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segunda-feira, 26 de abril de 2010

JOHN LOCKE (1632-1704) - SÍNTESE ENTRE EMPIRISMO E LIBERALISMO

A filosofia de Locke é, indiscutivelmente, ponto importante na sistematização do empirismo, bem como do nexo estabelecido com o liberalismo, do qual é a figura mais importante no pensamento inglês. John Locke nasceu em Wrington, em 162 e faleceu em 1704.

Recebeu formação eclética, em que se conjugaram importantes tradições filosóficas: na Westminster School e no Christ Church College, de Oxford, realizou os seus primeiros estudos, tendo-se ali familiarizado especialmente com a tradição medieval inglesa, terreno no qual teve grande influência no nosso autor a obra de Richard Hooker (1554-1600) intitulada The Laws of Ecclesiastical Polity. Cursou os estudos de Medicina na Universidade de Oxford, onde recebeu várias influências doutrinárias, sendo as mais importantes: 1 - a de John Owen (1616-1683) que defendia a idéia da tolerância religiosa; 2 - a de Descartes (1569-1650), que lhe abriu as portas da filosofia moderna; 3 - a de Robert Boyle (1627-1691), que propunha o moderno conceito de elementos químicos, criticando a tradicional teoria dos quatro elementos; e 4 - a de Thomas Sydenham (1624-1689), que revolucionou o método de estudo da medicina, alicerçando-o na observação empírica dos pacientes, abandonando os dogmas de Galeno (130-200).

Duas linhas de pensamento, estreitamente vinculadas, foram desenvolvidas por Locke ao longo da sua vida intelectual: a sistematização da filosofia empirista e a organização da proposta liberal, em matéria política, como um dos inspiradores (o mais importante, sem dúvida nenhuma), da Revolução Gloriosa de 1688, que derrubou definitivamente o absolutismo na Inglaterra, dando ensejo ao modelo da Monarquia Constitucional.

As principais obras de Locke são as seguintes: Constituições fundamentais da Carolina, Quatro cartas sobre a tolerância (1692), Ensaios sobre educação (1693), Dois tratados sobre o governo civil (1689-1690), e Ensaio sobre o entendimento humano (1690).

Idéias fundamentais de Locke em relação à Teoria do Conhecimento

1. O conhecimento só diz relação às idéias, pois elas constituem o objeto imediato e exclusivo do nosso espírito. As idéias classificam-se assim:

Idéias simples (não passíveis de clarificação), que se dividem, por sua vez, quanto à origem, em:

- Idéias de sensação, que são de três tipos: qualidades primárias (solidez, extensão, forma, mobilidade), qualidades secundárias (cheiros, sabores, cores), poderes passivos (provenientes da capacidade que têm as coisas de produzirem em nós idéias).

- Idéias de reflexão (lembrança, discernimento, raciocínio, juízo, conhecimento e fé).

- Idéias de sensação re reflexão (prazer ou tristeza, alegria ou dor, existência, unidade e poder ativo, que consiste na capacidade, predominantemente espiritual, de produzir efeitos).

Idéias complexas (passíveis de clarificação), que se dividem em:

- Modos.

- Substâncias (Deus, espíritos separados, coisas, homens, animais).

- Relações.

2. Todo conhecimento consiste na apreensão de um acordo entre as idéias, que pode ser de 4 espécies:

- Identidade ou diversidade (por exemplo: o azul não é o amarelo).

- Relação (por exemplo: a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a 180º).

- Coexistência ou conexão necessária (por exemplo: o aço é susceptível de receber impressões magnéticas).

- Existência (por exemplo: Deus existe).

3. São várias as vias que nos permitem chegar ao conhecimento:

- Intuição (apreensão imediata do acordo ou desacordo entre as idéias).

- Demonstração (quando esse acordo ou desacordo só pode apreender-se indiretamente por intermédio de outras idéias).

- Sensação (o conhecimento sensitivo permite-nos conhecer atualmente a existência de coisas fora de nós).

4. Só a intuição nos dá verdadeiras certezas e, por isso, o objetivo da demonstração consiste em conduzir-nos a intuições.

5. Quanto ao conhecimento sensitivo, embora seja meramente provável, é suficiente para nos dar a certeza de que existe algo fora de nós.

6. Quanto à existência, pode ela ser conhecida por meio da intuição (a minha própria existência), da demonstração (a existência de Deus), ou da sensação (a existência de algumas coisas fora de nós).

7. Os juízos relativos à afirmação da existência (algo existe) são os mais radicais e são pressupostos pelos outros juízos.


Idéias fundamentais de Locke em relação ao Liberalismo

1. O indivíduo no “estado de natureza”. Todo ser humano tem direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses.

2. Assim como não há verdades inatas, também não há poderes inatos (crítica à obra de Sir Robert Filmer, intitulada: O Patriarca)

3. No “estado de natureza” o indivíduo só conta com as suas próprias forças para ver garantidos os seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses. Todo homem possui poderes naturais: a Razão (que enxerga a lei natural), o Discernimento (que julga os atos justos e os injustos) e a Força Física ((mediante a qual nos defendemos das agressões). Esta é a origem remota da tripartição de poderes na sociedade.

4. Insuficiência da força individual para garantir os direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses. Deduz-se, daí, a necessidade de o indivíduo se associar. O homem entra em sociedade, graças à sua natureza sociável. O homem é, como dizia Aristóteles, um “animal político”.

5. Ao se associar, o indivíduo transfere aos seus representantes, no Parlamento, a incumbência de defendê-lo na luta pelos seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses. No seio do Parlamento, o Legislativo é o poder supremo, de onde emerge o Executivo (Gabinete). O Judiciário emerge das urnas, que exprimem a vontade popular.

6. Lei da Maioria: no seio do Legislativo, impõe-se a vontade da maioria.

7. O corpo político tem direito a se representar (no Rei, que obedece ao Parlamento). Possui, também, o direito a se defender (mediante o Poder Federativo, que consiste na união de todas as forças vivas da Nação para a sua defesa). O Executivo pode declarar a Guerra, autorizado pelo Parlamento.

8. Voto censitário: Só podem votar ou serem votados os proprietários. Quem não possui nada. Quem nada possui, não é responsável e precisa ser tutelado (miseráveis, mulheres, velhos e crianças). Base calvinista da representação: bom cidadão é aquele que fez uma obra digna da glória de Deus. (“Liberalismo possessivo”, no sentir de Macpherson).

