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domingo, 26 de abril de 2015

A TRADIÇÃO CONSERVADORA BRASILEIRA

Amigos, a Revista Nabuco, no seu 3º número de início deste mês, publicou o artigo, de minha autoria, que ora divulgo entre os seguidores do meu blog

O Brasil, do ângulo das ideias e dos costumes, é um país conservador. O povo brasileiro preserva as suas tradições. Na trilha patrimonialista em que surgiram as nossas instituições, a sociedade pende para a valorização da autoridade. A tradição rousseauniana, que no contexto hispano-americano deu ensejo a grande instabilidade em decorrência da exaltação das ideias revolucionárias, no contexto brasileiro ficou restrita a minorias de ativistas de extrema-esquerda.

A longa formatação da nossa sociedade no decorrer do século XIX, ao redor de um centro de poder presidido pelo Imperador deu ensejo, no imaginário popular, a uma organização social presidida por uma autoridade patriarcal que equacionaria, de cima para baixo, os conflitos e os problemas. Para bem ou para mal, essa tradição foi a espinha dorsal da configuração das nossas instituições. É interessante destacar que essa crença permanece no fundo da alma popular, como um dos mitos formadores da Nação.

No âmago do coração do brasileiro há a expectativa do Rei, do pai benigno que zela por todos. O Zé povinho batiza os seus empreendimentos com o apelativo real: “Rei legítimo das peixadas”, “Rei das tintas”, “Rei do futebol”, “Rei do Carnaval” e por aí afora. Nunca vimos estampada na entrada de um boteco ou de um clube carnavalesco a legenda: “Presidente legítimo das peixadas” ou “Presidente do Carnaval”.  Poderia alegar alguém que hoje, em tempos de democracia petista, as coisas mudaram com a “Presidenta”. Em termos. O povão aceitou a candidata-poste porque acreditava cegamente no líder que prometeu mundos e fundos e que continua, na surdina e no palanque, a dar orientação e legitimidade carismática à sua escolhida. Esse é o nosso drama político do momento.

Contudo, a fé cega que o eleitorado depositou na candidata eleita em 2010 diminuiu significativamente. A “Mãe do PAC” que Lula anunciou há quatro anos não é mais a mesma. Claro que hoje, em face da complexidade e da descrença perante um governo que tomou posse em clima de fim de festa, Lula continua a reforçar a imagem benévola do “Pai do Povo” como distribuidor de benefícios. A recente reunião dos líderes situacionistas ao redor do Lula no Largo de São Francisco colocou os movimentos sociais como os representantes da alma popular. A luta será por tentar aproximar as reivindicações desses movimentos com o que a sociedade almeja. Mais uma jogada de perplexidade no tabuleiro da nossa vida institucional, administrada macunaimicamente por aquele que, em determinado momento, virou “Lulinha paz e amor” e que aspira a voltar em grande estilo sebastianista, findo o atual quatriênio que, pelo andar da carruagem, será de incertezas e assombrações.

Essa fé conservadora no Pai benigno, sabemos, conduziu a sociedade brasileira aos atuais sobressaltos. Talvez porque nos arraiais oposicionistas não conseguiram os candidatos e os seus respectivos marqueteiros interpretar a alma popular, que ainda almeja por um guia. Mas convenhamos que não foi por culpa das expectativas do povo, mas dos que não conseguiram interpretar devidamente os secretos desejos da sua alma. Os nossos candidatos continuaram a oferecer, na campanha presidencial, “mais do mesmo”.

Uma agenda conservadora teria, com certeza, mobilizado as massas, desmascarando aquilo que de destrutor havia nas propostas lulopetistas. Mas a campanha se desenvolveu dentro do esquema de “ou elegem Dilma ou os pobres perderão tudo aquilo que conseguiram” no festival de bolsas e benefícios distribuídos como doações da casa-grande sobre a grande massa dos carentes. A votação massiva em Aécio Neves mostrou, contudo, uma coisa: a sociedade quer mudanças. Uma proposta nitidamente conservadora teria chancelado as expectativas populares com uma mudança de rumo necessária.

É curioso observar que a votação que deu o triunfo a Dilma se decidiu nos arraiais de Minas Gerais, um dos Estados mais tradicionais do Brasil, onde o espírito barroco ainda se aninha profundamente na alma popular. Ora, esse espírito não encontrou eco nas propostas do tucano Aécio. É que, a meu ver, o candidato se assemelhava muito ao seu opositor candidato a governador nas Alterosas. Os governos tucanos em Minas desenvolveram políticas públicas estatizantes, haja vista a faraônica cidade administrativa inaugurada por eles em Belo Horizonte.

A hipótese que defendo nestas linhas é a seguinte: o Brasileiro é um povo conservador. E somente uma mudança de rumo pensada no pano de fundo da preservação das tradições formatadoras da Nação, conseguirá renovar as expectativas frustradas. A pergunta, então, seria a seguinte: há quem pense nessas propostas conservadoras capazes de renovar a vida nacional?

Responderei positivamente à questão formulada, identificando os pensadores que se situam nesse parâmetro de defesa de determinadas tradições renovadoras. Defendo, com João Camillo de Oliveira Torres (1916-1973), que o que define ao conservador em política não é o fato de que este seja contrário às mudanças. O conservador é aberto a elas, desde que se sedimentem na história da sociedade. Era a proposta que Alexis de Tocqueville (1805-1859) defendia para a França após o terremoto da Revolução de 1879.

Delimitarei o marco cronológico da minha análise do conservadorismo brasileiro à época contemporânea: entre 1970 e 2014. É o período em que de perto conheci a realidade brasileira, primeiro como estudante de pós-graduação na PUC do Rio de Janeiro e, depois, como professor universitário. Agruparei os pensadores influenciados pela mentalidade conservadora em três grandes núcleos: 1 - conservadores e tradicionalistas, 2 - católicos e 3 - liberais-conservadores.

Todos eles são guiados por uma ideia comum: não haverá verdadeira transformação senão preservando determinadas tradições que se formataram na nossa história. Pode haver mudanças, sim. Mas ancoradas fortemente em tradições que consigam se opor às deformações impingidas na história republicana pelo cientificismo positivista.

1 - Pensadores conservadores e tradicionalistas. Quatro autores sobressaem, no período contemporâneo, como estudiosos e divulgadores do pensamento conservador, num contexto hermenêutico: Vicente Ferreira da Silva (1816-1963), Adolpho Crippa (1929-2000), Paulo Mercadante (1923-2013) e Olavo de Carvalho (1947). Os fatos que constituem a cotidianidade da política, bem como as doutrinas em que ela se inspira, não explicam, por si sós, o evoluir das Nações ao redor do poder e das instituições em que este se exerce e se legitima. É necessário conhecer, antes de tudo, o pano de fundo de crenças fundamentais em que se apoiam a imaginação e o lógos das respectivas sociedades.

Ora, tal pano de fundo não é apenas um passado que ficou para trás, nas névoas do tempo. É um passado primordial sempre presente. A caracterização desse back-ground difere para estes autores, desde os mitos fundadores da Civilização Ocidental emergentes da religiosidade órfica, que ensejou a presença do fascinator entre os gregos (para Ferreira da Silva), ou dos mitos ancestrais presentes na simbiose entre cristianismo e helenismo (para Adolpho Crippa), passando por uma tradição barroca de mitos luso-brasileiros resgatáveis com o auxílio de uma espécie de cabala, em que a matemática entra como linguagem simbólica (em Paulo Mercadante) ou a partir de uma plataforma de mitos primordiais presentes nas antigas tradições espirituais – taoísmo, judaísmo, cristianismo, islamismo – (em Olavo de Carvalho).

Discípulo de Eric Voegelin (1901-1985) quando dos seus estudos de pós-graduação na Luisiana State University, nos Estados Unidos, sobressai como conservador, no campo da sociologia, José Arthur Rios (1921), que tem desenvolvido, no seio do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio, no Rio de Janeiro, importantes trabalhos no terreno da problemática urbana, bem como na abordagem da questão agrária e das lutas sociais, notadamente no que tange à violência.

