Esta exposição tem por objetivo identificar e
analisar os principais problemas que foram objeto da meditação filosófica
brasileira ao longo de sua história. Serão desenvolvidas duas partes: em
primeiro lugar, o estudo dos problemas filosóficos que foram objeto da
meditação brasileira no decorrer dos séculos XVII, XVIII e XIX. Em segundo
lugar, o estudo da problemática filosófica brasileira no século XX.
Antes, porém, torna-se necessária uma breve
aclaração metodológica. Partimos do pressuposto de que não existe em filosofia
originalidade total. Os pensadores emergem do seio da milenar tradição
filosófica ocidental, pensando problemas que são específicos da sua época e do
seu meio. A originalidade filosófica deve ser procurada aí: nas peculiares
condições histórico-culturais que influenciam na forma em que cada pensador
reflete, condicionado ele próprio pela carga de fatores subjetivos e
subjetivo-objetivos presentes em todo ato humano: valores, sensibilidade,
experiências, vivências etc. Levando em consideração esta observação, será
utilizado neste trabalho o método de estudo da filosofia brasileira proposto
por Miguel Reale (1910-2006) e Antônio Paim (nasc. 1927). Este método consiste
em identificar o problema ou os problemas aos que pretende responder o
pensador, a fim de ver a sua peculiar contribuição no terreno da filosofia e
poder traçar, posteriormente, um quadro dos elos e derivações da sua meditação,
em relação a outros autores e correntes [cf. Reale, 1951; Paim, 1979].
1) A filosofia
brasileira nos séculos XVII, XVIII e XIX
As mais importantes obras que estudaram o momento
colonial e o desenvolvimento do pensamento filosófico brasileiro ao longo do
século XIX são: a História das idéias filosóficas no Brasil de Antônio Paim
[1967]; Contribuição à história das idéias no Brasil, de João Cruz Costa
[1956]; Panorama da filosofia no Brasil, de Luís Washington Vita [1969];
Filosofia em São Paulo, de Miguel Reale [1976]; Antologia do
pensamento social e político no Brasil, de Luís Washington Vita [1968]; As
idéias filosóficas no Brasil: séculos XVIII e XIX, obra em colaboração
organizada por Adolpho Crippa [1978a]; Achegas à história da filosofia,
de Alcides Bezerra [1936]; O humanismo brasileiro, de Vamireh Chacon
[1980] e História da filosofia no Brasil, de Jorge Jaime [1997]. Entre
os estudos realizados por autores estrangeiros, merecem destaque as seguintes
obras: Filósofos brasileiros, do escritor boliviano Guillermo Francovich
[1979]; Filosofia luso-brasileira, trabalho em colaboração organizado
por Ricardo Vélez Rodríguez [1983] e Pensamento luso-brasileiro, de
Eduardo Abranches de Soveral [1996]. No terreno do estudos bibliográficos, o
mais importante é o de Antônio Paim [1982], intitulado Bibliografia
filosófica brasileira: 1808-1930 .
A meditação filosófica brasileira durante o
período colonial caracteriza-se pela sua inspiração nos temas tratados pela
Segunda Escolástica portuguesa. O ponto central desta consistia na defesa da
ortodoxia católica, a partir das disposições adotadas no Concílio de Trento
(1545-1563) como reação contra a reforma protestante. A máxima expressão desse
esforço foi a Ratio Studiorum, sistematizada definitivamente em 1599, e
que consistia num estrito regulamento que pautava as atividades acadêmicas da
Companhia de Jesus em Portugal e na Espanha. Tal regulamento disciplinou o
ensino no Colégio das Artes de Coimbra, na Universidade de Evora e nas demais
escolas jesuíticas, que praticamente monopolizavam os estudos secundários em
Portugal.
Dois aspectos típicos da Ratio Studiorum
eram a subordinação do ensino superior à teologia e o dogmatismo, que se
alicerçava na procura de uma ortodoxia definida pelos próprios jesuítas e que
conduzia a expurgar os textos dos autores, inclusive os do próprio São Tomás de
Aquino. Como acertadamente destacou Antônio José Saraiva [1955: 229-230],
"Não é necessário colocar em evidência o caráter dogmático desse ensino,
perfeitamente coerente com o sistema no qual se integra. O ensino da filosofia
não visava a desenvolver a capacidade crítica do aluno, mas a incutir nele uma
determinada doutrina, a prevenir os possíveis desvios em relação a ela e a
prepará-lo para defendê-la".
Castelo de Guimarães - Portugal, berço da nacionalidade portuguesa. (Foto: álbum de família). |
O ambiente cultural ensejado em Portugal pela Ratio
Studiorum não favoreceu a abertura às filosofias modernas formuladas na
Europa durante os séculos XVI e XVII. Conseqüentemente, a meditação filosófica
colonial correspondeu, no Brasil, à corrente chamada por Luís Washington Vita
de "saber de salvação", cujos principais representantes foram Manuel
da Nóbrega, Gomes Carneiro, Nuno Marques Pereira e Souza Nunes. Desse conjunto
destaca-se a obra de Marques Pereira (1652-1735) intitulada Compêndio
narrativo do peregrino da América [Pereira, 1939], que foi editada
sucessivamente em 1728, 1731, 1752, 1760 e 1765. A obra respondia à
problemática típica da espiritualidade monástica, centrada na idéia de que o
homem não foi criado por Deus para esta vida, destacando-se, em conseqüência, o
caráter negativo da corporeidade e das tarefas terrenas.
Na segunda metade do século XVIII, consolidou-se
em Portugal a corrente do empirismo mitigado, que se caracterizava por
uma forte crítica à Segunda Escolástica e ao papel monopolizador que exerciam
os jesuítas no ensino, bem como pela tentativa de formular uma noção de filosofia
que se reduzisse à ciência aplicada. Duas obras serviram de base a essa nova
corrente: Instituições lógicas do italiano Antonio Genovesi (1713-1769)
[1937] e o Verdadeiro método de estudar, do sacerdote oratoriano
português Luís Antônio Verney (1713-1792) [1950]. O empirismo mitigado
foi formulado e se desenvolveu no contexto mais amplo das reformas educacionais
do marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), que
pretendiam incorporar a ciência aplicada ao esforço de modernização despótica
do Estado português. Contudo, ao responder a uma problemática formulada a
partir das necessidades do Estado patrimonial e não a partir de uma perspectiva
que tivesse como centro o homem, o empirismo mitigado não conseguiu dar
uma resposta satisfatória aos problemas da consciência e da liberdade.
O empirismo mitigado inspirou, no entanto,
a importantes segmentos da intelligentsia brasileira, a partir da
mudança da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. A geração de homens
públicos que organizou as primeiras instituições de ensino superior era de
formação cientificista-pombalina. Entre eles, cabe destacar a figura de dom
Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812), conde de Linhares, quem em 1810
organizou a Real Academia Militar do Rio de Janeiro.
O esforço em prol da superação do empirismo
mitigado coube a Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846). Inspirado na
filosofia de Leibniz (1646-1716) e, de outro lado, na lógica aristotélica e no
empirismo lockeano, o pensador português, quem foi ministro da corte de dom
João VI no Brasil, formulou um amplo sistema que abarcava três partes: a teoria
do discurso e da linguagem, o saber do homem e o sistema do mundo. A sua mais
importante contribuição ao pensamento brasileiro consistiu na tentativa de
superação da filosofia até então vigente; a sua proposta teórica foi
sistematizada principalmente nas Preleções filosóficas [Ferreira, 1970]
e na formulação do liberalismo político e das bases do sistema representativo,
no Manual do cidadão num governo representativo [In: Ferreira, 1976].