9. A guerra civil constitui a doença do corpo social, que pode conduzi-lo à morte, que é a dissolução do pacto político.

10. Ulterior evolução da Representação na Inglaterra, até se chegar à adoção do sufrágio universal (reformas de Gladstone: voto secreto, em 1872, e a divisão do país em distritos eleitorais, em 1884; adoção do sufrágio universal pleno, em 1928, por influência dos líderes trabalhistas).

domingo, 25 de abril de 2010

MARXISMO E DESCENDÊNCIA

O título deste artigo corresponde ao do último livro de Antônio Paim, publicado pela Vide Editorial de Campinas, no final de 2009 (593 pg.). Faltava, no Brasil, uma avaliação crítica do marxismo, que abarcasse os suas manifestações nos terrenos econômico, político e cultural e as confrontasse, historicamente, com os desdobramentos ocorridos ao longo dos séculos XIX e XX. É o que faz na sua obra o historiador das idéias, formado em Filosofia, ao longo dos anos 50 do século passado, na Universidade Lomonosov, de Moscou, e na Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Antônio Paim é figura conhecida do nosso universo cultural, tendo-se destacado, a partir da publicação do seu livro História das idéias filosóficas no Brasil, em 1967 (São Paulo: USP / Grijalbo), como o mais importante historiador do pensamento brasileiro.


A obra Marxismo e descendência consta de três partes: I – A doutrina marxista do Estado, II – A doutrina marxista da sociedade e III – A doutrina marxista do pensamento. Na primeira parte, o autor desenvolve os seguintes itens: 1- a doutrina do Estado patrimonial; 2 - a meditação de Marx sobre o Estado; 3 - presumível legado marxista inspirador de Lenine; 4 - a inspiração de Marx, presente na concepção leninista do Estado; 5 - ação teórica e prática de Lenine na estruturação dos institutos básicos do sistema totalitário.


A segunda parte consta destes itens: 1- como se deu a organização do partido comunista francês; 2 - esgotamento do partido comunista na vida política e cultural francesa; 3 - o amadurecimento do cientificismo francês; 4 - a doutrina da sociedade de Marx; 5 - superação das lacunas da doutrina marxista da sociedade pela sociologia francesa, na obra de Durkheim; 6 - aprofundamento do cientificismo pelos discípulos e eliminação da divergência com o marxismo; 7 - o estruturalismo como exacerbação do cientificismo, a adesão do marxismo e seu desfecho.


Na terceira parte, são desenvolvidos estes itens: 1 - a filosofia de Marx; 2 - a tradição filosófica e a problemática contemporânea; 3 - a recepção do marxismo nos principais países europeus (fins do século XIX e início do século XX); 4 - A estruturação da vulgata marxista; 5 - duas tentativas de interpretação autônoma e seu desfecho; 6 - a tentação do niilismo.


Da análise feita por Paim fica claro que, para Karl Marx (1818-1883), um elemento permanece constante, como finalidade essencial, em toda a sua obra: conquistar a vitória do proletariado nas sociedades européias ocidentais (Alemanha, França, Inglaterra) mediante a eliminação violenta do Estado burguês. Marx considerava ser ele o líder único e infalível dessa revolução. Para conseguir esse seu intuito, não duvidou em sacrificar os fatos aos seus esquemas teóricos. A verdade claudicou diante da militância política. Marx foi desmoralizando, um a um, todos os pensadores e líderes socialistas que tinham aderido a um socialismo democrático, diferente do modelo totalitário por ele apregoado. Fez isso, por exemplo, na Alemanha, contra Ferdinand Lassalle (1825-1864) e, na França, contra Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Paim deixa claro que houve influência muito grande do regime apregoado por Marx sobre o adotado, na Rússia, após a Revolução de 1917, por Lenine (1870-1924). Para ambos, somente valia um tipo de comunismo: o imposto pelo líder, com total banimento da dissidência. Na Rússia, o regime bolchevique foi o novo capítulo do “despotismo oriental” czarista.


Paim destaca que o comunismo proposto por Marx terminou se aproximando do cientificismo francês, tematizado pelos filósofos que, a partir de início do século XIX, queriam banir o individualismo e o capitalismo, a fim de substituí-los por uma forma de coletivismo apregoado em nome da ciência social emergente com o nome de “sociologia”. Esses pensadores foram, na sua ordem, Henri-Claude de Saint-Simon (1760-1825), Augusto Comte (1798-1857), Pierre-Joseph Proudhon, Jules Guesde (1845-1922) e Jean Jaurès (1859-1914).


Após a morte de Marx, Émile Durkheim (1858-1917), herdeiro da tradição cientificista de Comte e Saint-Simon, completou a formulação da sociologia francesa, lhe atribuindo uma finalidade dogmática e outra prática: a parte dogmática consistiria numa doutrina em que a realidade deveria ser moldada a partir de um conceito totalizante de sociedade orgânica (sendo a estrutura social anterior aos indivíduos). Do lado prático, essa ciência estaria chamada a libertar de vez a sociedade dos vícios do individualismo, mediante a implantação definitiva de um vago socialismo, que o Partido Comunista Francês sempre interpretou como o comunismo nos moldes soviéticos. Surgia, assim, no panorama intelectual francês, o conceito de “ciência engajada”, que teve continuidade, com as mesmas características fixadas por Durkheim (doutrina totalizante e finalidade prática de estabelecer um socialismo genérico), nos momentos subseqüentes do estruturalismo formulado por Claude Lévy Strauss (1908-2009), e do estruturalismo marxista de Althusser (1918-1990).


A obra de Paim é uma contribuição de grande valor crítico para a cultura brasileira, levando em consideração que, entre nós, terminou vingando o mesmo esdrúxulo conceito de ciência social dogmática, a serviço da implantação de um socialismo autoritário, na trilha identificada por Leônidas de Rezende, em 1918, de aproximação entre marxismo e positivismo, no contexto mais amplo da velha tradição cientificista que se remonta, no panorama luso-brasileiro, às reformas do Marquês de Pombal.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

ASPECTOS ÉTICOS E ANTROPOLÓGICOS DA MEDITAÇÃO DE VICENTE FERREIRA DA SILVA (1916-1963)

 Vicente Ferreira da Silva, "a maior vocação metafísica do Brasil", segundo Miguel Reale (1910-2006)

Mito e Cultura constituem, sem dúvida, duas categorias chaves da meditação de Vicente Ferreira da Silva, porque à luz delas se desenvolve a concepção ferreiriana sobre a ética e a antropologia. É o meu propósito, nesta exposição, refletir sobre elas, destacando a forte originalidade que as permeia. Desenvolverei três pontos: 1) O homem, irredutível ao geograficamente dado, graças à vivência do mundo eidético; 2) O homem, irredutível às utopias, graças à fundação poética da sua essência; 3) A moral lúdica, na superação do mito do progresso indefinido.

