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quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A GRANDE MENTIRA

Utilizo, para título deste comentário, a expressão acima, da lavra do filósofo polonês Leszek Kolakovski (1926), para designar o regime comunista após o “Relatório Krushov” (1956). Esse dístico apareceu depois em obras de Kolakovski como: Marxismo, utopia e anti-utopia (1981) e Nascimento, desenvolvimento e dissolução do marxismo (1985) e seria amplamente usado por vários autores após a queda do Muro de Berlin (1989).

Para mim, a expressão “A grande mentira” caracteriza muito bem o regime petralha que, mediante subterfúgios e agredindo a legislação, tenta reeleger a presidente Dilma no próximo dia 26.

Não é de hoje que os petralhas aparelharam o Estado brasileiro. A lenta ocupação do mamute tupiniquim já vem de longa data e começou desde que o PT se entende como organização político partidária. Nascido sob as asas do regime militar, do qual Lula foi X-9, e filhote do casamento “non santo” da Igreja Católica com o movimento sindical , o PT sempre gostou de uma boquinha (como denunciava Garotinho anos atrás).

Mas o PT não ficou apenas na busca das “boquinhas”, a fim de juntar gulosamente o dízimo da militância. Fez mais. Tornou essa operação de ocupação da máquina pública, tenaz movimento silencioso de operação gramsciana, após a criação do Foro de São Paulo por Lula e Fidel, no início dos anos noventa do século passado, a fim de dar sobrevida ectoplasmática ao cadáver do comunismo, que já tinha sido enterrado sem choro nem vela na Europa. Como frisava o finado Millôr Fernandes, “quando as ideologias ficam bem velhinhas vêm morar no Brasil”. Isso é mais verdadeiro ainda no caso da petralhada, que adotou todas as teses do leninismo, a começar pela forma terrorista de fazer política, “assassinando reputações” (como ilustrou fartamente Tuminha no seu magnífico livro) e assassinando mesmo (como nos casos dos prefeitos Celso Daniel e Toninho).

Não estranha, assim, que tanto Lula, quanto Dilma e a militância petralha, tenham mostrado os dentes nesta campanha, praticando baixarias e utilizando sem dó (e sem um pio do TSE, comandado pelo fiel companheiro Toffoli) a máquina pública. Universidades, rede hospitalar federal, fundações ligadas ao governo, Empresa de Correios, etc., tudo foi posto a serviço da campanha reelecionista, sem o menor pudor. Até Institutos oficiais de pesquisa (que gozavam de reputação ilibada antes do ciclo lulopetralha, como o IPEA e o IBGE), além dos próprios institutos de pesquisa eleitoral, foram cooptados. Algum dia ficaremos conhecendo o tamanho da dinheirama gasta pelos petralhas nessas ações “estratégicas”.

A petralhada aprendeu o aparelhamento dos institutos de pesquisa e dos órgãos de opinião com os cubanos, eficientes profissionais na matéria, que conseguiram levar para Havana o Ministério da Informação venezuelano durante o consulado do finado ditador Chávez, tendo mantido essa situação sob o regime de Maduro. Ora, os “irmãos” da ilha comunista não duvidarão em ampliar a “assessoria” que já prestam aos petralhas na área da propaganda, caso Dilma vença a eleição.

O próximo objetivo a ser atingido no Brasil será a ocupação da imprensa e a eliminação da liberdade de informação, como ocorreu na Venezuela. Se a operação “médicos sem fronteiras” (leia-se: “militantes sem fronteiras”) deu certo, por que não ampliar a presença dos irmãos Castro, como fizeram na Venezuela, estendendo essa invasão nada humanitária a outras áreas como segurança pública, imprensa e comunicações? Tudo em benefício, claro, do comunismo e da falida economia da ilha.

O PT realizou ampla propaganda acerca do que faria num segundo governo Dilma, como se já não tivesse tido doze anos para cumprir com as suas promessas. Ora, desde os dois governos Lula e especialmente na péssima administração da Dilma, a petralhada conseguiu derrubar, uma a uma, todas as promessas que foi fazendo – e repetindo-as nesta campanha, com a maior cara de pau, como se estivesse falando pela primeira vez -.

No terreno econômico, as mirabolantes promessas de que a economia iria nos catapultar a índices chineses de desenvolvimento, com crescimento e distribuição de renda de tipo europeu ou americano, se traduziram em queda constante dos patamares de desenvolvimento, com as marcas negativas que hoje nos afetam. O modelo econômico inicialmente perseguido pelos petralhas estava calcado no desenvolvimentismo do ciclo militar (tão condenado por eles). Presença forte do Estado intervencionista, que com auxílio do BNDES guinda às alturas alguns empresários, para apresenta-los ao Brasil e ao mundo como “campeões de bilheteria”. Esse modelo, que deu certo nos anos sessenta do século passado, quando os juros internacionais eram baixos e havia dinheiro sobrando, antes dos choques do petróleo, hoje, no entanto, não funciona. Está defasado. Também pudera! Isso funcionou há cinquenta anos. Mas hoje a história é outra.

Pesou na atual quebradeira petralha uma dupla ordem de fatores: incapacidade da equipe da área econômica, chefiada pela “presidenta” e a roubalheira que se instalou no país, a começar por estatais outrora prósperas como a Petrobrás, que da 11ª posição mundial descambou para a 112ª entre as empresas do setor petrolífero. Outra instituição, que foi “usada e abusada” pelos companheiros foi a Caixa Econômica Federal, hoje praticamente quebrada. Faz bem o candidato Aécio Neves em prometer, caso seja eleito, uma rigorosa devassa nessa instituição, bem como no BNDES, a fim de esclarecer os duvidosos “empréstimos” a regimes marginais como Cuba e alguns países africanos, feitos com critérios puramente clientelistas, em benefício do PT.

Hoje, a Petrobrás é uma indigente internacional que mal se sustenta. Os salários dos funcionários da estatal caíram 35 % ao longo dos governos petralhas. Nem para isso foi hábil a equipe econômica da petralhada, que não conseguiu manter os salários pagos aos funcionários da empresa. Quanto menos para garantir ganhos aos acionistas que acreditaram nas mensagens cor de rosa de Lula e Dilma.

O programa “Bolsa Família”, de que tanto se orgulham Lula e Dilma, apresentando-o como criação petralha, foi copiado de outros, a começar pelo Banco Mundial (tão demonizado pelos petralhas), como lembrou o professor e pesquisador Simon Schwartzman recentemente.

A propósito, ele escrevia: “Lula chegou ao poder em 2002 anunciando o Fome Zero, que pretendia mobilizar a sociedade e colocar toda a produção agrícola do país nas mãos do Estado para garantir a segurança alimentar da população. Mal nascido, o programa foi enterrado depois que o IBGE mostrou que, mais do que a fome, o problema do país era a pobreza e a obesidade. Em seu lugar veio o Bolsa Família, inspirado nos programas de transferência condicionada de dinheiro que já existiam no México (Oportunidades), Colômbia (Famílias en Acción), Chile (Subsidio Unitario Familiar) e outros. O grande incentivador desses programas era o Banco Mundial, que propunha que as políticas sociais deveriam ser focalizadas nos mais pobres e que por isto foi acusado de tentar destruir as políticas universais que, no Brasil, ainda colocam a maior parte dos recursos nas mãos dos mais ricos”. (Simon Schwartzman, “Ideologia e realidade”, Folha de S. Paulo, 20-10-2014).

No terreno político, os petralhas conseguiram manietar e desprestigiar o Legislativo, com os dois mensalões e mediante a perversa propaganda que jogou todo o peso da corrupção dos larápios sobre a classe política, deixando o Executivo como salvador da pátria. Ao longo dos dois governos de Lula, o ex-presidente, que foi o mentor de todas as gatunagens em que se envolveu o Congresso, saiu branquinho como uma pomba. Mas a miragem conseguida com maciça propaganda hoje já não engana mais ninguém. O próprio Executivo, depois do desgaste do desgoverno de Dilma sairá chamuscado com as faíscas do incêndio do mensalão II.