Graças à sua valiosa colaboração teórica, o Império brasileiro conseguiu
superar os problemas do liberalismo radical e deitou as bases para a prática
parlamentar. No entanto, a sua meditação não conseguiu formular de maneira completa
uma explicação filosófica para o problema da liberdade.
Miguel Reale, o mais importante filósofo brasileiro do século XX. (Foto: álbum de família do autor). |
Os temas da consciência e da liberdade ocuparam o
foco do debate filosófico que se efetivou no Brasil ao longo do século XIX. A
partir das bases colocadas pela meditação de Silvestre Pinheiro Ferreira, os
pensadores ecléticos procuraram dar uma resposta de caráter espiritualista à
problemática do homem. Sem dúvida que os filósofos brasileiros deste período
inspiraram-se no ecletismo espiritualista francês formulado por Maine de Biran
(1766-1824) e divulgado por Victor Cousin (1792-1867), que permitiu superar o
extremado sensismo de Condillac (1715-1780). Mas o pensamento dos primeiros
reveste-se da originalidade que tinham as circunstâncias históricas do Brasil
no século XIX, relacionadas com o problema da construção do sentimento de nação
e com a organização do Estado.
As duas figuras mais representativas do ecletismo
brasileiro são Eduardo Ferreira França (1809-1857) e Domingos Gonçalves de
Magalhães (1811-1882). A obra do primeiro caracteriza-se por buscar uma
fundamentação filosófica para o exercício da liberdade política. Apesar de ter
formulado uma visão determinista do homem nos seus primeiros escritos, o seu
pensamento evolui até uma concepção espiritualista na obra fundamental
intitulada Investigações de psicologia [França, 1973], publicada em
Paris em 1854. Sem abandonar a perspectiva empirista que tinha adotado desde o
início da sua meditação filosófica, Ferreira França, graças à influência de
Maine de Biran, consegue desenvolver o tema da introspecção, que lhe permitirá
chegar, com o rigor da observação empírica, à constatação da existência do
espírito. Na sua meditação, Ferreira França dará especial ênfase ao tema da
vontade, a qual é concebida como o elemento capitalizador dos diversos poderes
de que está dotado o homem, cabendo-lhe a função primordial de constituí-lo
como pessoa.
Gonçalves de Magalhães expôs o seu pensamento
filosófico na obra intitulada Fatos do espírito humano [Magalhães,
1865], publicada em Paris em 1859. O problema ao qual respondeu a filosofia do
maior pensador romântico do Brasil foi o da construção da idéia de nação. Isso
fez com que a obra de Magalhães, como destaca o seu mais importante estudioso,
Roque Spencer Maciel de Barros [1973], se formulasse no contexto de uma
proposta pedagógica. Magalhães baseia a sua visão da liberdade e da moral numa
análise filosófica inspirada em Victor Cousin e parcialmente em Malebranche
(1638-1715) e Berkeley (1685-1753); formula uma explicação do homem em termos
puramente espiritualistas, que negam qualquer valor substancial ao mundo
material, inclusive ao próprio corpo, já que o universo sensível só existe
intelectualmente em Deus, como pensamentos seus. O homem, preso ao corpo, é
livre por ser espírito e adquire a conotação de ente moral justamente em
virtude dessa "resistência do corpo". A moral de Magalhães, como a de
Cousin, é uma moral do dever que valoriza a intenção do autor e não o resultado
do ato. A inspiração romântica dessa filosofia aparece na importância conferida
por Magalhães ao fator religioso como motor da nacionalidade, bem como no papel
desempenhado pela poesia enquanto educadora do povo (ele foi o mais importante
representante do romantismo literário no Brasil). Dessa forma, Magalhães
desempenha, no contexto brasileiro, um papel semelhante ao representado em
Portugal pelo primeiro romântico luso, Alexandre Herculano (1810-1877).
Outras figuras de menor imporância na corrente
eclética brasileira foram Salustiano José Pedrosa (falecido em 1858) e Antônio
Pedro de Figueiredo (1814-1859), quem traduziu ao português o Curso de
história da filosofia moderna de Victor Cousin. O ocaso da corrente
eclética dá-se ao longo do período de 1880 a 1900, em decorrência do fenômeno
cultural denominado por Sílvio Romero (1851-1914) de "surto de idéias
novas", e que se caracterizou pela entrada, nos meios acadêmicos, de
filosofias contrárias ao espiritualismo eclético, como o darwinismo, o
determinismo monista e o positivismo.
Sem dúvida alguma que, entre as correntes
filosóficas em ascensão nas últimas décadas do século XIX, o positivismo
foi a que mais repercussão teve no seio do pensamento brasileiro. A razão
fundamental desse fato radica na pré-existente tradição cientificista que se
iniciou com as reformas pombalinas, à luz das quais estruturou-se todo o
sistema de ensino superior, em bases que privilegiavam a ciência aplicada e a
instrução estritamente profissional. Isso explica a tardia aparição da idéia de
universidade (entendida como instância de cultura superior e de pesquisa
básica), no contexto cultural brasileiro. Efetivamente, só a partir da década
de 1920 ganharia corpo a idéia de universidade, como reação contra o
positivismo reinante.
Antônio Paim e este autor, quando da comemoração dos 80 anos de Paim, em Brasília. (Foto: álbum de família do autor). |
O positivismo teve no Brasil quatro manifestações
diferentes: a ortodoxa, a ilustrada, a política e a militar. A corrente
ortodoxa teve como principais representantes Miguel Lemos (1854-1917) e
Teixeira Mendes (1855-1927), os quais fundaram, em 1881, a Igreja Positivista
Brasileira, com o propósito de fomentar o culto da "religião da humanidade",
proposta por Comte (1798-1857), no seu Catecismo positivista.
A corrente ilustrada teve como principais
representantes Luís Pereira Barreto (1840-1923), Alberto Sales (1857-1904),
Pedro Lessa (1859-1921), Paulo Egydio (1842-1905) e Ivan Lins (1904-1975). Esta
corrente defendia o plano proposto por Comte na primeira parte da sua obra, até
1845, antes de formular a sua "religião da humanidade", e que poderia
ser sintetizado assim: o positivismo constitui a última etapa (científica) da
evolução do espírito humano, que já passou pelas etapas teológica e metafísica
e que deve ser educado na ciência positiva, a fim de que surja, a partir desse
esforço pedagógico, a verdadeira ordem social, que foi alterada pelas
revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII.
A corrente política do positivismo teve como
maior expoente Júlio de Castilhos (1860-1903) [cf. Vélez, 1980], quem em 1891
redigiu a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, que entrou em vigor
nesse mesmo ano. Segundo essa carta, as funções legislativas passavam às mãos
do poder executivo, sendo os outros dois poderes públicos (legislativo e
judiciário) tributários do executivo hipertrofiado. Para Castilhos, deveria se
inverter o dogma comteano de que à educação moralizadora seguiria pacificamente
a ordem social e política. O Estado forte deveria, ao contrário, impor
coercitivamente a ordem social e política, para depois educar compulsoriamente
o cidadão na nova mentalidade, ilustrada pela ciência positiva. Esta corrente
ganhou maior repercussão do que as outras três, devido a que obedeceu à
tendência cientificista de que já se tinha impregnado o modelo modernizador do
Estado consolidado pelo marquês de Pombal. Assim, as reformas autoritárias de
tipo modernizador que o Brasil iria experimentar ao longo do século XX, deram
continuidade à mentalidade castilhista do Estado forte e tecnocrático. Este
modelo consolidou-se na obra de um seguidor de Castilhos: Getúlio Vargas
(1883-1954), como será detalhado mais adiante. Aconteceu com o castilhismo algo
semelhante ao ocorrido no México com o porfirismo: ambas as doutrinas cooptaram
a filosofia positivista como ideologia estatizante e reformista.