No contexto do pensamento tradicionalista, destaca-se a obra de Alexandre Correia (1890-1984), importante representante do pensamento católico junto ao Centro Dom Vital. Traduziu, para o português, integralmente, a Suma Teológica de São Tomás de Aquino, empreendimento ao qual dedicou dez anos de labuta. A sua maior contribuição ao pensamento político é constituída pela sua obra intitulada: Ensaios políticos e filosóficos. Em que pese a influência recebida do tomismo, no entanto, do ângulo político distanciou-se do mesmo, mantendo uma posição contrária à democratização do Estado nos moldes moderados adotados por tomistas brasileiros como Leonardo Van Acker (1896-1986). Outro pensador que se insere na corrente tradicionalista é José Pedro Galvão de Sousa (1912-1992).

Entre os tradicionalistas deve ser mencionado Plínio Corrêa de Oliveira (1909-1995), fundador, em São Paulo, do movimento “Tradição, Família e Propriedade”, que no ano 2000 contava com 20 mil adeptos no Brasil e simpatizantes em 14 países. A respeito da obra deste pensador, frisa Antônio Paim no Dicionário biobibliográfico de autores brasileiros (Brasília: Senado Federal, 1999): “(…) por entender que a Igreja Católica relegava a segundo plano o combate ao comunismo, além das muitas concessões à modernidade, inclusive no plano litúrgico, fundou a Sociedade Brasileira Tradição, Família e Propriedade, conhecida como TFP. Manteve-se fiel ao bispo suíço Lefèvre, mesmo depois que este foi excomungado pelo Papa”.

2 - Pensadores católicos. No seio do pensamento católico houve, no período estudado, contribuições que se situam no contexto da Doutrina Social da Igreja, superando a radicalização da Teologia da Libertação. Na trilha do “Humanismo Integral” proposto por Jacques Maritain (1882-1973), o pensamento católico contemporâneo elaborou completa reflexão política, a partir de uma posição moderada que margeia os ideais da democracia cristã e que valoriza a doutrina dos Papas sobre questões sociais, sem fugir à discussão dos problemas do mundo contemporâneo.

Os principais representantes dessa vertente são: Alceu Amoroso Lima (1893-1983), Gustavo Corção (1896-1978), Leonardo Van Acker (1896-1986), Hubert Lepargneur (1925), Dom Boaventura Kloppemburg (1919-2009), Urbano Zilles (1937) e Tarcísio Meirelles Padilha (1928). De outro lado, os principais estudiosos do pensamento católico no período em apreço são: Antônio Carlos Villaça (1928-2005), Fernando Arruda Campos (1930), dom Odilão Moura (1918-2010) e Anna Maria Moog Rodrigues (1936). Do ângulo institucional, vale a pena mencionar o trabalho desenvolvido, no Rio de Janeiro, pelo Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista, que reúne jovens intelectuais católicos.

3 - Pensadores liberais-conservadores. É variada a gama dos autores de inspiração liberal-conservadora na atual conjuntura brasileira. Destaquemos, de entrada, o papel dos que, a meu ver, têm sido os inspiradores desta vertente de pensamento.

Em primeiro lugar, deve ser mencionado o jurista e pensador Miguel Reale (1910-2006), máximo representante da Escola Culturalista. Em matéria de pensamento social, esta corrente deu ensejo ao denominado “Culturalismo Sociológico”, iniciado pelas figuras pioneiras de Sílvio Romero (1851-1914) e Oliveira Vianna (1883-1951).

A tese fundamental consiste no pressuposto de que não há monocausalismo em ciências sociais, sendo necessário se aproximar do objeto de estudo de maneira monográfica, levando em consideração que as variáveis são múltiplas e irredutíveis umas às outras. Ora, o pensamento político de Reale se ajusta a esse pressuposto. Ao longo da sua prolífica obra, vemos que o autor realiza uma análise crítica da conjuntura sócio-política, de vários ângulos: o jurídico, o histórico, o filosófico, o político, o cultural, reconhecendo, sempre, a complexidade da vida social. O objeto formal da análise de Reale é constituído pelo ponto de vista do que se convencionou em denominar de “liberalismo social”. Tal doutrina defende fundamentalmente a liberdade dos indivíduos, no contexto do que Alexis de Tocqueville denominava de “interesse bem compreendido”. Para Reale, efetivamente, a defesa do indivíduo e dos seus interesses não pode correr solta em face dos interesses da comunidade.

Reale reconhece a necessidade da intervenção estatal em determinados momentos de crise, como foi o caso, por exemplo, das reformas ensejadas no capitalismo à luz do pensamento de John Maynard Keynes (1883-1946), após a crise de 1929. Mas deve-se considerar que essas intervenções precisam ser limitadas. Entre o “socialismo liberal” apregoado por Norberto Bobbio (1909-2004) e o “social-liberalismo” ou “liberalismo social”, Reale prefere a segunda opção, justamente porque põe limite à intervenção do Estado, preservando a liberdade. O Liberalismo de Reale ancora na tradição européia, notadamente no hegelianismo moderado de Benedetto Croce (1866-1952), bem como no liberalismo com feições doutrinárias de Raymond Aron (1905-1983). No Instituto Brasileiro de Filosofia, criado por Reale em 1949, o pensador paulista conseguiu instituir um ambiente liberal para o debate político, sendo a Revista Brasileira de Filosofia o veículo de divulgação.

Em segundo lugar, cabe mencionar o nome de Roberto Campos (1917-2001). Diplomata e ex-ministro de Estado, ele representa uma das fontes do pensamento liberal contemporâneo, do ângulo da concepção econômica, aliada a uma ampla visão política. Para Campos, o Liberalismo consagrou, desde os tempos de Adam Smith (1723-1790), a liberdade de mercado e ensejou o processo de enriquecimento da Humanidade, superando definitivamente a antiga concepção mercantilista, que fazia da acumulação de riqueza um processo de “soma zero” (me enriqueço se roubo de alguém), passando a desenvolver uma concepção macroeconômica: é possível criar riqueza, mediante a aplicação da inteligência ao trabalho e à transformação da natureza.

Mas o jogo econômico precisa de um marco ético-político em que se possa desenvolver. É necessário garantir o exercício da liberdade dos cidadãos mediante a criação de instituições que a protejam e que tenham continuidade. Entre estas instituições, Campos considera que o governo representativo e o seu aperfeiçoamento constituem uma grande conquista do Liberalismo, nos períodos moderno e contemporâneo. Roberto Campos se destacou como um dos grandes tecnocratas a serviço do desenvolvimento; atribuía ao Estado a indelegável responsabilidade de, mediante um planejamento democrático, abrir espaços para que a iniciativa privada florescesse. No prefácio à sua obra de memórias, intitulada: A Lanterna na Popa, Campos sintetizava a sua saga como sendo a encarnação de uma espécie de apóstolo da liberdade (à maneira de Tocqueville) que pregava no deserto de um século coletivista.

Em terceiro lugar, sobressai a figura de José Guilherme Merquior (1941-1991), diplomata, pensador e crítico literário. O autor, marcadamente influenciado por Raymond Aron (1905-1983), de quem foi aluno na Haute École de Sciences Sociales, em Paris, se definia como um “liberal neoiluminista”, ou como seguidor do “social liberalismo”. Merquior caracterizou-se pela sua abertura a todas as correntes de pensamento existentes no Brasil e no exterior, o que não sufocou, no entanto, o viés crítico da sua escrita, como tampouco o seu compromisso para traçar políticas públicas, quando a isso foi chamado pelos diferentes governos aos quais serviu como diplomata.

