre nós, nas faixas mais altas registradas para o mundo ocidental (...)”.[20]

É interessante destacar como um cientista social europeu, o professor Alain Touraine, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, captou a realidade brasileira no contexto latino-americano. “(...) Na América Latina – frisava Touraine – há um pais que sabe o que é um Estado: outros sabem um pouco e outros não têm nenhuma noção. O país do Continente que sabe o que é um Estado é o Brasil e isso porque é, antes de mais nada, um Estado (...)”.[21]

Ao que tudo indica, a tradição estatizante ainda tem muito fôlego na vida política brasileira. Após a derrubada do Muro de Berlim, a esquerda brasileira apresenta, ainda, como fórmula salvadora, o modelo mais fechado de estatização marxista-leninista, o praticado em Cuba. Ainda tem vigência, nos planos do PT e congêneres, a “república popular” de corte sindical, em que pese o fracasso retumbante dos dois governos lulopetistas, ao longo dos últimos 14 anos. A esquerda brasileira não aprende com os próprios erros.

A Constituição de 1988, longe de se contrapor às perniciosas tendências do marginalismo e do estatismo, aderiu a elas. Já foi ilustrado como a citada Carta sofre com os vícios do marginalismo. Analisarei, a seguir, a forma em que a atual Constituição faz o jogo da tendência estatizante.

II – Estado e Sociedade na Constituição de 1988.

Quatro aspectos serão analisados neste item: 1 – o terceiro-mundismo; 2 – o estatismo; 3 – o papel das Forças Armadas e 4 – a representação.

1 – O terceiro-mundismo. Convém identificar primeiro esta noção. A ideia de “terceiro-mundismo” deita raízes na obra do marxista inglês John Atkinson Hobson intitulada: O Imperialismo (1902), na qual Lenine se inspirou para escrever o seu conhecido panfleto intitulado: O imperialismo, etapa suprema do capitalismo (1916). A ideia fundamental de Hobson e Lenine consistiu em adaptar a teoria da luta de classes ao plano internacional, identificando o mundo como dividido em dois blocos: países exploradores e países explorados.

O escritor venezuelano Carlos Rangel, na sua obra O terceiro-mundismo, define assim essa tendência: “O terceiro-mundismo, hoje tão na moda, consiste essencialmente (sejam quais forem os seus disfarces), na proposição de que, tanto o atraso dos países subdesenvolvidos quanto o progresso dos países desenvolvidos (não socialistas), devem-se à exploração imperialista e ao efeito enervante da dependência. Consiste também no uso dessa proposição como argumento aberto ou implícito em favor do socialismo. Assim se explica o fato de o terceiro-mundismo ter se convertido, literalmente, na paixão de todos aqueles que acolham ideias e sentimentos anticapitalistas, não só nos países classificados como do Terceiro Mundo, mas igualmente ou mais nos países desenvolvidos”.[22]

Não há dúvida quanto à presença, na Constituição de 1988, de dispositivos exageradamente nacionalistas, inspirados pela ideologia terceiro-mundista, como o artigo 37.I, que restringe aos brasileiros o acesso a cargos, empregos e funções públicos, ou o art. 176, parágrafo 1º, que restringe igualmente aos brasileiros e às empresas brasileiras de capital nacional, a pesquisa e a lavra de recursos minerais, bem como o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica. Em relação a esse espírito nacionalisteiro, escreveu Miguel Reale: “O Brasil é um país que vive à procura de sua identidade nacional. Daí as nossas perplexidades e desequilíbrios. Uma das nossas manias é a de pertencermos ao Terceiro Mundo, com um pouco do que há de culturalmente consolidado nas nações desenvolvidas. Nesse sentido, a nova Constituição é o espelho fiel de um povo desconfiado de si mesmo”.[23]

Esse sentimento terceiro-mundista, considerava Reale, é pernicioso porque nos isola da comunidade internacional e instala uma opção “nacional-estatizante”. A respeito, escreveu o notável jurista:  “O pior, porém, são os artigos xenófobos que nos isolam da comunidade internacional, impondo-nos o sonho de uma autarquia tão irrealizável quanto perniciosa, assumindo-se, irresponsavelmente, a máscara de uma republiqueta do Caribe, com o olvido de já sermos, apesar dos pesares, a oitava economia do mundo. Como classificar a solução adotada por nossos constituintes no plano econômico-social? Das qualificações até agora lembradas, a mais apropriada é a de ‘nacional-estatismo’, conúbio de duas falsas imagens, uma do Estado, visto como fonte autônoma de sabedoria e benesses, e outra da nação, considerada como terra de promissão exposta às explorações do capitalismo internacional. Una-se a isso a demagogia populista, fruto de nossa inexperiência democrática, e teremos o quadro fundamental de um texto constitucional que resulta dos mais conflitantes interesses, desde os ideológicos até os do mais deslavado fisiologismo”.[24]