1) O homem, irredutível ao geograficamente dado, graças à vivência do mundo eidético

No seu breve ensaio "O Andróptero", Vicente Ferreira da Silva salienta uma visão não determinística do homem, a partir da dimensão de abertura ao ser, típica da sua humanitas. Os homens somos vítimas, frisa Ferreira da Silva, do "provincianismo geográfico" que tinha tipificado Platão no seu diálogo Fédon. Nesse diálogo, "depois de afirmar que esta terra não corresponde à imagem que dela fazem os que costumam redatar descrições de sua superfície, Platão nos diz ser a terra incomensuravelmente grande, possuindo uma infinidade de lugares maravilhosos que desconhecemos por habitarmos entre Farsis e as Colunas de Hércules. Fechados nesse exíguo círculo, entre vales e escarpas confinantes, não temos muitas vezes sequer o pressentimento das paragens divinas que nos envolvem, dessa terra pura que domina a nossa terra. Tendo fixado nossa residência neste solo pedregoso e estéril, aqui vivemos disseminados pelas praias e costas, como formigas e rãs em redor de um pântano. Este provincianismo geográfico desastroso e fatal, que se nos adere, termina por nos cegar, e deixamos então de perceber que a terra que pisamos, estas pedras e todos os lugares que habitamos, estão inteiramente corrompidos e arruinados como aquilo que jaze no mar o está, pela acritude dos sais (...)"[1].

A ilusão, frisa o pensador paulista, é a arma que empregamos para sentir-nos "senhores das alturas" e apagar, no seio da nossa consciência, todos os sintomas de sujeição e abatimento que produz o provincianismo geográfico. Assim, frisa Ferreira da Silva, "(...) escapamos ao nosso cativeiro pelo expediente da má fé e da falsificação (...)"[2]. Platão, num outro diálogo, o Fedro, caracterizou muito bem a situação da alma falsamente liberada pela ilusão: "(...) Quando a alma perde suas asas, roda pelos espaços infinitos até aderir a alguma coisa sólida, fixando aí sua morada. Essa coisa sólida -- considera Ferreira da Silva -- é constituída pelo sistema de nossos limites, de tudo quanto é externo, de todo o domínio da materialidade (...)[3].

A doutrina platônica das idéias aparece, nesse contexto de determinismo e opressão, como uma filosofia salvadora. "A virtude das asas -- afirma Platão -- consiste em levar o que é pesado para as regiões superiores"[4]. Porém, frisa Ferreira da Silva, é preciso interpretar corretamente as idéias, não como uma cópia exaurida da realidade sensível, pois perderiam assim toda a sua originalidade, e já não seriam Ser original ou matrizes absolutas. E caracteriza assim a sua verdadeira essência: "(...) A Idéia é justamente o contrário de um conceito, que está sempre aquém do sensível, tendo virtudes e propriedades completamente distintas. Enquanto os conceitos nos encerram no determinado e no finito, pondo-nos em relação com um dado insuperável, as Idéias nos lançam num processo infinito de perfeição e de plenitude, fazendo-nos ultrapassar todo o imediato (...)"[5]. Assim, o mundo eidético, "esse Eros cosmogônico que mantém o Universo em existência" exerce um papel distensivo e libertador ao permitir-nos a evasão do puramente fáctico, bem como do confinamento a que nos reduzem os sentidos e os conceitos. Em que pese o fato de serem "realizadas, imóveis e estáticas", as Idéias são "o princípio de todo o movimento no mundo sensível, estando este em constante radiação para esses paradigmas insuperáveis do Ser"[6].

Só existe um caminho para a verdadeira libertação: a abertura ao pensamento eidético, que é a abertura ao Ser e que exige de nós um duro sacrifício: "(...) o da entrega a uma perfeição que não solicita o nosso consentimento para a sua constituição, exigindo a genuflexão de nossa vontade (...). Quando entramos em cena o drama do ser já se cumpriu, pois está realizado desde todo o sempre e o nosso único papel seria o de reconhecer, ou não, a legitimidade de sua soberania (...)[7].

Fora dessa perspectiva de abertura ao plano eidético, todo é "mímesis, cópia, mera reprodução". Nesse contexto de inautenticidade, o real se nos apresenta "como pensamento pensado e não como pensamento pensante". Caímos então numa posição metafísica de cujas dificuldades não conseguiu escapar o próprio Platão, "quando este se defronta na República com o problema de explicar porque devem voltar a este mundo, para desempenhar o seu papel de mentores e governantes, aqueles que fixaram sua morada no templo das Idéias. Compreende-se, pois, perfeitamente a pergunta de Glaucon a Sócrates: Por que condená-los a uma vida miserável, se eles podem desfrutar de uma vida mais feliz? (...)". Ferreira da Silva formula esta pergunta, que traz até nós a preocupação do interlocutor de Sócrates no diálogo platônico: "(...) Se a felicidade e o objetivo da vida estão além da história, se o tempo e o curso das coisas humanas não constituem um fator substancial da realidade, por que exigir de quem se elevou a uma ordem superior de existência que se ocupe e se responsabilize pela gestão das sombras?"[8]

2) O homem, irredutível às utopias, graças à fundação poética da sua essência

Ferreira da Silva reconhece duas formas de utopismo que afetam ao homem: a normal, que faz ênfase no fato de ter uma norma canônica do existir humano, "um regime definitivo em que o homem entraria em plena congruência com o seu desenho essencial"[9]. Nesse utopismo deitam raízes as idéias de uma idade de ouro ou de uma nova Atlântida.

A segunda forma de utopismo baseia-se no reconhecimento de que "o homem em sua natureza é um ser construtível, tanto do ponto de vista interior, como do ponto de vista exterior, e que portanto pode ser conduzido ou reconduzido à sua forma nomal"[10].

O filósofo paulista salienta que o homem, nas Utopias, é tomado como um objeto destituído de qualquer dialética interna. Trata-se, sem dúvida, de um vulgar determinismo, cuja essência é assim explicada pelo nosso autor: "(...) Se considerássemos o homem como um simples sistema de necessidade, ou como uma ordem de apetites psico-somáticos, seríamos forçados a admitir sempre uma proporção direta entre o sentimento de poder interno, de plenitude e satisfação humana e o aumento das condições e dos meios externos de satisfação desses apetites (...)"[11].