Das latrinas dos subterrâneos da Presidência da República saem os rios de imundície que hoje maculam o governo e os seus colaboradores, como está sendo provado nas denúncias do segundo mensalão. Isso a opinião pública já está sabendo. Após o estado de prostração moral em que o Legislativo foi colocado, ficará muito fácil, num segundo governo Dilma, submeter de vez os congressistas, tornando o Legislativo uma monótona cópia xerox do Executivo, como ocorre na Venezuela ou em Cuba.

Paralelamente a essa ação de desprestígio do Legislativo, a petralhada tentou aparelhar o Judiciário, mediante a nomeação de juízes favoráveis à sua causa. Felizmente nem todos os nomeados por Lula e Dilma se curvaram às exigências do PT, como o ministro Joaquim Barbosa, hoje infelizmente aposentado. Mas restaram os “fiéis companheiros” Levandowski e Toffoli (este último, exercendo a função estratégica de presidente do TSE), para garantir a defesa incondicional dos interesses petralhas.

Nem falar, ainda no terreno político, do vergonhoso desprestígio em que a petralhada conseguiu fazer afundar o Itamaraty. Os nossos diplomatas, até o início da era lulopetista, eram respeitados em todo o mundo, se caracterizando por executar uma política de Estado, sobranceira aos interesses político-partidários. Lula conseguiu destruir essa imagem positiva e substituí-la por uma diplomacia a serviço dos tacanhos interesses ideológicos da petralhada. Sob o comando dele, continuando no governo de Dilma, o Brasil passou a se alinhar com as nações párias (como Cuba e Coreia do Norte), deixando de praticar uma política que respondesse aos interesses brasileiros. O PT pratica uma diplomacia de baixo teor, alinhando o Brasil com o que há de mais atrasado no cenário internacional. A mais recente pérola dessa desgraça foi o alinhamento da "presidenta", na sessão inaugural da ONU, este ano, com os genocidas do Estado Islâmico. Vergonha internacional!

No terreno da educação, o fracasso petralha foi completo. Lula se gabava de ter criado mais universidades que Fernando Henrique Cardoso. Hoje é sabido que essas Universidades, criadas a toque de caixa ao longo do território nacional, saíram do papel de forma atabalhoada, sem que tivessem professores e com a estrutura acadêmica ainda não preparada. Algumas nem salas de aula possuíam. A pérola da coroa de Lula, que era a Universidade do ABC, amargou vários meses de greve, no ano passado, em decorrência da falta de professores. No ensino primário e secundário o fracasso foi rotundo. A qualidade nos estabelecimentos públicos não para de cair, e a posição do Brasil no ranking internacional desabou, nas avaliações feitas por entidades idôneas. A lorota petralha nessa área não se sustenta.


Lidamos com armas díspares ao enfrentarmos o PT. Os petralhas estão inspirados na ética totalitária, conhecida pelo princípio de que “os fins justificam os meios”. Por essa razão “estão fazendo o diabo” nesta campanha, como tinha prometido o ministro da Casa Civil de Dilma, Gilberto Carvalho. Todo mundo sabe disso. Daí a importância de fecharmos fileiras ao redor de Aécio que hoje representa a fresta por onde poderemos salvar a liberdade ameaçada. “Libertas quae sera tamen”: “Liberdade ainda que tardia!” Nunca foi tão atual o belo ditado, que orna a bandeira do Estado de Minas Gerais.