Mencionemos, em quarto lugar, a figura de Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999), docente da Universidade de São Paulo. Ele pensou o Liberalismo na sua condição trágica, porquanto a defesa da liberdade constituiu, para ele, no século XX, um dos grandes riscos, em face do coletivismo e, de outro lado, porque, no plano existencial, coloca o homem na sua condição de ser responsável individualmente pelos seus atos.

Segundo Roque Spencer, o homem, na modernidade, encontrou na meditação filosófica dois parâmetros comportamentais: o individual e o coletivista. No parâmetro individual, que foi aprofundado por John Locke (1632-1704) e pelos pensadores que continuaram na sua trilha, como Thomas Jefferson (1743-1826), Alexis de Tocqueville, etc., o homem sempre sentiu a tragicidade da sua solidão como ser livre e responsável. É o ponto de vista liberal. No contexto do coletivismo, cujo principal formulador foi Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o homem aspirou, sempre, a se refugiar na entidade anônima da totalidade social, para esconjurar, assim, o trágico dever da liberdade e da responsabilidade.

Destaquemos, em quinto lugar, a figura de José Osvaldo de Meira Penna (1917). O pensamento deste autor adentra-se não apenas no terreno sociológico, mas se aprofunda também na análise filosófica ao redor da temática da liberdade. Paralelamente, o pensador, que possui sólida formação humanística, abarca, nas suas análises, as perspectivas psicológico-social (à luz da escola junguiana, da qual é importante representante) e econômica, se alicerçando nos conceitos de Friedrich Hayek (1899-1992), Ludwig von Mises (1881-1973) e Milton Friedman (1912-2006). Meira Penna considera-se um libertário, aquele que ergue como valor supremo a defesa da liberdade individual, contra qualquer tentativa de esvaziá-la.

O Liberalismo, segundo o pensador, experimentou crises profundas. A partir de meados do século XIX vigorou, segundo ele, um “movimento de opinião no sentido de um retorno ao coletivismo, invocado nos lemas de Igualdade e Fraternidade”. Meira Penna considera que, diante dessa crise, é necessário voltar à defesa da liberdade do indivíduo em face da coletividade, seguindo os ensinamentos de Tocqueville, de cujo pensamento o nosso autor é um dos grandes estudiosos no Brasil, tendo fundado, em 1986, no Rio de Janeiro e em Brasília, a Sociedade Tocqueville.

Destacarei, em sexto lugar, a obra de Antônio Paim no que tange à historiografia do pensamento liberal, bem como à discussão da problemática ética ensejada por essa corrente no seio da cultura brasileira. Para Paim, o liberalismo não penetrou fundo, o suficiente, no nosso panorama cultural, em decorrência da falta de chão axiológico sobre o qual pudesse se firmar tal filosofia. Atribui o pensador a essa falta uma causa cultural: a tradição contrarreformista presente na formação da Nação brasileira; tal herança é alheia ao ideal de liberdade e de responsabilidade individual que deveriam sedimentar uma ética do trabalho, sobre a qual pudesse se balizar o surgimento e ulterior amadurecimento da empresa capitalista.  

Tal pano de fundo se aproxima mais, no sentir do pensador, da defesa do Estado patrimonial e das suas práticas cartoriais e predatórias. Isso se manifesta, inclusive, nos atuais momentos, ao ensejo da chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder, a partir de 2003. Esta agremiação política, fruto da união entre o movimento sindical e a Igreja Católica, terminou constituindo uma modalidade de socialismo autoritário que mantém viva a tradição patrimonialista.

De outro lado, Paim desenvolveu, ao longo dos últimos anos, amplo trabalho de pesquisa acerca das fontes e vertentes do Liberalismo em nível mundial, bem como no contexto brasileiro. É da sua lavra a crítica mais consistente, em língua portuguesa, ao marxismo, efetivada na obra: Marxismo e descendência (Campinas: Vide Editorial, 2009). No caso brasileiro, tal tendência inseriu-se na vertente cientificista originária do ciclo pombalino, bem como da corrente positivista. É de inspiração cientificista, no sentir de Paim, o modelo de ética totalitária quer anima a significativa parcela da esquerda, cujas ações se abrigam no imperativo de que “os fins justificam os meios”. A sua incansável pesquisa enveredou, também, pela investigação biobibliográfica acerca dos principais pensadores do Brasil, nos terrenos da história das ideias, da antropologia cultural, da ciência política e da sociologia. Prova dessa amplitude intelectual é o Dicionário Bibliográfico de Autores Brasileiros (Brasília: Senado Federal,1999), por ele coordenado.

Em sétimo lugar, sobressai, hodiernamente, a figura do antropólogo Roberto Damatta (1936), professor emérito da Universidade Notre Dame, nos Estados Unidos. Da sua vasta obra emerge, do ângulo do pensamento político, um perfil liberal afinado com o ideal tocquevilliano de defesa da democracia, com ênfase na salvaguarda da liberdade individual e na visão pluralista de cultura. Damatta retoma, a meu ver, o viés de crítica republicana liberal às instituições brasileiras, que já tinha sido efetivado, no século XIX, por outro seguidor das pegadas de Tocqueville em terras brasileiras: Aureliano Cândido Tavares Bastos (1839-1875). As bases do Estado, no Brasil, são familísticas e conspiram contra o bem comum e contra o exercício da liberdade.

Mencionemos, em oitavo lugar, os nomes de estudiosos que exploram aspectos variados do pensamento liberal. No Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio, sob a presidência de Antônio de Oliveira Santos, sobressaem as contribuições de Ernane Galvêas (1922), ex-ministro da Fazenda e de Gilberto Paim (1919-2013), no que tange à análise da problemática económica e política do Brasil, do ângulo das instituições liberais. No seio do Instituto Liberal, Donald Stewart (1931-1999), fundador dessa instituição, abriu esclarecedor debate acerca da privatização do Estado pelos burocratas e a classe política. Ainda no Instituto Liberal, Og Leme (1922-2004), colaborador de Donald Stewart na organização dessa instituição, desenvolveu trabalhos acerca da temática liberal, projetada sobre a realidade brasileira.

No seio do Instituto Liberal outros autores têm deixado significativa contribuição ao debate em torno à cultura política. Roberto Fendt (1944) desenvolveu pesquisas acerca das bases culturais e políticas da liberdade de mercado, no contexto da atual globalização. Mário Guerreiro (1944) e Alberto Oliva (1950) têm aprofundado nas exigências epistemológicas do liberalismo, do ângulo do que se convencionou em chamar de “modéstia epistemológica”. Representante da nova geração de pensadores no Instituto sobressai Rodrigo Constantino (1976), que se tem revelado polemista combativo, nas suas críticas à corrupção e ineficiência desencadeadas pela burocracia lulopetista.

Como presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o historiador Arno Wehling (1947) tem dado uma contribuição importante para a compreensão do surgimento das instituições brasileiras, consolidadas, no século XIX, sob a égide do liberalismo conservador que empolgou a geração de estadistas do Império.

Ubiratan Borges de Macedo (1937-2007), de formação orteguiana, estudou, pioneiramente, o impacto dos doutrinários franceses sobre o liberalismo brasileiro, além de ter pesquisado a saga da idéia de Liberdade, ao longo da história do Brasil nos dois últimos séculos. Boa parcela dessas pesquisas foi desenvolvida no Círculo de Estudos do Liberalismo, criado por ele, no início da década de 1990, no Rio de Janeiro. Para este pensador que, no terreno da filosofia jurídica, aprofundou na idéia de Justiça à luz da filosofia de John Rawls (1921-2002), não há conflito entre modernidade e catolicismo. A ausência, na meditação brasileira, de um tratamento sistemático acerca da moral social, decorre, no sentir dele, não da tradição católica contrarreformista, mas da feição romântica que tomou conta da meditação nacional, ao longo do século XIX e no começo do XX.

