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segunda-feira, 24 de maio de 2010

IMMANUEL KANT (1724-1804)



Com Immanuel Kant, a filosofia moderna atinge a sua maturidade. O grande pensador alemão efetuou a síntese mais completa das tendências gnosiológicas que se desenhavam desde o Renascimento, colocando-as em diálogo permanente com a ciência moderna. Um sistematizador à maneira de Aristóteles: esse seria o retrato filosófico do nosso pensador.

Para entendermos adequadamente o alcance das afirmações de Kant, precisamos situá-lo no contexto do Iluminismo. Este percorreu duas etapas: a primeira, ligada à concepção absolutista da razão, encontra a capacidade de organizar racionalmente os dados da experiência num princípio único, identificado com o Soberano Absoluto. Seria o momento do absolutismo, personificado na figura de Luís XIV (ao longo do século XVII). Entre 1680 e 1715 este modelo entrou em crise, no momento identificado por Paul Hazard como “crise da consciência européia” [cf. Hazard, La crise de la conscience européenne, Paris: Fayard, 1961].

Na segunda etapa do Iluminismo, encontramos a razão sendo apropriada pelos membros da sociedade; é a etapa correspondente às grandes revoluções do século XVIII, que culminam com a Revolução Francesa (1789). (É claro que este momento foi precedido, de forma pioneira, pela Gloriosa Revolução britânica de 1688). Kant faz parte desse espírito do tempo, que almeja encontrar uma forma de explicar a razão que pode ser apropriada por todos os seres humanos. Na tentativa em prol de identificar essa apropriação universal da razão, Kant se depara com a proposta da perspectiva transcendental formulada por Hume, e encontra que ela explica, de forma muito mais simples, a estrutura ontológica que dá sustentação ao nosso conhecimento, sem ter de atrelar a objetividade do mesmo a uma substância externa ou coisa em si. Ao sair do seu “sonho dogmático” (identificado com a metafísica de Leibniz), Kant exprime, de forma clara, a nova concepção universalista da razão e a põe em relação direta com a nova física formulada por Galileu e Newton, numa genial síntese entre as tendências libertárias presentes no século XVIII e o status atingido pelas ciências da Natureza, na teoria elaborada por Isaac Newton, que tinha se distanciado do ponto de vista dinâmico e que se atrelou definitivamente ao ponto de vista cinemático, ligado à apreensão dos fenômenos, sem preocupações metafísicas. Nessa empreitada, o pensador alemão terminou sistematizando a perspectiva transcendental, que tinha sido postulada por David Hume.

Obras: 

Único argumento possível para uma demonstração da existência de Deus (1763).
Sonhos de um visionário, interpretados mediante os sonhos da metafísica (1766).
Dissertação sobre a forma e os princípios do mundo sensível e do mundo inteligível (1770).
Crítica da razão pura – Primeira edição (1781). Segunda edição (1787).
Prolegômenos a qualquer metafísica futura que possa vir a ser considerada como ciência (1783).
Fundamentos da metafísica dos costumes (1785).
Crítica da razão prática (1788).
Crítica da faculdade de julgar (1790).
A religião dentro dos limites da simples razão (1793).
A paz perpétua (1795).
O conflito das faculdades (1798).
Antropologia desde um ponto de vista pragmático (1798).

O pensamento de Immanuel Kant pode ser sintetizado nos seguintes 10 pontos:

1 – O sentido do Iluminismo.- “O que é a Ilustração? É a saída do homem da sua menoridade, da qual ele mesmo é responsável. Menoridade, ou seja, incapacidade de se servir do seu entendimento sem a orientação de outrem, menoridade da qual ele mesmo é responsável, pois a causa reside não na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem para se servir dele sem a tutela de outrem. Sapere aude! Tem coragem para te servir do teu próprio entendimento! Essa é a divisa das Luzes!” [Kant, Immanuel. “Respuesta a la pregunta: Qué es la Ilustración?” In: Kant, Erhard, Freiherr von Moser, e outros. Qué es Ilustración?  - Estudo preliminar de Agapito Mestre; versão espanhola de Agapito Mestre e José Romagosa – 3ª. Edição, Madrid: Tecnos, 1993, p. 17].
2 - Kant marcou definitivamente os rumos da filosofia ocidental, desatrelando-a da metafísica e colocando-a, de maneira firme, no contexto da denominada perspectiva crítica ou transcendental. Não temos acesso à essência substancial das coisas, embora não possamos prescindir delas na elaboração do nosso conhecimento. Da realidade somente conhecemos o fenômeno, aquilo que se revela à nossa experiência. Não temos o condão mágico de enxergar a essência substancial das coisas. Elaboramos os nossos conhecimentos a partir do que dos objetos nos revelam as experiências sensoriais. Podemos nos elevar até as generalizações teóricas, partindo da experiência, mediante a organização dos dados fenomênicos com a ajuda das idéias puras do entendimento. Não criamos, portanto, a realidade. Apenas a formatamos, de acordo com a estrutura ontognosiológica da nossa razão.
3 - O nosso entendimento é apenas faculdade ordenadora do real. Com este princípio exposto na Crítica da Razão Pura, o filósofo de Königsberg dividiu, com Platão, o mérito de ter formulado uma das duas perspectivas filosóficas que balizam a filosofia ocidental: a crítica ou transcendental, sendo que o pensador grego sistematizou, notadamente no seu diálogo Fédon, a perspectiva denominada realista ou transcendente.
4 - A partir da perspectiva transcendental, Kant deu embasamento epistemológico à nova física de Newton. Podemos dizer que Kant tirou a ciência moderna da enrascada em que tinha sido colocada pela tentativa de explicação substancialista. Se, segundo é pressuposto por esta, nós enxergamos a essência da realidade, não se explica como, no que tange às teorias cosmológicas, a Humanidade embarcou durante séculos a fio (desde os Gregos até 1543, quando Copérnico formulou a hipótese heliocêntrica) na canoa furada do Cosmo geocêntrico. No contexto da explicação kantiana, a mudança de paradigma cosmológico é de fácil explicação: passou-se, com Newton, de uma apreciação do fenômeno a uma outra, mais compatível com a experiência e os dados matemáticos. Nada de dogmatismo realista. Instalou-se, na filosofia da ciência, uma saudável relatividade quanto à necessidade de consultar os dados da experiência, sempre passível, aliás, de novas representações. À luz da perspectiva kantiana, Karl Popper, no século XX, definiu a certeza científica como afirmação probabilística, capaz de ser refutada. Afirmações passíveis de serem discutidas pela comunidade científica e verificadas por ela, essas são as assertivas científicas. Longe ficaria o neokantismo do dogmatismo positivista, que pretenderá uma certeza dogmática para a ciência, a partir de fatos apreensíveis de uma vez para sempre.
5 - A herança kantiana foi definitiva, também, em dois outros terrenos: o da ética e o da política. No que tange ao primeiro campo, Kant formulou, pela primeira vez, uma moral racional, mediante a tradução, em rigorosos conceitos filosóficos, dos postulados religiosos em que até então se alicerçava a moral. Na sua Fundamentação da metafísica dos costumes, o mestre de Königsberg traduziu o cerne da moral judaico-cristã, o mandamento da caridade, neste imperativo categórico: “Age de tal forma que trates a pessoa humana sempre como fim e nunca como meio”. Tornou-se possível, assim, uma moral racional, que incorporou o rico legado da tradição judaico-cristã, compatibilizando-o com a tradição helenística que valoriza a razão. Já no que tange à política, o pensador alemão formulou, no seu opúsculo intitulado A paz perpétua, o que seria o princípio básico da moral pública, ou princípio da “transparência”, que reza assim: “Age sempre de tal forma que os motivos de tua ação possam ser divulgados aos quatro ventos”. Esse princípio tornou-se o centro irradiador de luz para a ação política, tanto no plano nacional quanto no terreno internacional. A melhor forma de manter a credibilidade de um governo é, à luz do princípio kantiano, mantendo a transparência perante a comunidade. E, no terreno internacional, a garantia da paz entre  as nações consiste em não esconder cartas na manga, explicitando, perante a comunidade dos povos, os móveis da ação dos Estados. Utopia? Talvez. Mas a aproximação desse ideal é a que, certamente, tem garantido os clarões de paz na noite dos conflitos. Mais uma vez, o genial pensamento do filósofo de Königsberg tornou-se semente fecunda da civilização ocidental, neste conturbado início de milênio.
6 – No que tange, especificamente, à Teoria do Conhecimento, Kant sistematizou a forma em que podemos efetivar juízos de validez universal. Enveredou pelo caminho que já tinha sido assinalado por Aristóteles: os nossos conhecimentos completos expressam-se em juízos e estes se traduzem na linguagem. Ora, quais seriam, nesta, os tipos de juízos (ou afirmações) possíveis?  - Esses juízos seriam de dois tipos: analíticos e sintéticos. Nos primeiros, o predicado já se encontra no sujeito, constituindo apenas uma explicitação tautológica. Quando digo, por exemplo: “O homem é um animal racional”, no sujeito (homem) já está contido o predicado (animal racional). A definição aristotélica seria, portanto, uma tautologia. Portanto, com juízos analíticos não aumento os meus conhecimentos. Restam os juízos sintéticos, aqueles nos quais o predicado não está contido no sujeito. Estes são de dois tipos: juízos sintéticos a-posteriori (referidos à experiência sensível, sempre individual e não generalizável, como quando afirmo: “o sorvete de morango está gostoso”), e juízos sintéticos a-priori (referidos à experiência – que nos fornece os objetos da intuição sensível em geral -, organizada a partir de categorias ou conceitos puros do entendimento e universalmente válidos para todos os sujeitos cognoscentes, como quando Newton afirma, no terceiro axioma da sua obra Philosophiae naturalis principia mathematica: “Toda ação é acompanhada de uma reação do mesmo tamanho e de direção oposta”).
7 – A partir da análise dos nossos juízos sintéticos a-priori, Kant deduz as categorias correspondentes a eles, no procedimento por ele identificado, na Crítica da Razão Pura, como “dedução transcendental das categorias”, na verdade, uma “indução” delas. Essa dedução é efetivada levando em consideração o seguinte princípio, explicitado nestes termos pelo próprio Kant: “Originam-se tantos conceitos puros do entendimento, referidos a-priori a objetos da intuição em geral, quantas [forem] as funções lógicas em todos os juízos possíveis que há na tábua [a seguir]; pois o entendimento esgota-se totalmente nessas funções e a sua capacidade mede-se totalmente por elas” [Crítica da Razão Pura, tradução de Manoela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Lisboa: Calouste Gulbenkian, 4ª edição, 1997, p. 110].
8 – Tábua dos Juízos sintéticos a-priori possíveis. A respeito, afirma Kant: “Se abstrairmos de todo o conteúdo de um juízo em geral e atendermos apenas à simples forma do entendimento, encontramos que nele a função do pensamento pode reduzir-se a quatro rubricas, cada uma das quais contém três momentos. Podem comodamente apresentar-se na seguinte tábua: 1. Quantidade dos juízos: Universais,  Particulares, Singulares; 2. Qualidade: Afirmativos, Negativos, Infinitos; 3. Relação: Categóricos, Hipotéticos, Disjuntivos; 4. Modalidade: Problemáticos, Assertóricos, Apodícticos”. [Crítica da Razão Pura, edição Gulbenkian, 1997, p. 103-104]. 
9 – Tábua das Categorias. A partir da Tábua dos Juízos sintéticos a-priori possíveis, Kant deduz (infere) a seguinte Tábua das Categorias (ou Conceitos Puros do Entendimento): “1. Da Quantidade: Unidade, Pluralidade, Totalidade; 2. Da Qualidade: Realidade, Negação, Limitação; 3. Da Relação: Inferência e subsistência (substantia et accidens), Causalidade e dependência (causa e efeito), Comunidade (ação recíproca entre o agente e o paciente). 4. Da Modalidade: Possibilidade – Impossibilidade, Existência – Não-existência, Necessidade – Contingência”. [Crítica da Razão Pura, edição Gulbenkian, 1997, p. 110-111]
10 – Partes da Crítica da Razão Pura: Kant dividiu a sua obra em três partes, consistentes: 1. na Estética Transcendental (onde trata acerca do modo em que os dados da experiência sensível são organizados, no espaço e no tempo, pelas Formas a-priori da sensibilidade, com o auxílio do Esquema); 2. na Analítica Transcendental (onde trata acerca do modo em que o Entendimento elabora os conceitos, a partir dos dados fenomênicos, com a finalidade de construir os Juízos sintéticos a-priori); 3. na Dialética Transcendental (onde analisa o “sonho da Razão”, consistente na atividade de elaborar juízos dialéticos sobre objetos puramente imaginários, elaborados a partir de conceitos não alicerçados diretamente na experiência. Esses objetos ideais seriam três: a imortalidade da alma, a ordem cósmica e a existência de Deus. Aqui ancoram as construções da Metafísica, bem como as várias representações da Arte e da Religião, que exprimem desiderata do sujeito pensante, mas não diretamente fenômenos correspondentes à experiência).

ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NA COLÔMBIA

 Os candidatos para as elleições de domingo (de esquerda para a direita): Antanas Mockus, Germán Vargas Lleras, Gustavo Petro, Rafael Pardo, Noemí Sanín e Juan Manuel Santos. (Fonte: El Colombiano, Medellín)

No próximo domingo, 30 de maio, os colombianos elegerão novo presidente. Seis são os candidatos: Juan Manuel Santos (59 anos, economista, ex-ministro da Defesa do atual governo, do Partido Uribista), Antanas Mockus (58 anos, ex-prefeito de Bogotá, filósofo e matemático, do Partido Verde), Noemi Sanín (61 anos, advogada e economista, ex-ministra das Relações Exteriores e diplomata, do Partido Conservador), Gustavo Petro (50 anos, economista, parlamentar, do Partido do Pólo Democrático), Germán Vargas Lleras (48 anos, advogado e cientista político, parlamentar, do Partido do Cambio Radical) e Rafael Pardo (57 anos, economista e especialista em relações internacionais, ex-ministro da Defesa, do Partido Liberal). Trata-se de uma nova geração de políticos com um variado leque de opções programáticas que vão desde o centro (Santos, Sanín, Vargas Lleras, Pardo), passando pela esquerda moderada (Mockus) e chegando até a esquerda socialista (Petro).

A campanha, em que pese a enorme popularidade do presidente Uribe (que tentou ver aprovada, em vão, a sua terceira candidatura ao poder), desenvolveu-se rigorosamente dentro dos marcos legais. A máxima autoridade eleitoral da Colômbia exerceu uma forte vigilância sobre os candidatos, de forma tal que se tornou praticamente impossível a figura do presidente-no-palanque, tão comum nos atuais momentos da política brasileira. As propostas dos candidatos foram amplamente discutidas em foros e debates pela mídia e em meios acadêmicos e populares. Os seis aspirantes à presidência deixaram claro que não aceitariam a ingerência de governos estrangeiros no atual pleito colombiano, fazendo frente, assim, às ameaças de intromissão de governantes inescrupulosos como Chávez (da Venezuela) e Corrêa (do Equador).

É muito significativa a campanha que ora termina, reveladora da maturidade democrática adquirida pelas instituições colombianas, que sobreviveram incólumes a quatro décadas de conflito civil. Não é à toa que a Colômbia tem sido tradicionalmente arrolada como uma das democracias mais estáveis da América Latina, em que pese as turbulências políticas e sociais enfrentadas pelo país, ao longo do século XX e no início deste milênio. Um dado curioso: apesar das crises da economia mundial, o país vizinho sempre se caracterizou por honrar os seus compromissos financeiros com os organismos internacionais e com os outros países. O governo da Colômbia jamais praticou o calote. Qual a razão disso? Muito simples: os ministros da Fazenda, tradicionalmente, são indicados pelo setor privado, no contexto da prática de “consertación”, tradicional à formulação das políticas econômicas na Colômbia. Ministro caloteiro será, inevitavelmente, empresário falido. Diferente do clima de festival de calotes que vigorou no cone sul do Continente, com exceção do Chile, ao longo das últimas décadas.

Na reta final da campanha aparecem como favoritos dois candidatos: Juan Manuel Santos e Antanas Mockus. O primeiro, segundo os institutos de pesquisa, apresenta um índice de 35% de intenção de votos, ao passo que o segundo aparece com 34%. Trata-se de um empate técnico, que deverá ser solucionado no segundo turno, que ocorrerá em 20 de Junho. Para este, os institutos de pesquisa projetam uma vitória apertada, por apenas um ponto, de Mockus (45%) sobre Santos (44%). Muitas emoções são esperadas para o segundo turno da eleição presidencial colombiana, na tentativa de seduzir o 7% de indecisos do primeiro turno, que certamente definirão a contenda eleitoral. Qualquer um que seja o vencedor, as opções da gestão pública no país vizinho não mudarão de forma radical. Tanto Mockus quanto Santos defendem a permanência das políticas que foram conhecidas como de “seguridad democrática”. Ambos os candidatos prometeram continuar com o combate firme contra os narcoterroristas das FARC, bem como contra os paramilitares. Ambos prometeram continuar a zelar pelo aperfeiçoamento da segurança pública nas cidades, completando a modernização das Forças Policiais e preservando a capacidade já adquirida das Forças Armadas (que receberam ampla reforma modernizadora ao longo das últimas duas décadas).

As diferenças que podem aparecer na parte final da campanha, visando ao segundo turno, talvez corram por conta da maior ênfase de Mockus nas políticas sociais, sem que mude o foco das políticas macroeconômicas firmadas por Uribe, que deram ao país a possibilidade de crescimento sustentado da economia (que foi de 7,55% em 2007 e que, para este ano, será de 5% a 6%). Também não deverá mudar o ambiente de segurança jurídica firmado pelo atual governo (com garantia de estabilidade tributária para as empresas num período de 20 anos). Embora o desemprego ainda seja alto (12,3%), a expectativa é que diminua ao longo dos próximos anos, em decorrência da aceleração continuada do crescimento econômico, fruto principalmente do aumento das exportações que hoje chegam a 15 bilhões de dólares. Este índice tende a aumentar por força dos novos tratados de livre comércio assinados recentemente com a União Européia, com o Mercosul, com o Chile, o Canadá e os países da América Central. O tratado de livre comércio com os Estados Unidos, freado pela chegada dos democratas ao poder, terá muitas probabilidades de chegar a bom termo no caso da vitória de Mockus, que é visto com bons olhos (do ponto de vista dos Direitos Humanos) pelo Departamento de Estado. O exprefeito de Bogotá, certamente, tem chances firmes de se tornar o próximo presidente colombiano.

sábado, 22 de maio de 2010

A HERANÇA DE IMMANUEL KANT (1724-1804)

