Páginas

segunda-feira, 24 de junho de 2013

NOVOS TEMPOS NO BRASIL: POPULISMO EM FIM DE LINHA



Se vivo fosse, o general Golbery, o engenheiro da abertura nos anos oitenta do século passado, teria escrito no seu diário, após assistir pela TV às enormes manifestações dos jovens no Rio e em outras cidades brasileiras, neste final de outono e início de inverno de 2013: “é o fim do populismo”. Lembremos que o esclarecido militar escreveu no seu diário, após as passeatas e assembléias que se desenvolveram por todos os cantos do Brasil pedindo as Diretas Já: “é o fim do regime militar”. Só um louco poderia fazer ouvidos moucos diante dos milhões de pessoas protestando nas ruas, de forma pacífica, como tem acontecido nas últimas semanas pelo país afora. O Brasil custa a acordar. Mas, quando acorda, vira gigante que deixa no ar as suas mensagens, esquecidas pelos políticos e pela burocracia governamental. Aconteceu isso no movimento das “Diretas Já” (nos anos oitenta), nas manifestações populares que colocaram para fora o corrupto governo Collor e sua gangue (nos anos noventa). E está acontecendo a mesma coisa neste movimento pacífico de jovens de classe média, que percorrem alegremente praças e avenidas das cidades brasileiras, portando mensagens que, segundo os manifestantes, permanecem distantes dos partidos políticos. Manifestações multitudinárias que se caracterizam pela tranqüilidade e que terminam levando às ruas a pessoas de todas as idades. É importante e essencial para a sobrevivência de quem faz política ter o esclarecimento necessário para escutar a mensagem das ruas. O que é que a sociedade brasileira tem a dizer nas suas passeatas?



Os novos "caras pintadas" se organizaram nas redes sociais para mostrar ao governo que nem tudo está aparelhado pelos petralhas neste país. Gilberto Carvalho, no início do ano, dizia que "o bicho vai pegar". E está pegando. Só que está pegando no pé de quem esperava se beneficiar espertamente com a força das ruas e dos movimentos sociais. Militantes de partidos de esquerda e alguns sindicalistas simpáticos ao governo tentaram se somar à onda cívica, mas foram colocados para fora como oportunistas. Uma minoria de alucinados, que a polícia está identificando e prendendo, tentou desmoralizar com a sua barbárie a pacífica manifestação do milhão e meio de brasileiros que saíram às ruas. Mas foram identificados e isolados. São lamentáveis as cenas de vandalismo que essa minoria protagonizou. Contudo, isso não conseguiu silenciar as legítimas reivindicações dos manifestantes. O movimento ficou fora do controle dos estrategistas do governo e está dando ensejo às reivindicações da classe média, esquecida pelo Palácio do Planalto, do alto da prepotência de um partido que imaginou ter carta branca, ao longo destes dez anos, para colocar o partido acima do Brasil.



A voz das ruas, explicitada nos cartazes e na alegre voz dos manifestantes, tem deixado clara a sua mensagem. Chega de “bolsa-tudo-que-é-coisa” paga sem transparência com o dinheiro do contribuinte! Chega de corrupção! Chega de vigarice de políticos profissionais que não representam os interesses do eleitor, mas que se beneficiam com o dinheiro público! Chega de gastança federal, estadual e municipal com essas obras para eventos esportivos que nunca acabam e que custam cada vez mais! Chega de péssimos serviços públicos de transporte, educação, segurança pública, saneamento e saúde! Chega de um regime tributário injusto, que penaliza os que trabalham e criam empregos! “Chega de pão e circo"! Assim rezava o cartaz de um jovem manifestante em Belo Horizonte. Chega das tentativas do partido do governo para tentar inviabilizar a atividade do Ministério Público, na vergonhosa Proposta de Emenda Constitucional 37! Essas parecem ser as principais reivindicações. Certamente são lamentáveis os atos de vandalismo, causados por baderneiros infiltrados, que estão sendo enquadrados pelas autoridades. São lamentáveis, também, os excessos das forças policiais em algumas cidades. Mas as manifestações massivas estão aí e, certamente, conduzirão a mudanças profundas na política brasileira. Após este movimento de fim de outono o Brasil não será mais o mesmo.