Francisco Martins de Souza (1925), vinculado à Academia Brasileira de Filosofia e ao Clube da Aeronáutica, no Rio de Janeiro, desenvolveu significativa pesquisa acerca do pensamento corporativista, do ângulo liberal, tendo identificado o arquétipo conhecido como “Culturalismo Sociológico”. Leonardo Prota (1930), da Academia Brasileira de Filosofia e diretor do Instituto de Humanidades (com sede em Londrina, Paraná), realizou pesquisas sobre os fundamentos culturais do pensamento político (com destaque para a filosofia política liberal), ao ensejo do Curso de Humanidades, do Curso de Introdução à Ciência Política e dos Encontros Nacionais de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, organizados por ele entre 1989 e 2003.

Maria Lúcia Victor Barbosa, da Universidade Estadual de Londrina, tem dado valiosa contribuição à análise crítica do panorama político brasileiro, do ângulo liberal. Arsênio Eduardo Corrêa (1945), no Instituto de Humanidades (em São Paulo), realizou estudos que analisam a passagem do ciclo autoritário militar para a denominada Nova República, destacando o relevante papel que os liberais tiveram na consolidação das instituições democráticas, ao redor do primeiro presidente civil eleito no novo ciclo, Tancredo de Almeida Neves (1910-1985). Vicente de Paulo Barreto (1939), docente das Universidades Gama Filho e do Estado do Rio de Janeiro, deu expressiva contribuição ao estudo das ideias liberais, analisando, notadamente, as fontes de que se louvou o pensamento brasileiro.

No Rio Grande do Sul, pela sua reflexão acerca das fontes filosóficas do liberalismo e da contraposição desta filosofia às instituições autoritárias do Brasil republicano, se destacam Cézar Saldanha Souza Júnior, coordenador da pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Selvino Antônio Malfatti (1943), da Universidade Federal de Santa Maria e do Centro Universitário Franciscano, na mesma cidade. Francisco de Araújo Santos (1935), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, analisa a relação entre Liberalismo e gestão empresarial. No Instituto Liberdade, em Porto Alegre, destaca-se Margaret Tse, diretora dessa Instituição, pelas suas pesquisas acerca das relações entre empreendedorismo e liberdade no meio brasileiro, bem como pela abordagem da questão ambiental do ângulo liberal. Da velha estirpe de juristas liberais, sobressai a figura do ex-parlamentar gaúcho Paulo Brossard (1924) cuja obra, extensa, testemunha o combate assíduo deste grande orador contra o autoritarismo republicano.

Na Universidade de Brasília, destacam-se dois pensadores liberais, que projetam as suas análises sobre a realidade brasileira contemporânea: Paulo Roberto da Costa Kramer e Eiiti Sato. Em Pernambuco, sobressai a ampla perspectiva aberta pelas análises do jurista e cientista político Nelson Saldanha (1931), ligado à Escola Culturalista. João Scantimburgo (1915-2013), pensador católico de inspiração blondeliana, da Academia Brasileira de Letras, destaca-se pela sua pesquisa acerca da história do liberalismo e da empresa moderna no Brasil. O jurista Ives Gandra da Silva Martins (1935), jurista e escritor, tem analisado criticamente os surtos populistas na política brasileira, confrontando essa realidade com a filosofia liberal, a tradição jurídica e a doutrina social da Igreja. Como instituição que promove regularmente debates sobre o pensamento liberal, no contexto da formulação de políticas públicas para o Brasil, sobressai a Fundação Liberdade e Cidadania, do Partido Democratas, que publica, regularmente, a revista eletrônica Liberdade e Cidadania.

A minha contribuição ao estudo do pensamento liberal percorreu o caminho do confronto entre liberalismo e tendências autoritárias, mostrando a forma em que se poderia superar a tradição patrimonialista de origem ibérica, pelo estímulo ao self-government, em nível municipal, passando pela valorização do governo representativo e da educação para a cidadania. Tenho centrado os meus estudos, notadamente, na divulgação do pensamento de Alexis de Tocqueville e dos doutrinários franceses, destacando a figura de Raymond Aron como expressão contemporânea da opção liberal, bem como a presença de Tocqueville na cultura brasileira. De outro lado, analisei criticamente a Teologia da Libertação, destacando o compromisso dos pensadores desta corrente com o messianismo político de inspiração marxista-leninista. Em face da aguda problemática que a guerra do narcotráfico tem trazido para o Brasil, tenho analisado a forma em que se poderia fazer frente a esse flagelo, combatendo com denodo o crime organizado, incorporando à cidadania as comunidades reféns dos cartéis da droga e preservando as instituições do governo representativo, levando em consideração a experiência colombiana.

Conclusão: que tem o conservadorismo a oferecer à política e cultura brasileiras do século XXI? O pano de fundo da mentalidade conservadora certamente ajudará o Brasil na atual circunstância, a encontrar o seu caminho rumo ao futuro. O lulopetismo corresponde a uma crise do pensamento de esquerda no Brasil. Dessa profunda sina só poderemos sair olhando para o nosso passado cultural, preservando a nossa identidade axiológica e efetivando as reformas necessárias no Estado, a fim de que não fiquem excluídos os brasileiros dessa caminhada. A proposta socialista é essencialmente excludente, levando em consideração a versão tacanha que foi elaborada pela intelligentsia petista.

Uma proposta liberal-conservadora certamente seria a alternativa para o Brasil de hoje. Primeiro porque preserva os nossos valores, sordidamente conspurcados pela cultura do confronto e do sectarismo presentes na “revolução cultural gramsciana” imposta pelos governos petistas. Em segundo lugar, porque essa proposta está aberta à modernização em matéria de self-government da nossa sociedade.

É imperativo aperfeiçoar os mecanismos da representação política. A causa dessa desvalorização consistiu na manutenção da velha tradição ibérica de privatização do Estado para benefício de uma minoria. O único caminho para superar essa concepção clânica que enxerga a política como negócio de poucos para benefício próprio é o do aperfeiçoamento da representação, não (como prega o PT) a sua substituição por um modelo rousseauniano de democracia direta a ser controlado pelos donos do poder.



sexta-feira, 17 de abril de 2015

A IDADE DAS REVOLUÇÕES NA FORMAÇÃO DO BRASIL

Alguns dos participantes do Colóquio sobre "A Idade das Revoluções na formação do Brasil": na primeira fileira, da esquerda para a direita: Leônidas Zelmanovitz,  Voltaire Schilling, Ricardo Vélez Rodríguez e Alex Catharino. Na segunda fileira: Sandra Axelrud Saffer e Alexandre Moreira. (Foto: álbum pessoal do editor do Blog).

Com este título instigante teve lugar em Petrópolis, no Hotel Solar do Império, de 9 a 12 de Abril, um colóquio patrocinado pelo Liberty Fund. Participaram: Sandra Axelrud Saffer (da Axellrud Arquitetura & Assessoria SS Ltda., como Diretora do evento), João Carlos Espada (Diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, como Discussion Leader), Leonidas Zelmanovitz (representante do Liberty Fund), Alberto Oliva (UFRJ), Alexandre Moreira (Banco Central do Brasil), Ricardo Vélez Rodríguez (Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas da UFJF e docente da Faculdade Arthur Thomas, Londrina), Fernando Schuler (IBMEC, São Paulo), Gunter Axt (historiador, de Porto Alegre), Flavia Santinoni Vera (assessora do Senado Federal em Brasília), Nelson Costa Fossatti (Universidade Católica do Rio Grande do Sul), Anita Waigort Novinsky (USP), Rodrigo Constantino dos Santos (do Instituto Liberal do Rio de Janeiro e colunista da Revista Veja), Alex Catharino (do Instituto Russell Kirk, USA) Voltaire Schilling (historiador, de Porto Alegre), Adivo Paim Filho (da Universidade Federal de Santa Maria), Jorge Nicolkas Audy (da Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e Daniela Becker (assistente do evento, de Porto Alegre).