A obra de Immanuel Kant marcou definitivamente os rumos da filosofia ocidental, desatrelando-a da metafísica e colocando-a, de maneira firme, no contexto da denominada perspectiva crítica ou transcendental. Não temos acesso à essência substancial das coisas, embora não possamos prescindir delas na elaboração do nosso conhecimento. Da realidade somente conhecemos o fenômeno, aquilo que se revela à nossa experiência. Não temos o condão mágico de enxergar a essência substancial das coisas. Elaboramos os nossos conhecimentos a partir do que dos objetos nos revelam as experiências sensoriais. Podemos nos elevar até as generalizações teóricas mediante juízos sintéticos a priori que, partindo da experiência, possibilitam-nos organizar os dados fenomênicos com a ajuda das idéias puras do entendimento. Não criamos, portanto, a realidade. O nosso entendimento é apenas faculdade ordenadora do real. Com esses seus princípios expostos na Crítica da Razão Pura, o filósofo de Königsberg dividiu, com Platão, o mérito de ter formulado uma das duas perspectivas filosóficas que balizam a filosofia ocidental: a crítica ou transcendental, sendo que o pensador grego sistematizou, notadamente no seu diálogo Fédon, a perspectiva denominada realista ou transcendente.
A partir da perspectiva transcendental, Kant deu embasamento epistemológico à nova física de Newton, mostrando como era possível uma ciência formulada em juízos sintéticos apriori, que levassem em conta os dados da experiência. Podemos dizer que Kant tirou a ciência moderna da enrascada em que tinha sido colocada pela tentativa de explicação substancialista. Se, segundo é pressuposto por esta, nós enxergamos a essência da realidade, não se explica como, no que tange às teorias cosmológicas, a Humanidade embarcou durante séculos a fio (desde os Gregos até 1543, quando Copérnico formulou a hipótese heliocêntrica) na canoa furada do Cosmo geocêntrico. No contexto da explicação kantiana, a mudança de paradigma cosmológico é de fácil explicação: passou-se, com Newton, de uma apreciação do fenômeno a uma outra, mais compatível com a experiência e os dados matemáticos. Nada de dogmatismo realista. Instalou-se, na filosofia da ciência, uma saudável relatividade quanto à necessidade de consultar os dados da experiência, sempre passível, aliás, de novas representações. À luz da perspectiva kantiana Karl Popper, no século XX, definiu a certeza científica como afirmação probabilística, capaz de ser refutada. Afirmações passíveis de serem discutidas pela comunidade científica e verificadas por ela, essas são as assertivas científicas. Longe ficou o neokantismo do dogmatismo positivista, que pretendia uma certeza dogmática para a ciência, a partir de fatos apreensíveis de uma vez para sempre.
Mas a herança kantiana foi definitiva, também, em dois outros terrenos: o da ética e o da política. No que tange ao primeiro campo, Kant formulou, pela primeira vez, uma moral racional, mediante a tradução, em rigorosos conceitos filosóficos, dos postulados religiosos em que até então se alicerçava a moral. Na sua Fundamentação da metafísica dos costumes, o mestre de Königsberg traduziu o cerne da moral judaico-cristã, o mandamento da caridade, neste imperativo categórico: “Age de tal forma que trates a pessoa humana sempre como fim e nunca como meio”. Tornou-se possível, assim, uma moral racional, que incorporou o rico legado da tradição judaico-cristã, compatibilizando-o com a tradição helenística que valoriza a razão. Já no que tange à política, o pensador alemão formulou, no seu opúsculo intitulado A paz perpétua, o que seria o princípio básico da moral pública, ou princípio da “transparência”, que reza assim: “Age sempre de tal forma que os motivos de tua ação possam ser divulgados aos quatro ventos”. Esse princípio tornou-se o centro irradiador de luz para a ação política, tanto no plano nacional quanto no terreno internacional. A melhor forma de manter a credibilidade de um governo é, à luz do princípio kantiano, mantendo a transparência perante a comunidade. E, no terreno internacional, a garantia da paz entre  as nações consiste em não esconder cartas na manga, explicitando, perante a comunidade das Nações, os móveis da ação dos Estados. Utopia? Talvez. Mas a aproximação desse ideal é a que, certamente, tem garantido os clarões de paz na noite dos conflitos. Mais uma vez, o genial pensamento do filósofo de Königsberg tornou-se semente fecunda da civilização ocidental, neste conturbado início de milênio.

OTTO MORALES BENÍTEZ, MIEMBRO DE LA ACADEMIA COLOMBIANA DE LA LENGUA



Otto Morales Benítez, quien es hoy en día el más importante ensayista colombiano, con 103  libros publicados y otros 27 en vías de serlo, entró, en mayo de 2009, a la Academia Colombiana de la Lengua. Desde hace varias décadas, Morales Benítez es miembro de la Academia Colombiana de Historia. Otto Morales constituye uno de los patrimonios culturales más grandes de Colombia y de Iberoamérica, y su obra abre un capítulo definitivo para el estudio de nuestras culturas amerindias.

DA GUERRA À PACIFICAÇÃO: A ESCOLHA COLOMBIANA


Foi lançado em São Paulo, no passado 19 de Maio, na Livraria Cultura do Shopping Market Place, no Morumbi, o meu livro intitulado: Da guerra à pacificação: a escolha colombiana (Campinas: Vide Editorial, 2010, 165 p.). Tive a alegria de lançar o meu livro ao lado do mestre e amigo Antônio Paim, cuja obra intitulada: Marxismo e Descendência (publicada pela mesma editora em 1009 e já resenhada no meu blog) foi lançada em São Paulo nessa oportunidade (o primeiro lançamento tinha acontecido, em Campinas, no final do ano passado).

O programa de publicações da Vide Editorial foi apresentado pelo seu diretor, Antônio Roberto Batista. A apresentação das obras lançadas ficou a cargo de três debatedores: Antônio Carlos Pereira (redator do jornal O Estado de São Paulo), Sílvio Passarelli (da Fundação Armando Álvares Penteado) e Luiz Alberto Machado (do programa de pós-graduação em Relações Internacionais da mesma instituição). Fiquei muito feliz de rever, na mesa de debates, estes três colegas de trabalho de há trinta anos atrás, quando nos conhecemos na Sociedade Brasileira de Cultura Convívio, de São Paulo, na redação dos boletins “Planalto”, bem como das revistas Convivium e Política e Estratégia.

Farei, a seguir, uma breve síntese da minha obra Da guerra à pacificação: a escolha colombiana. O livro consta de cinco capítulos, que abarcam os seguintes temas: 1 - A violência colombiana, no seio da tradição patrimonialista da América Latina. 2 - Primórdios da guerra do narcotráfico na Colômbia. 3 - Do messianismo político ao narco-estado: os descaminhos da Teologia da Libertação. 4 - O conflito colombiano: uma guerra contra a sociedade. 5 - Colômbia: uma nova realidade. 6 -  Perspectivas para a próxima década, à luz da experiência colombiana.

A problemática da violência sempre foi um fator presente nas sociedades latino-americanas. A configuração dos Estados como instâncias mais fortes do que a sociedade, numa tendência de privatização do espaço público pelos clãs, foi a causa básica do fenômeno. É a herança ibérica que, superada no Velho Mundo, ainda não foi vencida em terras americanas. É fator constituinte do denominado "custo Brasil”. O Estado, como frisava Raymundo Faoro, “sempre teve donos”. Ou como apontava Oliveira Vianna, a ausência de espírito público, essa é uma das marcas registradas na nossa cultura política. Até o final do século XX, essa realidade deu ensejo a Estados em que o compadrio era a lei que comandava o preenchimento de cargos, com toda a seqüela de falta de visão nacional e ausência de patriotismo. O patotismo, na América Latina, sufocou o patriotismo. Patotismo ou clientelismo que deu ensejo, ao longo do nosso Continente sul-americano e também na América Central e no México, às várias gerações de compadres que dominavam a ferro e fogo. Resquícios dessa pesada herança são a ditadura dos irmãos Castro em Cuba e o populismo dito bolivariano do coronel Chávez na Venezuela. Embora tenhamos caminhado, no Brasil, em direção à consolidação de instituições democráticas, notadamente ao longo dos últimos vinte anos, não podemos negar que o patrimonialismo ainda grassa na nossa cultura política. São as várias clientelas que, no recente ciclo de abertura e de amadurecimento democrático, têm preenchido os cargos federais com amigos e apaniguados dos Presidentes, fenômeno que tem dado ensejo às várias "Repúblicas" que caracterizam a nossa história recente: "República do Maranhão", "República das Alagoas", "República do pão de queijo", "República dos companheiros"...

É claro que não estamos sozinhos no usufruto dessa pesada herança. O drama argentino consiste em não terem conseguido, os nossos vizinhos, estabelecer, por cima das clientelas de políticos provinciais, um centro de poder que governe efetivamente, traçando políticas de alcance nacional. Isso, aliás, não é novo na política platina, e já o grande Domingos Faustino Sarmiento em Facundo destacava, em 1846, que a tendência à privatização do Estado era o grande mal que afetava aos argentinos, sendo que o processo centralizador deu-se, no período de Rosas, sob o signo de uma sanguinolenta tirania que enquadrou todo mundo pela barbárie, repetindo, no plano federal, o que Facundo Quiroga tinha realizado anteriormente na sua província. Algo que teve o seu contrapeso do lado brasileiro, no regime de cooptação que Dom Pedro II impôs às oligarquias regionais, tendo dado ensejo às instituições imperiais. Diríamos que, em termos de organizar o Estado, o patrimonialismo estamental de Dom Pedro foi muito mais civilizado que o patrimonialismo de faca na bota de Rosas. No século XX, podemos estabelecer comparação semelhante entre o patrimonialismo sindical de Perón e o tecnocrático de Getúlio.

A hipótese que levanto neste livro é a seguinte: quando, no decorrer da segunda metade do século XX, o patrimonialismo vinculou-se, nos países latino-americanos, ao mercado dos tóxicos e à ação radical do Foro de São Paulo , a violência disparou e ensejou a formação de Estados dentro do Estado, cuja manifestação mais contundente foi a República das FARC que, entre 1998 e 2002, a guerrilha colombiana organizou na zona sul-oriental da Colômbia, numa área equivalente à do Estado do Rio de Janeiro, pondo em xeque a segurança continental, porquanto se constituiu em centro de irradiação do narcotráfico pelo Continente sul-americano afora, bem como em núcleo de exportação da narco-guerrilha aos países vizinhos. A América Latina conheceu, também, a sua Guerra do Ópio!

Em face desse fenômeno da narco-guerrilha, analiso os riscos que decorrem para o Brasil, notadamente. Considero que esses riscos aumentam, na medida em que a esquerda brasileira continua presa ainda a um modelo arcaico de comportamento politicamente correto, que a faz enxergar nos guerrilheiros colombianos combatentes idealistas pela justiça social e em prol da instauração do socialismo, quando o que realmente constituem é um núcleo de terroristas financiados pelo narcotráfico, que têm como única finalidade a racionalização dos seus negócios e a expansão do seu modelo de exploração para o resto do Continente sul-americano. O modelo colombiano da narco-guerrilha não está longe do Brasil: isso é testemunhado pelo fato de Fernandinho Beira Mar ter sido o elo entre as FARC e o narcotráfico carioca. Ou pelo fato, mais recente, da descoberta, pela Polícia Federal, de acampamentos de guerrilheiros das FARC, na Amazônia brasileira, para processamento e comercialização de cocaína e crack. É claro que isso se tornou possível em decorrência da leniência criminosa do governo brasileiro, que, ao longo dos últimos oito anos, fez vista grossa em face dos narcoterroristas das FARC, chegando até homiziá-los em território brasileiro, com a esfarrapada desculpa de que se tratava de concessão de “asilo político”, como aconteceu com funcionário graduado do grupo guerrilheiro, o padre Oliverio Medina.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