A corrente militar positivista teve como
principal representante Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891), professor
da Academia Militar e um dos chefes do movimento castrense que derrubou a
monarquia em 1889. Esta corrente estruturou-se paralelamente à ilustrada,
projetando ao longo das últimas décadas do século XIX o ideário cientificista
pombalino, conforme destacou Antônio Paim [1980: 259]: "A adesão às
doutrinas de Comte por parte dos líderes da Academia Militar, deu-se no
estreito limite em que contribuiu para desenvolver as premissas do ideário
pombalino, quer dizer, a crença na possibilidade da moral e da política
científicas. Para comprová-lo, basta comparar as funções às que Comte destinava
as forças armadas e o papel que Benjamin Constant atribui ao Exército".
A filosofia positivista foi vigorosamente
criticada pela corrente denominada de "Escola do Recife" [cf. Paim,
1966]. O fundador e mais destacado representante dessa corrente de pensamento
foi Tobias Barreto (1839-1889). Outras figuras dignas de menção são Sílvio
Romero (1851-1914), Clóvis Beviláqua (1859-1944), Artur Orlando (1858-1916), Martins
Júnior (1860-1909), Faelante da Câmara (1862-1904), Fausto Cardoso (1864-1906),
Tito Livio de Castro (1864-1890) e Graça Aranha (1868-1931).
Os pensadores da "Escola do Recife"
protagonizaram uma clara reação contra as duas formas de pensamento que
dominavam o panorama filosófico nacional nas últimas décadas do século XIX: o
ecletismo espiritualista e o positivismo. Apesar de que no início os seus
principais expoentes tivessem tomado elementos do monismo de Haeckel
(1834-1919) e da própria filosofia comteana, muito cedo superaram esses
limitados pontos de vista para se abrirem às idéias que garantiriam a
tematização da cultura, no contexto do neo-kantismo. Esse esforço teórico foi
iniciado por Tobias Barreto e coroado por Artur Orlando. Rosa Mendonça de Brito
[1980: 33] sintetizou assim a contribuição deste último: "A sua filosofia
é uma meditação sobre as ciências e a crítica ou teoria do conhecimento. Esta é
a parte da filosofia que lhe dá um objeto próprio, capaz de justificar-lhe a
existência, representando, pois, o núcleo central do pensamento filosófico
moderno e contemporâneo. A teoria do real e do ideal -- saber o
que o nosso conhecimento possui de objetivo e de subjetivo -- é o seu problema
fundamental".
Sílvio Romero, crítico eminente do Positivismo e fundador da corrente do Culturalismo Sociológico. (Foto: arquivo de imagens do autor). |
A "Escola do Recife" foi, no contexto
do pensamento filosófico brasileiro do século XIX, a mais clara manifestação da
perspectiva transcendental kantiana, ao entender - com Tobias Barreto e Artur
Orlando - a filosofia como epistemologia. Esses pensadores, sem dúvida,
deitaram as bases para o ingresso e a discussão, no meio brasileiro, das idéias
provenientes do neokantismo, nas primeiras décadas do século XX.
De outro lado, ao buscar uma fundamentação de
tipo transcendental não só para o conhecimento, mas também para a ação humana,
a "Escola do Recife", especialmente através da meditação dos dois
autores mencionados anteriormente, desaguou na concepção da cultura como
dimensão específica do humano, que se contrapõe ao mundo da natureza. Segundo o
fundador da "Escola do Recife": "(...) a sociedade, que é o
grande aparato da cultura humana, deixa-se figurar através da imagem de um
emaranhado imenso de relações sinérgicas; é um sistema de regras, é uma
rede de normas, que se não limitam ao mundo da ação, chegando até os
domínios do pensamento. Moral, direito, gramática, lógica, civilidade,
cortesia, etiqueta, etc., são outros tantos corpos de doutrina que têm de comum
entre si o caráter normativo (...). E tudo isso é obra da cultura em
luta com a natureza (...), luta na qual o direito é o fio vermelho e a moral o
fio de ouro, que atravessam todo o tecido das relações sociais. Um direito
natural possui tanto sentido quanto uma moral natural, uma gramática
natural, uma ortografia natural, uma civilidade natural, pois
todas essas normas são efeitos, invenções culturais" [Tobias
Barreto, 1966: 331-332].
A "Escola do Recife", ao mesmo tempo em
que permitiu fazer uma crítica de fundo ao determinismo positivista, que
ancorava na submissão naturista da liberdade e da consciência, reduzindo-as a
efeitos da "física social", deitou também as bases para a corrente de
pensamento que no século XX revelar-se-ia mais vital no contexto da meditação
filosófica brasileira: o culturalismo.
Apesar de que a "Escola do Recife" foi
a mais importante herdeira do kantismo ao longo do século XIX, não podemos
ignorar o papel pioneiro que representaram os Cadernos de Filosofia
[Feijó, 1967] do padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843), que sintetizam o
magistério do regente do Império (1835-1837). Neles, encontramos viva a
presença de Kant (1724-1804), tanto no que se refere à forma em que Feijó
entende a razão humana, quanto no que diz relação ao exercício da liberdade. As
seguintes palavras, que ilustram a idéia que o padre paulista tinha acerca da
meditação filosófica, partem do pressuposto da "revolução
copernicana" do filósofo de Königsberg, de enxergar a problemática do
conhecimento sob uma perspectiva estritamente humana e transcendental:
"Sendo o homem -- afirma Feijó em seus Cadernos -- a única
substância conhecida por ele, é claro que toda ciência para ser verdadeira e
não fenomenal, quer dizer, para ter um valor real em si, deve fundamentar-se no
mesmo homem. É nas suas leis onde residem os princípios originais e primitivos
de toda a ciência humana".
A meditação filosófica brasileira do século XIX
não seria alheia à influência do krausismo. Miguel Reale destaca que o
pensamento de Krause (1781-1832), apesar de ter entrado indiretamente no
panorama brasileiro por intermédio do jurista português Vicente Ferrer Neto
Paiva (1798-1886) e dos krausistas Ahrens (1808-1874) e Tiberghien (1819-1901),
teve ampla repercussão na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em
São Paulo. Os principais representantes dessa tendência foram Galvão Bueno
(1834-1883) e João Theodoro Xavier (1820-1878), cuja obra Teoria
transcendental do direito (1876), segundo Reale, "compendia os
princípios fundamentais do racionalismo harmônico de Krause, com
freqüentes referências à doutrina de Kant". João Theodoro tentou superar o
individualismo da concepção kantiana do direito, numa visão que desse lugar
essencial ao papel social do mesmo, sendo assim um dos precursores do chamado
"direito social", ou "direito trabalhista" no Brasil.