Como material de leitura para alimentar as discussões foram analisadas, em parte, as seguintes publicações: Antônio José GONÇALVES, Memórias Ecônomo-Políticas sobre a Administração Pública do Brasil. São Leopoldo: Unisinos, 2004. Kenneth MAXWELL, Conflicts & Conspiracies: Brazil and Portugal 1750-1808. London: Taylor and Francis Books, 2004. Gabriel PAQUETTE, Imperial Portugal in the Age of Atlantic Revolutions: The Luso-Brazilian World, c. 1770-1850. New York: Cambridge University Press, 2013. Jorge CALDEIRA, História do Brasil: com Empreendedores. São Paulo: Mameluco, 2009. Roderick J. BARMAN.  Brazil: The Forging of a Nation, 1798-1852. Stanford: Stanford University Press, 1988.


Hotel Solar do Império, Petrópolis (Foto: Wikipédia).

A “Idade das Revoluções na formação do Brasil” esteve marcada fundamentalmente por duas posições antagônicas, do ângulo dos atores que se defrontaram com a tarefa de fazer nascer um novo país ao redor da Nação Brasileira: a dos seguidores do “democratismo” de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e a posição liberal-conservadora dos que seguiram pelo caminho “whig” traçado por John Locke (1632-1704) no século XVII e pelos fundadores da Pátria Americana, no nascedouro dos Estados Unidos (na segunda metade do século XVIII).

Os seguidores da opção rousseauniana, em Portugal, identificaram-se com o denominado “vintismo”, ao ensejo da Revolução do Porto de 1820, que tentou estabelecer uma República nos moldes assinalados pelo filósofo de Genebra. No Brasil, tais seguidores de Rousseau identificaram-se com os radicais que pretendiam a formação de várias Repúblicas pautadas pela visão unilinear do democratismo. Essa concepção terminou sendo adotada pelas numerosas revoluções que antecederam à formação do Segundo Reinado, em 1841, com o Regresso e a Maioridade.  

Ora, a perspectiva de uma República rousseauniana foi a variante que se apresentou aos países ibéricos após a invasão pelas tropas de Napoleão Bonaparte (1769-1821), entre 1808 e 1809. Sabemos do desfecho dessa empreitada: polarização da Espanha ao redor de um regime títere de Napoleão, após a prisão do soberano espanhol, Fernando VII (1772-1833), pelas tropas francesas em Bayonne. Em Portugal ocorreu o que Napoleão não queria: fuga da corte portuguesa para o Brasil. Convém salientar que o “Plano B” de fuga da Corte em caso de invasão do Reino Português por uma potência estrangeira, era uma opção contemplada nos planos estratégicos da Coroa, já a partir do século XVII.

As interessantes leituras efetivadas pelos membros do Colóquio de Petrópolis levam em consideração essa complicada conjuntura internacional. Que os Brasileiros desde o início estavam animados por uma concepção autenticamente liberal, ancorada no “liberalismo telúrico ibérico” (do pensamento do padre Suárez e demais autores proto libertários do século XVII), bem como nas raízes do liberalismo whig da filosofia lockeana, fica patente ao examinarmos os escritos de homens como os gaúchos Antônio José Gonçalves (1781-1837) ou Hipólito José da Costa (1774-1823).

Como não respirar o frescor liberal de um texto como o seguinte, de autoria de Antônio José Gonçalves, que denunciava, já no início do século XIX, os males do patrimonialismo português que fazia do Estado propriedade particular do Rei e dos seus burocratas? Eis o valioso texto: “Demolindo os reis o primeiro sistema [do poder arbitrário dos capitães-generais], convencidos sem dúvida de que era mau, declararam o Brasil uma propriedade sua e nomearam seus capitães-generais, vice-rei, governadores, etc... Deram então terras de boa graça a quem as queria possuir (...) reservando a si a liberdade de cada um indivíduo que nelas se estabelecesse e dela fizeram especial graça a seus capitães-generais e governadores, pois não há ramo nenhum da administração pública em uma capitania, nem indivíduo, que não esteja sujeito ao poder absoluto dos capitães-generais (...). As leis generalizavam-se no Brasil, mas só tinham valor quando não ofendiam os capitães-generais; como podiam elas então proteger os indivíduos quando se achavam em contradição com os interesses desses seres supremos no Brasil, que só ao rei deviam dar contas e que se desprezavam de ter correspondência com os ministros de Estado? Pode-se dizer que o Brasil, na passagem do primeiro para o segundo sistema, mudou de proprietários, mas não mudou de condição, pois até aconteceu que nenhum capitão-general ou governador tem sido castigado, e a impunidade foi sempre causa de maiores maldades (...)”. [1]


Senti falta, nas leituras propostas, de algum escrito de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), que veio com a Corte de D. João VI ao Rio de Janeiro, tendo sido Ministro da Guerra do novo Estado que aqui surgiu em 1815 com o pomposo nome de: "Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve". 

Ora, Silvestre foi o nosso primeiro pensador "whig", sendo da sua lavra o modelo de Monarquia Constitucional que pôs fim ao Ancien Régime português, com a adoção do modelo parlamentar mitigado inserido na prática da dupla representação (dos interesses permanentes da Nação, pelo Imperador, e dos interesses mutáveis dos cidadãos, pelo Parlamento). Teria sido desejável a leitura, por exemplo, da obrinha de Silvestre Pinheiro Ferreira intitulada:  Idéias Políticas - Cartas sobre a Revolução do Brasil - Memórias Políticas sobre os Abusos Gerais e Manual do Cidadão num Governo Representativo, (introdução de Vicente Barretto; apresentação de Celina Junqueira), Rio de Janeiro: PUC / Conselho Federal de Cultura - Editora Documentário, 1976 (da Coleção de Textos Didáticos do Pensamento Brasileiro, organizada por Antônio Paim). 

A partir deste escrito formou-se, no Segundo Reinado, a "Geração de Homens de Mil", aqueles estadistas que ajudaram o Imperador na formação dos Partidos Liberal e Conservador e no aperfeiçoamento das Instituições para garantir a unidade nacional e a liberdade dos cidadãos. 

Com essa geração o Brasil superou o modelo de Patrimonialismo Tradicional da Monarquia Portuguesa, tendo-se voltado para a instauração de um modelo de Patrimonialismo Modernizador de tipo estamental, que caminhava a passos largos, ao longo do Segundo Reinado, para o estabelecimento de um modelo contratualista claramente liberal-conservador. Mas a República, com o seu cientificismo doentio, fez renascer a pior tendência do estatismo pombalino, sina da qual nunca conseguiu se ver livre a Nação Brasileira até os dias de hoje.

O Professor João Carlos Espada, que como frisei inicialmente desempenhou-se no Colóquio como Discussion Leader, no seu artigo intitulado: "O Mistério brasileiro: vale a pena prestar atenção" (publicado no jornal português O Público, edição de 13/04/2015) escrevia que "Algo surpreendente está a ocorrer na paisagem intelectual e política do Brasil". Destacava o conceituado intelectual, meu amigo de longa data: "Escrevo do Brasil, na manhã de domingo, horas antes das manifestações previstas para centenas de cidades do país, bem como de várias outras cidades do mundo: Nova Iorque, Toronto, Londres, Sydney, Berlim e parece que também Lisboa, entre várias outras.  Não faço ideia da projecção que estas iniciativas vão ter - na sequência das manifestações que no passado dia 15 de Março trouxeram à rua mais de dois milhões de brasileiros. Mas, tendo passado por aqui - no Rio e em Petrópolis - a última semana, posso seguramente reportar que algo está a ocorrer por estas paragens. O que é exatamente eu não sei   - se é que alguém sabe ao certo. Um imenso movimento popular, pacífico, ordeiro, patriótico, está em marcha. Não existe um centro organizador deste movimento. Baseia-se nas redes sociais, tem jovens, muito jovens, a dar a cara, que recusam qualquer identificação partidária e que assumem um programa genérico contra a corrupção e o aparelhamento do Estado. Alguns, talvez muitos, exigem o impeachment da Presidente Dilma. Mas muitos outros dizem que basicamente querem o respeito pelo Estado de Direito e pelos princípios da liberdade sob a lei. Embora se trate de um vasto movimento de rua, ninguém põe em causa a Constituição ou as instituições representativas".