sábado, 18 de outubro de 2014

TOCQUEVILLE, A FRANÇA, A ÍNDIA E AS AMÉRICAS

Alexis de Tocqueville (1805-1859) não foi apenas o autor do clássico livro A democracia na América. Foi um observador atento de tudo quanto se passava no mundo da sua época, na França e alhures. Queria compreender a maior novidade da sua época: o nascimento de nações democráticas. Mas pretendia entender, também, o complexo panorama político do século XIX.
Do ângulo das preocupações internacionais de Tocqueville, desenvolverei neste trabalho três partes: em primeiro lugar, de que forma entendia a Índia, submetida ao colonialismo britânico; em segundo lugar, como situava o pensador francês o seu país no contexto das relações exteriores; em terceiro lugar, de que forma entendia o papel dos Estados Unidos e da América Latina no plano internacional.
1 – A Índia submetida ao colonialismo britânico, segundo Tocqueville.
Tocqueville dedicou parte importante da sua reflexão sobre a colonização à avaliação crítica da experiência inglesa na Índia. Considerava que os ingleses tiveram muito melhor senso de realidade do que os franceses na empreitada colonial, embora não os eximisse de defeitos. Os principais destes eram, no sentir do pensador francês, a empáfia e a hipocrisia dos colonizadores ingleses, que se sentiam superiores aos seus colonizados e que os exploravam achando que realizavam uma grande obra de civilização, com uma atitude de ranço aristocrático que o nosso autor achava démodée, típica do Ancien Régime.
A propósito deste ponto, escrevia Tocqueville: "Os Ingleses fizeram na Índia o que todas as nações européias fariam no seu lugar (...). Isso não é o que me admira. Mas o que não consigo entender é essa sua dedicação diuturna para pretender provar que eles agiam no interesse de um princípio, ou pelo bem dos indígenas, ou ainda pela vantagem dos soberanos que eles subjugam; é a sua indignação honesta contra os que lhes opõem resistência; são os procedimentos com os que eles mascaram quase sempre a violência. Não somente eles usam essa linguagem em face dos indígenas ou da grande sociedade européia, mas entre eles mesmos. Nas comunicações do governador geral com a corte de diretores e ainda com os seus subordinados na Índia, encontra-se em todas partes o mesmo estilo. Se se trata de persuadir o Peschwa a receber tropas inglesas ao seu serviço e, de fato, a abdicar em favor dos Ingleses, Wellesley se indigna com as resistências que encontra. Ele se revolta com a ambição, a má vontade, a imperícia do Peschwa; contra a obstinação culpável e desinteressada dos chefes maharatas que acham ruim essa solução, que ele chama de uma aliança defensiva. E os seus agentes compartilham dos mesmos sentimentos e lhe escrevem no mesmo tom. Isso provém, creio, do hábito típico dos Ingleses, de publicar, depois de um certo tempo, todas as despesas desta espécie. Somente no teatro observamos que os homens introduzem o público na confidência das paixões interessadas que os levam a agir" [Tocqueville, 1962: 505].
Anotemos que desse hipócrita formalismo colonial foram herdeiros os americanos, no que tange ao tratamento dispensado por eles aos índios e aos negros, conforme foi registrado pelo nosso autor na primeira Démocratie en Amérique [cf. Tocqueville, 1992: 394-421]. Formalismo que, diga-se de passagem, os americanos souberam utilizar de modo muito eficiente, (muito mais pragmático que a conquista a ferro e fogo dos ibéricos), conforme o próprio Tocqueville destaca: "Os Espanhóis soltam seus cães sobre os índios, como se estes fossem animais ferozes. Pilham o Novo Mundo como uma cidade assaltada, sem discernimento nem piedade. Mas não se pode destruir tudo; a fúria tem limites. O resto das populações indígenas salvas do massacre terminam por se misturar aos conquistadores, adotando sua religião e costumes. A conduta dos Estados Unidos com relação aos indígenas, pelo contrário, é inspirada no mais puro amor às formas e à legalidade. Desde que os índios se mantenham no estado selvagem, os Americanos não interferem na vida deles, tratando-os como um povo independente. Não se permitem ocupar suas terras sem antes adquiri-las devidamente, por meio de um contrato. Se uma nação indígena não pode mais viver no seu território, a conduzem fraternalmente da mão para morrer fora da terra dos seus ancestrais. Por meio de monstruosidades sem exemplo, cobrindo-se de vergonha indelével, os Espanhóis não conseguiram exterminar a raça indígena, nem a impediram de partilhar dos seus direitos. Os Americanos atingiram este duplo resultado com uma facilidade maravilhosa, tranqüilamente, legalmente, filantropicamente, sem derramar sangue nem violar um só dos grandes princípios morais, aos olhos do mundo. Não se poderia destruir os homens respeitando melhor as leis da humanidade" [Tocqueville, 1992: 392-393].
Outro aspecto negativo encontrado por Tocqueville na colônia britânica, diz relação à cobrança de impostos. Estes poderiam ser auferidos de forma mais racional. Os ingleses, através da Companhia das Índias, tentaram criar uma espécie de nobreza burocrática integrada por nativos, os denominados zemindares (que constituía uma casta privilegiada cobradora de tributos). Mas o projeto não deu certo. A razão fundamental era o fato de que as taxas a serem repassadas pelos zemindares à Companhia foram calculadas de forma muito rígida e alta, chegando a atingir três quintas partes dos ingressos e produzindo a rápida falência desses cobradores, que viram arrematadas as suas terras [cf. Tocqueville, 1962: 488].
Contudo, tratava-se de um mal relativo, pressuposta a realidade colonial. Embora não poucos afirmassem que os ingleses tinham empobrecido a Índia, Tocqueville duvidava disso. Muito mais prejudicada tinha sido essa nação sob os dominadores orientais, que aplicavam uma política abertamente despótica em matéria tributária. Era claro, para Tocqueville, que se houvesse na Índia liberdade de comércio e indústria, a realidade teria sido outra. Mas já não se poderia falar em dominação colonial. Tocqueville, que tinha estudado a realidade das ex-colônias britânicas na América, sabia muito bem que o caminho para o progresso material estava diretamente atrelado ao self government, de um lado (coisa que ele encontrava nas comunidades indianas), mas, de outro, na democrática difusão das luzes e na luta em prol da liberdade individual, realidades que ele considerava ausentes na vasta península oriental. O Bramanismo não era uma religião de homens livres, nem se poderia pretender que sobre as suas bases de desigualdade radical pudesse fundar-se uma democracia.
Em que pese os defeitos apontados pelo nosso autor, ele não deixa de reconhecer que a colonização inglesa teve aspectos positivos que deveriam ser levados em consideração pela França. Tocqueville chamava a atenção para a grande perplexidade que significou, em face da Europa do século XIX, a colonização da Índia pelos ingleses. Tratava-se, a seu ver, de fato até então desconhecido nos anais das conquistas efetivadas pelas nações européias. Quais os principais aspectos dessa novidade? A colonização da Índia quebrava todas as normas dos processos históricos de conquista, ocupação e dominação de um povo por outro. No fundo da perplexidade diante da colonização inglesa no oriente aparece, de forma curiosa, a questão da livre iniciativa vinculada a um governo que não a abafa. Da soma entre a imprevisibilidade daquela e da previsibilidade deste, surge um fato novo: uma espécie de racionalidade em andamento, que vai consolidando, pela via do acerto e do erro, uma ação de ocupação e de governo. Modalidade de empirismo prático, muito afinado, aliás, com a tradição do direito consuetudinário anglo-saxão e com a filosofia escocesa do senso comum. Modelo realmente novo em face dos exemplos conhecidos na Europa continental, ainda sob o impacto da aventura napoleônica e dos despotismos da Prússia e da Rússia. 