Uma corrente de filosofia política bastante
cultuada durante o Império foi o denominado liberalismo doutrinário. O
pensamento de autores como François Guizot (1787-1874), Benjamin Constant de
Rebecque (1767-1830), Royer-Collard (1763-1843), etc., exerceu bastante
influência na consolidação do sistema representativo. Os pensadores brasileiros
que mais diretamente receberam essa influência foram Paulino Soares de Souza,
visconde de Uruguai (1807-1866) e o publicista Pimenta Bueno (1803-1878). A
visão liberal-conservadora legada pelos doutrinários sofreria, em terras
brasileiras, uma análise crítica do ponto de vista do liberalismo
democrático de Alexis de Tocqueville (1805-1859). Tavares Bastos
(1839-1875) e José de Alencar (1829-1877) foram os pensadores que melhor
realizaram essa revisão crítica, que serviu de bandeira ao Partido Liberal, notadamente
ao longo das décadas de 1860 e 1870 [cf. Vélez, 1997a e 1997b].
Como reação ao pensamento liberal, o
tradicionalismo teve bastante divulgação ao longo do século XIX. Podemos citar,
como representantes importantes dessa tendência, dom Romualdo Seixas
(1787-1860), quem foi arcebispo de Salvador-Bahia e recebeu do Imperador o
título de Marquês de Santa Cruz, e José Soriano de Souza (1833-1895).
Apesar de terem recebido a influência dos
tradicionalistas franceses Joseph de Maistre (1753-1821) e Louis de Bonald
(1754-1840), os brasileiros mostraram-se muito mais tolerantes do que aqueles e
do que os portugueses. Ubiratan Macedo [1981: 19] sintetizou assim o núcleo da
filosofia tradicionalista brasileira: "Pode-se afirmar que os
tradicionalistas brasileiros no século XIX tinham consciência clara de um
conjunto de teses filosóficas, religiosas e de caráter social, ao redor das
quais desenvolveram ensaios de certa magnitude. Tais teses consistiam no
menosprezo pelo racionalismo e o liberalismo; na defesa da monarquia legítima;
no empenho em prol da união da Igreja e do Estado e em prol da proscrição do
matrimônio civil; na luta em defesa da liberdade de imprensa e de pensamento,
em nome do direito à verdade. Passando ao nível político (...) e excetuando a preferência
pela monarquia, não se observa maior claridade nas opções. A monarquia
constitucional vigente era francamente tolerada, assim como o regalismo (...).E
quanto a ter uma atenção política estruturada, como pretendia Soriano de Souza,
esta não chegou a ser considerada. O grupo, apesar de ativo, era francamente
minoritário e nunca teve maior proximidade com o poder".
2) A filosofia
brasileira no século XX
As principais obras que têm estudado o
desenvolvimento da filosofia brasileira ao longo do século XX, são: de Antônio
Paim, História das idéias filosóficas no Brasil [1967], Problemática
do culturalismo [1977] e O estudo do pensamento brasileiro [1979];
de João Cruz Costa, Contribuição à história das idéias no Brasil [1956];
de Fernando Arruda Campos, Tomismo e neo-tomismo no Brasil [1968]; de
Luis Washington Vita, Panorama da filosofia no Brasil [1969b] e Filosofia
contemporânea em São Paulo [1969a]; de Tarcísio Padilha (organizador), Filosofia
e realidade brasileira 1976]; de Adolpho Crippa (organizador), As idéias
filosóficas no Brasil: século XX [1978b]; de Stanislavs Ladusans, Rumos
da filosofia atual no Brasil [1976]; de dom Odilão Moura, Idéias
católicas no Brasil: direções do pensamento católico no Brasil no século
XX [1978]; de Antônio Carlos Villaça, O pensamento católico no Brasil
[1975]; de Aquiles Côrtes Guimarães, O tema da consciência na filosofia
brasileira [1982]; de Tarcísio Padilha (organizador), Anais da VII
Semana Internacional de Filosofia [1993]; de Roque Spencer Maciel de
Barros, Estudos brasileiros [1997] e de José Maurício de Carvalho, Contribuição
contemporânea à história da filosofia brasileira [1998]. No terreno dos
estudos bibliográficos devem ser destacados os de Antônio Paim, intitulados: Bibliografia
filosófica brasileira: período 1931-1980 [1987] e Bibliografia
filosófica brasileira: período contemporâneo, 1981-1985 [1988]. É
importante lembrar também a obra de Geraldo Pinheiro Machado (1918-1985) 1000
títulos de autores brasileiros de filosofia [1983].
José Osvaldo de Meira Penna, eminente pensador liberal e crítico mordaz do Patrimonialismo brasileiro. (Foto: arquivo de imagens do autor).r |
Roque Spencer Maciel de Barros: notável scholar liberal, lecionou na Faculdade de Educação da USP (Foto: arquivo de imagens do autor). |
A partir da queda do Império e da instauração da
República em 1889, a preocupação com a busca de uma sociedade racional
tornou-se meta prioritária da elite intelectual brasileira. O século XX começa
sob a inspiração positivista, que deu ensejo às quatro correntes mencionadas
anteriormente.
A vertente castilhista, consolidada, como já foi
frisado, na Constituição política do Estado do Rio Grande do Sul,
elaborada e promulgada por Castilhos em 1891, deu lugar à prática da
"ditadura científica" no mencionado Estado. As figuras de maior
relevo do castilhismo não foram teóricos do positivismo, mas espíritos práticos
que legislaram e que modelaram uma forma autoritária de governo. Consolidado o
castilhismo no Rio Grande do Sul, a partir de 1930 converteu-se na doutrina
predominante do autoritarismo republicano brasileiro.
Duas gerações podemos identificar no castilhismo:
a primeira, correspondente ao surgimento e consolidação dessa tendência no
Estado do Rio Grande do Sul, no período compreendido entre 1891 e 1930 e que
teve, além de Castilhos, os seguintes representantes: Borges de Medeiros
(1864-1961), José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915) e Getúlio Vargas
(1883-1954). A segunda geração castilhista foi integrada pela elite
sul-riograndense que acompanhou Getúlio Vargas na tomada do poder em 1930 e a
sua influência projetou-se diretamente no cenário nacional durante o longo
período getuliano até 1945, voltando a exercer alguma influência durante o
segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954). Os representantes mais
destacados desta segunda geração foram Lindolfo Collor (1891-1942), João Neves
da Fontoura (1889-1963), Firmino Paim Filho (1884-1971), João Batista Luzardo
(1892-1982), Joaquim Maurício Cardoso (1888-1938) e outros.
Os dois traços doutrinários centrais do
castilhismo [cf. Vélez, 1980] são a idéia da tutela do Estado sobre os cidadãos
e a concentração de poderes no Executivo. Como doutrina regeneradora, o
castilhismo revelou-se mais autoritário do que a própria ditadura científica
comteana. Enquanto o filósofo de Montpellier considerava que da educação
positiva dos vários agentes sociais emergiria a ordem social e política, os
castilhistas, como já foi dito, inverteram a equação: primeiro deveria se
consolidar um Estado mais forte do que a sociedade (mediante os expedientes do
partido único e do terror policial que destruísse qualquer oposição) a fim de
que, numa segunda etapa, o Estado educasse compulsoriamente os cidadãos. Como se
pode observar, este modelo incorporou muitos elementos do totalitarismo
rousseauniano, particularmente a idéia de que ordem significa
aniquilação de qualquer dissenso.
Em que pese o fato de os castilhistas da segunda
geração (na qual se destacava a figura de Lindolfo Collor) tiverem elaborado
uma plataforma modernizadora de governo que deitou os alicerces para a
industrialização do Brasil, a sua proposta ensejou um modelo tecnocrático apto
para funcionar unicamente num contexto autoritário. Essa tendência fez com que
o longo regime de Vargas terminasse evoluindo até uma ditadura uni-pessoal, com
alguns elementos emprestados do corporativismo fascista: o chamado Estado
Novo (1937-1945).