Para além das reivindicações de serviços públicos de qualidade, a voz dos manifestantes explicitou um grito de patriotismo, que ficou preso nas gargantas dos cidadãos ao longo destes anos de cinismo oficial. “O meu partido é o Brasil”, rezava o cartaz de um jovem manifestante. O entusiástico coro dos que cantavam o Hino Nacional contrastava com o silêncio perplexo dos políticos que foram surpreendidos com a manifestação cívica das ruas. A classe média tornou-se porta-voz desse grito engasgado que clama por decência e que apregoa a volta aos valores do patriotismo, esquecido nas negociatas de políticos com empreiteiras e de governantes corruptos que se vangloriam dos seus malfeitos e que, cinicamente, reconduzem à vida pública, figuras condenadas pela Justiça. A era do lulopetismo, contaminada pelo modelo da antiética do herói sem nenhum caráter, foi colocada no pelourinho da crítica cidadã. Os jovens manifestantes querem sentir orgulho do seu país. Essa classe média, vilipendiada por intelectuais chapa-branca como refém do autoritarismo e do atraso, saiu às ruas apregoando o seu orgulho de ser brasileira.



Muita coisa deverá ser feita no âmbito do Estado, para colocar em sintonia a voz das ruas com as instituições republicanas. Quem se recusar a fazê-lo, colherá resultados negativos nas próximas eleições. A primeira coisa é renovar a representação. A reforma política é essencial e deve ser colocada em pauta. Sem a esperteza gramsciana de dirigir todo o esforço para fazer do partido do governo o ator hegemônico da vida republicana.


segunda-feira, 10 de junho de 2013

RAFAEL TOBIAS DE AGUIAR E A REVOLUÇÃO PAULISTA DE 1842



Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar.
Neste breve comentário queremos salientar as idéias básicas que empolgaram a geração liberal que participou da Revolução Paulista de 1842, cujos inspiradores foram dois vultos da nossa história política: o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar (1794–1857) e o ex-regente Diogo Antônio Feijó (1784-1843). Centraremos a nossa exposição na figura de Rafael Tobias de Aguiar, o ilustre sorocabano, que representou a materialização do ideal político liberal, no esforço por fazer surgir instituições a serviço do homem e da sociedade e por evitar que elas se tornassem pura maquinaria burocrática, fechada em si mesma e despótica.

Impõe-se, em primeiro lugar, uma referência às origens do Estado luso-brasileiro, para situar, nesse contexto, o papel representado pelos ideais políticos de Rafael Tobias de Aguiar e a sua geração.

1 – Pano de fundo da formação política brasileira: o Estado Patrimonial. Segundo frisou Max Weber[1] (1864-1920), nos países em que vingou uma experiência feudal completa, como na Inglaterra, o Estado moderno surgiu de forma desconcentrada. A manifestação dessa desconcentração do poder do Estado é o regime de Monarquia Constitucional imperante nas Ilhas Britânicas desde a Revolução Gloriosa de 1688. Pelo contrário, nos países onde a organização feudal não foi forte, como no caso da Espanha e de Portugal, o Estado moderno consolidou-se como poder concentrado em mãos do monarca, dado ensejo, assim, à “organização estatal patrimonial”, cujas características essenciais são as seguintes: em primeiro lugar, o poder político é exercido como uma forma de dominação tradicional, alicerçada não no consenso da comunidade, mas num arcabouço de tradições (de tipo religioso, como era a feição da tradicional monarquia portuguesa, ou de caráter cientificista, como aconteceu no “despotismo esclarecido” ibérico); em segundo lugar, o poder político é exercido pelo monarca não como instância pública, mas como se fosse propriedade patrimonial familiar; em terceiro lugar, desenvolve-se, no seio desse Estado, um grande aparelho burocrático, que serve como apoio legitimador que possibilita a cooptação, pelo Estado, dos estratos mais baixos da população, para compensar a ausência de consenso de parte da Nação.[2]