Eis a forma em que Tocqueville destaca esse fato novo: "O imenso império dos Ingleses na Índia estabeleceu-se de uma maneira tão súbita, ele é de data tão recente que a Europa, sacudida pela admiração em face de uma revolução tão singular, não teve ainda tempo de procurar as suas causas e de estudar os seus efeitos. Ela não viu, nem vê ainda, nessa grande revolução, mais do que um evento inexplicável e quase maravilhoso. A verdade é que se pretendermos observar o fato unicamente na sua dimensão exterior, jamais houve algo de mais extraordinário. Um país quase tão extenso quanto a Europa foi conquistado, no espaço de sessenta anos, por alguns milhares de Europeus desembarcados como comerciantes nas suas costas. Trinta mil estrangeiros governam cem milhões de homens que, pelas leis, a religião, a língua, os costumes, não possuem nenhum ponto de contato com eles e que, no entanto, não tomam parte nenhuma na direção dos seus próprios negócios. Não satisfeitos em conquistar essa multidão, os vencedores tentaram duas temeridades singulares: eles tinham o projeto de abolir ali, de uma vez só, todas as formas da justiça e de administrá-la, eles próprios, aos vencidos, fato que, acredito, não tem paralelo na história. (...) Fizeram ainda mais: subitamente mudaram a posse da terra, misturando, assim, os distúrbios de uma grande revolução social à agitação de uma grande revolução política. Todas essas coisas foram feitas, não de acordo com um plano hábil e uniformemente conduzido e posto em prática por algum grande gênio, mas aos poucos, seguindo o acaso das circunstâncias e dos homens, e após muitas dúvidas e tentativas. Essa estranha revolução foi conduzida por homens comuns. Ela não teve necessidade do gênio de alguns homens. O bom senso e a firmeza de todos têm sido suficientes. Enfim, para levar ao cúmulo a singularidade do evento, as duas terceiras partes de um império tão vasto quanto o de Alexandre foram submetidas contrariando as ordens formais dos que hoje são os seus senhores. O governo inglês e a Companhia foram arrastados sem sabê-lo ou apesar deles a realizar essas conquistas. Muitas vezes eles têm desautorizado os generais que as realizaram e, o que parece bem contrário à marcha comum das paixões humanas, os seus desejos mostraram-se menores do que a sua sorte" [Tocqueville, 1962: 444].
Ainda que seja certo que a conquista da Índia pelos ingleses era paradoxal na sua época, o nosso pensador não ficou atemorizado diante do fato de que ninguém tinha ousado elaborar até então uma explicação global do fenômeno. Utilizando o instrumental conceitual que o guiou nas outras pesquisas em que se enfronhou, de forma paciente e sistemática decidiu elucidar esse caso. A propósito da sua determinação e da certeza que tinha de encontrar uma explicação plausível, escreve Tocqueville: "Chegou o tempo de fazer desaparecer a nuvem que parece ainda ocultar a fundação do império inglês na Índia e de vincular esse evento às causas gerais que regem as coisas humanas. Documentos de todas as espécies são bastante numerosos como para, a partir deles, fazer esse trabalho. Examinado dessa forma, o evento será sempre muito grande, mas deixará de ser maravilhoso" [Tocqueville, 1962: 445].
O nosso autor passou a examinar detalhadamente toda a informação disponível sobre a Índia. Estudou, em primeiro lugar, anotando-as, as Leis de Manou (na tradução do sânscrito ao francês realizada pelo orientalista Loiseleur-Deslongchamps, em 12 volumes, Paris, 1832), pois queria ver de que forma o bramanismo tinha ensejado uma moral social, se consolidando em instituições sociais e políticas, de uma maneira análoga a como se interessou pelo estudo do Alcorão, a fim de melhor compreender o comportamento dos habitantes originários da Argélia. Pesquisou, de outro lado, nos anais do Parlamento britânico, as discussões relativas à política colonial inglesa na Índia, notadamente os relatórios ali apresentados por M. Dundas, Lorde North, Fox e Pitt. Consultou o conjunto de leis consolidadas que regiam as relações de Londres com as colônias, na coleção intitulada The Statutes of the United Kingdom of Great Britain and Ireland. Leu, outrossim, os relatórios dos funcionários britânicos na Índia. O nosso autor cita fartamente esse tipo de fonte, especialmente os informes de Lorde Cornwallis, de Lorde Teighmouth, do marquês de Wellesley, de Sir Philip Francis, de Lorde Clive e do marquês de Hastings (relativos estes últimos à administração da Companhia das Índias e ao conflito com os Gurkas, entre 1814 e 1816).
Dentre as obras consultadas ressaltam: de James Mill, The History of British India, 6 volumes, Londres, 1840; do reverendo Reginald Heber,  Narrative of a journey through the upper provinces of India from Calcutta to Bombay, 1824-1825, Londres, 1829; de sir John Malcolm, A memoir of central India, Londres, 1832; de Montsuart Elphinstone, An Account of the kigdom of Caboul and its dependencies in Persia, Tartary and India comprising a view of the Afghan nation and a history of the Dooranee monarchy, Londres, 1815; do general e conde sueco Magnus Björnstjerna, The British Empire in the East, Londres, 1840; de James Peggs, Slavery in India. The present State of East India Slavery, Londres, 1828; de William Adam, The Law and Custom of slavery in British India, Londres, 1840; de Mark Wilks, Historical Sketches of the South of India, Londres, 1810-1817; de Barchou de Penhoën, Histoire de la Conquête et de la fondation de l'Empire anglais dans l'Inde, 6 volumes, Paris, 1840-1841; do Abbé Jean-Antoine Dubois, Moeurs, institutions et cérémonies des peuples de l'Inde, 2 volumes, Paris, 1825 e de Robert Montgomery Martin, History of the British possessions in the East Indies, 2 volumes, Londres, 1836.
Não estranha que de posse de tão ampla documentação, o nosso autor tenha feito uma acertada aproximação da realidade indiana, embora não tenha conseguido viajar ao oriente, como era o seu desejo. Sintetizemos a apreciação que Tocqueville faz da colonização inglesa na Índia. Para o nosso pensador, não há dúvida de que os ingleses conseguiram compreender o espírito da sociedade indiana. Daí o fato de eles terem podido desenvolver instituições coloniais que possibilitaram a sua presença dominadora no continente asiático. Isso não significa que tudo tenha sido favorável aos indianos. Mas, no essencial, os colonizadores não alteraram a vida privada das pessoas e garantiram uma ordem jurídica e política, que deu a sensação de estabilidade.
Os ingleses, em primeiro lugar, encontraram uma sociedade atomizada em pequenas comunas. Não havia na Índia consciência nacional. Os dominadores anteriores (muçulmanos, afegãos, persas, mongóis) beneficiaram-se  também dessa situação. Mas não conseguiram estabelecer instituições permanentes, talvez em decorrência de um fato fundamental: o despotismo oriental impedia-lhes compreender essa importância da vida local na cultura indiana. Queriam centralizar tudo. Os ingleses, ao contrário, souberam adaptar o regime administrativo colonial a essa realidade. Isso porque o próprio governo inglês já convivia há séculos com uma rica vida comunal, na Inglaterra. De outro lado, jamais os ingleses permitiram que o exército se colocasse por cima do poder civil. As guerras que fizeram na Índia, tiveram como finalidade defender os interesses dos acionistas da Companhia das Índias (que nomeavam o governador e os altos funcionários da colônia), bem como a estabilidade dos negócios. Como os que mandavam eram governadores civis indicados pela Companhia, jamais a empresa guerreira teve como finalidade a conquista ou a glória militar. A administração política sobrepôs-se, na Índia, ao poder militar. Os generais prestavam um serviço de proteção aos nativos ou de restabelecimento da ordem, quando eles e os seus exércitos eram chamados pelo poder civil; mas nem este comandava diretamente as tropas, nem os chefes militares tinham iniciativa política.