Os positivistas ilustrados (cujos nomes já foram
mencionados no item anterior) foram caracterizados assim por Antônio Paim
[1967]: "(...) sendo partidários de Augusto Comte, no que se refere à
possibilidade da organização racional da sociedade, preferiam os procedimentos
da democracia liberal, ao contrário do totalitarismo castilhista".
Especial menção deve ser feita a Ivan Lins, cuja obra principal História do
positivismo no Brasil [1964] tornou-se um dos clássicos para o estudo deste
tema, justamente por fazer um balanço objetivo e desapaixonado da contribuição
das várias manifestações do comtismo na cultura brasileira.
A vertente militar do positivismo teve um importante
representante neste século: o marechal Cândido Mariano da Silva Rondón
(1865-1956), quem foi o principal discípulo do ideólogo do positivismo no meio
militar, Benjamin Constant Botelho de Magalhães. Inspirado no ideal positivista
de incorporação do proletariado à sociedade, Rondón sempre insistiu na
assimilação do índio à cultura ocidental, respeitando as populações silvícolas
nas suas propriedades, nas suas pessoas e nas suas instituições políticas,
sociais e religiosas. Essa atitude permitiu-lhe realizar importante trabalho de
penetração nos longínquos confins da Amazônia e do Mato Grosso. Convém
salientar que houve, no meio militar, um grupo de oficiais que seguiram o
positivismo castilhista, entre os quais cabe mencionar o general Pedro Aurélio
de Góis Monteiro (1889-1956), quem teve papel destacado durante os dois
governos de Getúlio Vargas.
Nas primeiras décadas do presente século a
crítica ao positivismo foi realizada por Otto de Alencar (1874-1912) e Amoroso
Costa (1885-1928), ambos professores da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e
precursores da corrente neo-positivista. A crítica era simples: o comtismo não
corresponde a uma autêntica filosofia da ciência devido à sua índole dogmática,
sendo necessária uma abertura à evolução do conhecimento científico nas suas
várias manifestações, especialmente no tocante à física-matemática. A
finalidade essencial da filosofia seria a formulação de uma teoria do
conhecimento que buscasse fundamentar uma linguagem elaborada com o máximo
rigor e que se inspirasse na matemática. Os esforços de Otto de Alencar e
Amoroso Costa conduziram à criação da Academia Brasileira de Ciências em 1916,
que representou um espaço aberto ao pensamento científico, livre por completo
do dogmatismo comteano.
Luiz Antônio Barreto. Destacou-se como historiador das idéias em Sergipe, editor das obras completas de Tobias Barreto. (Foto: arquivo de imagens do autor). |
Na atualidade, dois pensadores representam a
tendência neo-positivista: Pontes de Miranda (1892-1979) e Leônidas Hegenberg
(nasc. 1925). O primeiro caracteriza-se por ter aplicado os princípios
fundamentais dessa corrente à ciência do direito, mas sem se restringir a ela,
colocando-a num contexto mais amplo em que medita sobre a criação humana como
um todo. O segundo é considerado por Antônio Paim como "o principal
artífice do processo contemporâneo de superação do conceito oitocentista de
ciência e do triunfo sobre o positivismo comteano por parte dos cultores das
ciências exatas, interessados na correspondente problemática filosófica.
A mais fecunda corrente de pensamento filosófico,
ao longo do presente século, é a culturalista. Tal corrente identifica-se como
herdeira do neo-kantismo e da tradição surgida a partir da crítica ao
positivismo, desenvolvida pela "Escola do Recife", especialmente por
Tobias Barreto. Os principais representantes do culturalismo brasileiro são
Luís Washington Vita (1921-1968), Miguel Reale, Djacir Menezes (1907-1996),
Antônio Paim, Paulo Mercadante (nasc. 1923) e Nelson Saldanha (nasc. 1931).
As teses fundamentais sustentadas pelos
culturalistas poderiam ser sintetizadas da seguinte forma, segundo Antônio Paim
[1977]: a) A filosofia implica multiplicidade de perspectivas, sendo que no
interior destas existe a possibilidade de que surjam pontos de vista diversos.
A escolha de uma perspectiva determinada não obedece a critérios uniformes. b)
A ciência é a única forma de conhecimento capaz de efetivar um discurso com
validez universal, mas para isso são estabelecidos objetos limitados, evita-se
a busca da totalidade e elimina-se o valor. c) As ciências humanas
experimentaram um processo de aproximação às ciências naturais, mas por outro
lado observa-se uma subordinação de todas elas a esquemas filosóficos. d)
Contudo, a elucidação acerca das relações entre ciência e filosofia, não chega
a constituir objetivo primordial da corrente culturalista, que centra a
atenção, melhor, numa meditação de tipo ontológico. e) O ser do homem constitui
o objeto próprio dos pensadores culturalistas, que atendem sobretudo para o
agir ou para as criações humanas. f) A criação humana, ou seja, a cultura, é
entendida como "conjunto de bens objetivados pelo espírito humano na realização
de seus fins específicos". g) É necessário atender, no terreno da cultura,
ao âmbito da pura idealidade, que possui um desenvolvimento autônomo, apesar de
ser influenciado pelo conjunto da atividade cultural. h) A autonomia da
variável espiritual, no processo cultural, torna-se visível através da
capacidade humana de refletir filosoficamente acerca dos problemas. i) Os
problemas filosóficos são constituídos por questões controvertidas no seio da
tradição cultural, desde o ponto de vista do sentido do ser e do agir humanos.
j) Apesar de enfatizar a autonomia e a criatividade do espírito, os
culturalistas não deixam de reconhecer que a atividade humana é orientada pelo
interesse e pela necessidade. k) Contudo, interesse e necessidade humanos são
subjetivos, apesar de que na sua concreção se refiram a um determinado contexto
histórico e cultural. l) Os ideais convertem-se em forças propulsoras da
cultura humana, quando amadurecidos pelos valores morais. m) O curso histórico
tomado na sua totalidade está longe de ser um processo racional, constituindo,
melhor, a esfera da violência e da força. n) A filosofia política constitui uma
espécie de tensa mediação entre as esferas da racionalidade e da violência.
Esta forma de reflexão filosófica alimenta-se de determinada concepção de
pessoa humana, situada no seu contexto histórico e aberta à problemática da
moralidade.
Raimundo de Farias Brito (1862-1917) é o mais
importante pensador de tendência espiritualista no Brasil. Discípulo da
"Escola do Recife", combateu o positivismo não a partir do
neo-kantismo, como Tobias Barreto, mas a partir do espiritualismo, que estava
em ascensão na Europa graças à meditação de Henri Bergson (1859-1941). A
influência de Farias Brito se fez sentir no pensamento do seu mais importante
discípulo, Jackson de Figueiredo (1891-1928) quem, apesar de não ter formulado
uma rigorosa proposta filosófica como seu mestre, teve o mérito de elaborar uma
doutrina conservadora centrada nas idéias de ordem e de autoridade, que serviu
de base teórica aos católicos para assimilar as instituições republicanas e
estabelecer um diálogo fecundo com outras concepções políticas, superando
destarte o dogmatismo ultramontano, no qual a Igreja Católica tinha ancorado
desde a proclamação da República em 1889.