Paulo Mercadante, por sua vez, identificou no nacionalismo exacerbado da Constituição de 1988, características de patrimonialismo reacionário e de oposição de barreiras ao desenvolvimento científico e tecnológico: “Porém o lado reacionário, que traduz a inconstitucionalidade gritante, é a ideologia de cunho chauvinista e patrimonialista. Há nos artigos a determinação de conter o progresso, tendo posto os legisladores barreiras ao desenvolvimento científico e tecnológico. Como um exemplo: o dispositivo que obstaculiza a automação, criando-lhe óbices definitivos e cartoriais. Também as regras de ordem econômica endossam as premissas do nacionalismo exacerbado, ao arrepio do bom senso e do espírito do tempo. Preceitos arcaicos sobressaem, enquanto a sociedade brasileira aspira ao desenvolvimento, parte de seu projeto”. [25]

2 – O estatismo. A hipertrofia do Estado é, como vimos, tendência fortemente enraizada na nossa cultura política. Na medida em que a onda anti-estatizante se alastra pelo mundo afora, na Europa, na Ásia, na América do Norte, o velho centripetismo cartorial brasileiro torna-se opção pelo passado e pelo atraso. A respeito, frisava Miguel Reale: “Não menos negativa foi e continua sendo a experiência estatizante, realizada sob a blandiciosa fórmula de ‘socialização dos meios de produção’. A realidade mais flagrante veio demonstrar que a estatização, longe de produzir o bem-estar do maior número, gera mais pobreza geral e a burocracia avassaladora, a nomenclatura, contra a qual Mikhail Gorbatchev vem lutando com denodo”.[26] Se o socialismo está em quebra, a livre iniciativa e o espírito do capitalismo democrático, ao contrário, estão em alta. “(...) A participação consciente do povo no processo empresarial – escrevia Reale -, e já há quem fale em ‘capitalismo popular’, é o mais impressionante fenômeno do nosso tempo, revelando o anacronismo do ideal estatizante que ainda encanta os nossos socialistas retrógrados”.[27]

Em que pese o fato de o estatismo estar batendo em retirada, no plano internacional e na América Latina em particular, a Constituição de 1988 caiu no anacronismo de apregoar, ainda, um dirigismo estatizante, na trilha da figura jurídica identificada por  Manoel Gonçalves Ferreira Filho como “constituição-dirigente” (inspirada por juristas alemães, frequentemente do antigo Leste) contrária ao modelo de “constituição-garantia”, de inspiração liberal.[28]

A adoção dessa variante pela Carta de 1988 obedeceu, a meu ver, à retomada de tradição estatizante que vingou amplamente nas Faculdades de Direito e que se consolidou, especialmente a partir de 1870, ao ensejo da influência dos fundadores do Partido Socialista Português, Oliveira Martins e Antero de Quental. Para o primeiro, em Portugal não se poderia efetivar uma revolução socialista, nos moldes ortodoxos da luta de classes apregoada por Marx, simplesmente porque não havia indústrias nem operariado organizado. A revolução far-se-ia mediante a tomada do poder pela vanguarda intelectual socialista e a implantação ditatorial, pelo Estado, das mudanças revolucionárias que conduziriam ao socialismo.

Os socialistas portugueses conceberam, assim, na década de 1870, um “leninismo avant la lettre”, que encontrou ampla acolhida por parte dos positivistas-marxistas brasileiros (como Leônidas de Rezende, por exemplo)[29], ou dos Castilhistas (cuja concepção foi bem traduzida, em 1929, no momento em que se articulava a “Aliança Liberal”, pelo aforismo do presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”).[30]

Nesse contexto revolucionário-estatizante insere-se, a meu ver, a adoção, por parte dos constituintes brasileiros, do modelo da “constituição-dirigente” que, no sentir de Manoel Gonçalves Ferreira Filho “(...) encontrou sua primeira grande consagração com a Constituição portuguesa de 1976. Essa concepção – frisa o citado autor -  se divulgou entre nós por influência de um jurista português, de formação marxista (é deputado do Partido Comunista Português), Joaquim Gomes Canotilho. Trata ele do assunto num livro intitulado Constituição-dirigente e vinculação do Legislador”.[31]