De outro lado, os ingleses souberam conviver e administrar uma sociedade essencialmente desigual, como a indiana, segmentada hierarquicamente pelas castas. Isso porque, mais uma vez, o poder na Inglaterra sabia conviver com as diferenças hierárquicas no seio da sociedade. A religião indiana, o bramanismo, de outro lado, não ensejou a intolerância e a guerra contra o infiel, pela natureza mesma dessa religião. O bramanismo, do ângulo social, consolida uma sociedade de desiguais e justifica a desigualdade.  As pessoas nascem ou dos pés de Brahma ou da sua cabeça, sendo ou membros das castas inferiores ou das superiores. A religião está intimamente atrelada a essa ordem de castas. Não pretende subvertê-la. Mas, de outro lado, a religião é tradição da própria casta. Não constitui uma crença universal, que deva ser levada a outros povos. O próprio bramanismo hindu tende a que os fiéis aceitem outros credos, porque não há a preocupação de converter ninguém. Esse aspecto introspectivo do bramanismo, no sentir de Tocqueville, favoreceu a dominação britânica e a estabilidade administrativa da colônia. Os colonizadores não se defrontaram com uma jihad ou guerra santa, como as que pululavam no meio muçulmano. Os anteriores dominadores da Índia, aliás, não eram brâmanes, mas muçulmanos. De forma que a sociedade indiana já convivia pacificamente com senhores portadores de um credo diferente.
Tocqueville ressalta a originalidade do esquema de governo britânico na Índia. Houve dois modelos, um que vingou até 1786, e que poderia ser denominado de privatista. Outro, que se consolidou após as reformas efetivadas por Pitt em 1784 e 1786, que poderia ser caracterizado como privatista e estratégico. A primeira ocupação da Índia pelos ingleses, no início do século XVIII, deu-se sob a modalidade de atividade comercial privada, realizada pela Companhia das Índias. Os acionistas da Companhia, em Londres, nomeavam o governador e os altos funcionários coloniais. O governo britânico acudia para apoiar e defender os seus interesses, deslocando a força armada, que agia pontualmente e não como exército de ocupação. Após o sucesso crescente dos negócios da Companhia, entre 1784 e 1786, Pitt elabora a reforma que dará ensejo ao segundo modelo, privatista e estratégico. Tratava-se de criar uma interferência do governo inglês, de forma a conservar a unidade da colônia, sem impedir o funcionamento da livre iniciativa dos negócios da Companhia das Índias.
Tocqueville sintetizou da seguinte forma os aspectos essenciais das reformas de Pitt: "Os bills propostos por Pitt em 1784 e 1786: 1) estabeleceram a criação de um conselho governamental denominado Board of Control, que dava ao governo o controle supremo sobre os negócios políticos da Companhia. Esses dispositivos davam também ao rei o poder de chamar o governador geral nomeado pela Companhia. 2) Davam ao governador geral muita mais independência (...). Subordinavam de uma forma mais precisa o poder militar ao poder civil (...). Este bill distinguia de novo muito formalmente o general-em-chefe do governador geral e colocava o primeiro imediatamente abaixo do segundo. Aumentando em muito o poder do governador geral, o bill de 1786 dispôs que as atribuições deste poderiam se estender até os casos judiciais, sem poder contudo mudar ou modificar as instituições ou regulamentos estabelecidos pelo governo civil" [Tocqueville, 1962: 484].
O modelo de administração britânica na Índia encarnava o princípio defendido por Tocqueville para a Argélia: centralização política e descentralização administrativa. A primeira acontecia em decorrência do poder supremo do Board of Control. A segunda estava garantida graças à independência de que gozava o governador geral. O nosso autor não deixava de admirar um outro fator: a estreita colaboração que o modelo colonial inglês possibilitava entre o governo e a iniciativa privada.     
Outro aspecto importante da administração colonial britânica na Índia, dizia respeito à preparação dos quadros administrativos. Os ingleses cuidaram de forma muito eficiente disso. Tocqueville sintetizou assim esse aspecto da política colonial britânica: "Os jovens que se destinam a ocupar as funções civis na Índia, são obrigados a residir por dois anos num colégio especial fundado na Inglaterra (e que é chamado de Hailesbury College). Lá eles se dedicam a todos os estudos particulares que se relacionam à sua carreira e, ao mesmo tempo, adquirem noções gerais em administração pública e em economia política. As personalidades mais destacadas lecionam ali. Malthus ofereceu um curso de economia política em Hailesbury e sir James Mackintosh tem lecionado direito. São ali ensinadas oito línguas da Ásia. Para entrar e para sair do mencionado centro de estudos são necessários exames. Isso não é tudo. Chegados na Índia, esses jovens são obrigados a aprender a escrever e a falar corretamente dois idiomas do país. Quinze meses depois da sua chegada, um novo exame constata se eles possuem esses conhecimentos e, se forem reprovados num exame, são mandados de volta à Europa. Mas uma vez que, após tantas provas, eles se firmam na administração do país, a sua posição lhes é garantida, bem como os seus direitos; o seu progresso na carreira não é totalmente arbitrário. Eles ascendem de grau em grau, e seguindo regras conhecidas de antemão, até as mais altas posições" [Tocqueville, 1962: 332].
O nosso autor chamava a atenção para o fato de que a administração francesa na África poderia se inspirar nesse exemplo, a fim de passar a preparar os seus quadros administrativos de maneira racional. Somente assim, considerava Tocqueville, poderia se garantir, para a Argélia, uma colonização civilizadora, digna da tradição das luzes e do liberalismo. 
Uma última observação acerca da abordagem da Índia por Tocqueville. O nosso pensador enxergava longe: qual seria o começo da derrubada do grande império colonial britânico na Ásia? Duas hipóteses eram levantadas por ele: ou a invasão de uma potência européia, ou uma revolta interna. Tocqueville descartava a primeira hipótese, pelas dificuldades estratégicas que sofreria o invasor, devido ao grande poderio da Armada britânica. Restavam as alternativas por terra. Seria muito difícil invadir a península da Índia, pois para isso, tropas ocidentais deveriam entrar pelo Afeganistão, país inóspito, cheio de perigosos desfiladeiros e vales profundos, perfeitamente controlados por tribos guerreiras que conhecem palmo a palmo o terreno, e  onde as constantes rixas tribais dificultam qualquer empreendimento. É muito interessante, aliás, a descrição que das várias regiões afegãs oferece Tocqueville no breve ensaio intitulado Afghans, que insere no seu trabalho sobre a Índia, de 1842 [cf. Tocqueville, 1962: 498-500]. O nosso autor lembra as dificuldades que tiveram de enfrentar nessa região os vários invasores ao longo dos séculos, desde Alexandre da Macedônia.
A derrubada do império britânico na Índia ocorreria por causas internas, no sentir do nosso autor. Seguindo os estudos de Heber, Tocqueville considerava que a resistência civil do povo indiano poderia ser o calcanhar de Aquiles do poderio inglês. No esboço do livro que pretendia escrever sobre a Índia, o nosso autor inseria uma terceira parte intitulada: Comment l'Empire des Anglais dans l'Inde pourrait être détruit. A propósito, escrevia: "É muito remota a chance de uma rebelião. Os Ingleses terminarão por colocar os Hindus em estado de lhes resistir. Mas esse tempo está muito longe de nós. Ver a forma de mencionar esse traço que se encontra em Heber, de toda essa população da província de Bénarès, que ameaça se deixar morrer de fome se não for retirado um novo imposto. Exemplo significativo que prova ao mesmo tempo a singular doçura desse povo, mas ao mesmo tempo o poder que ele tem de se associar e a energia que ele pode dar às suas associações políticas" [Tocqueville, 1962: 481]. A figura do Mahatma Gandhi e da gesta libertadora não violenta por ele deslanchada no século XX, oferece-se espontaneamente à imaginação ao lermos estas linhas, escritas cem anos atrás.
O castelo de Alexis de Tocqueville, na Normandia, perto da cidadezinha de Tocqueville. (Janeiro de 1996 - Fotografia do jornalista José Carlos de Lery Guimarães)