DAVID HUME (1711-1776) E A FORMULAÇÃO DA PERSPECTIVA TRANSCENDENTAL

Um pensador de bem com a vida e de mal com aqueles que a negam. Esse seria o perfil prático de David Hume, que suscitou – e ainda desperta – iradas respostas daqueles que não concordam com ele. Considero Hume um disciplinador da filosofia, no que tange à crítica a todos os dogmatismos, bem como no relacionado à formulação da perspectiva transcendental, que passou a balizar, doravante, o conhecimento científico, num contexto de abertura à verificação crítica das teorias.
O nosso pensador nasceu em 7 de maio de 1711 em Edimburgo, na Escócia. Em 1733 ingressou na Universidade da cidade natal. Em 1734 viajou para a França, onde escreveu o seu Tratado sobre a natureza humana. Devido às críticas que Hume fez, no livro mencionado, aos dogmáticos que pretendiam dominar os outros, em 1744 foi recusado ao tentar obter a cátedra de filosofia moral na Universidade de Edimburgo. Em 1746, o nosso pensador participou de uma fracassada missão militar na França, como secretário-geral do general Saint-Clair. Em 1748, Hume acompanhou este general em missão diplomática perante a corte de Viena e publicou, na Inglaterra, a sua Investigação sobre o entendimento humano, completando o seu Tratado de 1734. Em 1752, o nosso autor tornou-se Conservador da Biblioteca dos Advogados de Edimburgo (graças à influência do amigo Adam Smith, reitor da Universidade dessa cidade). Nesse cargo de bibliotecário, o pensador documentou-se fartamente para a escrita dos quatro volumes da História da Inglaterra, que publicou dois anos depois. No ano de 1763, o nosso autor passou a residir em Paris, como Secretário da Embaixada Inglesa, tendo retornado a Londres em 1766, ano em que recebeu, na sua casa, na capital inglesa, o seu amigo Jean-Jacques Rousseau, que se dizia vítima de perseguições na França; no entanto, as constantes diatribes do amigo fizeram com que a amizade que os unia entrasse em colapso. Em 1769 o nosso pensador regressou a Edimburgo. Faleceu no dia 25 de agosto de 1776, meses depois de ter composto a sua Vida de David Hume, escrita por ele mesmo. 
Testemunho do espírito jovial do pensador foi dado pelo seu amigo Adam Smith, em carta que escreveu a William Strahan. Estas são as palavras do autor de A riqueza das Nações: “Com grande prazer, embora também com imensa melancolia, tomo a pena para dar a você um breve informe da conduta do nosso excelente amigo, o senhor Hume, durante a sua última doença. Embora, a seu ver, o mal que o afetava fosse mortal e incurável, cumprindo a vontade dos seus amigos empreendeu uma longa viagem, a fim de ver que efeitos positivos poderia isso lhe trazer... Já de regresso em Edimburgo, encontrou-se muito mais debilitado; mas o seu bom humor não diminuiu e continuou a se distrair como de costume, corrigindo as suas obras para uma nova edição, ou lendo livros de passatempo, ou conversando com os seus amigos. Algumas vezes, ao cair da tarde, jogava uma partida de whist, o seu jogo predileto. O seu bom humor era tal, e as suas conversações e entretenimentos pareciam-se tanto com o que era costumeiro nele que, apesar de todos os maus sintomas, muitos não podiam acreditar que estivesse morrendo (...)” [Adam Smith, “Carta a William Strahan”, in: Carlos Mellizo, “La muerte de David Hume”, apud David Hume, Mi vida – Cartas de un Caballero a su amigo de Edimburgo, edição e tradução a cargo de Carlos Mellizo, Madri: Alianza Editorial, 1985, p. 69].   
Estas são as principais obras de David Hume: Tratado sobre a natureza humana (edição parcial, 1739; edição completa, publicada em 1748, com o título de: Investigação sobre o entendimento humano); Ensaios morais e políticos (1741); Investigação sobre os princípios da moral (1751); Discursos políticos (1752); História da Inglaterra – 4 volumes (1754); Quatro dissertações (1757); Vida e obra de David Hume, escrita por ele mesmo (1776). Vale a pena destacar que todas as obras de David Hume foram colocadas no Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos) da Igreja Católica, em 1761.
Em treze pontos podem ser sintetizados os aspectos essenciais da teoria do conhecimento de David Hume, apresentada na obra: Investigação sobre o entendimento humano.
1 – Existem, segundo Hume, duas formas de abordagem da Filosofia Ocidental: vivencial e prática e intelectualista e abstrata. A primeira, denominada de “filosofia prática”, tem maior sucesso na opinião pública, pelo fato de estar ligada à vida cotidiana dos homens. A segunda, denominada de “filosofia abstrusa”, tem maior sucesso entre os intelectuais, acostumados ao rigor da lógica. Mas esta última é uma modalidade de filosofia desligada da vida cotidiana dos homens. O filósofo escocês arrolava entre os enganadores profissionais aqueles que utilizavam a “filosofia abstrusa” para exercer o poder entre os seus semelhantes. Esses enganadores são, basicamente, os padres e os médicos. Os primeiros, porque nos ameaçam com a condenação eterna e nos vendem a salvação. Os segundos, porque nos ameaçam com a doença e a morte e nos vendem a cura. David Hume situa-se, assim, entre os pensadores modernos que retomam a velha temática de epicuristas e estóicos, acerca da busca da paz interior, ameaçada pelos vendedores de bugigangas metafísicas. Lembremos que o primeiro passo, para os seguidores dessas duas correntes helenísticas, consistia em esconjurar os temores que nos paralisam, o temor à doença e à morte e o temor à desgraça eterna.
2 – Termo meio almejado por Hume: uma “Geografia Moral”, ou Filosofia que, partindo da vida, teorize em função dela, não para negá-la como faz a “filosofia abstrusa”, mas para estar a serviço dela. Essa “Geografia Moral” teria os aspectos positivos da “filosofia prática” (comprometimento com a vida cotidiana) e da “filosofia abstrusa” (respeito à lógica), sem, no entanto, partilhar dos defeitos dessas duas formas de pensamento, a saber: menosprezo pela lógica (“filosofia prática”) e distanciamento da vida prática (“filosofia abstrusa”).
3 – Método da “Geografia Moral” proposta: delineamento das diferentes partes e poderes do intelecto, a partir de um processo de reflexão (volta do homem sobre si mesmo, à maneira de Sócrates, dos estóicos, dos epicuristas e de Descartes).
4 – Caráter difícil dos estudos sobre o entendimento humano. A respeito, escreve Hume: “Não é muito provável que aquilo que, até hoje, escapou a tantos filósofos e sábios profundos seja muito fácil e evidente” [Hume, Investigação sobre o entendimento humano]. Hume parte para uma aventura difícil, já tentada por Descartes: a viagem ao interior de si mesmo, a fim de desvendar as molas secretas do conhecimento. Ora, escapava ao nosso autor (como, aliás, também a Descartes), que Aristóteles já tinha assinalado um caminho seguro para essa tarefa intelectual: como a linguagem é a roupagem do pensamento, a melhor forma de pesquisar as molas secretas deste consiste em estudar as estruturas da linguagem, que revelariam as estruturas profundas da mente humana. Esse caminho só seria redescoberto, um pouco depois de Hume, por um conhecedor da filosofia aristotélica, Immanuel Kant.
5 – Paralelo entre a “Geografia Moral” proposta por Hume e a “Filosofia da Natureza” sistematizada por Newton: assim como este cientista determinou as leis e as forças que governam as revoluções dos planetas, sucesso igual pode haver em nossas pesquisas sobre as faculdades e a economia mental.
6 – Valorização da sensação como ponto de partida do processo cognitivo. Há, no sentir de Hume, uma considerável diferença entre as percepções da mente na sensação e na lembrança da sensação.
7 – Duas classes de percepções: pensamentos e idéias (as menos fortes); impressões (as mais fortes).
8 – Limites do poder criador da mente. Para Hume, a nossa capacidade de pensar se reduz à simples faculdade de combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Todas as nossas idéias (ou percepções mais fracas) são cópias das nossas impressões (ou percepções mais vivas). Nessa mesma linha, Kant dirá, um pouco mais adiante, que a nossa razão é “faculdade ordenadora do real”.
9 – Fenômeno paradoxal da mente humana: as nossas idéias simples não derivam sempre das correspondentes impressões (fenômeno do “fecho” ou da “generalização psicológica”, por exemplo, no caso da apreensão de matizes nas cores). Esse fato revelaria a capacidade criativa da razão humana, a partir dos dados da experiência.
10 – Princípio da referência da idéia à impressão. A propósito, Hume escreve: “Quando suspeitarmos que um termo filosófico seja empregado sem qualquer significação ou idéia, bastará perguntar: De que impressão deriva essa suposta idéia? (...). Colocando as idéias sob uma luz tão clara, temos boas razões para nutrir a esperança de remover todas as disputas que possam surgir a respeito de sua natureza e realidade” [Hume, Investigação sobre o entendimento humano].
11 – Conexão entre as idéias. Segundo Hume, há sempre uma conexão entre as diferentes idéias que sucedem umas às outras, na nossa mente. Este ponto ficará muito mais claro em Kant, que partirá da análise da linguagem no juízo, seguindo a trilha aberta por Aristóteles nos seus Tópicos. O mestre alemão mostrará que a conexão entre as nossas idéias se realiza quando afirmamos ou negamos algo de algo. Neste ponto, Hume parece ter se distanciado dos ensinamentos de Locke, que valorizava a classificação dos nossos conhecimentos a partir dos juízos.
12 – Existência, em todos os seres humanos, de um mecanismo universal de união entre as idéias. Esse princípio é postulado pela presença, na nossa mente, de idéias simples compreendidas nas idéias mais complexas.
13 – Esse mecanismo universal de união entre as idéias funciona a partir de três princípios de conexão entre elas. Esse mecanismo, regido por tais princípios, está enraizado na nossa natureza, como uma espécie de instinto a-priori (de ordem psicológica), que tem como finalidade a preservação da vida. Os princípios que comandam o mecanismo mencionado são estes: de semelhança, de proximidade (ou contigüidade) e de causalidade. A razão humana, no contexto desta concepção, age a partir dos dados hauridos da experiência. Nisso consiste a sua grandeza e a sua limitação.
Não temos acesso, considerava Hume, à essência das coisas em si mesmas. A natureza, como diriam os pré-socráticos, gosta de se esconder. Unicamente temos acesso aos fenômenos. Mas as nossas mentes estão constituídas pela natureza de tal forma que os princípios, a partir dos quais organizamos os dados da experiência, valem para todos nós. Nos entendemos porque a nossa razão está configurada de forma semelhante. Diríamos hoje, falando em linguajar cibernético, que apreendemos a verdade por consenso, graças a que estamos dotados do mesmo software. Anomalias podem acontecer (nos loucos, por exemplo, aos quais não falta a lógica, mas a formatação do seu software é diferente da dos seus semelhantes). Este é o ponto fundamental da visão gnosiológica de David Hume e constituiu, como ele próprio reconhecia, uma autêntica “revolução copernicana” no terreno do conhecimento. Efetivamente, os objetos, ao redor dos quais anteriormente girava o conhecimento, foram deixados de lado como fonte da formatação do mesmo, contando, deles, apenas a apreensão fenomênica dada pelos nossos sentidos. Mas o conhecimento passou a girar formalmente em torno à estrutura ontológica do sujeito, dotado de um a-priori que permite a todos os seres humanos pôr ordem nos dados da experiência. Foi a formulação da perspectiva transcendental, concebida por Hume nos termos em que acaba de ser resumida, que tirou Immanuel Kant do seu “sonho dogmático”, como o filósofo de Königsberg denominava a perspectiva metafísica (transcendente) em que, ao longo de muitos anos, ele mergulhara. Elogio sem par saído da boca do mais importante formulador da nova filosofia crítica.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

SIR ISAAC NEWTON (1642-1727): A AXIOMATIZAÇÃO DA MECÂNICA NUMA PERSPECTIVA CINEMÁTICA

Embora Newton não tivesse sido um filósofo, no entanto a sua obra, no terreno da física e da matemática, impactou de tal forma a filosofia, que levaria a uma reformulação da Teoria do Conhecimento no contexto da perspectiva transcendental, abandonando de vez a antiga perspectiva realista. Dois pensadores do século XVIII desincumbiram-se dessa tarefa: David Hume e Immanuel Kant. Por este motivo, vale a pena estudar os aspectos básicos da vida e da obra de Newton.