Qual é a essência do modelo de “Constituição-dirigente”? Manoel Gonçalves Ferreira Filho a explica nos seguintes termos: “Nessa linha, a Constituição deve ser mais do que a organização limitativa do poder: deve ser um grande programa de transformações políticas, mas sobretudo econômicas e sociais. Tal plano, para Canotilho e seus seguidores, se destina a operar a transformação para o socialismo, como etapa para a instauração, um dia, do comunismo. Inscrito na Constituição, ele obrigaria os governos sucessivos a trabalhar no sentido dessa transformação. E, para força-los a tanto, deveria até ser prevista uma ação de ‘inconstitucionalidade por omissão’, por via da qual o juiz compeliria o governo a efetivar o programa constitucional, a requerimento da parte interessada”.[32]

Como o próprio Ferreira Filho anota, trata-se aqui de versão heterodoxa do marxismo-leninismo, uma espécie, penso eu, de “ditadura científica da pequena burguesia, arvorada em vanguarda do povo”. Em que pese o fato de o famigerado modelo não ter sido aprovado in totum nas deliberações dos constituintes, Ferreira Filho sintetiza assim a nociva influência estatizante: “Na Constituinte brasileira de 1987-1988 havia quem habilmente houvesse articulado uma Constituição-dirigente, no sentido que Canotilho dá ao termo: Constituição para a transição para o socialismo. É verdade que esse propósito, muito claro no famigerado Anteprojeto da Comissão de Sistematização, não vingou. Emenda aqui, reemenda ali, obscurecida acolá por expressões ambíguas e vagas, a Constituição de 1988 não é uma Constituição de transição para o socialismo. É, indubitavelmente, uma Constituição estatizante, mas o fascismo também era e é estatizante. Se a Constituição de 1988 não tem assim o caráter de ponte para o socialismo, graças à luta de um punhado de constituintes avessos ao comunismo, ela guardou de seus passos iniciais o caráter técnico de Constituição-dirigente ou Constituição-plano, para usar uma expressão que corresponde à ideia de uma Constituição diretora da atuação governamental, sem, todavia, a conotação marxizante”.[33]

O aspecto importante do estatismo presente na Constituição de 1988 é a manutenção do que Antônio Paim chama de “estrutura sindical de índole totalitária”,[34] que o ex-ministro Arnaldo Sussekind, por sua vez, identificou como modelo “fascista-leninista”[35] (porquanto Mussolini teria copiado de Lenine a ideia do sindicato único atrelado ao Estado). A preservação, pela nova Constituição, dos institutos do sindicato único e da contribuição sindical compulsória[36] fez perdurar o élan peleguista e estatizante estabelecido pelo Estado Novo na Consolidação das Leis do Trabalho.

Consequências negativas, de cunho autoritário, foram identificadas por Antônio Paim nestes termos: “O sistema em vigor no país permite que minorias inexpressivas tomem de assalto os sindicatos e passem a falar em nome da massa trabalhadora. A Constituição manteve a obrigatoriedade da contribuição sindical, mediante imposto aplicado universalmente, com o que têm essas entidades assegurada a sua sobrevivência, independentemente do fato de se atendem ou não aos interesses e reclamos da categoria respectiva. A par disto, só pode haver um sindicato em cada grupo de trabalhadores, desde que sua existência depende não da força (representativa) real de que disponha, mas do seu reconhecimento pelo Estado”.[37]

Na trilha da crítica ao estatismo que anima à Carta de 88, Paulo Mercadante enxergava, entre o preâmbulo e o título relativo à organização do Estado, o ardil que impunha, de forma centralizadora e, portanto, contrária ao espírito federativo, uma concepção centrípeta do Estado, que constitui camisa de força imposta aos Estados membros da Federação. “A agressão à ética – frisava Mercadante - é a característica primeira da Carta vigente. Os deputados declararam em preâmbulo que se constituía uma República Federativa. Ardil inicial, que mancha os fins de um documento sério. Foi o traço marcante da inconstitucionalidade da Carta. Do título relativo à organização do Estado depreende-se que se impôs aos membros da suposta federação uma camisa de força, pois aos Estados nada resta se não cumprirem as ordens impostas. Couberam-lhes, sim, pequenas atribuições”.[38]