Ferreira da Silva frisa, contudo, que a reflexão patenteia que o homem é um puro imprevisível, que não pode ser construído ou programado mediante um conjunto de técnicas sofisticadas controladas pelo Estado: "(...) A mais sumária reflexão nos demonstra, entretanto, quão negligente à realidade é essa pretensa proporção que comanda esta forma de pensamento: num certo aspecto, o homem é um puro imprevisível, sendo a sua coerência de ordem mais profunda do que entende o utopismo. A utopia social implica, evidentemente, uma certa ordem no suceder das coisas, exige que a um mais corresponda sempre um mais e a um menos sempre um menos, pois não teria sentido trabalhar numa certa direção se não estivesse garantido o resultado. A própria idéia de construtibilidade no sentido utópico, que envolve todo um conjunto de técnicas que facultaria a um poder estatal a construção de um determinado tipo de sociedade e ipso facto de uma certa figura antropológica, viria a perder seu sentido se puséssemos em relevo esta rebeldia metafísica da consciência humana (...)"[12].

O utopismo peca justamente por desconhecer esta "rebeldia metafísica" essencial ao homem, ao tentar quantificá-lo em resultados mensuráveis. Ferreira da Silva refere-se a esse aspecto nestes termos"(...) O utopismo está baseado numa versão muito superficial do que poderíamos denominar a lógica existencial do homem, a sua coerência interna e não podemos fugir à impressão de que lida com o homem, como se este fosse uma quantidade fixa, um termo que se manteria constante em todas as suas operações. Sob um outro ângulo, o utopismo não considera a variação histórica dos desiderata, impulsos e idéias humanas e toda a fluente e incoercível realidade da história (...)[13].

Ferreira da Silva assinala um aspecto muito importante dessa "rebeldia metafísica" do homem: a liberdade. Aí deita raízes a distinção profunda entre o homem e as coisas que podem ser programadas: "(...) A escolha, no homem, é sempre seleção, alternativa, privação, o que o distingue essencialmente de todas as coisas que podem passar por diversas fases de elaboração, permanecendo sempre aptas a serem conduzidas à perfeição previamente estabelecida. Ao optar, o homem cria condições novas e particulares, novas determinações do seu ser, que passam a limitar e cercear as novas opções, apresentado à sua vida um conjunto circunstancial sempre diferente (...)"[14]. O filósofo paulista exprime a absoluta originalidade humana, em palavras que lembram o pensamento de Heidegger: "(...) O homem assemelha-se a um viandante que, ao se perder numa floresta, fosse destruindo todas as pontes e passagens que o ligavam ao ponto de partida, não lhe restando, portanto, outro recurso senão marchar para a frente (...)"[15].

O utopismo, pelo contrário, frisa Ferreira da Silva, pressupõe que o projeto humano pode ser decomposto em etapas quantificáveis, numa alusão às teorias desenvolvimentistas que apregoam um planejamento da sociedade, do estritamente econômico e material e até do propriamente humano: "O pensamento utópico, entretanto, (...) julga que o problema humano pode ser decomposto em fatores particulares, podendo uma parte esperar a solução da outra e afirmando ipso facto que a sociedade se pode dedicar primeiro a salvar os seus problemas materiais mais urgentes para depois enfrentar tarefas de mais alto significado. Esta crença vêmo-la despontar quando ouvimos dizer que tal ou qual país está sacrificando uma ou duas gerações na construção de uma infra-estrutura incomovível que lhe possibilite depois um apogeu espiritual (...)"[16].

Essa falsa pressuposição do utopismo inspira-se numa visão simplista do homem, que pretende manter a sua identidade espiritual mediante processos de manipulação extrínseca. O filósofo levanta duas objeções contra essa pretensão que, mesmo que não tenha identificado explícitamente, materializou-se, no Brasil, nas várias tendências determinísticas que, como o positivismo, inspiraram em boa medida as idéias desenvolvimentistas postas em marcha nas últimas décadas: "(...) Porém, uma vez criada essa ordem econômica perfeita, estaria ainda o homem na mesma disposição em relação aos seus antigos ideais? Permaneceria intacta a sua fé através desse período de transformações unilaterais? Estas são duas das objeções possíveis ao dogma da construtibilidade parcelada do homem, que se inspira evidentemente numa apreensão objetivante e desmerecedora do homem. Um pequeno número de idéias simplistas e ingênuas orientam este modo de pensamento. Conhecidas as cadeias causais próprias dessa coisa que é o homem, poderíamos então submetê-lo a uma manipulação racional e científica (métodos pedagógicos, higiênicos, eugênicos, reflexológicos, etc.) em analogia com os processos usados na criação de animais domésticos"[17].

Ferreira da Silva salienta que a afirmação da homogeneidade absoluta do real é a premissa básica da construtibilidade utópica: "Uma premissa se esconde sob a crença da construtibilidade utópica do homem: é a afirmação da homogeneidade absoluta do real. O real se poria como uma extensão homogênea de entidades físicas e naturais que absorveriam em si a totalidade do conhecido. Nenhuma negatividade interna conturbaria a organização dessa massa inerte. Uma vez conhecido o determinismo intrínseco do real, poderíamos afeiçoá-lo ao nosso gosto, dando-lhe a forma mais conveniente ao seu funcionamento natural, aos objetivos postos (...)"[18].

A visão utópica da realidade teve uma origem filosófica: a República platônica. A respeito, afirma Ferreira da Silva: "(...) Platão consagrou definitivamente a crença de que o homem tem uma medida a cumprir em todos os seus atos e de que o ideal de uma vida justa consiste na participação de um modelo essencial. Esta República ideal de Platão não seria uma invenção arbitrária dos legisladores, nem uma imposição de uma elite de força, mas sim um teorema da razão, uma exigência da natureza inteligível do homem"[19].

Contudo, apesar desse caráter puramente teorético, que tipifica a República platônica, o seu utopismo não se pode afiançar sem a sua materialização num regime universalmente válido "que polarize todos os espíritos numa mesma conexão racional e que imponha uma mesma meta a todos os esforços (...)". A utopia pode-se colocar no passado, como um paraíso perdido, ou no futuro longínquo, como um regime ideal a ser alcançado; porém, frisa o filósofo paulista, "(...) é a utopia sempre a mesma representação de um regime idealmente necessário dos homens e das coisas, a equação da vida com um código eterno da natureza. Um tal sistema, pelo seu próprio caráter, faz tabula rasa do tempo, pois é a fórmula política de todos os tempos. É o próprio testemunho da História que demonstra o caráter sofístico desta carta política ideal e utópica, dessa legislação universal superior aos tempos e aos lugares (...)"[20].

O autor sintetiza assim a problemática debatida por ele nas páginas do seu artigo "Utopia e liberdade": "(...) O que está em jogo aqui é, evidentemente, uma questão de ordem metafísica, a saber: se o homem tem uma medida invariável através dos tempos, um modelo essencial, ou se pelo contrário o homem é o fruto de seu fazer histórico, de sua liberdade e inventividade fundamentais (...)"[21].