Isaac Newton nasceu em Woolsthorpe, condado de Lincolnshire, Inglaterra, em 1642. Ainda criança perdeu o pai, tendo-se casado a sua mãe, em segundas núpcias, com um pastor. Com 18 anos de idade, ingressou na Universidade de Cambridge. Ali trabalhou ao longo de sua vida. Em 1665 colou grau de Bacharel of Arts and Sciences, tendo-se doutorado em física e matemáticas em 1668. Com a idade de 26 anos começou a sua carreira de catedrático na Universidade. Com motivo da peste negra, que assolou a Europa em 1666, o nosso autor teve de se refugiar na sua casa, na zona rural de Woolthorpe, durante vários meses, tendo aproveitado o tempo para iniciar as suas pesquisas científicas.

Hugh Mattew Lacey sintetiza assim as atividades de Newton ao longo deste período: “Newton desenvolveu o teorema do binômio, que ficaria conhecido pelo seu nome, e o método matemático das fluxões, que originaria o cálculo infinitesimal e integrado, considerado a mais importante inovação da história da matemática, desde os gregos antigos. O método das fluxões considera cada grandeza finita como engendrada por um movimento ou fluxo contínuo, tornando possível calcular áreas limitadas, total ou parcialmente, por curvas, bem como os volumes das figuras sólidas. A essas duas contribuições seguiram-se duas outras, concebidas também, nos aspectos essenciais, no retiro forçado em Woolthorpe: uma teoria sobre a natureza da luz e as primeiras idéias sobre a atração gravitacional. A primeira mostra que a luz branca é constituída pela união das chamadas sete cores fundamentais do espectro. A segunda explica que a Lua mantém-se em órbita graças à força gravitacional” [Hugh Mattew Lacey, “Newton, vida e obra”, in: Sir Isaac Newton, Princípios matemáticos da filosofia natural – Trechos selecionados. Tradução de Carlos Lopes de Mattos e Paulo Rubén Mariconda, São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 144].

Em 1672, Newton foi eleito membro da Royal Society.  Três anos depois, enviou a essa academia as suas anotações sobre a reflexão e as cores da luz. Em 1685 apresentou à Royal Society os dois primeiros livros da sua obra principal, os Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, que foram publicados dois anos depois. Em 1689 Newton foi eleito para o Parlamento como deputado pela Universidade de Cambridge. Em 1703 foi eleito presidente da Royal Society. No ano seguinte, publicou o seu tratado de Óptica. Recebeu o título de Cavaleiro de mãos da rainha Ana da Inglaterra, em 1705. Faleceu em Londres, em 1727.

As obras mais significativas de Newton foram as seguintes: Método de Fluxões (1671), Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (1687, publicado em inglês em 1729), Óptica (1704), Arithmetica Universalis (1707). Obras de Newton publicadas postumamente: Cronologia dos Antigos Reinos (1728), O Sistema do Mundo (17028), Observações sobre as Profecias de Daniel e o Apocalipse de São João (1733).

Principais elementos da física newtoniana.

Poderíamos sintetizá-los em 13 pontos:

1 - Newton deitou as bases da física moderna, que tinha sido esboçada por Galileu. O sábio inglês efetivou a axiomatização da mecânica. É bem verdade que não da forma de um sistema não contraditório de proposições. Mas, certamente, no sentido de um conjunto de proposições evidentes (ou que julgamos aceitáveis), precedidas por uma série de definições básicas, em virtude das quais os termos utilizados nos axiomas ganham o seu sentido, sendo que daí pode ser deduzido o conjunto da mecânica.

O pensador achava-se diante de um amontoado enorme de conceitos e de princípios, que configuravam um caos epistemológico. Newton introduziu ordem e coerência nesse contexto, tomando como inspiração Os Elementos de Euclides. Os estudiosos consideram que a construção newtoniana não é tão aprimorada quanto a euclidiana. No entanto, cabe-lhe o inegável mérito de ter sistematizado, com simplicidade e elegância, os princípios básicos da física moderna.

2 - Os princípios da física newtoniana são constituídos pelos três axiomas ou leis do movimento, que podem ser sintetizados da seguinte maneira: Primeira lei do movimento (denominada também de princípio da inércia): todo corpo persiste no seu estado de repouso ou de movimento retilíneo uniforme, enquanto não for obrigado, pela ação de forças, a modificar esse estado. Segunda lei do movimento: a mudança da quantidade de movimento é proporcional à força motriz que age e é produzida seguindo a linha reta na a qual a força trabalha. Terceira lei do movimento: toda ação é acompanhada de uma reação do mesmo tamanho e de direção oposta.

3 – Das três leis do movimento Newton tira os seguintes postulados: Princípio da conservação da quantidade de movimento: num sistema fechado, a quantidade de movimento total é constante. Princípio da relatividade da mecânica clássica: num sistema fechado, o centro de gravidade se movimenta segundo um movimento retilíneo uniforme e os movimentos recíprocos das partes não se modificam quando se imprime ao sistema um movimento retilíneo uniforme.

4 – Há, na matéria, uma força que a capacita para oferecer resistência; daí se segue que cada corpo, enquanto depende de si próprio, persiste no seu estado de repouso ou de movimento retilíneo uniforme. Essa força é denominada por Newton também de vis inertiae (força de inércia).

5 – O movimento inercial dos corpos se dá no contexto do espaço absoluto. Numa concessão que fez à imaginação metafísica (recordemos que Newton era um fervoroso comentarista dos livros sagrados), o sábio inglês definiu o espaço absoluto como sensorium Dei (órgão sensorial de Deus, mediante o qual o Ser Supremo se relaciona com os corpos extensos). Isso ensejou acirrado debate com outros pensadores da época, notadamente com Leibniz. O nosso autor, importante figura do mundo intelectual britânico, não se engajou pessoalmente na polêmica com o filósofo prussiano, tendo sido representado nesse debate por Clarke.

6 – Vis impressa ou força é uma ação que se exerce sobre um corpo, com vistas a modificar a sua posição de repouso ou de movimento retilíneo uniforme. A mudança efetivada pela força pode afetar a magnitude da velocidade, bem como a direção da mesma.

7 - A quantitas motus (medida do movimento) é o produto da velocidade multiplicada pela massa (quantitas materiae). Newton define a massa como o produto do volume pela densidade. A quantitas motus é a quantidade de movimento, mv, que Descartes tinha denominado de impulso.

8 – Num corpo já em movimento, o novo movimento, que lhe é comunicado por uma força, se junta ao que já possuía (se recebe a força no mesmo sentido do movimento original), ou se subtrai ao mesmo (se recebe a força em sentido inverso). Uma força aplicada a um corpo, lhe comunica uma quantidade de movimento. Duas forças são entre si como as quantidades de movimento que elas comunicam ao mesmo tempo.

9 – A força, para Newton, é uma realidade física, apreendida unicamente como fenômeno. Ela consiste numa ação exercida sobre um corpo e pode ter diversas origens (choque, pressão, atração). Mas o cientista britânico fica longe de se perguntar qual é a natureza oculta dessa força, qual a sua essência. Somente lhe interessa o ponto de vista cinemático que apreende a realidade “como aparece”, ou no terreno fenomenal. É a partir daí que se constrói, em Newton, a física ou ciência da natureza.

10 – Aplicação dos três axiomas ou leis do movimento aos corpos celestes, mediante a aplicação do princípio geral da gravitação, que é formulado assim: Toda vez que há duas partes de matéria no Universo, elas exercem, uma sobre a outra, uma força de atração cujo tamanho é proporcional às quantidades de matéria (massas) dessas partes, e inversamente proporcional ao quadrado da sua distância mútua. Torna-se possível, a partir desse princípio, explicar todos os movimentos do Universo de forma matemática e reunir um grande número de fenômenos num princípio universal. O cálculo infinitesimal foi criado por Newton para tornar possível a representação matemática das variáveis que, no Universo, constituem todos os movimentos do mesmo. Caminho bem diferente do trilhado por Leibniz para formular o cálculo infinitesimal, que deveria traduzir, matematicamente, a harmonia cósmica.

11 – Significação do Princípio da Gravitação Universal para a história do pensamento: Graças a esse princípio, todas as oposições entre diferentes categorias de movimento (naturais e forçados, terrestres e celestes) são superadas, e não há mais diferença essencial entre o lançamento de uma pedra e o movimento da lua, por exemplo. O movimento de um planeta é representado como a resultante do movimento retilíneo uniforme seguindo a tangente, em relação à trajetória que teria se fosse subtraído a toda força exterior e ao movimento de queda em relação à Terra.

12 – Forte oposição, nos séculos XVII e XVIII, às leis de Newton: Como frisa o cientista e filósofo belga Jean Ladrière, “O pensamento físico achava-se então em pleno mecanicismo. A matéria era representada como constituída por partículas (átomos) e qualquer ação de uma força era entendida como movimentos dessas partículas. Rejeitava-se, então, qualquer modo de ação diferente do representado pelas forças de choque. Admitiam-se unicamente as ações por contato, e não se poderia admitir uma força que agisse à distância, através do espaço vazio, sem intervenção de um meio intermediário, mediante o qual a ação pudesse se propagar. Ora, a força da gravitação age à distância, de forma instantânea, sem intermediários” [Ladrière, Elements de critique des sciences et de cosmologie. Louvain: Université Catholique de Louvain, 1967, p. 145].