O mais destacado representante desta última
posição foi o padre Leonel Franca (1896-1948), da Companhia de Jesus, quem
partiu do ponto de vista de defesa intransigente do catolicismo para uma
classificação apologética dos filósofos. Outros pensadores de inspiração
católica têm desenvolvido perspectivas mais abertas. Dentre os que receberam a
influência de Jacques Maritain (1882-1973) cabe mencionar a Alceu Amoroso Lima
(pseudônimo Tristão de Athayde) (1893-1983) e Leonardo van Acker
(1896-1986). Amoroso Lima sistematizou na sua obra os princípios do que ele
denominou de "humanismo cristão", contraposto ao marxismo e ao
existencialismo. Alicerçado nessa concepção, formulou críticas a filósofos
contemporâneos e lutou no Brasil pela defesa dos direitos humanos. Van Acker,
belga de nascimento, adotou um ponto de vista neo-tomista para avaliar as
filosofias contemporâneas e formulou uma concepção moderna do que seria o papel
dessa corrente de pensamento no mundo de hoje, no sentido de que deveria se
abrir à análise, sem preconceitos, de todas as tendências. Continuador desta
esclarecida opção é hoje monsenhor Urbano Zilles (nasc. 1937).
Outros pensadores de inspiração católica são:
Tarcísio Meireles Padilha (nasc. 1928) quem, inspirado na meditação de Louis
Lavelle (1883-1951), formula uma "filosofia da esperança"; Geraldo
Pinheiro Machado quem se destacou como historiador das idéias filosóficas no
Brasil; Ubiratan Macedo (1937-2007) e Gilberto de Mello Kujawski (nasc. 1925),
os quais elaboraram a sua obra inspirando-se no pensador espanhol José Ortega y
Gasset (1883-1955); Fernando Arruda Campos, reconhecido estudioso do
neo-tomismo brasileiro e o padre Stanislavs Ladusans (1912-1993), da Companhia
de Jesus, autor da obra, já citada, Rumos da filosofia atual no Brasil.
Castelo de Guimarães. (Foto: álbum de família do autor). |
Tentando dar uma resposta concreta ao problema da
pobreza e das desigualdades sociais que afetam ao Brasil, alguns pensadores de
formação cristã têm desenvolvido, ao longo das últimas décadas, o que poderia
ser denominado de projeto imanentista de libertação, que acolhe elementos
conceituais provindos das teologias católica e protestante, bem como do
hegelianismo, dos messianismos políticos rousseauniano e saint-simoniano, do
personalismo de Emmanuel Mounier (1905-1950) e do marxismo. As principais contribuições
neste terreno pertencem ao padre jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002),
inspirador do movimento chamado Ação Popular (que posteriormente
converter-se-ia na Ação Popular Marxista-Leninista); a Hugo Assmann, destacado
professor universitário; ao padre Leonardo Boff, autor de numerosa bibliografia
nos terrenos teológico, político, filosófico e ecológico; e ao pedagogo Paulo
Freire.
É importante destacar que, ao longo da última
década, têm aparecido estudos que analisam a problemática da pobreza de outros
ângulos, como por exemplo a partir da perspectiva liberal. A mais significativa
contribuição nesse sentido é a obra de José Osvaldo de Meira Penna (nasc.
1917), intitulada Opção preferencial pela riqueza [Penna, 1991].No
terreno do pensamento tradicionalista sobressaem: José Pedro Galvão de Souza
(1912-1993), quem profundizou na análise da teoria da representação (fato que o
aproxima curiosamente do liberalismo lockeano); Alexandre Correia (1890-1984),
quem realizou a tradução íntegra ao português da Suma Teológica de São
Tomás de Aquino (1225-1274) e Gustavo Corção (1896-1978).
Os pensadores de inspiração marxista têm
desenvolvido no Brasil amplo trabalho de análise, abordando especialmente os
aspectos sócio-econômicos. Destaca-se nesse terreno Caio Prado Júnior
(1907-1990), para quem seria infantil a pretensão comteana, adotada pela maior
parte dos marxistas brasileiros, de enquadrar a explicação científica acerca da
evolução social nos estreitos parâmetros de leis gerais e eternas. "Tal
pré-fixação de etapas", escreve Prado Júnior [1966: 23], "através das
quais evoluem ou devem evoluir as sociedades humanas, faz rir". Apesar da
advertência crítica deste autor, a tendência que veio a prevalecer no chamado
"marxismo acadêmico" brasileiro, foi a comteana ou cientificista. Os
principais representantes desta vertente (que possui como preocupação
fundamental a implantação da sociedade racional, em bases marxistas), foram
Leônidas de Rezende (1899-1950), Hermes Lima (1902-1978), Edgardo de Castro Rebelo
(1884-1970), João Cruz Costa (1904-1978), Alvaro Vieira Pinto (nasc. 1909) e
Roland Corbisier (nasc. 1914).
Vale a pena destacar os nomes de alguns autores
de inspiração marxista, desvinculados da opção comteana: Luiz Pinto Ferreira
(nasc. 1918) e Gláucio Veiga (nasc. 1923), os quais fazem uma avaliação da
problemática herdada da "Escola do Recife", notadamente no terreno do
direito. Recentemente Leandro Konder (nasc. 1936) tem desenvolvido uma crítica
sistemática à opção comteana seguida pelo marxismo brasileiro. Se apoiando em
bases que remontam a Hegel (1770-1831) e a Marx (1818-1883), este autor atribui
a "derrota da dialética", sofrida pelo marxismo brasileiro, à versão
positivista já anotada [Konder, 1988]. Leandro Konder situa-se, assim, nos dias
atuais, como o continuador da atitude crítica anteriormente sustentada por Caio
Prado Júnior.
No que tange à fenomenologia, a trajetória do
pensamento brasileiro é bastante rica. Ao longo das décadas de cinqüenta e
sessenta, a filosofia de Edmund Husserl (1859-1938) foi divulgada por Evaldo
Pauli (nasc. 1924) e Luís Washington Vita. Interpretações da obra husserliana
projetada sobre a meditação brasileira foram realizadas por Miguel Reale no seu
livro Experiência e cultura [1977], por Antônio Luiz Machado Neto
(1930-1977) na sua obra Para uma eidética sociológica [1977] e pelo já
mencionado pensador católico Leonardo van Acker, no seu livro A filosofia
contemporânea [1981].
Especial contribuição, no terreno dos estudos
fenomenológicos, tem sido dada por Creusa Capalbo (nasc. 1934), para quem a
meditação husserliana, longe de constituir um sistema, é mais um método que não
se pode reduzir a uma teoria intuitiva do conhecimento, mas que se desenvolve
no seio de uma hermenêutica e de uma dialética. Sobressaem ainda no terreno dos
estudos fenomenológicos, Aquilles Côrtes Guimarães, quem aplica a perspectiva
husserliana à historiografia da filosofia brasileira e Beneval de Oliveira
(1916-1986), quem realiza um balanço da evolução desta corrente na sua obra A
fenomenologia no Brasil [1983]. Alguns estudiosos utilizam a fenomenologia
como método de pesquisa no terreno das epistemologias regionais. Tal é o caso,
por exemplo, de Nilton Campos (1898-1963), Isaias Paim e João Alberto Leivas
Job.
A filosofia existencialista, no sentir de Antônio
Paim [1967], teve dois momentos no período contemporâneo. O primeiro
corresponde à entrada das idéias de Jean-Paul Sartre (1905-1982) no panorama
cultural brasileiro, imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial. O segundo
corresponde à influência deixada pelo pensamento de Martin Heidegger
(1889-1976), a partir da década de sessenta.