Expressando o caráter autoritário da organização estatal patrimonial, ou do patrimonialismo português, que marcou com idênticas características a formação do Estado no Brasil, devido à continuidade histórica entre os dois, frisa Raimundo Faoro: “O grupo dirigente não exerce o poder em nome da maioria mediante delegação ou inspirado pela confiança que do povo, como entidade global, se irradia. É a própria soberania que se enquista, impenetrável e superior, numa camada restrita, ignorante do dogma do predomínio da maioria (...). A maioria exerce o governo em nome próprio, não se socorre da nação para justificar o poder, ou para legitimá-lo jurídica e moralmente”.[3]

Na segunda metade do século XVIII, sob o Marquês de Pombal (1699-1782), moderniza-se a estrutura do Estado em Portugal, ao ser substituída a tradição religiosa pela ciência, como sustentáculo do poder político. Dois elementos vieram configurar o patrimonialismo modernizador de inspiração pombalina: a – a crença de que a ciência (entendida como sinônimo de ciência aplicada) é o meio hábil para a conquista da riqueza; b – a suposição de que a ciência “não corresponde apenas ao processo adequado de gerir e explorar os recursos disponíveis, mas igualmente de inspirar a ação do governo (política) e as relações entre os homens (moral)”.[4]

Em que pese o caráter modernizador da reforma pombalina, em nada modificou o esquema concentrado do poder patrimonial; não surgira, então, da queda do absolutismo teocrático um regime de democracia representativa, como tinha acontecido na Inglaterra após a Revolução Gloriosa de 1688. Apareceu, assim, como alternativa modernizadora, no seio da cultura lusa, o despotismo ilustrado ou patrimonialismo modernizador, que exerceu forte influxo no desenvolvimento do Estado no Brasil.

Antônio Paim salienta que as idéias fundamentais do patrimonialismo modernizador manifestaram-se, ao longo do Império, no Brasil, em primeiro lugar através do radicalismo liberal de frei Caneca (1774-1825), que sustentava poder-se organizar a sociedade em bases puramente racionais. Esse intento modernizador, no entanto, colidiu frontalmente com a estrutura patrimonial de cunho tradicional do Império, e desapareceu depois da morte, por fuzilamento, do frade carmelita. Em segundo lugar, o patrimonialismo modernizador manifestou-se na criação da Real Academia Militar (1810), cujo artífice foi um ex-aluno da Universidade pombalina: o conde de Linhares, dom Rodrigo de Souza Coutinho (1745-1812); a finalidade da Academia consistia em garantir a formação científica de oficiais do exército e engenheiros. “O currículo da Academia Militar – escreve Antônio Paim – e, através dele o ideário pombalino seria preservado ao longo do Império. Outras influências se fizeram presentes, sobretudo nas Faculdades de Direito e Medicina, como de resto na esfera política. Contudo, no estabelecimento que daria origem à Escola Politécnica mantinha-se o culto da ciência na mesma situação configurada pelo Marquês de Pombal, isto é,  nutrindo a suposição de que é competente em todas as esferas da vida social”.[5]

A experiência parlamentarista, ao longo do Império, permitiu uma desconcentração do poder patrimonial que, de outra parte, deitava profundas raízes na burocracia crescente, sendo a instituição da Guarda Nacional um dos elos fundamentais.[6] Coube à elite liberal que inspirou as instituições políticas do Império a incumbência de “apresentar – segundo afirma Vicente Barretto – as duas dimensões características da cultura política do século XVIII: o cientificismo e a identificação com as teses básicas do liberalismo político”.[7] Essa geração esteve integrada por espíritos da talha dos irmãos José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1776-1844) e Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva (1773-1845), bem como por pensadores da altura de Silvestre Pinheiro Ferreira ((1769-1846). A geração de Diogo Antônio Feijó (1784-1843), Francisco de Paula Souza (1791-1852) e o próprio brigadeiro Tobias foi a legítima herdeira dessa tradição liberal, que deitou profundas raízes na Província de São Paulo e que caracterizaremos a seguir.