2 - A França no contexto das relações exteriores, segundo Tocqueville.
Analisarei nesta parte o modo como Tocqueville situava a França da sua época no contexto internacional dos países já consolidados na vida independente. Para o nosso pensador não havia dúvida de que a democracia era a tendência a que as nações deveriam obedecer ao longo do século XIX. Herdeiro do hegelianismo mitigado de Guizot, Tocqueville considerava que as forças subterrâneas da história dirigiam-se nesse sentido. A propósito, escrevia na Introdução à primeira Démocratie en Amérique: "O desenvolvimento gradual da igualdade de condições é (...) um fato providencial e as suas caraterísticas são as seguintes: ele é universal, é durável, escapa sempre ao poder humano; todos os acontecimentos, como todos os homens, servem ao seu desenvolvimento" [Tocqueville, 1992: 7; cf. La Fournière, 1981: 147].
As grandes potências do século XX seriam aquelas que obedecessem de forma mais total a essa tendência democrática. Tocqueville enxergava dois países que ocupariam esse lugar: a Rússia e os Estados Unidos. A primeira cresceria pelo caminho do despotismo. Os segundos, pelo do desenvolvimento da liberdade. Tornou-se clássica a conclusão com que o nosso autor encerra, de forma profética, a sua primeira Démocratie en Amérique: "Há hoje, na terra, dois grandes povos que, partindo de pontos diferentes, parecem avançar em direção ao mesmo objetivo: os russos e os anglo-americanos. Ambos cresceram na obscuridade; e, enquanto os olhares do mundo estavam voltados para outros pontos, colocaram-se repentinamente no primeiro plano das nações e o mundo conheceu quase ao mesmo tempo o nascimento e a grandeza de ambos. Todos os outros povos parecem ter mais ou menos atingido os limites que lhes traçou a natureza e só precisam conservá-los; mas estes estão em crescimento: todos os outros pararam, ou só avançam com muito esforço; estes caminham com passo rápido e fácil, em carreira cujo ponto culminante não se pode divisar a olho nu. O americano luta contra os obstáculos postos pela natureza; o russo enfrenta os homens. Um combate o deserto e a barbárie, o outro, a civilização, sob todas as suas formas: as conquistas do americano se fazem com o cabo da enxada, as do russo, com a espada. Para atingir o objetivo, o primeiro conta com o interesse pessoal, e deixa agir, sem dirigi-las, a força e a razão dos indivíduos. O segundo concentra em um homem, de certa forma, todo o poder da sociedade. Um tem como principal meio de ação a liberdade; o outro, a servidão. O ponto de partida é diferente, as vias divergem; entretanto, cada um deles parece chamado, por vocação secreta da Providência, a concentrar nas mãos o destino da metade do mundo" [Tocqueville, 1992: 480].
Diríamos que a preocupação tocquevilliana fundamental consistia em pensar a forma de a França se preparar para esse fato novo, o ideal da igualdade, que o acaso tornou presente na própria história francesa. Ora, esse ideal era pensado por Tocqueville, à luz da experiência americana, como a conquista de um estado social em que vingaria a igualdade de condições [cf. Matsumoto, 1999: 38]. Na introdução à primeira Démocratie en Amérique, o nosso autor mostrava que entre os franceses a democracia tinha vingado como uma espécie de menino de rua, com toda a dinâmica dos primeiros anos, mas sem os anteparos da boa educação: "Não há povo na Europa em que a grande revolução social a que fiz alusão tenha feito progressos mais rápidos do que entre nós; mas a revolução, neste país, desenvolveu-se sempre ao acaso. Nunca os chefes de Estado pensaram em preparar, previamente, o que quer que fosse em seu favor; fez-se apesar deles ou sem que dela tivessem conhecimento. As classes mais poderosas, mais inteligentes e mais honestas não buscaram apoderar-se dessa revolução para dirigi-la. A democracia foi, portanto, abandonada aos seus instintos selvagens; cresceu como essas crianças privadas dos cuidados paternos, que se criam sós nas ruas das cidades, que só conhecem da sociedade os vícios e as misérias. Parecia-se ignorar, ainda, a existência da revolução, quando apoderou-se, inopinadamente, do poder. Então, cada qual se submeteu servilmente a seus mínimos desejos. Adoraram-na como imagem da força; mas quando, depois, enfraqueceu por culpa de seus próprios excessos, os legisladores conceberam o projeto de destruí-la, ao invés de buscar instruí-la e corrigi-la; sem pensar em ensiná-la a governar, só quiseram expulsá-la do governo. O resultado foi que a revolução democrática operou-se no plano material da sociedade, sem que houvesse, nas leis, nas idéias, nos hábitos e costumes, a mudança que teria sido necessária para torná-la útil. Assim, temos a democracia, menos o que deve atenuar os seus vícios e realçar-lhe as vantagens naturais; já conhecendo os males que provoca, ignoramos os bens que pode proporcionar (...)" [Tocqueville, 1992: 8-9].
O pano de fundo da democracia será o marco de referência conceitual das reflexões de Tocqueville no que tange às relações internacionais. Esse marco, aliás, como já tive oportunidade de mostrar atrás, enquadra a meditação do nosso pensador em relação à problemática colonial. A Argélia e a Índia foram estudadas por ele como propostas de colonização julgadas à luz do ideal democrático. Algo semelhante se pode dizer da problemática da abolição da escravatura, totalmente equacionada com referência ao contexto da vida democrática.
Quais eram as perspectivas estratégicas que Tocqueville assinalava à França no contexto europeu da sua época? O nosso autor esteve à frente dos negócios estrangeiros da França, como ministro das Relações Exteriores, durante cinco meses no gabinete presidido por Odilon Barrot, entre 2 de junho e 31 de outubro de 1849. Pouco tempo para desenvolver uma política exterior ampla e coerente. O nosso pensador teve, necessariamente, de se acomodar aos compromissos assumidos por ministros anteriores e respeitar as linhas mestras do regime republicano moderado presidido por Luís Napoleão Bonaparte, eleito presidente em 10 de dezembro de 1848. O escasso tempo de que Tocqueville dispôs para dirigir a política exterior, não significou, contudo, que não a conhecesse em profundidade, nem que os seus ideais democráticos tivessem ficado à margem da atividade política. O nosso autor já tinha integrado, como deputado, várias comissões para estudar problemas relacionados com esse ponto. E nas questões essenciais que teve de solucionar no ministério, agiu guiado pelas idéias que defendeu na sua obra.
Tocqueville almejava ser nomeado ministro da Instrução Pública. Revelava, assim, a tendência que já tinha se manifestado na vida política de Guizot, de contribuir para a reforma das instituições na França a partir do ponto que era considerado pelo doutrinários como nevrálgico: a educação popular. Não tendo conseguido a indicação para a Instrução, foi nomeado ministro das Relações Exteriores. A respeito das atividades que teve de desempenhar no ministério, escreve André Jardin: "Na falta da Instrução Pública, Tocqueville recebeu os Assuntos Estrangeiros, que aceitou com certo temor. Não era, contudo, tão bisonho como às vezes se tem afirmado; a partir do seu ingresso na vida pública tinha estudado os problemas internacionais com dedicação; no ano anterior, tinha sido designado como mediador francês no conflito austro-sardo e, com vistas à hipotética conferência de Bruxelas, tinha revisado cuidadosamente os expedientes italianos no ministério; regressava da Alemanha, aonde tinha ido para observar pessoalmente os movimentos revolucionários" [Jardin, 1984: 406].