Ferreira da Silva enfatiza a sua concepção de inspiração heideggeriana acerca da essência do homem: "(...) Parece-nos que o mais íntimo do homem consiste justamente nessa fundamentação poética de sua essência, nessa autoprojeção de sua fisionomia humana; e assim não se pode reger por sistema de fins dados de uma vez para sempre. Este regime definitivo da utopia nada mais é do que uma ilusão constante do espírito, propenso a dar valor permanente aos tipos de conduta, e aos valores históricos sempre contingentes e gratuitos"[22].

3) A moral lúdica, na superação do mito do progresso indefinido

A crise do homem contemporâneo é caracterizada por Ferreira da Silva assim: "um veneno insidioso foi se infiltrando lentamente no corpo da sociedade atual, um veneno estranho e invisível, cujos sintomas, tornando-se cada vez mais nítidos, incapacitaram o homem para as suas mais autênticas realizações. Uma atmosfera de constrangimento e de frustração circunscreve o campo da consciência e por todos os lados a expectativa do que está por vir tinge de cores carregadas as perspectivas vitais (...)"[23].

Esse veneno e essa atmosfera de constrangimento estão identificados, a partir do século XIX, com o mito do progresso indefinido, que mudou a transcendência numa transdescendência, ofuscando o propriamente humano. A propósito, frisa Ferreira da Silva: "(instaurou-se) o mito do progresso contínuo, invertendo a ordem dos meios e dos fins, numa caça exaustiva de recursos que nunca desembocavam numa promoção da vida por si mesma. A transcendência original do viver transmutou-se numa transdescendência, isto é, num aprofundamento material cada vez mais acentuado, toda ação passando a ser interpretada unicamente como ação transitiva, utilitária ou econômica, como transformação das coisas e do mundo, mas perdendo-se em vista o escopo de todo o movimento. A ordem sem fim dos meios, o mal infinito dos instrumentos ofuscou a alma e o (seu) ato fundamental, o exercício ético das virtudes propriamente humanas (...)"[24].

O conhecimento operacional, frisa o nosso autor, é uma "visão subsidiária e não teoria filosófica total". Por pretender sê-lo, tornou-se "conhecer monstruoso", na expressão de Kierkegaard. "(...) O que negamos é que esse conhecimento operacional -- escreve Ferreira da Silva --, visão subsidiária e não teoria filosófica total, possa nos instruir no tocante à forma última de nossa vida (...)"[25]. Na hipertrofia da atividade produtiva do homem atual, a sociedade perdeu o controle dos mecanismos que pôs em movimento.

O efeito mais grave dessa hipertrofia consiste no fato de que os colossos nacionais da técnica encheram o coração do homem de mais apreensões e temores. A solução adequada para esse conflito consiste na modificação simultânea do homem e de suas condições materiais de vida, com ênfase numa inflexão do comportamento moral. Essa será a única forma de superar o caráter para, absolutamente utilitário, da ação moderna, que leva a uma transitividade insubstancial.

Nesse esforço de reivindicação do autenticamente humano, colabora conosco a noção de espírito do cristianismo, que nos capacita para valorizar as coisas em si mesmas. "(...) Para Aristóteles -- frisa Ferreira da Silva --, que vivia no âmbito do intelectualismo grego, somente a contemplação e a filosofia respondiam a tais exigências. Nós, entretanto, educados numa tradição cristã, não necessitamos limitar às virtudes dianoiéticas este poder de salvação, pois a nossa noção de espírito é muito mais ampla. O amor, as livres atividades criadoras, são também coisas que se buscam por si mesmas"[26]. Encontramos neste aspecto da meditação ferreiriana uma inovação com relação à perspectiva heideggeriana, que ao menos na Carta sobre o Humanismo, enxerga o fenômeno cristão simplesmente como mais um humanismo que limita as livres atividades criadoras do homem.

Ferreira da Silva salienta o valor do jogo, como símbolo da conduta ética que dá valor as coisas em si mesmas. "(...) O objetivo do jogo é o jogo, é a ação da ação, o ato do ato. Como símbolo de uma conduta que encontra o deleite no completo, a atividade lúdica é o mais próximo paradigma de um sentido de felicidade que o homem moderno perdeu quase inteiramente (...)"[27].


Ferreira da Silva lembra que há somente uma coisa importante, uma única seriedade séria, a saber: "Varrer da nossa consciência o inessencial, o que não se relaciona com a ação que se busca por si mesma, votando à sátira, à ironia e ao escárnio todos os falsos ídolos. Só há uma seriedade séria: mas esta não é lúgubre ou taciturna, crispada e sofredora, mas sim vivificante, generosa e criadora"[28]

Conclusão

Ferreira da Silva inspira-se no modelo arquetipal platônico, para definir a dinâmica da cultura. Esta decorre de um arquétipo que lhe é anterior. Por isso, a crítica culturológica pressupõe, no seu pensamento, uma reflexão sobre os fundamentos primordiais do mundo humano. O pensador paulista critica, como insuficiente, a concepção cultural decorrente do arquétipo do mito do progresso indefinido, que coisificou uma realidade irredutível ao mundo dos fenômenos: o espírito humano. O caminho para encontrar o domínio do verdadeiramente humano é, para Ferreira da Silva, o da abertura ao Ser, que constitui o único arquétipo filosoficamente aceitável. Esse é também o caminho do reconhecimento da essência do homem como ek-sistência. O homem é, como diz o pensador paulista, repetindo Heidegger, o vizinho do Ser. Ferreira da Silva deixa claro que "o homem é sujeito de um destino instituidor de sua própria realidade histórica, em relação ao qual pode se intimisar. O homem habita um domínio onde, o que está em jogo, é algo que supera o homem, mas que o superando, lança-o em sua situação própria"[29]. A idéia de ek-sistência é a peça chave da filosofia ferreiriana da cultura. Porque é ek-sistente, o homem está aberto à vivência do mundo eidético e é irredutível ao geograficamente dado. Porque é ek-sistente, o homem é irredutível às utopias, graças à fundação poética de sua essência. Porque é ek-sistente, é possível para o homem viver uma moral lúdica, na qual supere o mito do progresso indefinido.


[1] Ferreira da Silva, "O Andróptero", in: Obras Completas, Volume I, ( Introdução de Miguel Reale), São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1964, pg. 17.

[2] "O Andróptero", op.cit., pg. 18.

[3] "O Andróptero", op. cit., pgs. 17-18.

[4] Citado por Ferreira da Silva, in: "O Andróptero", op. cit., pg. 19.

[5] "O Andróptero", op. cit., ibid.

[6] "O Andróptero", op. cit., pg. 20.

[7] " O Andróptero", ibid.

[8] "O Andróptero", op. cit., pg. 21.

[9] Ferreira da Silva, "Utopia e liberdade", op. cit., vol. I, pg. 61.