Podemos salientar, da seguinte forma, os traços fundamentais da ideologia política que inspirou a essa primeira geração de intelectuais liberais no Brasil, formados no contexto cientificista da Universidade pombalina: 1 - Valorização da ciência como instrumento para a organização do Estado e da economia. 2 – Defesa da liberdade de comércio e rejeição às leis que restringissem a liberdade dos proprietários. 3 – Convicção de que os destinos do Brasil e de Portugal estavam inseparavelmente identificados e de que era preciso fortalecer o poder central para a construção de um grande império. 4 – Convicção de que a política deveria ser a atividade própria de uma elite de sangue e de dinheiro. 5 – Convicção da importância do papel do Estado como garantia dos direitos individuais.[8]

Vicente Barretto salientou que a organização do Estado como criador “das condições para o aperfeiçoamento individual” foi uma das notas do liberalismo luso-brasileiro, derivada da não assimilação da riqueza e da opulência por parte do indivíduo, em decorrência do conceito negativo existente em relação a eles no seio da cultura católica. Assim, frisa o citado autor que “(...) a acumulação de riquezas seria, para a cultura política luso-brasileira, uma função do Estado que passa então a exercer o papel de protetor da sociedade (...). A preocupação dominante encontrada no Iluminismo luso-brasileiro será, portanto, a união da ciência e da técnica para o fortalecimento da nação. Por essa razão, a cultura transmitida pela Universidade pombalina serviu ao seu momento histórico. Tratava-se de construir um Estado nacional forte e rico e, para isso, tornava-se necessário o domínio da natureza e o aperfeiçoamento das técnicas de produção (...)”.[9]

Em que pese o fato de essa valorização do Estado por parte da elite liberal ter reforçado, parcialmente, o centralismo, existia, contudo, a convicção de que era necessário garantir também a desconcentração do poder mediante o funcionamento do regime parlamentar, que possibilitasse a participação dos proprietários na condução do aparelho burocrático. Assim, a primeira geração liberal lutou tanto contra o radicalismo liberal que apelava para o governo das assembléias, no molde das repúblicas hispano-americanas e que implicava numa perda de força do Estado, quanto contra a tendência burocrática do estatismo luso que, ao desconhecer qualquer valor à representação política, pretendia tornar a sociedade peça totalmente passiva frente ao Estado todo-poderoso.

“Neste Estado maximizado – frisa Vicente Barretto – a representação política, cerne de toda a doutrina liberal, foi elaborada de forma a assegurar o funcionamento das câmaras como instrumento de fortalecimento do Estado. Os proprietários são as grandes elites e os grandes eleitores desta sociedade (...)”.[10]

2 – Rafael Tobias de Aguiar e os ideais liberais da Revolução de 1842. A geração de homens públicos a que pertenceu Rafael Tobias de Aguiar herdou esses ideais de liberalismo moderado, sensível, de um lado, à necessidade de construir um Estado forte que garantisse a riqueza da nação e, de outro, plenamente convencida de que era necessário defender o governo representativo como forma de possibilitar a participação dos proprietários na vida política. Com a mesma força com que eles se opuseram às tentativas de desagregação do Império do Brasil (exemplo disso foi a enérgica atitude do regente Feijó em 1835-1837), combateram as pretensões burocratizantes que buscavam esvaziar o sistema representativo e a iniciativa provincial (a participação de Feijó e do brigadeiro Tobias na Revolução Liberal de 1842 inscreveu-se nesse contexto de luta contra um burocrata imperial, como o baiano José da Costa Carvalho, Barão de Monte Alegre, que tinha sido colocado pelos conservadores da Corte à cabeça do governo provincial, para pôr em execução medidas consideradas lesivas aos interesses paulistas).

O levante sorocabano foi motivado pela tentativa de fazer prevalecer o poder central sobre o governo representativo. A respeito, frisa Fernando Henrique Cardoso: “(...) O movimento de Sorocaba tinha sido ostensivamente provocado por três medidas consideradas inconstitucionais, a saber, a lei de 3 de dezembro de 1841, que reformou o Código de Processo, a nova criação do Conselho de Estado e, enfim, a dissolução prévia da Câmara eleita sob o patrocínio do Ministério da Maioridade. Completando a obra inaugurada pela lei interpretativa do Ato Adicional, inserem-se elas na vasta trama da reação monárquica a que deveriam ser naturalmente infensos os liberais  mais ortodoxos”.[11]