O meu amigo está certo: ressurge, das cinzas do estatismo e do populismo, a velha tradição liberal-conservadora, de inspiração whig, à luz da qual se formataram as instituições imperiais e da qual se abeberaram os críticos liberais da República positivista, Rui Barbosa (1849-1923), Assis, Brasil (1857-1938), Silveira Martins (1835-1901), Milton Campos (1900-1972), Carlos Lacerda (1914-1977), Miguel Reale (1910-2006), Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999), Ubiratan Macedo (1937-2007), Og Leme (1922-2004), Roberto Campos (1917-2001), Gilberto Paim (1919-2013), José Osvaldo de Meira Penna (1917), Antônio Paim (1927) e tantos outros. É o começo do desmonte do Estado Patrimonial? Os tempos dirão.


[1] GONÇALVES, Antônio José. Memórias Ecônomo-Políticas sobre a Administração Pública do Brasil. São Leopoldo: Unisinos, 2004, pg. 37. 

quinta-feira, 16 de abril de 2015

DE PENSAMENTOS E FALAS NA LÍNGUA PORTUGESA

A família deste escriba, na fazenda El Carmen, perto de Bogotá. Da esq. para a dir.: Alberto Vélez Rodríguez (1941-2004, irmão mais velho, que foi advogado e magistrado na Colômbia). Afonso (1947, irmão mais novo), Victória (mãe, 1912-2007), Maria Isabel (1949, irmã mais nova), Amparo e Magola (prima e tia), Maria Victoria (irmã mais velha, 1945-1982), Beatriz (prima) e este escriba. (Foto: álbum de família, 1952).
Fazenda El Carmen, no município de La Calera (Colômbia), onde este escriba passou a sua infância. A família refugiu-se nessa fazenda, que pertencia ao seu avô materno, o general Amadeo Rodríguez, durante a guerra civil denominada genericamente de "La Violencia" (1948-1958) (Foto, álbum de família).

Este artigo foi publicado no Porto pela revista Pontes de Vista, dirigida por Nuno Júdice, Celeste Natário, Maria Luísa Malato e Renato Epifánio 

Há quarenta e dois anos comecei o meu mergulho na cultura brasileira. O motivo foi simples: o acaso. Tinha casado, em 1971, com uma jovem carioca que depois seria, em 1974, a mãe da minha filha Vitória. Morávamos em Bogotá, na Colômbia. Em 1972, o DOPS do Rio de Janeiro começou a procurar pela minha esposa, que era professora da rede estadual de ensino do antigo Estado da Guanabara. Ela tinha participado, em 1970, em Riobamba, no Equador, de um congresso de professores latino-americanos e foi arrolada entre as pessoas que deveriam prestar indagatória acerca dos movimentos guerrilheiros que tinham enviado representantes para esse evento. Conheci-a nesse encontro. Em face da intimação da polícia, ela não teve dúvidas: para que o peso da repressão não caísse sobre a sua família, decidiu imediatamente regressar ao Brasil.

Eu, professor de esquerda, vinculado a organizações consideradas como terroristas pelo regime militar, precisava urgentemente de um álibi para viajar ao Brasil. Dirigi-me ao ICETEX, o instituto do governo colombiano que concedia bolsas para estudos no exterior. Buscava algum curso de pós-graduação. A secretária mostrou-me as bolsas disponíveis. Encontrei uma, oferecida pela OEA na Universidade Católica do Rio de Janeiro, na área de “Pensamento Brasileiro”. Candidatei-me e, em poucos meses, obtive a bolsa desejada.

Viajei imediatamente ao Rio de Janeiro, no mês de Fevereiro de 1973. Era carnaval. Do hotel em que provisoriamente me hospedava, o Itajubá, saí, na terça-gorda, dar um passeio pelas ruas do  centro do Rio. Tentando chegar, por entre os foliões, à avenida Rio Branco, terminei entrando, sem perceber, no bloco “Bafo da Onça”. Naquela barroca multidão de arlequins, clóvis, colombinas, monstros antediluvianos e sambistas seminuas, eu, militante trotskista, cheguei à seguinte conclusão: “Jamais haverá uma revolução no Brasil”. Revolução para valer, não de cima para baixo (como as que se fazem por aqui), mas de baixo para cima, como as acontecidas no mundo hispano-americano. O carnaval tudo dissolve nesse tsunami de alegria primitiva, chope, sexo e deixa prá-la, que é a atitude prevalecente ao longo da festa do Rei Momo.

Como o curso para o qual tinha recebido bolsa da OEA tinha marcado as matrículas para quarta-feira de cinzas, sai bem cedo para o campus da PUC, na Gávea. Contra as minhas expectativas de me tornar aluno do mestrado em “Pensamento Brasileiro” nessa conceituada Universidade, tive de esperar até a segunda-feira seguinte. Somente nesse dia, contando com a pachorrenta diligência pós-carnavalesca dos burocratas, consegui fazer a minha matrícula.

Percebi que a medida do tempo é diferente no Brasil. Oito horas da manhã pode significar várias coisas: oito e quinze, oito e meia, oito e quarenta. Ninguém se incomoda com essa elasticidade das horas. Lembrava-me dos meus tempos de estudante universitário na Colômbia. Era praxe o bedel da Faculdade fechar as portas quinze minutos após o início da aula. Essa era a prática nas Universidades. Para mim, foi uma descoberta e tanto ver que os meus colegas de mestrado na PUC chegavam ou em cima da hora, ou com longuíssimos trinta minutos de atraso. Descobri que, para os cariocas, “paciência” era a palavra pronunciada em face de situações estressantes. Boa atitude, aliás, para preservar a saúde mental. Atitude ruim, no entanto, para chegar a tempo aos compromissos.

Encontrava, ao chegar à Faculdade, o meu mestre Antônio Paim, tranquilamente sentado, esperando pelos alunos. Algumas vezes cheguei mais cedo, com trinta minutos de antecedência. Lá estava invariavelmente o professor, que seria o meu orientador da dissertação de mestrado e, posteriormente, da tese de doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro, cursado na Universidade Gama Filho. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Será que o ilustre docente, ex-membro do PC e que estudou na Universidade Lomonósov de Moscou, passava a noite na cadeira da sala de aula? Antônio Paim era – e ainda é – um autêntico kantiano. O imperativo categórico do cumprimento rigoroso de horários forma parte das suas convicções éticas.

Nessa minha primeira incursão na cultura brasileira, no curso de mestrado, tive de fazer um duplo esforço: de aperfeiçoamento da língua portuguesa, por um lado, dado que falava um sofrível “portunhol” e, por outro, de estudo da história do Brasil, tão diferente da dos restantes países latino-americanos, herdeiros da tradicional instabilidade hispânica. Nem o México, que teve a experiência imperial, conseguiu estruturar instituições estáveis ao longo do século XIX. Somente o Brasil se levanta por cima da poeirenta tradição de golpes e contragolpes nesse cenário de instabilidade. A instituição da Monarquia, com Dom Pedro II, ensejou amplo período de estabilidade institucional, notadamente na segunda metade do século XIX.

Do curso de mestrado colhi frutos valiosos. O primeiro deles, a descoberta da literatura política liberal dos séculos XVII, XVIII e XIX, ao ensejo das leituras indicadas pelo meu orientador. Li, sob a rigorosa cobrança dele, a obra de Locke, Investigação sobre o entendimento humano e Segundo tratado sobre o governo civil, bem como os seus ensaios sobre educação e sobre a tolerância. Li de Kant A paz perpétua, de Tocqueville, A democracia na América e O antigo regime e a Revolução, dos publicistas americanos O Federalista, o Senso comum de Thomas Paine, O que é o Terceiro Estado? De Sieyès, Princípios de política de Benjamin Constant, além dos escritos de John Stuart Mill sobre a liberdade e o governo representativo.