3 – O papel das Forças Armadas. No relativo ao papel constitucional das Forças Armadas, o artigo 142 da Constituição de 1988 assim o delimita: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Comentando o citado artigo, Oliveiros S. Ferreira considerava que o texto constitucional retomava a tradição autoritária republicana, ao conceber as Forças Armadas como Poder de Estado diferente dos Três Poderes. “Ao pretender subordinar as Forças Armadas ao Poder Civil – frisava o mencionado autor - os constituintes de 1988, na verdade, contribuíram para que elas aumentassem seu grau de autonomia do Estado, além de haver consagrado, movidos pela malquerença, situação que sempre apontei como anômala, qual fosse a de as Forças Armadas existirem legalmente em função do Estado, mas na verdade não guardarem relação política alguma com ele, pois ao Estado sempre se sobrepuseram desde a República. Com isso quero dizer (...) que a Constituição de 1988 reconheceu as Forças Armadas como Poder do Estado, distinto do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, e consagrou a tradição republicana, segundo a qual a elas incumbe a missão, autônoma, de manter a lei e a ordem, e não ao Executivo por ação própria, ou decorrente de ato de vontade do Judiciário”.[39]

Situar-se-ia, destarte, a Constituição de 1988 no contexto da tradição autoritária “salvacionista” do ciclo republicano, que tantas intervenções caudilhescas ensejou ao longo da história brasileira. Não fugiria, portanto, o atual modelo constitucional ao caracterizado por Alfred Stepan como “papel moderador”, nestes termos: “(...) O resultado é que os militares têm desempenhado um papel decisivo na política brasileira, considerando que todos os grupos tentam cooptá-los em épocas de conflito político, e os golpes concretos contra o Executivo representam os esforços combinados de civis e militares”.[40]

Oliveiros S. Ferreira mostrou, aliás que a cooptação apontada não é risco longínquo, à luz da atual Constituição: “Se (...) permanecer a atual redação, qualquer juiz de direito poderá ter a iniciativa de solicitar ao comandante de uma unidade militar qualquer que intervenha para garantir a lei e a ordem. O comandante militar pedirá autorização ao seu superior, que não poderá negá-la, pois a solicitação partiu de membro de outro Poder, como manda a Constituição. Com isso, queira-se ou não, as Forças Armadas estarão faltando à sua grande missão, que foi a que Góis Monteiro lhes quis traçar, que era escapar às vicissitudes da política regional ou setorial (economicamente falando, ou em termos de classes sociais) deste País imenso. Não foi assim, parece, que aconteceu em Volta Redonda? ”[41]

Uma redação diferente do art. 142 afastaria esse risco. Oliveiros S. Ferreira propunha a seguinte: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, pelo Exército e pela Aeronáutica Militar, são organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do chefe do Poder Executivo. O Poder Executivo poderá emprega-las quando e onde julgar conveniente para a defesa do Estado, ou onde e como a ele solicitado pelo Chefe do Poder Legislativo ou pelo presidente do Supremo Tribunal Federal”.[42]

4 – Representação. Os processos eleitorais ocorridos em 1988 e 1989 já tinham demonstrado um fato que seria confirmado nas décadas posteriores: o desgaste dos partidos e o descrédito da classe política. A falta de credibilidade decorre, fundamentalmente, do achincalhamento da representação. A questão é particularmente grave, se levarmos em consideração que o único caminho institucional possível para controlar o excessivo crescimento do Estado, é o do fortalecimento da representação política. Ora, esse ponto era descuidado pela Carta de 1988 que, ao manter o dispositivo do voto proporcional (com exclusão do voto distrital) (art. 45) e ao ter limitado a representação parlamentar dos Estados mais modernizados e  mais populosos (art. 45, parágrafo 1º) fechou o caminho para o aprimoramento da representação.

Particularmente, a rejeição ao voto distrital foi lamentável. “Perdeu-se a oportunidade – frisava Antônio Paim – de introduzir o voto distrital. O sistema proporcional tem-se revelado, em toda parte, incapaz de organizar a vontade do eleitorado e obrigar ao funcionamento dos partidos políticos. Essas agremiações são de muito difícil manutenção, em face das disputas de liderança, individualismo e outras características humanas que têm a virtude de exacerbar. De modo que requer contrapesos e obrigações que somente a existência de distritos eleitorais tem assegurado nos maiores países democráticos. Trata-se de uma questão essencial porquanto, sem partidos políticos, não pode haver prática democrática”.[43]