Bem significativa da reivindicação liberal da Assembléia Provincial de São Paulo, foi a Representação de 29 de janeiro de 1842, enviada a Sua Majestade Imperial. Diz assim o texto desse documento: “A Assembléia Provincial jubila ao lembrar-se que, no Congresso Português (de 1822) foi dentre os deputados paulistas, honra lhes seja feita, que partiu pela primeira vez o trovão da enérgica indignação contra os vilipêndios, a partilha leonina da liberdade, que ao Brasil queria impor esse injusto e indiscreto Congresso. Exulta ainda hoje a Assembléia Provincial quando aponta para o Ipiranga, aonde se proclamou a Independência do Brasil em aliança com a liberdade”.[12]

Como se pode observar na rica caracterização da personalidade e da ação política do Brigadeiro Tobias feita por David Carneiro, o ilustre sorocabano materializou admiravelmente os princípios que animaram a geração liberal de 1842. Os seus relatórios escritos quando desempenhou as funções de Presidente da Província de São Paulo (1831-1835; 1840) testemunham essa orientação, bem como o seu elevado conceito da função pública. Neles ressalta a preocupação do estadista que concebe o Estado como posto ao serviço do bem-estar da comunidade, particularmente mediante o impulso que se deve dar à indústria, à educação, às vias públicas, ao comércio, ao desenvolvimento da saúde pública, à incorporação do índio à civilização. Rafael Tobias de Aguiar fundou o corpo de polícia da Província de São Paulo em 1831, ciente de que era dever do Estado zelar pela honra, vida e bens dos cidadãos. Nos relatórios do Brigadeiro pode-se observar, também, o espírito do liberal sensível em face da questão da escravatura e que buscava garantir o controle ao excessivo centralismo do poder, mediante o exercício da representação, através das Assembléias Provinciais.

David Carneiro ilustrou, também, a figura humana de Tobias de Aguiar, salientando o seu relacionamento amoroso com Dona Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867) Marquesa de Santos, sua parenta distante, de quem era amigo de longa data e com quem terminou casando em 1842. O namoro entre os dois começou em meados da década de 1830 e se manteve em discreto contexto, dadas as circunstâncias agitadas que rodearam o fim do relacionamento de Dona Domitila com o Imperador Dom Pedro I. O casamento, “autorizado pelo bispo” como destaca o biógrafo mencionado, inscreveu-se no contexto dos relacionamentos amorosos de dois aristocratas na primeira metade do século XIX, sem que estivessem ausentes aventuras românticas como as que rodearam a fuga apressada do Brigadeiro para o Sul do Brasil, quando foi debelada a conspiração sorocabana pelo governo imperial. Impossibilitada de acompanhar o marido com quem acabava de se casar, Dona Domitila exerceu a sua influência perante a Corte, a fim de que fosse dado tratamento mais humano ao ilustre prisioneiro, recolhido inicialmente pelos agentes imperiais na prisão de Laje, o que muito afetou ao Brigadeiro na sua saúde.  Finalmente seria concedida a clemência pelo Imperador Dom Pedro II, levando em consideração os importantes serviços prestados pelo Brigadeiro, nas funções públicas, à sua Província natal.

O relacionamento do Brigadeiro com a Marquesa de Santos lembra o de Madame de Staël (1766-1817) com o oficial suíço John Rocca (1788-1818), iniciado em 1810, já em idade madura, após as inúmeras aventuras amorosas da notável escritora, tendo sido um dos seus amantes o duque de Palmela, Dom Pedro de Souza Holstein (1781-1850).[13]