13 – A filosofia da natureza de Newton, precursora da Perspectiva Transcendental: as forças da natureza não devem ser consideradas, segundo o pensador britânico, como causas profundas do movimento. Trata-se de conceitos matemáticos. Quando se diz que um centro atrai, não se pretende formular a verdadeira natureza da ação de uma força. O peso é devido, a bem da verdade, a uma causa que lhe confere as propriedades que possui. Mas, frisa Newton, eu não posso deduzir fenômenos dessa causa e não posso pretender formular hipóteses a partir daí, sejam elas de tipo metafísico ou mecânico; essas hipóteses não têm lugar na filosofia natural (ou seja, na física). A filosofia natural deve deduzir as propriedades dos fenômenos e generalizá-las por indução. Basta com saber que a gravitação existe, que ela age segundo as leis que conhecemos e que ela é suficiente para dar conta dos movimentos do Céu e da Terra.

domingo, 9 de maio de 2010

UMA LÚCIDA ANÁLISE DO MARXISMO

O mais recente livro de Antônio Paim, intitulado: Marxismo e Descendência [Campinas: Vide Editorial, 2009, 593 pg.] é uma contribuição valiosa para a análise do pensamento de Karl Marx (1818-1883) e a sua evolução na Rússia e na Europa Ocidental, notadamente na França. Faltava, no Brasil, uma avaliação crítica dessa doutrina, que abarcasse os suas manifestações nos terrenos econômico, político e cultural e as confrontasse, historicamente, com os desdobramentos ocorridos ao longo dos séculos XIX e XX. É o que faz na sua obra o historiador das idéias, formado em Filosofia, ao longo dos anos 50 do século passado, na Universidade Lomonosov, de Moscou, e na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Antônio Paim é figura conhecida do nosso universo cultural, tendo-se destacado, a partir da publicação do seu livro História das idéias filosóficas no Brasil, [São Paulo: USP / Grijalbo, 1967], como o mais importante historiador do pensamento brasileiro, com mais de 40 livros dedicados ao tema.

A obra Marxismo e descendência consta de três partes: I – A doutrina marxista do Estado, II – A doutrina marxista da sociedade e III – A doutrina marxista do pensamento. Na primeira parte, o autor desenvolve os seguintes itens: 1- a doutrina do Estado patrimonial; 2 - a meditação de Marx sobre o Estado; 3 - presumível legado marxista inspirador de Lenine; 4 - a inspiração de Marx, presente na concepção leninista do Estado; 5 - ação teórica e prática de Lenine na estruturação dos institutos básicos do sistema totalitário.

A segunda parte consta destes itens: 1- como se deu a organização do partido comunista francês; 2 - esgotamento do partido comunista na vida política e cultural francesa; 3 - o amadurecimento do cientificismo francês; 4 - a doutrina da sociedade de Marx; 5 - superação das lacunas da doutrina marxista da sociedade pela sociologia francesa, na obra de Durkheim; 6 - aprofundamento do cientificismo pelos discípulos e eliminação da divergência com o marxismo; 7 - o estruturalismo como exacerbação do cientificismo, a adesão do marxismo e seu desfecho.


Na terceira parte, são desenvolvidos estes itens: 1 - a filosofia de Marx; 2 - a tradição filosófica e a problemática contemporânea; 3 - a recepção do marxismo nos principais países europeus (fins do século XIX e início do século XX); 4 - A estruturação da vulgata marxista; 5 - duas tentativas de interpretação autônoma e seu desfecho; 6 - a tentação do niilismo.


Marxismo e Descendência, graças ao seu balizamento em fontes primárias, bem como em virtude da abrangência da análise e o rigor crítico no estudo do pensamento de Marx e dos desdobramentos do Marxismo, constitui, hoje, a mais importante obra de referência em língua portuguesa sobre o tema, complementando, de forma definitiva, outras análises efetivadas por autores brasileiros como Roque Spencer Maciel de Barros [O Fenômeno Totalitário, 1990], José Guilherme Merquior [O marxismo ocidental, 1987], José Osvaldo de Meira Penna [O evangelho segundo Marx, 1982], Leandro Konder [Marx, vida e obra, 1968; A derrota da dialética, 1986], etc.

Antônio Paim passa a figurar, outrossim, pelas razões apontadas, na estante internacional de estudiosos do marxismo da talha de Karl Wittfogel [Oriental Despotism, 1953], Hanna Arendt [The Origins of Totalitarianism, 1951], Leszek Kolakowski [Main Currents of Marxism, 1978], Rodolfo Mondolfo [Sulle orme di Marx, 1923], François Furet [Le passé d´une illusion, 1996] Raymond Aron [L´Opium des Intellectuels, 1955; D´une sainte famille à l´outre, 1969; Le Marxisme de Marx, 2002], G. Lukacs [Histoire et conscience de classe, 1960], G. Plekhanov [The Materialist Conception of History, 1891; Fundamental Problems of Marxism, 1908], Courtois et alii [Le livre noir du communisme, 1997], R. Wiggershaus [Die Frankfurter Schule, 1986], D. Dworking [Cultural Marxism in Post War Britain, 1997], F. Wheen [Karl Marx, 2000], Schlomo Avineri [The Social and Political Thought of Karl Marx, 1968], Isaiah Berlin [Karl Marx: His Life and Environment, 1963], D. McLellan [Marx before Marxism, 1980], M. Rubel  [Marx Without Myth, 1975], T. Rockmore [Marx after Marxism, 2002], Ch. Henning [Philosophie nach Marx, 2005], R. Studart [Marxism and National Identity, 2006], M. Sacristán [Sobre Marx y Marxismo, 1983], M. Galceran Huguet [La invención del Marxismo, 1997], G. Wetter/W. Leonhard [Sowjetideologie heute, 1962], Videira Pires [Marx e o Estado, 1983], etc.


Neste comentário, destacarei três aspectos que me parecem capitais na obra de Antônio Paim: I – Preponderância, em Marx, das preocupações do militante sobre as exigências de pesquisa da verdade, no terreno da ciência social. II - Aproximação entre o comunismo de Marx e o cientificismo francês. III - Ascensão do comunismo, na França, e o seu progressivo domínio sobre o movimento operário, reforçando a tradição do estatismo.

I - Preponderância, em Marx, das preocupações do militante sobre as exigências de pesquisa da verdade, no terreno da ciência social.

Da análise feita por Paim fica claro que, para Karl Marx (1818-1883), um elemento permanece constante, como finalidade essencial, em toda a sua obra: conquistar a vitória do proletariado nas sociedades européias ocidentais (Alemanha, França, Inglaterra), mediante a eliminação violenta do Estado burguês. Marx considerava ser ele o líder único e infalível dessa revolução. Para conseguir esse seu intuito, não duvidou em sacrificar os fatos aos seus esquemas teóricos. A verdade claudicou diante da militância política. Marx foi desmoralizando, um a um, todos os pensadores e líderes socialistas que tinham aderido a um socialismo democrático, diferente do modelo totalitário por ele apregoado. Fez isso, por exemplo, na Alemanha, contra Ferdinand Lassalle (1825-1864) e, na França, contra Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Paim deixa claro que houve influência muito grande do regime apregoado por Marx sobre o adotado, na Rússia, após a Revolução de 1917, por Lenine (1870-1924). Para ambos, somente valia um tipo de comunismo: o imposto pelo líder, com absoluto banimento da dissidência e com a implantação de um regime de poder total. Na Rússia, o regime bolchevique foi o novo capítulo do “despotismo oriental” czarista. Não foi à toa que um estudioso do marxismo como Karl Wittfogel destacou que Marx terminou fazendo o jogo do despotismo hidráulico [cf. Wittfogel, Le despotisme oriental: étude comparative du pouvoir total, tradução francesa de Micheline Pouteau, Paris: Minuit, 1977, introdução].

Vale a pena aprofundar um pouco neste aspecto. Segundo Paim, o pensamento de Marx estruturou-se inicialmente no contexto da denominada Esquerda Hegeliana, em contraposição à guinada conservadora de Hegel, que endeusava o Estado Prussiano. Os discípulos terminaram, no entanto, se colocando contra a liberdade, defendida pelo fundador da História da Filosofia. Marx progressivamente foi se desinteressando da discussão em torno ao sufrágio, arrolando-a sob o genérico mote de “ditadura burguesa”. A respeito deste aspecto, Paim frisa: “Temos, portanto, estes marcos: 1 – a soberania, achando-se na sociedade, poderá provir de um de seus segmentos (o proletariado, como se deu); 2 – na delegação da soberania, a escolha não precisa ater-se à experiência do Estado real existente; e 3 – a concordância com a hipótese hegeliana de o Estado corresponder a ser moral o predisporá a aceitar que a ditadura (do proletariado) possa constituir uma instância dotada de moralidade. Parece essencial registrar que a influência hegeliana terá levado Marx a ignorar solenemente a tipologia dos interesses da lavra de Benjamin Constant e a finalidade com que o fez. Isto é, a determinação da natureza do sistema representativo. Está, portanto, de posse de um arcabouço teórico quanto à institucionalização da vida política que, segundo a experiência histórica subseqüente, pode receber diferentes conteúdos. O próprio Marx dará o pontapé inicial em tal procedimento (...)” [Paim, Marxismo e descendência, p. 81-82].

Entra aqui, a meu ver, a variável correspondente à influência rousseauniana, que Marx certamente recebe ao longo da sua etapa parisiense. Para o filósofo de Genebra, a soberania do povo repousa na “Vontade Geral”. Esta é apropriada pela “Vanguarda do Povo” constituída pelos “Puros”, aqueles que se despiram dos seus interesses individuais para defender o interesse público. Ora, essa “Vanguarda” é chefiada pelo próprio Marx, que se converte numa espécie de salvador das massas proletárias. Marx escreve na sua Crítica da filosofia do direito de Hegel: “O poder legislativo fez a Revolução Francesa; de um modo geral, fez grandes revoluções orgânicas genéricas em todos os lugares onde dominou em toda a sua particularidade (...). Pelo contrário, o poder governativo fez as pequenas revoluções, as revoluções retrógradas, as reações; não fez da revolução uma constituição oposta a uma outra mais antiga, mas sim algo que se opunha a toda a constituição, pois o poder governativo é o representante da vontade particular, da vontade subjetiva, do aspecto mágico da vontade” [cit. Por Antônio Paim, in: Marxismo e descendência, ob. cit., p. 77].