Infelizmente, no Congresso Constituinte perdeu-se a oportunidade de ouro para instaurar definitivamente o voto distrital. O senador José Richa (PMDB-PR) tinha assumido o compromisso formal de defender essa instituição e tudo parecia encaminhado para a aprovação da proposta do nobre constituinte paranaense. Mas, na hora de votar o dispositivo na Comissão correspondente, já na fase final dos trabalhos constituintes, a proposta de Richa em prol da adoção do voto distrital viu-se derrotada pela truculência de um colega de partido, o senador Mário Covas, que levou até as portas da sala onde se reunia a Comissão, uma turma do sindicato de estivadores do porto de Santos, com a finalidade de intimidar quem defendesse a adoção do voto distrital.[44]

Conclusão. As ciladas do marginalismo e do estatismo inseridas, como ficou demonstrado, na Constituição de 1988, ameaçaram definitivamente e emperraram a modernização e a democratização do Brasil na virada do milênio e nas últimas décadas. Para começarmos a ter perspectivas de sucesso, seria necessário agir sem dilações. A primeira providência consistiria, evidentemente, em remover o entulho corporativista, estatizante e autoritário, que a Comissão de Sistematização conseguiu manter no texto constitucional. A exemplo do que ocorreu em Portugal, se a sociedade reagir, será possível derrotar o afã marxistizante e totalitário dos defensores de um modelo constitucional “dirigente”, que só encontra refúgio nas mais reacionárias ditaduras socialistas como a cubana.

O controle definitivo da sociedade sobre o estatismo estará, sem dúvida, na linha da modernidade. Num momento em que é questionado, por ineficaz, esse modelo em que os muros dos sistemas de poder total racham, será crime perante a História pretender fechar o Brasil numa ilha, em que continua a tripudiar sobre os cidadãos um Estado mais forte do que a sociedade.