Li, evidentemente, os pensadores liberais do período imperial: Silvestre Pinheiro Ferreira, Domingos Gonçalves de Magalhães, Paulino Soares de Sousa, visconde de Uruguai e a obra dos críticos liberais do Império, notadamente Rui Barbosa e Tobias Barreto. Todas essas leituras foram efetivadas ao longo do primeiro ano do mestrado, a fim de me preparar para a escrita da dissertação que teve o seguinte título: A filosofia política de inspiração positivista. Tratava, nela, acerca do modelo de república autocrática elaborado por Júlio de Castilhos e que funcionou no Rio Grande do Sul entre 1889 e 1930, sendo o modelo de organização autoritária republicana que Getúlio Vargas implantou em nível nacional na Revolução de 1930.

O segundo fruto valioso que colhi no mestrado foi ter me distanciado criticamente do pensamento marxista, pelo qual tinha enveredado ao longo da década de 60. “O véu da ignorância” foi rasgado ao ensejo das leituras às que me vi compulsoriamente obrigado pelo meu orientador, a quem agradeço, sempre, a sua ação educadora. É possível, sim, deixar as sombras da ideologia para enveredar pelo caminho estreito do pensamento crítico, a fim de abandonar o “caminho da servidão”, como diria Hayek. Sem a orientação e a cobrança rigorosa de Antônio Paim não teria conseguido superar tão rapidamente os meus preconceitos hauridos ao ensejo das leituras da “vulgata marxista”, tão comum no meio latino-americano!

Tratarei, a seguir, de dois pontos que são introdutórios às pesquisas que ao longo destes anos desenvolvi no Brasil. Em primeiro lugar, de que forma entendo a diferença entre Filosofia e Ciência. Em segundo lugar, como aparece a dinâmica do Lógos na meditação brasileira, a partir das crenças fundamentais que dão ensejo à reflexão filosófica.
I - Filosofia e Ciência: as diferenças no seio da cultura luso-brasileira.
Na tradição luso-brasileira, herdeira das Reformas Pombalinas (ocorridas em Portugal, na segunda metade do século XVIII), a distinção entre Filosofia e Ciência ficou confusa. Ou melhor: a Filosofia passou a ser reduzida simplesmente à Ciência Aplicada, como muito bem destacou Antônio Paim. Configurou-se, assim, a corrente do “Empirismo Mitigado”. Destarte, nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, no sistema de ensino reformado por Pombal, Filosofia seria algo semelhante à Ciência Prática. Na obra de Luiz António Verney, que passou a ser a expressão mais fiel da Filosofia no Ciclo Pombalino, ficou clara essa idéia: “Eu suponho – frisava este autor - que a Filosofia é conhecer as coisas pelas suas causas; ou conhecer a verdadeira causa das coisas. Esta definição recebem os mesmos peripatéticos, ainda que eles a explicam com palavras mais obscuras. Mas, chamem-lhe como quiserem, vem a significar o mesmo, v. gr.: saber qual é a verdadeira causa que faz subir a água na seringa é Filosofia; conhecer a verdadeira causa por que a pólvora, acessa em uma mina, despedaça um grande penhasco é Filosofia; outras coisas a esta semelhantes, em que pode entrar a verdadeira notícia das causas das coisas, são Filosofia”.
Consequência: a cultura luso-brasileira mergulhou em rasteiro praticismo, que esperava da Filosofia efeitos úteis, jamais a meditação sobre o sentido do Ser. Coube a Silvestre Pinheiro Ferreira, com as suas Preleções Filosóficas (1813) fazer a crítica, no Brasil, a essa corrente e abrir as portas, assim, para uma adequada compreensão da Filosofia, que a liberasse dessa estreita visão.
Estas breves palavras têm como finalidade mostrar a importância de compreender a Filosofia na sua distinção em face do pensamento científico. Pois se bem Silvestre Pinheiro Ferreira fez a crítica ao Empirismo Mitigado de Pombal, o espírito desta abordagem ficou presente até os dias de hoje na nossa cultura, ao abrigo da tendência Cientificista, que passou a ser adotada por muita gente, incluindo, nestas últimas décadas, os marxistas de todas as vertentes. O Positivismo de Comte, diga-se de passagem, vingou tão profundamente em terras brasileiras, em decorrência do fato de, no nosso DNA cultural, ter-se abrigado desde cedo o vírus cientificista, ao ensejo do Pombalismo. É imperativo, por isso, distinguir Filosofia de Ciência. Nos seguintes pontos podemos estabelecer essa distinção:
1 – Do ponto de vista do Método, Ciência e Filosofia procedem de formas diferentes. Ao passo que o método científico assinala um caminho que, partindo do menos seguro (a hipótese), encaminha-se para afirmações mais firmes, porquanto testadas na observação e na experimentação, (esse seria o momento da formulação das leis científicas), o método filosófico percorre um caminho contrário: de uma vivência profunda que revela o sentido insubstituível da existência, partem os filósofos para uma explicitação conceitual dessa vivência. Ou seja: o ponto de partida é mais claro do que o ponto de chegada, pois quando tentamos explicitar a vivência de “situações-limite”, as palavras ficam curtas. “Não tenho palavras com que expressar o que senti”, essa seria a confissão de quem pretende explicitar, na linguagem, a vivência desse tipo de situações. Filósofos e poetas irmanam-se num ponto: os seus escritos traem a inspiração original, porquanto nem um nem outro ficam satisfeitos com a explicitação da vivência original na linguagem (poética, no caso dos segundos, conceitual, no dos filósofos).
2 – A linguagem científica parte para a matematização, ao passo que a filosófica dela se afasta. Todas as ciências, mesmo as humanas, aspiram a traduzir de forma exata os seus achados; isso explica o farto uso das matemáticas na linguagem científica, seja da matemática pura, no caso das ciências exatas, seja da estatística, no caso das demais ciências. A Filosofia, ao contrário, afasta-se da matemática, em decorrência de que os seus conceitos não exprimem quantidades que possam ser traduzidas de forma exata. Seria inadequado falar, por exemplo: “essa pessoa é 60 por cento corrupta”. Como seria despropositado o fato de o namorado falar para a namorada: “te amo num 80 por cento”. Posto que a Filosofia parte de vivências profundas, e pelo fato de estas não serem matematizáveis, não procede, portanto, a linguagem filosófica como a científica e se afasta da expressão matemática dos seus achados.
É claro que, ao longo da História da Filosofia, apareceram autores que tentaram estabelecer uma ponte (ou uma simbiose, no caso dos neopositivistas do Círculo de Viena) entre matemáticas e pensamento filosófico. Pitágoras pretendia que a perfeição das esferas celestes fosse traduzida pela matemática. Wittgenstein tentou estabelecer as bases de uma meta-matemática que daria alicerces ao saber científico e anularia qualquer discurso sobre hipóteses não solúveis, colocando para baixo do tapete da história a metafísica. No caso pitagórico, poderíamos argumentar que os números têm uma significação simbólica (a perfeição seria traduzida em regularidades matemáticas), sem que isso significasse que qualquer conceito filosófico tivesse de transitar pelos caminhos da matemática. No caso de Wittgenstein, ele próprio encarregou-se, na última fase da sua obra, de deitar por terra a pretensão de que só a matemática basta no terreno do conhecimento, ao colocar este em face do misticismo, um tipo de conhecimento não matematizável.
3 – Os conceitos, em Ciência, têm uma significação unívoca (do mesmo sentido), no seio de determinada disciplina (o químico sabe exatamente o que significa H²O ou H²SO4). Na Filosofia, os conceitos têm uma significação análoga, ou seja, são semelhantes na diversidade. O termo dialética, por exemplo, possui uma significação análoga, não unívoca, em Sócrates, Aristóteles, Hegel e Marx. Há uma semelhança na diferença. Para Sócrates, dialética é a arte do diálogo, ao passo que para Aristóteles é a característica marcante dos raciocínios referidos aos homens, para Hegel a forma contrária em que se manifesta o Espírito Absoluto nas suas criações culturais e em Marx é a forma de oposição em que se relacionam as forças produtivas.
4 – Toda ciência, mesmo que seja muito abstrata, possui uma parte aplicada que ajuda a transformar o mundo, ao ensejo da tecnologia (que resolve problemas). Uma ciência que não tenha nenhuma utilidade é simplesmente abandonada, como foi o caso da astrologia e da alquimia, formas “científicas” de conhecimento muito valorizadas na Antiguidade, mas que foram perdendo a sua credibilidade como ciências, na modernidade, ao não produzirem os efeitos almejados: a pedra filosofal, no caso da alquimia; a solução para o enigma da vida humana, no caso da astrologia. Podemos afirmar, em consequência, que a ciência, do ângulo da sua aplicabilidade, tem valor pela sua utilidade. Já a Filosofia não aspira a resolver problemas, mas encara o grande problema não solucionado pela ciência: a dimensão de sentido da existência. Ela tem um valor de per se, como algo que faz bem à nossa existência (de forma semelhante a como valorizamos uma obra de arte, pela vivência da emoção estética que nos enleva). A Filosofia, concluímos, possui utilidade pelo seu valor.
5 – É característico da Ciência a sua especialização, na medida em que se vão refinando os instrumentos de análise. Justamente essa tendência deixa ver, na contemporaneidade, a importância de uma abordagem interdisciplinar dos problemas, justamente para tentar reconstituir a totalidade dos objetos estudados. A Ciência se especializa do ponto de vista do seu objeto formal (o aspecto específico sob o qual ela estuda o seu objeto material). Já a Filosofia não parte para encarar o homem de forma parcial (do ângulo do seu objeto formal), mas o abarca como totalidade existente. A Filosofia constitui a mais radical forma de abordar uma realidade, do ângulo da sua presença no Ser. Não faria sentido, por exemplo, indagar pelo “sentido da existência da minha mão esquerda”, quando o existente sou eu na minha integralidade. A Filosofia, sob este viés, é holística, o seu método visa a reconstituir totalidades, as suas indagações pelo sentido da existência abarcam todo o homem e se estendem a todos os homens. 
II – A dinâmica do Lógos na meditação brasileira: as crenças fundamentais e a reflexão filosófica.
Quando falamos à luz do Lógos, damos vazão às nossas crenças fundamentais. Ora, quais seriam, no caso da meditação filosófica brasileira, as crenças que deram ensejo às nossas idéias mestras? Considero que, no caso, entraram na torrente da nossa reflexão duas séries de convicções alicerçadas sobre crenças profundas: primeiro, retomando a herança portuguesa da “filosofia da saudade”, uma linha de pensamento com raízes neoplatônicas e barrocas, que terminou desaguando na denominada “Escola de São Paulo”.