Acerca do relacionamento amoroso entre o Brigadeiro Tobias e a sua prima distante, escreve David Carneiro: “Escragnolle Doria nos fala das simpatias recíprocas já anteriores à fama aos escândalos e aos títulos dessa prima: A prima Domitila (ou mais cerimoniosamente, a Senhora marquesa de Santos) morava nas vizinhanças do primo Rafael. E logo onde: na rua do Ipiranga, nome evocativo para a parenta em oitavo grau. Chama o mesmo autor a atenção para o fato de que o parentesco, nesse grau ou em situação mais próxima, seria outrora fatal para corações de primos, e nos corações de ambos se tinham abrigado amores ardidos que a situação dela fazia voltar à tona, sobretudo porque a posição do primo no Conselho da Província, antes de ser escolhido e nomeado para a presidência de São Paulo, facilitaria a multiplicação de atenções, que terminariam por frutificar em amores, conforme aponta Doria: Não só árvores frutificam, também amores. Provam-no os primos do Ipiranga, embora livres, sem mudar, uma a sua viuvez e o outro o seu celibato. Ele poderia casar-se. Era solteiro e livre. Ela viúva de um marido que havia tentado assassiná-la a faca, e de quem tinha um filho.[14]

O levante sorocabano de 17 de Maio de 1842 terminou guindado o Brigadeiro Tobias à dignidade de Presidente Interino da Província de São Paulo. O Brigadeiro aceitou o encargo, ciente dos riscos que corria em face da dura resposta dada, sob o comando de Caxias, pelo governo imperial. Mas Tobias era consciente, também, de que se tratava de uma luta para defender a liberdade em face dos que, guindados às altas esferas do poder, colocavam-na em risco, como era o caso do Presidente da Província, o baiano barão de Monte Alegre. A respeito, o historiador A. Almeida, escreve, referindo-se ao momento em que o Brigadeiro Tobias aceitou assumir a presidência da Província de S. Paulo: “Por pequena e acanhada que fosse, em cima de mal cheirosas prisões, a sala da Câmara de sua terra parecia, contudo, a Tobias, que estava no palácio, a assinar a terceira posse de presidente, e que lá em baixo, no pátio do colégio, o corpo de polícia que ele fundara em 1831 dava as descargas rituais. Abriu os olhos como depois de um sonho. A Guarda Nacional estava salvando a aclamação do Presidente  revolucionário... Foi quando, emocionado, assomou à sacada e deu, em voz alterada, os vivas menos extremistas que jamais se ouviram: Viva nossa Santa Religião! Viva S. M. o Imperador! Viva a Constituição! A constitucionalidade paulista, que vinha marcada por um levante.  Não seria a primeira vez, nem a última. Talvez contingências do processo histórico...”[15]

O levante de Sorocaba não foi propriamente um grito de guerra que pusesse em perigo as instituições imperiais. Os revolucionários sabiam disso. Decidiram, contudo, peitar o governo central que, em Monte Alegre, presidente da Província imposto pelos conservadores, representava a subserviência de todos a um poder com tintes discricionários. A respeito da fraqueza tática dos revolucionários, escreve David Carneiro: “Felizmente para o Brasil do Segundo Reinado, Rafael Tobias não era um excelente soldado, um homem que pudesse enfrentar Caxias e com este medir-se como igual, em termos militares. E mais, sob o comando de Rafael Tobias não havia senão um ou dois oficiais que, em seu passado, tivessem tido seu batismo de fogo e cheirado a pólvora. Tais razões bastariam para prever o desastre que seria, militarmente falando, o encontro que se esperava, não por falta do valor que não foi posto à prova, mas por falta de experiência e conhecimentos, quer táticos, quer estratégicos”.[16]

BIBLIOGRAFIA

ALEIXO Irmão, J. “As milícias (síntese) – O Brigadeiro Tobias e suas patentes. Data do seu nascimento”, in: Jornal Cruzeiro do Sul – Suplemento Brigadeiro Tobias. Sorocaba, 15 de Novembro de 1980, p. 20-21.

ALMEIDA, Aluísio de. A Revolução Liberal de 1842. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944.

BARRETTO, Vicente. Ideologia e política no pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva, Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

CARDOSO, Fernando Henrique. “As Províncias do Sul”, in: HOLANDA, Sérgio Buarque de (organizador), História geral da civilização brasileira. Vol. II: O Brasil Monárquico, São Paulo: DIFEL, 1972, p. 464 seg.

CARNEIRO, David. A vida do brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar e sua atuação política. Sorocaba: Suplemento Brigadeiro Tobias, 15 de Novembro de 1980.