As idéias de Sartre foram divulgadas inicialmente
por Roland Corbisier e Alvaro Vieira Pinto. A influência do filósofo francês no
meio brasileiro consolidou-se com a série de conferências que Sartre pronunciou
no Rio de Janeiro em 1961. A entrada do existencialismo sartreano produziu uma
forte reação dos pensadores católicos, que passaram a criticar especialmente o
ateísmo do pensador francês. O autor que mais definidamente sofreu a influência
de Sartre foi Otávio de Mello Alvarenga [cf. Mourão, 1986]. À luz do
existencialismo sartreano foram discutidas questões sociais relativas ao
desenvolvimento, ao colonialismo e outras, no Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB).
Pelo fato de se ajustar melhor à tradição
espiritualista brasileira, a filosofia hedeggeriana contou com mais seguidores.
Dentre os pensadores que sofreram a influência de Heidegger podem ser
mencionados os nomes de Vicente Ferreira da Silva (1916-1963), Emmanuel
Carneiro Leão, Gerd Bornheim (1929-2001), Ernildo Stein, Wilson Chagas (nasc.
1921), Eduardo Portella e Benedito Nunes.
Este escriba em Lisboa. Ao fundo, o monumento aos navegadores portugueses, na foz do Rio Tejo. (Foto: álbum de família do autor), |
No seio dos existencialistas brasileiros
mencionados, deve ser destacada a figura de Vicente Ferreira da Silva, cujas Obras
completas [1964] abrem um caminho profundamente rico e original, que une a
problemática existencialista à melhor tradição do espiritualismo de origem
portuguesa. Referindo-se à peculiaríssima contribuição de Ferreira da Silva,
Miguel Reale [in: Silva, 1964: I, 13] afirmou: "A sua preocupação pelas
origens e pelo valor do infra-estrutural, já na raiz da personalidade (...), já
no evoluir das idéias, como revela a sua nota sobre Heráclito ou o estudo sobre
a origem religiosa da cultura, tem, efetivamente, o alcance de uma historicidade
transcendente, de um regresso às origens, para dar início a um ciclo
diverso da história, diferente deste em que o homem estaria divorciado da
natureza e das fontes do divino; para um retorno, em suma, ao ponto original
onde emergem todas as possibilidades naturais espontâneas, liberadas das
crostas opacas do experimentalismo tecnológico, bem como das objetivações
extrínsecas platônico-cristãs".
Adolpho Crippa (nasc. 1929) desenvolveu a
vertente espiritualista trabalhada por Ferreira da Silva, aprofundando no tema
do mito como gerador da cultura. Uma perspectiva de análise semelhante foi
desenvolvida pelo filósofo português Eudoro de Sousa (1911-1989), quem criou na
Universidade de Brasília o Centro de Estudos Clássicos.
Vale a pena mencionar os nomes de alguns autores
não filiados a correntes determinadas e que se têm caracterizado pela sua ativa
participação no debate filosófico, se aproximando, em alguns aspectos, da
corrente culturalista. Tal é o caso, por exemplo, de Vamireh Chacon (nasc.
1934), Renato Cirell Czerna (nasc. 1922), Silvio de Macedo ( nasc. 1920), Roque
Spencer Maciel de Barros (1927-2001) Evaristo de Moraes Filho (nasc. 1914),
Alcântara Nogueira (nasc. 1918), Jessy Santos (nasc. 1901) e Tércio Sampaio
Ferraz (nasc. 1941). O mais importante representante do espiritualismo no
momento atual é João de Scantimburgo (nasc. 1915), quem se inspira no
pensamento de Maurice Blondel (1861-1949).
A cultura filosófica brasileira no século XX tem
sido canalizada por um número crescente de pensadores, em direção a um estudo
sistemático dos principais autores e correntes, a partir de determinadas
instituições não universitárias. As mais destacadas entidades são: o Centro dom
Vital (criado em 1922, no Rio de Janeiro, por Jackson de Figueiredo); o
Instituto Brasileiro de Filosofia (criado em 1949, em São Paulo, por Miguel
Reale); a Sociedade Brasileira de Cultura Convívio (criada em 1962 em São
Paulo, por Adolpho Crippa); o Conjunto de Pesquisa Filosófica (organizado em
1967 em São Paulo pelo padre Stanislavs Ladusans); a Sociedade Brasileira de
Filósofos Católicos (com sede no Rio de Janeiro e presidida desde 1973 por
Tarcísio Padilha); o Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro
(organizado em Salvador-Bahia em 1983 por Antônio Paim e que possui, hoje, o
mais importante acervo na área do pensamento brasileiro); a sociedade
Tocqueville (criada no Rio de Janeiro, em 1986, por José Osvaldo de Meira Penna
e um grupo de intelectuais liberais); o Centro de Estudos Luso-Brasileiros
(criado em 1986, no Rio de Janeiro, por Anna Maria Moog Rodrigues, Italo Joia e
Gisela Bandeira Pereira); o Instituto Luso-Brasileiro de Filosofia, criado em
Lisboa em 1991 e que tem realizado, regularmente, os Colóquios Luso-Brasileiros
de Filosofia, com periodicidade anual (sendo que, do lado português tem
sobressaído especialmente Antônio Braz Teixeira e José Esteves Pereira e, do
lado brasileiro, Antônio Paim e José Maurício de Carvalho); o Instituto de
Humanidades (com sede em Londrina, Paraná, e criado em 1987 por Leonardo Prota,
Antônio Paim e Ricardo Vélez Rodríguez); a Academia Brasileira de Filosofia
(criada em 1989 no Rio de Janeiro por iniciativa de Jorge Jaime, e presidida
atualmente por João Ricardo Moderno); o Centro de Estudos Filosóficos de
Londrina (criado em 1988 por Leonardo Prota); o Centro de Estudos Filosóficos
de Juiz de Fora (criado em 1991 pelos ex-alunos do Curso de Mestrado em
Pensamento Brasileiro da Universidade Federal local), etc.
Nas últimas décadas também têm surgido em várias
universidades programas de pós-graduação orientados ao estudo da história das
idéias filosóficas no Brasil. As principais iniciativas têm sido tomadas pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, pela Universidade Gama Filho
(do Rio de Janeiro), pela Universidade Estadual de Londrina e pela Universidade
Federal de Juiz de Fora. De outro lado, em aproximadamente 25 universidades é
ensinada regularmente a disciplina "filosofia brasileira". Esse
crescente interesse pelo estudo do pensamento brasileiro levou o Centro de
Estudos Filosóficos de Londrina a realizar a cada dois anos (a partir de 1989)
os Encontros Nacionais de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira.
No terreno documental, sobressai a iniciativa do
Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro de Salvador-Bahia, que sob a
orientação de Antônio Paim publica, desde 1983, bibliografias e estudos
críticos acerca de pensadores e publicações periódicas. A nível internacional,
é digno de menção o Anuario del Pensamiento Ibero e Iberoamericano, que
a Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, publica desde 1989 sob a direção
de José Luis Gómez-Martínez, com uma seção dedicada ao estudo do pensamento
brasileiro. Esta publicação constitui, na atualidade, o mais completo
instrumento bibliográfico no seu gênero, a nível mundial, somente comparável ao
Handbook of Latin-American Studies, que é publicado, sob a coordenação
de Juan Carlos Torchia Estrada, pela Biblioteca do Congresso dos Estados
Unidos.