[10] "Utopia e liberdade", op. cit., ibid.

[11] "Utopia e liberdade", ob. cit., ibid.

[12] "Utopia e liberdade", op. cit., pg. 62.

[13] "Utopia e liberdade", ob. cit., ibid.

[14] "Utopia e liberdade", ob. cit., pg. 63.

[15] "Utopia e liberdade", op. cit., ibid.

[16] "Utopia e liberdade", op. cit., pg. 64.

[17] "Utopia e liberdade", op. cit., ibid.

[18] "Utopia e liberdade", ob. cit., ibid.

[19] "Utopia e liberdade", op. cit., pg. 64-65.

[20] "Utopia e liberdade", op. cit., pg. 65.

[21] "Utopia e liberdade", op. cit., ibid.

[22] "Utopia e liberdade", op. cit., ibid.

[23] "Para uma moral lúdica", Obras completas, vol. I, op. cit., pg. 137.

[24] "Para uma moral lúdica", op. cit., pg. 137-138.

[25] "Para uma moral lúdica", op. cit., pg. 138-139.

[26] "Para uma moral lúdica", op. cit., pg. 141.

[27] "Para uma moral lúdica", op. cit., ibid.

[28] "Para uma moral lúdica", op. cit., ibid.

[29] Ferreira da Silva, "A concepção do homem segundo Heidegger", in: Obras Completas, op. cit., vol. I, pg. 259.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

LEIBNIZ (1646-1716) E A SUPERAÇÃO DO DUALISMO CARTESIANO

Gottfried Wilhelm Leibniz, nascido em Leipzig, em 1646 e falecido em Hannover, em 1716, é um dos grandes representantes da filosofia moderna. Ele sistematizou a metafísica que melhor respondia às preocupações de conciliação entre razão e fé, tradição e modernidade, filosofia e teologia, num momento em que muitos espíritos queriam voltar as costas definitivamente para a Idade Média. Leibniz foi um conciliador, mas não um eclético superficial. Foi profundo conhecedor da ciência do seu tempo, desde a física e a matemática, até a geologia e o direito. Conheceu profundamente o pensamento medieval e as escolásticas espanhola e portuguesa. A sua idéia de formular uma metafísica que dialogasse com a ciência moderna, foi-lhe incutida pela leitura de um filósofo espanhol: o padre jesuíta Francisco Suárez (1548-1617), que ensinou em Salamanca, Évora e Coimbra. Leibniz era um estudioso da teologia cristã, na vertente platônico-augustiniana, mas esteve também aberto a outras concepções teológicas, como, por exemplo, a decorrente do budismo tibetano.

A sua obra é extensíssima, sendo que a edição das Obras Completas (hoje, com mais de 40 volumes publicados), ainda não foi completada. Mencionemos algumas das obras mais representativas: De arte combinatória (1666), A profissão de fé do filósofo (1673), Discurso de Metafísica (1686), Acerca da harmonia pré-estabelecida (1695), Sistema novo da natureza e da comunicação das substância, bem como da união entre a alma e o corpo (1695), Considerações acerca da doutrina de um espírito universal (1702), Novos ensaios sobre o entendimento humano (1704), Ensaio de Teodicéia (1710), Monadologia (1714), Princípios da natureza e da graça (1714), Filosofia para princesas (1714) e Escritos sobre a China (1716).


Síntese acerca da Teoria do Conhecimento em Leibniz: em 10 pontos poderíamos sintetizar as idéias essenciais de Leibniz, destacando os aspectos relativos à Teoria do Conhecimento e à Metafísica:

1 – Ponto de partida: crítica à metafísica dualística de Descartes. Deus, que é perfeição infinita, não pode ter criado um universo bitolado em duas substâncias irreconciliáveis (res extensa e res cogitans), na forma em que foi pensado por Descartes.

2 – Deus, portanto, criou o “melhor dos mundos possíveis”, caracterizado pelo princípio da “harmonia preestabelecida”.

3 – O homem está chamado a tomar conhecimento da “harmonia preestabelecida” do Universo. Nisso consiste a verdade e a máxima felicidade do espírito. A nossa bem-aventurança, na Terra, consiste em contemplarmos a harmonia do Cosmo, que espelha a perfeição divina.

4 – O homem apreende, pelo seu conhecimento, a harmonia do Universo em dois níveis: matemático (pela ciência da natureza) e metafísico (pela filosofia), sendo que esta última constitui a apreensão mais completa da “harmonia preestabelecida”. Nas ciências, apreendemos a harmonia com a ajuda das matemáticas. Nelas, joga um papel importante o “cálculo infinitesimal”, que nos habilita a apreendermos a harmonia cósmica no contexto de uma infinita quantidade de variáveis. Na filosofia, apreendemo-la com a ajuda dos conceitos metafísicos, que exprimem a harmonia da totalidade. A ars combinatoria constitui, para as ciências e a filosofia, poderoso instrumento lógico que nos possibilita superar as contradições decorrentes dos significados equívocos das palavras (“calculemos para que nos entendamos”, afirmava Leibniz).

5 – Cerne da metafísica leibniziana: a monadologia. O universo foi formado mediante a criação, por Deus, de infinitas unidades substanciais de energia ou mônadas. Essas unidades estão rigorosamente hierarquizadas e organizadas pelo Supremo Arquiteto do Universo (Deus) que age à maneira de Causa Final, no contexto de um modelo que hoje caracterizaríamos como finalistico-cibernético. A matéria, em si, não existe. Ela é apenas manifestação aparente da única realidade existente: a força ou energia, constituída pelas mônadas. Estas podem, portanto, expandir no espaço a sua essência, ou contraí-la num ponto (à maneira dos buracos negros postulados pela astrofísica contemporânea). Cada uma das mônadas encerra, dentro de si, uma representação da harmonia do Cosmo. Essa representação, nos seres humanos, é consciente, sendo que os demais seres não possuem essa consciência, o que torna o homem o Rei da Criação, não para atrapalhar a ordem da “harmonia preestabelecida”, mas para, com a luz da razão, reconhecer essa ordem harmônica e louvar a Deus.