FAORO, Raimundo. Os donos do poder – Formação do patronato político brasileiro. 5ª edição. Porto Alegre: Globo, 1979, 2 vol.

PAIM, Antônio, A querela do estatismo, 1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

PEÇANHA, João Luiz G. “Tobias e sua época”, in: jornal Cruzeiro do Sul, Suplemento Brigadeiro Tobias, Sorocaba, 15 de novembro de 1980, p. 21.

URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial – A burocratização do Estado Patrimonial brasileiro no século XIX, Rio de Janeiro – São Paulo: DIFEL, 1978.

VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. O liberalismo francês: a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil. Juiz de Fora: Edição Eletrônica do Instituto de Humanidades, 2002. (WWW.institutodehumanidades.com.br).

WEBER, Max. Economía y Sociedad. (Tradução ao espanhol de José Medina Echavarría et alii). 1ª edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1944, 4 volumes.


[1] Cf. WEBER, Max. Economía y Sociedad. (Tradução ao espanhol de José Medina Echavarría et alii). 1ª edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1944, vol. IV, p. 139-140.

[2] Cf. FAORO, Raimundo. Os donos do poder – Formação do patronato político brasileiro. 5{ edição. Porto Alegre: Globo, 1979, vol. I, p.  28-29. Cf. também: PAIM, Antônio, A querela do estatismo, 1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 3-14.

[3] FAORO, Raimundo. Os donos do poder, ob. cit., vol. I, p. 88-89.  

[4] PAIM, Antônio. A querela do estatismo, ob. cit., p. 24-25.

[5] PAIM, Antônio. A querela do estatismo, ob. cit., p. 29.

[6] Cf. URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial – A burocratização do Estado Patrimonial brasileiro no século XIX, Rio de Janeiro – São Paulo: DIFEL, 1978.

[7] BARRETTO, Vicente. Ideologia e política no pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva, Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 13.

[8] Cf. BARRETTO, Vicente. Ideologia e política no pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva, ob. cit., p. 87-90.

[9] BARRETTO, Vicente, Ideologia e política no pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva, ob. cit., p. 90.

[10] BARRETTO, Vicente, Ideologia e política no pensamento de José Bonifácio de Andrada e Silva, ob. cit., p. 132.

[11] CARDOSO, Fernando Henrique. “As Províncias do Sul”, in: HOLANDA, Sérgio Buarque de (organizador), História geral da civilização brasileira. Vol. II: O Brasil Monárquico, São Paulo: DIFEL, 1972, p. 464.

[12] Texto citado por Fernando Henrique CARDOSO, in: “As Províncias do Sul”, ob. cit., p. 465.

[13] Acerca da vida de Madame de Staël, cf. da nossa autoria: O liberalismo francês: a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil. Juiz de Fora: Edição Eletrônica do Instituto de Humanidades, 2002. (WWW.institutodehumanidades.com.br).

[14] CARNEIRO, David. A vida do brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar e sua atuação política. Sorocaba: Suplemento Brigadeiro Tobias, 15 de Novembro de 1980, p. 11. O historiador cita a obra de DORIA, Escragnole. Brasileiros ilustres. Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar. Rio de Janeiro: Revista da Semana, s.d.

[15] ALMEIDA, Aluísio de. A Revolução Liberal de 1842. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944, p. 8. Cit. por CARNEIRO, David, in: A vida do brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar e sua atuação política. Ob. cit., p. 14.


[16] CARNEIRO, David. A vida do brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar e sua atuação política, ob. cit., p. 14.

sábado, 8 de junho de 2013

PÁTRIA MADRASTA VIL - O QUE FALTOU NO BRASIL






Amigos, gostaria de divulgar o texto que foi recentemente premiado pela Unesco, no concurso cujo tema era: "Como vencer a pobreza e a desigualdade". A vencedora foi Clarice Zeitel Vianna Silva, aluna da UFRJ. 

O texto vale como reivindicação daquilo que tem faltado no planos do lulopetismo: garantir, para todos os brasileiros, condições para o exercício da liberdade. As políticas oficiais acabaram sendo, apenas, funis para perpetuar a dependência dos beneficiários em face do Estado patrimonial. E a sociedade ficou presa ao marasmo causado pela violência, a corrupção, o cinismo e a impunidade que dominam nestes perigosos tempos. 