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[1] Cf. VIANA, Francisco José de Oliveira. O idealismo da Constituição. 2ª edição. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939, p. 304, seg. De Oliveira Viana, cf. também: O Ocaso do Império. São Paulo: Melhoramentos, 1925. Problemas de organização e problemas de direção: o povo e o governo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1922.
[2] VIANA, Francisco José de Oliveira. O Idealismo da Constituição. Edição citada, p. 304.
[3] MERCADANTE, Paulo. “”Uma Constituição anacrônica”. In: Convivium, São Paulo, 31 (6): p. 505, nov. /dez. 1988.
[4] REALE, Miguel. “Constituição terceiro-mundista”. Convivium, São Paulo, 31(6): p. 498, nov. /dez. 1988.
[5] REALE, Miguel. “Constituição terceiro-mundista”, ibid.
[6] REALE, Miguel. “Constituição terceiro-mundista”, art. cit., ibid.
[7] Cf. WEBER, Max. Economía y Sociedad. (Tradução espanhola de José Medina Echavarría et alii). 1ª edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1944, vol. I e IV.
[8] FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 1ª edição, Porto Alegre: Globo, 1958, 2 vol.
[9] SCHWARTZMAN, Simon.  São Paulo e o Estado Nacional.  São Paulo: DIFEL, 1975. Do mesmo autor, Bases do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1982.
[10] PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
[11] URICOECHEA, Fernando. O Minotauro imperial: A burocratização do Estado patrimonial brasileiro no século XIX.  Rio de Janeiro / São Paulo: DIFEL, 1978.
[12] Pena, José Osvaldo de Meira. O dinossauro: Uma pesquisa sobre o Estado, o patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas. São Paulo: Queiroz, 1988.
[13] VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Estado, cultura y sociedad en la América Latina. Bogotá: Universidad Central, 2000. Do mesmo autor, Patrimonialismo e a realidade latino-americana. 2ª edição revistas e atualizada. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 2017. “Tradición patrimonial y administración señorial en América Latina”. Revista Universidad de Medellín, nº 44, p. 81-136, setembro - novembro 1984. Do mesmo autor, “O espírito de clã”, Convivium, São Paulo, 30(3): p. 279-303, mai. / jun. 1979.
[14] SANTOS, Wanderley-Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978. Do mesmo autor, Poder e política: crônica do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978.
[15] Cf. REIS, Aarão. Economia política, finanças e contabilidade. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918. VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. “Tradição centralista e Aliança Liberal”, in: BRASIL – Congresso Nacional – Câmara dos Deputados. Aliança Liberal: documentos da campanha presidencial. (Introdução de R. Vélez Rodríguez). 2ª edição. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982.
[16] Cf. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da Economia Patriarcal. 25ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
[17] VIANA, Francisco José de Oliveira. Introdução à história social da economia pré-capitalista no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.
[18] MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil: contribuição ao estudo da formação brasileira. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. Do mesmo autor, Militares e civis: a ética e o compromisso. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
[19] PAIM, Antônio. “Avanços e recuos na relação Estado-Sociedade”. Convivium, São Paulo, 31(6): p. 515, nov. / dez. 1988.
[20] SIMONSEN, Mário Henrique. Brasil 2001. Rio de Janeiro: APEC, p. 203.
[21] TOURAINE, Alan. “Só o Brasil é Estado na América Latina”. Entrevista concedida por A. Touraine a Reali Júnior. O Estado de S. Paulo, 3-2-1985, p. 5.
[22] RANGEL, Carlos. El tercermundismo. 3ª edição. Caracas: Monte Ávila Editores, 1982 p. 74.
[23] REALE, Miguel. “Constituição terceiro-mundista”. Convivium, São Paulo, 31(6): p. 497, nov. / dez. 1988.
[24] REALE, Miguel. “Constituição terceiro-mundista”, art. cit., p. 497-498.
[25] MERCADANTE, Paulo. “Uma Constituição anacrônica”. Convivium, São Paulo, 31(6): p. 509, nov. / dez. 1988.
[26] REALE, Miguel. “Ilusões do socialismo”, Convivium, São Paulo, 31(6): p. 500, nov. / dez. 1988.
[27] REALE, Miguel. “Ilusões do socialismo”, art. cit., p. 501.
[28] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “A nova Constituição brasileira: Constituição-dirigente ou Constituição-plano”. Convivium, São Paulo, 31(6): p. 502-504, nov. / dez. 1988.
[29] Cf. PAIM, Antônio. História das ideias filosóficas no Brasil. 3ª edição acrescida. São Paulo: Convívio – Brasília: Instituto Nacional do Livro / Fundação Pró-Memória, 1984, p. 473 seg. Do mesmo autor: “A opção totalitária”, in:  BARRETTO, Vicente; PAIM, Antônio et alii. Evolução do pensamento político brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1989, p.  354 seg.
[30] Cf. VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo.  “Tradição centralista e Aliança Liberal”, in: BRASIL / Congresso Nacional – Câmara dos Deputados. Aliança Liberal: documentos da campanha presidencial. Ob. Cit.
[31] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “A nova Constituição brasileira: Constituição-dirigente ou Constituição-plano”. Convivium. São Paulo, 31(6): p. 503, nov. / dez. 1989.
[32] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “A nova Constituição brasileira: Constituição-dirigente ou Constituição-plano”. Art. cit., p. 503.
[33] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “A nova Constituição brasileira: Constituição-dirigente ou Constituição-plano”. Art. cit., p. 504.
[34] PAIM, Antônio. “Avanços e recuos na relação Estado-Sociedade”. Convivium, São Paulo, 31(6): p. 516, nov. / dez. 1988.
[35] SUSSEKIND, Arnaldo Lopes. “A sindicalização no Brasil a partir da Lei Lindolfo Collor”. Conferência proferida no dia 13/10/1998, na “Semana Lindolfo Collor”, promovida em Belém-Pará (de 11 a 14 de outubro de 1988) pelo Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região.
[36] BRASIL, Constituição Federal de 5 de outubro de 1988. Artigo 8.II e 8.IV.
[37] PAIM, Antônio. “Avanços e recuos na relação Estado-Sociedade”. Convivium. São Paulo: 31(6): p. 517, nov. / dez. 1988.
[38] MERCADANTE, Paulo. “Uma Constituição anacrônica”. Convivium. São Paulo, 31(6): p. 508, nov. / dez. 1988.
[39] FERREIRA, Oliveiros S. “A prussianização da Constituição”. Convivium, São Paulo, 31(6): p. 552-553, nov. / dez. 1988.
[40] STEPAN, Alfred. Os militares na política: As mudanças de padrões na vida brasileira.  (Trad. De Italo Tronca). Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p. 61
[41] FERREIRA, Oliveiros S. “A prussinização da Constituição”. Convivium, art. cit.,  p. 561.
[42] FERREIRA, Oliveiros S. “A prussianização da Constituição”. Convivium, art. cit. Ibid.
[43] PAIM, Antônio. “Avanços e recuos na relação Estado-Sociedade”. Convivium, São Paulo, 31(6): p. 516, dov. / dez. 1988.
[44] Participei, junto com o Professor Antônio Paim, do grupo de assessores do Senador José Richa, ao ensejo dos trabalhos do Congresso Constituinte.