6 – A liberdade humana é um postulado teológico que se depreende da tese do “melhor dos mundos possíveis”. Se Deus não tivesse criado o homem livre, faltaria ao Cosmo uma perfeição importante, a mais exímia entre as perfeições finitas: a liberdade. Como conciliar a liberdade com a “presciência divina?” – Ao praticar o mal, o homem não está dando ensejo a um ser: o mal moral é entendido por Leibniz como ignorância (carência de conhecimento) de parte do homem, da “harmonia preestabelecida” por Deus no Cosmo. O pecador é um ignorante. A sua infelicidade consiste em desconhecer a ordem cósmica. Para Leibniz, “Deus escreve certo com linhas tortas”. Ele, na sua infinita sabedoria, antecipa-se a todos os nossos comportamentos, certos ou errados. Permite os errados, como decorrentes da nossa liberdade. Mas, tomando conhecimento do contexto em que eles acontecem, minimiza-os mediante uma ação providencial, que coloca as más ações dos pecadores junto às boas ações dos homens virtuosos, a fim de que o conjunto de todas as ações humanas seja harmonioso, como num grande mosaico bizantino. As pedrinhas escuras, irregulares, seriam as más ações. Mas estas praticamente desaparecem, ofuscadas pelo brilho das pedrinhas que representam, reluzentes e coloridas, os inumeráveis atos virtuosos dos homens bons. Assim, a ação dos maus serve como pano de fundo que ressalta a beleza das boas ações. No contexto deste arrazoado, Leibniz formula o seu “providencialismo ou lex melioris”, que se estende a todos os seres do Cosmo. Nada foi criado para ser aniquilado. Isto iria contra a bondade infinita de Deus. Todos os seres foram criados para integrarem o Universo definitivamente liberto do Mal, na Parusia (à maneira como, no século XX, Teilhard de Chardin imaginou a caminhada de toda a criação em direção ao Ponto Ômega). As unidades de energia, que são as mônadas, revestir-se-ão da mais maravilhosa materialização que poderíamos imaginar, a fim de toda a criação testemunhar a grandeza e a sabedoria infinitas do Criador.

7 – A sociedade humana, na sua organização política, deve refletir a harmonia cósmica, mediante a estruturação harmônica das instituições a serviço do bem comum dos cidadãos, preservado graças à sabedoria previdente do Rei, que constitui uma espécie de poder moderador entre todas as forças sociais e os indivíduos, a fim de que o bem de todos se realize. As teorias do poder moderador ou do poder neutro, que foram formuladas no século XIX por Jacques Necker, Benjamin Constant de Rebecque, François Guizot, Silvestre Pinheiro Ferreira, Domingos Gonçalves de Magalhães, Paulino Soares de Sousa, etc., encontram em Leibniz o seu inspirador.

8 – Do ponto de vista religioso, Leibniz apelava para o ecumenismo entre todas as Igrejas cristãs, superando o trágico período das guerras de religião, que ocorreram na Europa ao longo dos séculos XVI e XVII. O filósofo imaginava que esse ecumenismo poderia ser construído por um Monarca cristão ilustrado (Luis XIV, da França), que faria uma espécie de pacto moderador entre as várias igrejas, incluídos os católicos e os outros príncipes e soberanos europeus, a fim de fazer frente à ameaça do Islã. Leibniz chegou a cogitar numa ordem político-religiosa universal, que incluísse a China, mediante a relação de diálogo e de atividades conjuntas entre cristãos ocidentais e budistas tibetanos.

9 – Do ângulo antropológico, Leibniz considerava que os seres humanos, criados por Deus à sua imagem e semelhança, davam ensejo a criações variadas que deveriam ser conhecidas na sua origem e nas suas manifestações, não se restringindo isso à cultura européia. Para apreendermos o fenômeno humano, pensava Leibniz, seria necessário abordarmos todas as culturas, respeitando a sua identidade, num esforço de abertura às criações humanas. Este aspecto contrastava, evidentemente, com as reservas que o filósofo tinha em face do Islamismo.

10 – O filósofo desenvolveu amplo trabalho de aconselhamento a reis e príncipes europeus, na tentativa de consolidar a unidade continental. Essa idéia da Europa Unida seria retomada, no início do século XIX, por Napoleão Bonaparte e, no século XX, pelos idealizadores do Mercado Comum Europeu e, ulteriormente, da Unidade Européia.

LUCHANDO CONTRA EL DNA POSITIVISTA DEL REPUBLICANISMO BRASILEÑO

 Capa de la primera edición del libro de Ricardo Vélez Rodríguez, titulado: Castilhismo, uma filosofia da República (Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: Universidad de Caxias do Sul, 1980, 160 páginas). En él, el autor estudia el modelo de la dictadura científica castillista, que fué aplicado a nivel nacional por Getúlio Vargas, a partir de la Revolución de 1930.

El gran problema de la República en la historia brasileña, es que ella fué formatada a la luz de una versión totalitaria del positivismo (mucho más absolutista que la inicial fórmula comteana). En Brasil se desarrolló una versión gaucha de la dictadura positivista, en los siguientes parámetros: 1) el Estado-empresario garantiza la riqueza de los ciudadanos, mediante una especie de capitalismo de Estado; 2) el Estado-empresario es también tutor de la moral de los ciudadanos; él garantizará lo que es bueno y lo que es malo; 3) para alguien se enriquecer, por lo tanto, debe convertirse en afiliado incondicional del Estado; 4) dentro del Estado, el poder supremo es el Ejecutivo; las elecciones son secundarias, siendo lo más importante que el candidato a ejercer el poder se imponga a las masas por su identificación con la Racionalidad Social, o sea, con una versión de ciencia aplicada al servicio del Estado y siendo el candidato a lider un jefe carismático; 5) la representación política es cuestión de "metafísica liberal"; 6) El Ejecutivo debe governar ayudado por sus Consejos Técnicos Integrados a la Administración, que se encargarán de presentarle las soluciones técnicamente viables, a fin de que el Líder decida lo que es más conveniente.

Estos seis principiios fueron elaborados, a lo largo de los siglos XVIII, XIX y XX, por tres figuras importantes en la historia brasileña: el Marqués de Pombal (en pleno iluminismo despótico, antes aún de la Revolución Francesa, siendo primer ministro del rey Don José I); al finalizar el siglo XIX, por Julio de Castilhos, líder gaucho del Partido Republicano Riograndense, que instauró, en Rio Grande do Sul, una "dictadura científica" que duró hasta 1930, y por Getulio Vargas, el gobernador de ese Estado que aplicó el modelo pombalino-castillista a nivel nacional, cuando dió el golpe de Estado conocido como “Revolución de 1930” y conquistó, así, la Presidencia de la República. La larga permanencia de Getulio en el poder (entre 1930 y 1945, y, ulteriormente, entre 1951 y 1954), le permitió perfeccionar los mecanismos de ese modelo de dictadura científica, que terminó, en parte, siendo copiado por los regímenes militares, que se sucedieron entre 1964 y 1985.

Mezclémosle a todo esto, en los días actuales, el gramscismo del Partido de los Trabalhadores de Lula y tendremos un modelito de política hegemónica muy difícil de desmontar.