Tocqueville teve, no ministério das Relações Exteriores, uma atitude de colaboração leal para com o presidente Luís Napoleão. Em que pese as tendências autoritárias do príncipe-presidente, o nosso autor soube colocar anteparos na sua pasta, quando achou que o primeiro mandatário extrapolava os limites traçados pela conveniência dos interesses franceses. A propósito dessa colaboração, frisa Jardin: "Tocqueville expunha-lhe regularmente os assuntos da Europa, explicitava-lhe os motivos de suas decisões. Quando acreditou dever resistir às suas decisões ou aos seus caprichos, justificou as causas da sua resistência. Dessas relações surgiu uma simpatia um pouco desconfiada da parte de Tocqueville, uma simpatia mais profunda da parte do Presidente, da qual mais tarde daria alguns testemunhos (...)" [Jardin, 1984: 408].
Tocqueville encontrou problemas no que tangia à preparação do pessoal na sua pasta. Após os inúmeros movimentos revolucionários enfrentados pelo país e em face das idéias republicanas em ascensão, muitos diplomatas surgiam das fileiras dos ativistas políticos, tornando difícil a circulação de informações confidenciais e a elaboração e execução de uma política exterior amadurecida. Tocqueville, como ministro, teve de criar, em não poucos casos, uma rede de informantes paralela aos quadros da diplomacia. O seu chefe de gabinete, o jovem Gobineau, foi para nosso autor de uma grande utilidade, na medida em que se revelou um colaborador fiel e eficaz. Após ter se desempenhado como auxiliar do nosso autor, quando Tocqueville deixou o ministério, Gobineau direcionou-se para a carreira diplomática, tendo representado os interesses da França no Médio e no Extremo Oriente, como também no Brasil.
No que tange à problemática das relações exteriores da França com os restantes países europeus, Tocqueville desenvolveu uma política de continuidade com os seus antecessores no ministério: manter a Europa em paz. Essa política já tinha sido praticada antes de 1848 pelo conservador Guizot. Era compreensível essa atitude, diante dos enormes custos sociais e políticos do ciclo revolucionário de 1789, do Terror Jacobino e das aventuras napoleônicas. A França estava cansada de guerras e a sua diplomacia buscava deitar as bases de um convívio pacífico no cenário europeu. A propósito, frisa Jardin: "Na turbulenta Europa de 1849, o interesse essencial é a manutenção da paz. Desde 25 de junho, Tocqueville afirma esse grande princípio a propósito da interpelação de Maugin. Maugin subia cada ano à tribuna para denunciar a conjuração dos soberanos da Europa contra a França e, dessa feita, profetizou a chegada dos russos. Boa ocasião para Tocqueville proclamar que a paz é necessária e que não é imediatamente ameaçada. Nas circunstâncias do momento, a guerra seria não só um desastre para a República francesa: dela poderia resultar um terrível naufrágio não somente para nós, como para todo o mundo civilizado, numa conjuntura em que as sociedades tremem nos seus alicerces. Parece impossível uma coalizão contra a França: Inglaterra quer manter a paz, as potências alemãs jamais estiveram tão divididas (...)" [Jardin, 1984: 412-413].
O mais espinhoso problema que Tocqueville teve de enfrentar na pasta das Relações Exteriores foi o dos Estados Pontifícios. Após a revolução de 1848 o Papa Pio IX, com a finalidade de conservar o seu poder em Roma, tinha acenado, a partir do seu refúgio em Gaeta, com a concessão de algumas reformas liberalizantes, organizando um regime constitucional. Após o assassinato do primeiro-ministro papal, Rossi, em 15 de novembro desse ano, o Pontífice voltou atrás. Acontece que as tropas francesas, chefiadas pelo general Oudinot, tinham entrado em Roma para restabelecer a ordem, por determinação de Tocqueville. Se impusessem a manutenção do status quo absolutista (como era o desejo dos cardeais mais influentes), as tropas ficariam desmoralizadas perante a opinião pública de seu país. Se abandonassem Roma à pilhagem, a situação não seria melhor. O nosso autor insistia na realização de reformas nos Estados Pontifícios, que possibilitassem o equilíbrio entre liberdade moderna e Igreja.
A respeito dessa política, frisa Jardin: "No entanto, a política francesa podia encontrar uma justificação: a de impor aos estados romanos um regime constitucional. Essa idéia era uma aplicação do princípio expressado em La Démocratie de que era necessário fazer coexistir a liberdade moderna e a Igreja, para garantir o equilíbrio moral da futura sociedade democrática. A negociação do conflito romano era uma das idéias fundamentais de Tocqueville" [Jardin, 1984: 416]. Tocqueville, católico por tradição familiar, era sensível ao desprestígio que a Igreja teria, caso o Papa mantivesse a pretensão absolutista nos seus Estados. Em carta endereçada a Corcelle em 1º de julho de 1849, assim escrevia o nosso autor: "Se o soberano pontífice, uma vez colocado novamente no poder, trabalhar para restabelecer os abusos que a própria Europa absolutista não deseja, se se entregar aos rigores que a história não perdoa nem sequer aos príncipes seculares, a Igreja católica não só se debilitaria, mas também se desonraria diante de todo o universo" [apud Jardin, 1984: 416].
Uma vez garantido o Papa à frente do governo de Roma pelas tropas francesas, o Pontífice emitiu um decreto (motu proprio) que praticamente restabelecia o poder absoluto e deixava sem efeito as promessas liberalizantes, tendo inclusive restabelecido a Inquisição. Tocqueville sentiu-se traído. A partir de então, passou a alimentar sentimentos anti-clericais, que o acompanhariam até o final da sua vida. Jardin frisa a respeito: "Tocqueville ficou pessoalmente marcado por essa experiência diplomática. A hipocrisia da corte romana tinha-o exasperado. Católico por tradição e por costume, contemplava com desânimo a veneração dos fiéis da sua época por Pio IX. Que pena que você seja protestante! escreve-lhe um dia Corcelle e essa afirmação marca entre eles uma verdadeira diferença de sensibilidade. Para Tocqueville, as virtudes privadas do Santo Padre não têm grande peso diante da falta de lucidez que o encadeia à torta política do seu Secretário de Estado. A partir de então, através de sua correspondência, pode-se destacar uma dura atitude anticlerical, até então ausente nele. Subsistirá durante o Segundo Império" [Jardin, 1984: 421].
Em síntese, a atuação de Tocqueville na pasta das Relações Exteriores deu continuidade a uma linha política previamente formulada, de manter a paz na Europa. O seu principal mérito consistiu em ter conseguido salvar a paz na Itália, mediante uma boa harmonia com a Áustria. Em geral, as suas apreciações sobre a política européia foram acertadas, como por exemplo a que previa a unificação alemã. E na sua atuação observa-se o perfil dos seus mestres doutrinários: agir preservando a fidelidade aos princípios morais básicos de respeito às pessoas e às nações, preservando as instituições da democracia representativa e o regime de liberdades. Em face da dúbia atitude do Papa e dos seus cardeais, o nosso autor, como frisa Françoise Mélonio no seu ensaio intitulado Tocqueville et la restauration du pouvoir temporel du pape (juin-octobre 1849) "parece ter pensado uma política de pressão moral mais vigorosa" [Revue Historique, CCLXXI/1: pg. 118].
Uma última observação: a lucidez com que o nosso autor analisou as relações internacionais na sua época, inspirou, ao longo do século XX, a retomada dessa perspectiva liberal e responsável (diríamos tipicamente doutrinária) na França, por parte de Raymond Aron, à cuja sombra, no Centre de Recherches Politiques que leva o seu nome, formou-se um núcleo de importantes estudiosos da problemática internacional e da questão social, entre os que se destacam as figuras de François Furet, Marcel Gauchet, Pierre Rosanvallon, Patrice Gueniffrey, Françoise Mélonio, Ran Halévi, Claude Lefort, Pierre Manent, Mona Ozouf, Philippe Raynaud, Elisabeth Dutartre, etc. [cf. Mélonio, 1998: 925-927]. Fecundidade semelhante  observa-se hodiernamente, nos Estados Unidos, ao redor das idéias mestras de Tocqueville, que têm alimentado a meditação sobre os problemas atuais da democracia americana, como por exemplo no relacionado ao convívio das raças, dos sexos, enfim, da denominada "igualdade de condições", numa sociedade civil caracterizada pela liberdade de associação [cf. Drescher, 2001: 63-76; Vélez, 2001: 275-304].