Como diria Dom Quixote, nunca é tarde para se levantar e lutar contra esses "malandrines e follones". E uma boa causa é passarmos a lutar por aquilo que seria necessário para que todos os brasileiros tivessem acesso à liberdade e à cidadania.



PÁTRIA MADRASTA VIL


Onde já se viu tanto excesso de falta?
Abundância de inexistência...
Exagero de escassez...
Contraditórios?
Então aí está!
O novo nome do nosso país!
Não pode haver sinônimo melhor para BRASIL.
Porque o Brasil nada mais é do que o excesso de falta de caráter, a abundância de inexistência de solidariedade, o exagero de escassez de responsabilidade.
O Brasil nada mais é do que uma combinação mal engendrada - e friamente sistematizada - de contradições.
Há quem diga que "dos filhos deste solo és mãe gentil", mas eu digo que não é gentil e, muito menos, mãe.
Pela definição que eu conheço de MÃE, o Brasil, está mais para madrasta vil.
A minha mãe não "tapa o sol com a peneira".
Não me daria, por exemplo, um lugar na universidade sem ter-me dado uma bela formação básica.
E mesmo há 200 anos atrás não me aboliria da escravidão se soubesse que me restaria a liberdade apenas para morrer de fome. Porque a minha mãe não iria querer me enganar, iludir.
Ela me daria um verdadeiro Pacote que fosse efetivo na resolução do problema, e que contivesse educação + liberdade + igualdade. Ela sabe que de nada me adianta ter educação pela metade, ou tê-la aprisionada pela falta de oportunidade, pela falta de escolha, acorrentada pela minha voz-nada-ativa.
A minha mãe sabe que eu só vou crescer se a minha educação gerar liberdade e esta, por fim, igualdade.
Uma segue a outra...
Sem nenhuma contradição!
É disso que o Brasil precisa: mudanças estruturais, revolucionárias, que quebrem esse sistema-esquema social montado; mudanças que não sejam hipócritas, mudanças que transformem!
A mudança que nada muda é só mais uma contradição.
Os governantes (às vezes) dão uns peixinhos, mas não ensinam a pescar.
E a educação libertadora entra aí.
O povo está tão paralisado pela ignorância que não sabe a que tem direito.
Não aprendeu o que é ser cidadão.
Porém, ainda nos falta um fator fundamental para o alcance da igualdade: nossa participação efetiva; as mudanças dentro do corpo burocrático do Estado não modificam a estrutura.
As classes média e alta - tão confortavelmente situadas na pirâmide social - terão que fazer mais do que reclamar (o que só serve mesmo para aliviar nossa culpa)...
Mas estão elas preparadas para isso?
Eu acredito profundamente que só uma revolução estrutural, feita de dentro pra fora e que não exclua nada nem ninguém de seus efeitos, possa acabar com a pobreza e desigualdade no Brasil.
Afinal, de que serve um governo que não administra?
De que serve uma mãe que não afaga?
E, finalmente, de que serve um Homem que não se posiciona?
Talvez o sentido de nossa própria existência esteja ligado, justamente, a um posicionamento perante o mundo como um todo. Sem egoísmo.
Cada um por todos.
Algumas perguntas, quando auto-indagadas, se tornam elucidativas.
Pergunte-se: quero ser pobre no Brasil?
Filho de uma mãe gentil ou de uma madrasta vil?
Ser tratado como cidadão ou excluído?
Como gente... Ou como bicho?



Premiada pela
UNESCO, Clarice Zeitel Vianna Silva, 26, aluna que termina Faculdade de Direito da UFRJ em julho, concorreu com outros 50 mil estudantes universitários. Ela acaba de voltar de Paris, onde recebeu um prêmio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) por uma redação sobre "Como vencer a pobreza e a desigualdade". 

A redação de Clarice intitulada: "Pátria Madrasta Vil" foi incluída num livro, com outros cem textos selecionados no concurso. A publicação está disponível no site da Biblioteca Virtual da UNESCO.