Por último, cabe mencionar o importante trabalho
de difusão da filosofia brasileira que Luiz Antônio Barreto realiza em Aracajú
(Sergipe), a partir da Fundação Augusto Franco. As suas duas mais recentes
contribuições são a edição das Obras Completas de Tobias Barreto [1991]
e a promoção anual, a partir de 1989, dos Colóquios Luso-Brasileiros de
Filosofia, que são realizados alternadamente em Portugal e no Brasil, com a
colaboração do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, com sede em Lisboa, (sob
a presidência de José Esteves Pereira). O fruto mais importante da cooperação
luso-brasileira é a Enciclopédia Lógos, que desde 1989 publica em Lisboa
a Editorial Verbo, sob a direção de Francisco da Gama Caeiro (1928-1993),
Antônio Paim e outros, com o patrocínio da Universidade Católica Portuguesa.
Conclusão
Na primeira parte deste trabalho foi feita uma
síntese acerca das principais figuras e correntes do pensamento filosófico
brasileiro, no período que vai do século XVII até finais do século XIX.
Caracterizamos essas figuras e correntes ao redor dos problemas aos que tratou
de responder a meditação filosófica nesse período.
Repassemos rapidamente os principais problemas
que aborda a filosofia brasileira no transcurso desses séculos. A partir de uma
problemática do homem, entendido como peregrino nesta terra pelo
"saber de salvação" (século XVII e primeira metade do século XVIII),
a meditação filosófica da segunda metade do século XVIII estrutura-se ao redor
de uma questão mais concreta e mais terrena: como modernizar o Estado mediante
a incorporação da ciência moderna, a fim de que, com a sua intervenção tutelar,
se garantisse a riqueza da nação; tal foi o objetivo perseguido ao longo do
ciclo pombalino. Essa mentalidade de despotismo esclarecido influiria
diretamente na formação da elite intelectual que efetivou a independência do
Brasil (1822). Conseqüentemente, o empirismo mitigado, que foi a
filosofia que exprimiu o ponto de vista reformista de Pombal, reduziu a
filosofia à ciência aplicada, deitando as bases da tendência cientificista, que
tão fortemente influiria na cultura brasileira ao longo dos séculos XIX e XX.
A corrente eclética, que se estrutura e se
desenvolve ao longo do século XIX, responde basicamente aos dois problemas
deixados em branco pelo empirismo mitigado: a consciência e a liberdade.
A resposta a essas duas questões será de capital importância, em primeiro
lugar, para consolidar a idéia de nação -- tarefa que empreende Gonçalves de
Magalhães com o seu romantismo de corte pedagógico -- e, em segundo lugar, para
dar fundamento firme à prática da representação política, profundamente
enraizada numa concepção espiritualista da liberdade humana.
O clima cientificista que acompanha o surto de
idéias novas encontraria a sua culminância na filosofia positivista que, de
outro lado, serviu como fundamento doutrinário -- na versão política cultivada
no Rio Grande do Sul -- para a experiência republicana autoritária. Ao
determinismo típico do positivismo contrapôs-se a "Escola do Recife",
que assumiu novamente a discussão dos temas prediletos da filosofia eclética, a
consciência e a liberdade, tratando-os já não no contexto carregado de
psicologismo em que foi formulado o ecletismo de Cousin, mas na perspectiva
mais moderna e mais filosófica do transcendentalismo kantiano. A "Escola
do Recife" constituiu-se, assim, em porta de entrada do neo-kantismo na
meditação filosófica brasileira, e haveria de ser a precursora da corrente
culturalista, que encontrou formulação completa ao longo deste século.
As outras correntes analisadas - krausismo e
tradicionalismo - ocupariam espaços menos destacados no pensamento brasileiro,
mas revestir-se-iam também da originalidade legada pelas peculiares condições
da história e da cultura do Brasil, que fizeram dos krausistas mais filósofos do
direito (e não pedagogos, como na Espanha, ou filósofos sociais como na América
espanhola) e que deram aos tradicionalistas um aspecto de tolerância que os fez
definitivamente diferentes dos seus semelhantes franceses, espanhóis,
portugueses e hispano-americanos.
Na segunda parte deste trabalho fizemos uma
síntese acerca das principais figuras e correntes da filosofia brasileira no
século XX. Ela consolidou-se, nesse período, como um segmento bem caracterizado
e representativo no contexto da filosofia ibero-americana. Prova da maturidade
atingida é o diálogo que se tem estabelecido com pensadores de outras
nacionalidades, não só em congressos e eventos internacionais, mas também a
nível da pesquisa e dos cursos de pós-graduação.
Duas tendências firmaram-se no pensamento
filosófico brasileiro do século XX: a definitiva superação do cientificismo
oitocentista, graças especialmente à obra dos pensadores de inspiração
culturalista, que como foi assinalado, têm realizado as mais significativas
aplicações da meditação filosófica nos terrenos do direito, da política, da
historiografia das idéias e da educação. Em segundo lugar, cabe mencionar a
tendência espiritualista que prolongou, sem lugar a dúvidas, o legado da
meditação portuguesa em terras brasileiras. Nesse terreno sobressaem as figuras
de Farias Brito e de Vicente Ferreira da Silva.
No que tange à questão metodológica, a mais
importante contribuição do pensamento brasileiro no século XX, foi a formulação
do método culturalista de abordagem dos autores: antes de identificá-los como
pertencentes a esta ou àquela corrente, é necessário ver qual era a
problemática que os preocupava, a fim de reconstruir o caminho seguido pelo seu
pensamento. Esse método permitiu à meditação brasileira no presente século se
compreender a si mesma, superando o vício apologético ou de "filosofia em
mangas de camisa", identificado e criticado em fins do século passado pelo
grande Tobias Barreto.
Uma palavra para terminar. A filosofia francesa
tem sido, junto com a alemã e a inglesa, uma das fontes básicas da meditação
brasileira. Poderíamos identificar os seguintes seis momentos em que a
filosofia francesa exerceu grande influência no pensamento brasileiro: a) em
primeiro lugar, no momento pombalino, quando o empirismo mitigado
inspira-se nas idéias de aritmética política e de fisiologia social cultivadas
pela Ilustração, no século XVIII, com pensadores como Condorcet e Laplace (no
caso da aritmética política) e Cabanis, Bichat, Pinel, Vicq d'Azur e
Sait-Simon (no caso da fisiologia social). b) Em segundo lugar, no
momento da formulação do ecletismo espiritualista, cujos inspiradores
foram Maine de Biran e Victor Cousin. c) Em terceiro lugar, no esforço em prol
de instaurar as instituições do governo representativo, momento em que os estadistas
e publicistas inspiram-se no liberalismo doutrinário de Guizot, Constant
de Rebecque, Royer-Collard, etc., e no liberalismo democrático de
Tocqueville. d) Em quarto lugar, no momento de elaboração do tradicionalismo,
que deita raízes na meditação de Joseph de Maistre e Louis de Bonald. e) Em
quinto lugar, no ciclo de ascensão do positivismo, centrado ao redor da
idéia de física social desenvolvida por Augusto Comte. f) Em sexto
lugar, no momento da reação anti-positivista, quando o espiritualismo brasileiro
se abebera em fontes como Bergson e Blondel.
A presença da filosofia francesa é, destarte,
marcante em momentos significativos do pensamento brasileiro.
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Este ensaio apareceu publicado, em espanhol, em dois números da Revista Interamericana de Bibliografia, com os seguintes títulos: "La Historia del pensamiento filosófico brasileño (siglos XVII a XIX): problemas y corrientes" (RIB, Washington, vol. XXXV, no. 3, 1985, pgs. 279-288) e "La historia del pensamiento filosófico brasileño (siglo XX): problemas y corrientes" (RIB, Washington, vol. XLIII, no. 1, 1993, pgs.45-62).