A respeito destas palavras, Paim escreve: “O texto transcrito é bastante elucidativo das crenças que carregou pelo resto da vida: muito Rousseau e nenhum Benjamin Constant. Este determinou com exatidão qual a vantagem do governo representativo – organizar os interesses e levá-los à negociação. A vontade geral de Rousseau exigirá a presença de quem o interprete. Aceitar essa premissa é abrir o caminho aos Robespierres do século XVIII e aos Lênins do século XX” [Paim, ob. cit., p. 77-78].

Era clara, no sentir de Paim, a feição totalitária de Marx ao pretender destruir, por todos os meios, o denominado “Estado burguês”, como condição para a implantação do comunismo. A carta de Marx a Kugelmann, datada de 12 de Abril de 1871 (que foi utilizada por Lenine para justificar a opção radical dos bolcheviques) constitui, no sentir de Paim, documento eloqüente do radicalismo que empolgava ao autor de A ideologia alemã. Eis as palavras de Karl Marx: “No último capítulo do 18 Brumário, eu sublinho, como notarás se o releres, que a próxima tentativa da Revolução na França não deverá mais consistir em fazer transferir a máquina burocrática e militar para outras mãos, como aconteceu até aqui, mas sim em destruí-la (sublinhado por Marx; no original, a palavra é zerbrechen). É essa a primeira condição de qualquer revolução popular verdadeira no continente. Foi isso o que os nossos heróicos camaradas de Paris tentaram” [apud Paim, ob. cit., p. 115].

A propósito do texto citado, frisa Paim: “Como se vê, Lênin quer demonstrar que, no seu propósito de derrubar a Kerenski, como passo para destruir a máquina estatal – que, por um passe de mágica, teria transformado o velho Estado czarista em Estado burguês – está seguindo o grande Mestre. E, efetivamente, o faz” [Paim, ob. cit., p. 115].
 
II - Aproximação entre o comunismo de Marx e o cientificismo francês.

Paim destaca que o comunismo proposto por Marx terminou se aproximando do cientificismo francês, tematizado pelos filósofos que, a partir de início do século XIX, queriam banir o individualismo e o capitalismo, a fim de substituí-los por uma forma de coletivismo apregoado em nome da ciência social emergente com o nome de “sociologia”. Esses pensadores foram, na sua ordem, Henri-Claude de Saint-Simon (1760-1825), Augusto Comte (1798-1857), Pierre-Joseph Proudhon, Jules Guesde (1845-1922) e Jean Jaurès (1859-1914).

Após a morte de Marx, Émile Durkheim (1858-1917), herdeiro da tradição cientificista de Comte e Saint-Simon, completou a formulação da sociologia francesa, lhe atribuindo uma finalidade dogmática e outra prática: a parte dogmática consistiria numa doutrina em que a realidade deveria ser moldada a partir de um conceito totalizante de sociedade orgânica (sendo a estrutura social anterior aos indivíduos). Do lado prático, essa ciência estaria chamada a libertar de vez a sociedade dos vícios do individualismo, mediante a implantação definitiva de um vago socialismo, que o Partido Comunista Francês sempre interpretou como o comunismo nos moldes soviéticos. Surgia, assim, no panorama intelectual francês, o conceito de “ciência engajada”, que teve continuidade, com as mesmas características fixadas por Durkheim (doutrina totalizante e finalidade prática de estabelecer um socialismo genérico), nos momentos subseqüentes do estruturalismo formulado por Claude Lévy Strauss (1908-2009), e do estruturalismo marxista de Althusser (1918-1990).

Aprofundemos um pouco na análise que Paim faz em torno ao surgimento da ciência social francesa com Durkheim. Este autor continuou fiel ao legado de Comte, no que tange à formulação do método sociológico; a sociologia, para ele, deveria rejeitar qualquer explicação individualista e psicológica. A respeito, Paim frisa: “A explicação de tipo científico e objetivo requer que se tome como ponto de partida o fato social, que os fenômenos sociais sejam estudados do mesmo modo que se dá em relação ao aos fenômenos naturais. As Regras do método sociológico definem fato social como correspondendo ao modo pelo qual se exerce sobre o indivíduo coerção de natureza exterior. Os fatos sociais são reconhecidos a partir daquilo que se impõe ao indivíduo. Devem ser observados como coisas” [Marxismo e Descendência, ob. cit., p. 306] . O próprio Durkheim tinha escrito na sua obra citada: “O fator social é reconhecível pelo poder de coerção externa que exerce ou é susceptível de exercer sobre os indivíduos; e a presença deste poder de coerção externa é reconhecível, por sua vez, seja pela existência de alguma sanção determinada, seja pela resistência que o fato opõe a qualquer empreendimento individual, que tente violentá-lo. (...) Ele existe independentemente das formas individuais que toma ao se definir” [apud Paim, Marxismo e Descendência, ob. cit., p. 307].

O método sociológico proposto por Durkheim apresenta um grave problema: cria um objeto fictício da sociologia, ao pretender estudar os fatos sociais não como realidades constatáveis no mundo, mas ao imaginá-los como decorrentes de uma sociedade in abstracto, que é organizada a partir de determinadas categorias ou arquétipos não comprováveis no plano da experimentação. Durkheim, como destaca Aron, esboça “o que será uma das idéias fundamentais em toda a sua carreira: a definição de sociologia como prioridade do todo sobre as partes, ou a irredutibilidade do conjunto social à soma dos elementos, e a explicação dos elementos pelo todo” [Aron, As etapas do pensamento sociológico, tradução de Sérgio Bath, 5ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 292]. Para Aron é claro que o pensamento de Durkheim se organiza em torno a estas idéias essenciais: 1 – a diferenciação social é a condição criadora, nas sociedades modernas, da liberdade individual; 2 – nessa sociedade individualista, o maior problema consiste em manter o mínimo de consciência coletiva; 3 – o indivíduo é expressão da coletividade; 4 – na sociedade, a consciência coletiva é maior do que as consciências individuais [Aron, ob. cit., p. 296-297].

Na raiz da proximidade epistemológica entre o comunismo de Marx e o cientificismo francês, encontramos, como uma das causas dessa afinidade, o fato de que o marxismo, desde as suas origens, esteve sempre com um pé na tentativa de representar conceitualmente a realidade apreendida, mas com o outro pé na idéia de sistema, dando mais importância, no entanto, a esta última variável, como se tudo pudesse ser reduzido, à maneira espinozana, a um único princípio em face do qual, se necessário fosse, seria corrigida, e até negada, a realidade apreendida. Isso aconteceu, por exemplo, com a obra de Marx intitulada: O 18 Brumário de Luís Bonaparte, que tratava de sistematizar os aspectos fundamentais da Comuna de Paris (março-maio de 1871), caracterizada por Marx como uma etapa importante da luta de classes na França.

Ora, o que foi, na sua essência, a Comuna de Paris? Esse acontecimento constituiu, como frisa Antônio Paim, uma insurreição da Guarda Nacional, que foi desmobilizada por ordem do Presidente da República, Adolphe Thiers (1797-1877). A Guarda Nacional, organizada no transcurso da Revolução Francesa, tinha sido suprimida sob Napoleão III. Foi reconstituída em 1870, a fim de fazer frente às tropas alemãs, que tinham ocupado os fortes ao norte e leste de Paris. Nessa reconstituição, a Guarda Nacional chegou a contar com 140 mil homens. Como o conflito com os alemães resolveu-se rapidamente, sem que a Guarda Nacional tivesse entrado em combate, os seus elementos revoltaram-se quando foi dada a ordem de dissolução da mesma pelo chefe do executivo, Thiers. O general encarregado de fazer cumprir a ordem foi preso e fuzilado pelos membros da Guarda Nacional. Instigados por Louis Auguste Blanqui (1805-1880), os oficiais e praças da Guarda Nacional organizaram, junto com os habitantes das áreas populares da cidade, o Conselho Geral da Comuna de Paris. Os conselheiros municipais eram eleitos em sufrágio universal nos diversos subúrbios da cidade, sem que a sua proveniência se estendesse a toda ela. A maioria deles era constituída por operários ou conhecidos representantes deles, manipulados pelos blanquistas e contando com o fanatismo (decorrente do patriotismo frustrado) da Guarda Nacional. Ora é essa insurreição que Marx saúda como o início da revolução proletária na França. Evidente exagero da cabeça do militante germânico. É clara a finalidade perseguida por Marx na análise do processo revolucionário na França: mostrar que estava prestes a surgir o modelo de comunismo totalitário, que ele consagrava como receita messiânica para todos os males das sociedades ocidentais.

Voltando ao tema da aproximação entre Marx e o cientificismo francês, Antônio Paim ilustra a particular influência de Comte sobre o autor de O Capital. Em três pontos poder-se-ia resumir essa inspiração: Em primeiro lugar, na questão da implantação da sociedade racional. Este conceito, em Comte e em Marx, pressupõe que o grupo social que deve pautar essa implantação seja consciente da sua missão. Era o que Marx denominava de “consciência de classe”. A implantação da sociedade racional ocorreria, segundo Comte, pela ação dos “savants positifs”, que deveriam ensinar o método positivo ou científico à sociedade. Para Marx, o comitê revolucionário da classe operária deveria demolir a máquina do Estado, de forma semelhante a como os dirigentes da Comuna de Paris procederam.

Em segundo lugar, a inspiração de Marx em Comte revela-se na acepção de ciência social. Este conceito era entendido, por ambos os autores, como “conjunto de dogmas em relação aos quais não se pode admitir a liberdade de consciência” (Paim, ob. cit., p. 225]. Neste ponto radicaria, no sentir de Paim, o ponto central da divergência entre Marx e Proudhon.

Em terceiro lugar, a influência comteana em Marx é revelada pela forma em que ambos os autores entendem a implantação da ditadura. Comte, como mais tarde faria Marx, falava em “ditadura”. Ambos entendiam, por tal regime, uma estrutura governativa em que o poder executivo forte se pautasse pela ciência social, com total recusa à representação política e com o banimento de qualquer oposição.

III - Ascensão do comunismo, na França, e o seu progressivo domínio sobre o movimento operário, reforçando a tradição do estatismo.