3 – O papel dos Estados Unidos e da América Latina no plano internacional.
A - Perspectivas estratégicas da América do Norte.- Não há dúvida de que a América, para Tocqueville, era uma potência forte. Dois aspectos salientava o nosso autor em relação a esse fato: ela é tal porque a natureza a colocou isolada dos grandes inimigos. Mas ela possui também a força das nações cujas instituições estão solidamente ancoradas na vontade popular.
Em relação ao primeiro aspecto, o nosso autor considerava que os Estados Unidos da América gozavam de uma situação privilegiada, de que outros povos não tinham se beneficiado. Era uma nação colocada pela Providência longe dos seus inimigos e, portanto, a salvo das guerras. A propósito, escrevia no final da primeira parte da Démocratie en Amérique de 1835: "De onde provém, pois, o fato de que, embora protegida pela perfeição relativa das suas leis, não se dissolva a União americana no meio de uma grande guerra? É que não tem absolutamente grandes guerras a temer. Situada no centro de um continente imenso, onde a indústria humana pode estender-se sem limites, a União é quase tão isolada do mundo como se estivesse encerrada pelo oceano, por todos os lados. O Canadá conta apenas com um milhão de habitantes; a sua população acha-se dividida em duas nações inimigas. Os rigores do clima limitam a extensão do território e fecham os seus portos durante seis meses. Do Canadá ao Golfo do México, encontram-se ainda algumas tribos selvagens, semidestruídas, que vão sendo expulsas por seis mil soldados. Ao sul, a União toca num ponto o império do México. É de lá, provavelmente, que virão um dia as grandes guerras. Mas, por longo tempo ainda, a situação pouco adiantada da civilização, a corrupção dos costumes e a miséria impedirão o México de tomar uma posição elevada entre as nações. Quanto às potências da Europa, o seu afastamento as torna pouco temíveis (...). Admirável posição do Novo Mundo, que faz com que o homem, nele, não encontre ainda inimigos, a não ser ele próprio! Para ser feliz e livre, basta desejá-lo" [Tocqueville, 1992: 191-192].
O fato de estar longe dos seus inimigos acrescia-se a esta outra realidade: o continente americano era imenso e rico em terras cultiváveis. Para ser uma grande potência, Estados Unidos não encontrariam, no século XIX, grandes dificuldades. A sua população cresceria em paz e ocuparia de maneira produtiva a imensa hinterlândia que a Providência tinha-lhe dado, entre os dois oceanos, graças a um espírito de trabalho aguçado pela religião e estimulado pelo desejo de riqueza e conforto, bem como por instituições de governo a serviço da liberdade cidadã. Uma vez ocupada toda essa imensidão, ainda poderia se desenvolver a economia mediante um agressivo comércio internacional, que o nosso autor já registrava na sua primeira Démocratie en Amérique  [cf. Tocqueville, 1992: 19-59].
A União americana era forte também, no sentir de Tocqueville, por causa das suas instituições. A fórmula radicava na fundamentação daquelas na vontade popular. O espírito público da República americana alicerçava-se nos espíritos, nas convicções e sentimentos dos cidadãos. Aí radicava a sua tremenda força, num mundo cada vez mais agitado pelas guerras e os choques dos interesses individuais.
A propósito deste ponto, escrevia Tocqueville ao tratar das vantagens do sistema federativo, na primeira Démocratie en Amérique: "É incontestável, na realidade, que, nos Estados Unidos, o gosto e o costume do governo republicano nasceram nas comunas e no seio das assembléias provinciais. Numa pequena nação, como Connecticut, por exemplo, onde a grande questão política é a abertura de um canal ou o traçado de uma estrada, onde o Estado não tem nenhum exército, nem guerra a manter, e não poderia dar àqueles que o dirigem nem muita riqueza nem muita glória, nada de mais natural se pode imaginar, nem de mais apropriado à natureza das coisas, que a república. Ora, é esse mesmo espírito republicano, são esses costumes e hábitos de um povo livre que, depois de haver nascido e se ter desenvolvido nos diversos Estados, aplicam-se em seguida, sem dificuldade, ao conjunto do país. O espírito público da União não deixa de ser, ele próprio, de certa forma, uma síntese do patriotismo provinciano. Cada cidadão dos Estados Unidos transporta, por assim dizer, o interesse que lhe inspira sua pequena república ao amor da pátria comum. Defendendo a União, ele defende a prosperidade crescente do seu cantão, o direito de dirigir os seus negócios, a esperança de fazer prevalecer ali planos de melhoramentos que devem fazer com que ele próprio enriqueça: coisas, todas essas, que, de ordinário, tocam mais os homens que os interesses gerais do país e a glória da nação" [Tocqueville, 1992: 182-183].
A sensação de segurança e a certeza de que as instituições estavam a serviço da liberdade, da democracia e do bem-estar dos cidadãos, produziam, no sentir de Tocqueville, na sociedade americana, um sentimento de orgulho nacional e de superioridade em face de outros povos. "Em geral, as instituições democráticas - frisava o pensador francês -  dão aos homens uma ampla idéia de sua pátria e de si próprios. O americano sai de seu país com o coração trasbordante de orgulho. (...) Um americano fala todos os dias acerca da admirável igualdade que reina nos Estados Unidos; e ele orgulha-se, alto e bom som, de seu país (...)" [Tocqueville, 1992: 686-687].
Os riscos de desestabilização da sociedade americana eram situados por Tocqueville num futuro longínquo. Se crises de unidade a sociedade americana tivesse de sofrer, elas deveriam provir, pensava o nosso autor, de fatores internos não resolvidos, como a questão dos negros, que poderiam dar ensejo a sangrentos conflitos civis. O nosso autor antecipava-se, destarte, à guerra civil americana que eclodiria quarenta anos mais tarde [cf. Tocqueville, 1992: 359-393]. Mas, com certeza, os Estados Unidos da América não enfrentariam perigos vindos de fora durante muito tempo. Como tampouco sofreriam as agruras das revoluções, muito raras, aliás, no universo democrático tocquevilliano, segundo a acertada apreciação de Seymour Drescher [1992: 429-454].
B - Perspectivas estratégicas da América Latina.- Tocqueville teve sempre uma visão crítica do autoritarismo ibérico e da maneira como foi transplantado para a América Latina. Não podem progredir nações nas quais a liberdade foi sufocada pelo absolutismo, e nas que o sentimento do bem público é muito frágil. O clima social na América Latina, para o nosso autor, aproximava-se mais da barbárie do que da civilização. Parece como se os países desta parte do mundo voltassem à situação precária do estado de natureza. A causa responsável por essa desgraça era clara: o despotismo.  A secular falta de civismo ibero-americano às vezes era tanta, que o nosso autor chegava a admitir, por um momento, uma saída autoritária para a América Latina. Mas imediatamente descartava essa hipótese como falsa solução. Tocqueville acreditava no seguinte princípio: não pode haver redenção sob o jugo do absolutismo.
A propósito, escrevia o nosso autor, ao tratar da dinâmica que se desenvolve nas nações democráticas e da falta dela no mundo ibero-americano: "Estranha perceber as novas nações sul-americanas agitarem-se, há um quarto de século, em meio a revoluções que começam a cada instante, e, a cada dia, espera-se vê-las voltar ao que se chama o estado natural. Mas quem pode afirmar que essas revoluções não sejam atualmente o estado mais natural dos espanhóis da América do Sul? Nesses países, a sociedade debate-se no fundo de um abismo, do qual seus próprios esforços não são capazes de fazê-la sair. O povo que habita essa boa metade de um hemisfério parece obstinadamente apegado ao hábito de se dilacerar as entranhas; nada pode removê-lo. O esgotamento fá-lo cair um instante em repouso, e este lhe devolve rapidamente as forças. Quando considero este estado alterado de miséria e crimes, sou levado a crer que o despotismo lhe seria benfazejo. Mas estas duas palavras jamais poderiam unir-se no meu pensamento" [Tocqueville, 1992: 258-259].
Em que pese as críticas levantadas contra o absolutismo ibérico e a sua presença na América Latina, Tocqueville era otimista em relação ao futuro do nosso continente. Achava que o estado de atraso destes países seria transitório e que, assim como a Inglaterra tinha conseguido influenciar positivamente nos países da Europa Continental na superação das mazelas da pobreza e do autoritarismo, de forma semelhante os Estados Unidos conseguiriam, mais cedo ou mais tarde, influenciar beneficamente nos seus vizinhos do sul, fazendo surgir, neles, a valorização do trabalho, do desenvolvimento e da democracia, dinamizando os elementos de civilização cristã presentes nas tradições ibéricas. Antecipava o grande pensador francês a proposta da Aliança do Livre Comércio das Américas, que hoje os Estados Unidos tentam implementar na América Latina. Tocqueville talvez se possa aproximar da idéia de Nisbet [cf. 1969], no sentido de que as mudanças sociais não obedecem apenas a fatores endógenos, mas que são implementadas fundamentalmente por influências exógenas.
Vale a pena citar as palavras de Tocqueville a respeito: "Os espanhóis e os portugueses fundaram, na América do Sul, grandes colônias que posteriormente se transformaram em impérios. A guerra civil e o despotismo desolam, hoje em dia, aqueles vastos territórios. O movimento da população se detém e o reduzido número de homens que os habita, preocupado com o cuidado de se defender, apenas experimenta a necessidade de melhorar sua sorte. Mas não será possível ocorrer sempre assim. A Europa, entregue a si mesma, chegou pelos seus próprios esforços a vencer as trevas da Idade Média; a América do Sul é cristã como nós; tem as nossas leis, os nossos costumes; encerra todos os germes das civilizações que se desenvolveram no seio das nações européias e de seus rebentos; a América do Sul tem, mais do que nós, o nosso exemplo: por que há de permanecer bárbara para sempre?".
"Trata-se, evidentemente, neste caso, de uma questão de tempo: uma época mais ou menos distante chegará, em que os sul-americanos formarão nações florescentes e esclarecidas. (...) Não poderíamos duvidar que os americanos do norte da América venham a ser chamados a prover um dia às necessidades dos sul-americanos. A natureza os colocou perto deles. Forneceu-lhes, assim, grandes facilidades para conhecer e julgar as suas necessidades, a fim de estabelecer com aqueles povos relações permanentes e para se apoderar gradualmente do seu mercado. O comerciante dos Estados Unidos só poderia perder essas vantagens naturais se fosse muito inferior ao comerciante da Europa. Acontece que é, pelo contrário, superior a este em muitos pontos. Os americanos dos Estados Unidos já exercem grande influência moral sobre todos os povos do Novo Mundo. É deles que partem as luzes. Todas as nações que habitam o mesmo continente já se habituaram a considerá-los como os filhos mais esclarecidos, mais poderosos e mais ricos da grande família americana. Constantemente voltam os seus olhares para a União e, na medida do possível, assemelham-se aos povos que a compõem. Todos os dias vão buscar nos Estados Unidos doutrinas políticas e tomar-lhes leis emprestadas".
"Os americanos dos Estados Unidos estão, perante os povos da América do Sul, precisamente na mesma situação que seus pais ingleses perante os italianos, os espanhóis, os portugueses e todos aqueles povos da Europa que, sendo menos adiantados em civilização e indústria, recebem das suas mãos a maior parte dos objetos de consumo (...)" [Tocqueville, 1992: 471-473].
Poderia frisar, à luz dos ensinamentos de Tocqueville, que a nossa história, em Ibero-América, desenvolveu-se sempre entre dois extremos antidemocráticos: de um lado, o velho absolutismo ibérico e o seu herdeiro, o caudilhismo; de outro, o anarquismo revolucionário. A liberdade foi, nesse contexto de barbárie, a grande vítima. Alexis de Tocqueville mostrou que o caminho para iluminar a luta pela conquista da autêntica democracia nos nossos países deveria ser o da defesa da liberdade para todos os cidadãos. Após a queda do Muro de Berlim e, com ela, do modelo de democracia sem liberdade proposto por Marx, o modelo tocquevilliano de democracia liberal está em alta e é capaz de inspirar, ainda, os processos de renovação política e de reforma do Estado, em andamento no Brasil e no resto da América Latina [cf. Vélez, 1998].
A luta tocquevilliana em prol da defesa da liberdade, embora pareça aventura quixotesca no contexto de autoritarismo que ainda vigora nos costumes políticos latino-americanos, é ainda motivo inspirador de renovação nesta parte do Novo Mundo. Como frisa Paulo Kramer,  "(...) Para quem vive num país que ainda não conseguiu vencer as pragas da hipertrofia burocrática do Estado, do corporativismo clientelístico camuflado sob slogans de isonomia e equiparação e de uma democracia sempre ameaçada pelo patrimonialismo e pelo autoritarismo de todos os matizes na quase total ausência de lideranças lúcidas, legítimas e dignas de crédito, este me parece um combate digno de ser travado" [Kramer, 1998: 79].
Este cronista ao lado do busto de Tocqueville, na cidadezinha que leva o seu nome (Janeiro de 1996. Fotografia do saudoso jornalista José Carlos de Lery Guimarães)

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