Constitui o núcleo doutrinário dessa tendência, a crença radical de que há um arquétipo preexistente ao qual tudo deve ser referido para ter validade e, paralelamente, de que houve uma “queda” da atual feição da realidade, que constituiria, assim, cópia imperfeita da plenitude ôntica de um passado primordial que cumpre reviver, mediante um processo catártico de índole pitagórico-platônica. Constitui esta variante uma retomada do neoplatonismo. Essa linha de pensamento se formou hodiernamente, no caso brasileiro, ao redor do pensamento de Vicente Ferreira da Silva, que elaborou uma filosofia com tintes órficos e numinosos de intuição do mistério do Ser, dando continuidade, na nossa meditação, à rica tradição ensejada pela “metafísica da saudade”, tão densa na reflexão portuguesa moderna e contemporânea. Esta linha de pensamento aflora hoje na tendência denominada da “filosofia portuguesa”, fartamente estudada por Antônio Braz Teixeira e, mais recentemente, por uma geração de jovens pensadores aglutinados ao redor da revista fundada no Porto em 2008, por Celeste Natário, Paulo Borges e Renato Epifânio.

A segunda linha de pensamento passou a girar ao redor de outra herança portuguesa: a do Iluminismo consolidado na obra pombalina e na sua reforma educacional, que afetou profundamente as nossas instituições de ensino e a meditação filosófica, tendo-as condicionado ao que se denominou de paradigma do “empirismo mitigado” e da postura “cientificista”. Consolidou-se tal tendência à luz da crença de que haveria uma ciência primordial de índole prática, à qual deveria ser referido todo o arcabouço do saber, a ser administrado por um líder, no contexto da concepção do despotismo ilustrado. Velha reencarnação do iluminismo absolutista ensejado na França por Luís XIV que, em Portugal, encontrou o seu ponto alto no reinado de Dom José I e do seu primeiro-ministro o marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello, na segunda metade do século XVIII.

A manifestação contemporânea de tal tendência na meditação brasileira se dá na corrente do cientificismo marxista que, misturada a formas agressivas de leninismo, como o pensamento gramsciano, encontrou canais de realização política na era lulopetista, que chegou ao poder, com Lula, nas eleições presidenciais de 2002. Na seara doutrinária, tal corrente encontrou adequado canal de manifestação na “teologia da libertação”, um de cujos arautos, no terreno filosófico, foi o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz. A manifestação mais abrangente dessa tendência do cientificismo no século XX foi, na realidade brasileira, a vertente conhecida como “segunda geração castilhista,” que encontrou em Getúlio Vargas o seu mais importante demiurgo. Getúlio se alicerçou no positivismo gaúcho e no saint-simonismo, bem como na doutrina do “autoritarismo instrumental” formulada por Oliveira Vianna, da qual se louvou, outrossim, o regime militar (1964-1985) para a sua ação reformista.

Uma terceira linha de pensamento consolidou-se a partir da nossa experiência como Nação, que tentava construir o Estado como instrumento de integração dos clãs esparsos na vastidão continental das fronteiras, que foram estrategicamente alargadas sobre o Império espanhol, à luz do Tratado de Tordesilhas, mantendo a unidade nacional e a identidade linguística. Essa experiência foi forjada pelos estadistas do Império e pela elite denominada por Oliveira Vianna de “Homens de Mil”. A partir de tal instância cultural foi formulado o ecletismo espiritualista do século XIX por Domingos Gonçalves de Magalhães, visconde de Araguaia, que deitou os alicerces doutrinários para a obra civilizacional e a construção das Instituições do governo representativo, consolidadas no Segundo Reinado.

A crença fundamental que alimenta o arcabouço doutrinário desta tendência foi a de que somente na defesa intransigente da liberdade e da consciência individual seria possível construir, de forma duradoura, as instituições que garantissem a dignidade humana. Afinou-se assim, esta tendência com as modernas versões do liberalismo clássico de Locke, Kant, Jefferson, Tocqueville, etc., constituindo versão política alternativa ao democratismo rousseauniano.

A partir da crítica de Tobias Barreto e Sílvio Romero (os mais destacados representantes da denominada Escola do Recife) ao cientificismo de inspiração pombalina e positivista, estruturou-se a Corrente Culturalista que enriqueceu a convicção do ecletismo espiritualista em prol da liberdade e da consciência individual com o desenvolvimento doutrinário de Kant e do neokantismo. Esta escola de idéias, cujos máximos representantes na atualidade são Miguel Reale e Antônio Paim é, sem dúvida, a que maior envergadura tem mostrado no que tange à sua vitalidade e à função crítica, tanto dos dogmatismos quanto do autoritarismo que, no ciclo republicano, forjou-se nos vários momentos em que se tentou reeditar a “ditadura científica”.