Em decorrência da simbiose entre o marxismo e o cientificismo francês, ocorreu um outro fenômeno que teria forte influência na cultura francesa: a ascensão do marxismo e a agressiva ocupação de espaços pelos militantes desse partido, de forma a tornarem hegemônico o PC sobre o movimento operário, deixando para trás as propostas de socialismo democrático. A obra de Paim detalha esse processo que interessa muito ao leitor brasileiro, toda vez que, entre nós, a tradição cientificista também passou a reforçar a implantação de um modelo de socialismo totalitário, como muito bem tinha deixado claro o nosso autor em estudo anterior intitulado: A escola cientificista brasileira [Estudos complementares à História das idéias filosóficas no Brasil, vol. VI, Londrina: Cefil, 2002].

O particular desenvolvimento do socialismo francês, bem como os riscos enfrentados pela III República, conduziram a que fosse reforçada a hipervalorização do Estado pela sociedade, tendência que já se encontrava presente na sociedade francesa desde o absolutismo de Luís XIV (no século XVIII), passando pelo ciclo napoleônico (no final do século XVIII e início do XIX). A instituição estatal, frisa Paim a respeito, “é verdadeiramente cultuada. Não se trata de imaginá-la superior ou separada da sociedade. O Estado francês está a serviço da sociedade, quer merecer o seu apreço e lealdade pela eficiência. A partir desse entendimento, não se coloca o problema de aceitar que certas atividades deveriam ser efetivadas pela iniciativa privada” [Paim, Marxismo e Descendência, ob. cit. p. 193].

Essa excessiva valorização do papel do Estado na sociedade, considera Paim, é traço que marca a contemporaneidade institucional da França. Para provar a sua asserção, o nosso autor escreve o seguinte: “A singularidade em apreço veio a ser assinalada recentemente no livro L´ Individu effacé ou le paradoxe du libéralisme français [Paris: Fayard, 1997], da autoria de Lucien Jaume, professor de filosofia, diretor de pesquisa do CNRS, especialista em filosofia política e categorias do Estado Moderno, temas de que se tem ocupado em diversas obras. A admissão da hipótese de que o Estado seria um ser moral – e não um pólo de interesses, os da burocracia, como qualquer outro agrupamento social - é comum às principais correntes políticas francesas, fenômeno que se acentuaria no século XX pelos riscos reais a que a República esteve submetida. Nesse particular, não se distinguem liberais de socialistas” [Paim, Marxismo e descendência, ob. cit., p. 194].

Esse espírito favorável ao estatismo constituiu, segundo Paim, circunstância histórica importante que selou a sorte do socialismo democrático francês, às voltas sempre com a tentação totalitária. Tal circunstância foi reforçada, no sentir do nosso autor, pela agressiva atitude dos comunistas. A respeito, afirma Paim: “A segunda circunstância histórica que marcou em definitivo o socialismo democrático francês seria a batalha travada com os comunistas, em 1920, pela posse da máquina partidária. Naquela oportunidade predominou o entendimento de que não caberia renegar o marxismo, mas apenas a interpretação leninista” [Paim, Marxismo e Descendência ob. cit., p. 194].

O socialismo democrático, contudo, teve, na França, um formulador importante que identificou a opção por esse sistema como questão moral, num contexto de tolerância e pluralismo em face de outras correntes políticas: Pierre-Joseph Proudhon (1809-1864). Em virtude desse caráter eminentemente culturológico vinculado à opção socialista, este pensador foi menosprezado por Marx, para quem unicamente valia a opção de comunismo totalitário, sem maiores preocupações morais, e num contexto em que a única variável que deveria ser levada em consideração era a da conquista do poder, com exclusão de qualquer oposição, negando também o pluralismo. Paim deixou, na sua obra, clara a diferença entre ambos os autores, com as seguintes palavras: “Outro traço distintivo do socialismo proudhoniano, em relação ao comunismo marxista, reside no fato de que Proudhon, em sua obra madura, ressaltaria o caráter moral da aspiração socialista. Justamente essa herança proudhoniana levaria o socialismo europeu a distanciar-se cada vez mais do legado de Karl Marx, distanciamento que se coroa com o surgimento, em nosso tempo, da social-democracia. Provindo do socialismo e preservando o seu sentido moral, a social-democracia singulariza-se ao reconhecer o caráter ilusório do ideal da sociedade sem classes e dissociar-se da plataforma voltada para a estatização da economia” [Paim, Marxismo e Descendência, ob. cit., p. 236].
 
O nosso autor destaca que o processo evolutivo do socialismo francês foi se distanciando cada vez mais do pluralismo proudhoniano, para enveredar pelo caminho do estatismo, com a ajuda decisiva de Karl Marx. Analisa essa evolução ao ensejo da exposição das idéias de dois importantes líderes socialistas: Jean Jaurès (1859-1914) e Jules Guesde (1845-1922). Jaurès recebeu sólida formação filosófica, na melhor tradição hegeliana preservada na École Normale por Victor Cousin (1792-1867). Para ele, o marxismo não consistia num dogma, a partir do qual todos os fenômenos sociais pudessem ser deduzidos. Jaurès considerava que o socialismo era fundamentalmente moral e achava que da contraposição entre sistemas coletivistas e individualistas poderia emergir um tipo de produção corporativa, na qual os gestores seriam eleitos por sufrágio universal dos membros do grupo, sendo o socialismo uma síntese entre o individualismo proudhoniano e o coletivismo marxista. Graças às suas teses democráticas e moderadas, Jaurès conseguiu manter unidas as várias facções socialistas (inclusive os comunistas de Guesde) e ganhar pleitos eleitorais importantes, em 1910 e em 1914, consolidando a Section Française de l ´International Ouvrière (SFIO) como força política emergente. No entanto, com o acirramento dos conflitos sociais e políticos ao ensejo da deflagração da 1ª Guerra Mundial, Jaurès foi assassinado em Paris, em 1914, selando assim a polarização dos socialistas franceses com a opção revolucionária preconizada por Guesde.

O grupo de socialistas de inspiração democrática sob a orientação de Jaurès pretendia, mediante reformas, levar a nova organização operária a revitalizar a política da República francesa, como forma de implantar o socialismo. Importante historiador do movimento socialista na França, Daniel Ligou, citado por Paim, escreveu a respeito: “O objetivo do socialismo será alcançado não somente pela organização da classe operária em partido de classe, mas também pela edificação, peça por peça, de instituições novas”. Esse empenho reformista, no entanto, chocou-se, no interior da SFIO, com as propostas revolucionárias de Guesde – partidário de um golpe de Estado -.  Isso conduziu a organização operária a uma espécie de limbo político, que terminou tragicamente com o assassinato de Jaurès e a eclosão da 1ª Guerra Mundial, que sepultou as tendências pacifistas dos socialistas moderados franceses e alemães, partidários de reformas. Apenas para ressaltar a clarividência de Jaurès, lembremos que ele pensava que os socialistas dos vários países envolvidos no conflito (notadamente os franceses e os alemães) deveriam envidar esforços para a criação de uma instância internacional que negociasse a paz (uma instituição precursora da Liga das Nações e das Nações Unidas).

Sob a orientação de Jules Guesde e com a participação do próprio Marx foi apresentado, em 1880, o “Programa Mínimo” que deveria aglutinar os marxistas franceses, diferenciando-os das demais facções socialistas. Embora o sufrágio universal fosse reconhecido como meio de ação do socialismo, Guesde considerava que a ação parlamentar não transformaria a sociedade, sendo necessário formar, como escreve Ligou, “uma coluna de assalto que, graças à posse do Estado, possa enfrentar a Bastilha feudal, porquanto a transformação econômica não será pacífica” [Daniel Ligou, Histoire du socialisme en France – 1871-1961, Paris: PÙF, 1962, citado por Antônio Paim].

Jules Guesde era originário do blanquismo e do anarquismo e aderiu ao marxismo na segunda metade da década de 1870. Nesse período e no transcurso das décadas seguintes, “o marxismo é essencialmente o guesdismo”, como afirma Ligou. Após o assassinato de Jaurès, em 1914, a SFIO, chefiada por Guesde, termina sendo controlada pelos comunistas obedientes a Moscou. A situação torna-se de total dependência em relação ao PC da União Soviética, no Congresso dos Socialistas Franceses reunido em Tours, em 1920. A SFIO é aniquilada por pressão soviética, somente restando os socialistas fiéis a Moscou, que passam a integrar a Section Française de l´International Communiste (SFIC), que recebeu o nome de Partido Comunista Francês, após 1943. A característica marcante do novo socialismo francês foi, em conclusão, a fidelidade à IIIª Internacional (reunida em 1920) e ao Partido Bolchevista. Tão forte foi o alinhamento dos comunistas franceses às ordens de Moscou que, ao ensejo da Segunda Guerra Mundial, o Secretário Geral do PCF, Maurice Thorez (1900-1964) fixou residência em Moscou, até que a URSS entrasse na guerra (em meados de 1941), ignorando até mesmo a ocupação da França pelas tropas alemãs (junho de 1940). Esse estranho fenômeno, lembra Paim, levou a um grande historiador como Maurice Druon a escrever o magnífico ensaio intitulado: La France aux ordres d´un cadavre [Paris: Éditions de Fallois, 2000, cit. por Paim, Marxismo e Descendência, ob. cit., p. 174-175].


Conclusão.

A obra de Paim é uma contribuição de grande valor crítico para a cultura brasileira, levando em consideração que, entre nós, terminou vingando o mesmo esdrúxulo conceito de ciência social dogmática, a serviço da implantação de um socialismo autoritário, na trilha identificada por Leônidas de Rezende, em 1918, de aproximação entre marxismo e positivismo, no contexto mais amplo da velha tradição cientificista que se remonta, no panorama luso-brasileiro, às reformas do Marquês de Pombal.


Ora, a nossa situação não difere muito do surto estatizante pelo qual enveredou a cultura francesa, carregando consigo o ideal de um socialismo democrático e comprometendo a isenção e a objetividade das ciências sociais. É clara a simpatia, no Brasil, de expressivos setores da inteligentsia, pela ciência social engajada com a implantação de um modelo de socialismo estatizante com tons totalitários, que assomam notadamente, agora, no seio do lulopetismo no poder, nas inúmeras tentativas para impor um modelo de socialismo tutelado por conselhos atrelados ao executivo hipertrofiado, que tudo enxergam a partir do Estado forte, e que menosprezam a atuação da sociedade civil. Isso, em que pese o fato de ser esta a que financia, graças à iniciativa privada aplicada ao agronegócio, ao comércio e à indústria, não somente os minguados investimentos em infra-estrutura, saúde e educação, mas, sobretudo, a festança da corrupção deslavada e das benesses cartoriais das inúmeras bolsas distribuídas, pelos donos do poder, à torta e à direita, sem nenhum controle, comprometendo a lei de responsabilidade fiscal.