Así las cosas, no asusta a nadie que en Brasil los padres sean condenados por darles educación a sus hijos en el hogar, como si esto fuera un gran delito. El delito del ciudadano querer ser libre de las amarras a las que lo condena un Estado con tintes totalitarios, que no ha conseguido establecer una educación básica de cualidad para todos los brasileños! Ni asusta que Lula tenga un índice de popularidad por encima del 80%.

Lo que preocupa es cómo desmontar ese estado de cosas. Hay, claro, una tradición liberal y socialdemócrata que puede hacerle frente a esa pesada maquinaria. Al fin y al cabo, el Brasil no es Venezuela y hay una sociedad fuertemente diversificada que no tolerará, con certeza, un avance del modelo de dictadura republicana en pleno siglo XXI. Esa es la valerosa propuesta del candidato José Serra, que ha polarizado a su lado la oposición al populismo lulopetista que, con la candidata Dilma Roussef, amenaza avasallar de una vez por todas a la sociedad del más grande país de Suramérica, a manos del gramscismo a servicio del Foro de São Paulo y del comunismo internacional.

sábado, 10 de abril de 2010

O BRASIL PODE MAIS

Amigos, vale a pena ler o discurso que o candidato presidencial José Serra pronunciou, no lançamento de sua candidatura. É um convite à reconciliação de todos os brasileiros, ao redor de um projeto que mantém viva a esperança num país que pode, pacifica e éticamente, superar os entraves e os ódios que a militância petista tem tentado plantar no seio da nossa sociedade. É um convite à corajosa defesa dos nossos ideais tradicionais de paz, de concórdia, de respeito pelos direitos civis e pelas instituições republicanas, a começar pela defesa do governo representativo.

O Brasil pode mais

Venho hoje, aqui, falar do meu amor pelo Brasil; falar da minha vida; falar da minha experiência; falar da minha fé; falar das minhas esperanças no Brasil. E mostrar minha disposição de assumir esta caminhada. Uma caminhada que vai ser longa e difícil mas que com a ajuda de Deus e com a força do povo brasileiro será com certeza vitoriosa.

Alguns dias atrás, terminei meu discurso de despedida do Governo de São Paulo afirmando minha convicção de que o Brasil pode mais. Quatro palavras, em meio a muitas outras. Mas que ganharam destaque porque traduzem de maneira simples e direta o sentimento de milhões de brasileiros: o de que o Brasil, de fato, pode mais. E é isto que está em jogo nesta hora crucial!

Nos últimos 25 anos, o povo brasileiro alcançou muitas conquistas: retomamos a Democracia, arrancamos nas ruas o direito de votar para presidente, vivemos hoje num país sem censura e com uma imprensa livre. Somos um Estado de Direito Democrático. Fizemos uma nova Constituição, escrita por representantes do povo. Com o Plano Real, o Brasil transformou sua economia a favor do povo, controlou a inflação, melhorou a renda e a vida dos mais pobres, inaugurou uma nova Era no Brasil. Também conquistamos a responsabilidade fiscal dos governos. Criamos uma agricultura mais forte, uma indústria eficiente e um sistema financeiro sólido. Fizemos o Sistema Único de Saúde, conseguimos colocar as crianças na escola, diminuímos a miséria, ampliamos o consumo e o crédito, principalmente para os brasileiros mais pobres. Tudo isso em 25 anos. Não foram conquistas de um só homem ou de um só Governo, muito menos de um único partido. Todas são resultado de 25 anos de estabilidade democrática, luta e trabalho. E nós somos militantes dessa transformação, protagonistas mesmo, contribuímos para essa história de progresso e de avanços do nosso País. Nós podemos nos orgulhar disso.

Mas, se avançamos, também devemos admitir que ainda falta muito por fazer. E se considerarmos os avanços em outros países e o potencial do Brasil, uma conclusão é inevitável: o Brasil pode ser muito mais do que é hoje.

Mas para isso temos de enfrentar os problemas nacionais e resolvê-los, sem ceder à demagogia, às bravatas ou à politicagem. E esse é um bom momento para reafirmarmos nossos valores. Começando pelo apreço à Democracia Representativa, que foi fundamental para chegarmos aonde chegamos. Devemos respeitá-la, defendê-la, fortalecê-la. Jamais afrontá-la.

Democracia e Estado de Direito são valores universais, permanentes, insubstituíveis e inegociáveis. Mas não são únicos. Honestidade, verdade, caráter, honra, coragem, coerência, brio profissional, perseverança são essenciais ao exercício da política e do Poder. É nisso que eu acredito e é assim que eu ajo e continuarei agindo. Este é o momento de falar claro, para que ninguém se engane sobre as minhas crenças e valores. É com base neles que também reafirmo: o Brasil, meus amigos e amigas, pode mais.

Governos, como as pessoas, têm que ter alma. E a alma que inspira nossas ações é a vontade de melhorar a vida das pessoas que dependem do estudo e do trabalho, da Saúde e da Segurança. Amparar os que estão desamparados.

Sabem quantas pessoas com alguma deficiência física existem no Brasil? Mais de 20 milhões - a esmagadora maioria sem o conforto da acessibilidade aos equipamentos públicos e a um tratamento de reabilitação. Os governos, como as pessoas, têm que ser solidários com todos e principalmente com aqueles que são mais vulneráveis.

Quem governa, deve acreditar no planejamento de suas ações. Cultivar a austeridade fiscal, que significa fazer melhor e mais com os mesmos recursos. Fazer mais do que repetir promessas. O governo deve ouvir a voz dos trabalhadores e dos desamparados, das mulheres e das famílias, dos servidores públicos e dos profissionais de todas as áreas, dos jovens e dos idosos, dos pequenos e dos grandes empresários, do mercado financeiro, mas também do mercado dos que produzem alimentos, matérias-primas, produtos industriais e serviços essenciais, que são o fundamento do nosso desenvolvimento, a máquina de gerar empregos, consumo e riqueza.

O governo deve servir ao povo, não a partidos e a corporações que não representam o interesse público. Um governo deve sempre procurar unir a nação. De mim, ninguém deve esperar que estimule disputas de pobres contra ricos, ou de ricos contra pobres. Eu quero todos, lado a lado, na solidariedade necessária à construção de um país que seja realmente de todos.

Ninguém deve esperar que joguemos estados do Norte contra estados do Sul, cidades grandes contra cidades pequenas, o urbano contra o rural, a indústria contra os serviços, o comércio contra a agricultura, azuis contra vermelhos, amarelos contra verdes. Pode ser engraçado no futebol. Mas não é quando se fala de um País. E é deplorável que haja gente que, em nome da política, tente dividir o nosso Brasil.

Não aceito o raciocínio do nós contra eles. Não cabe na vida de uma Nação. Somos todos irmãos na pátria. Lutamos pela união dos brasileiros e não pela sua divisão. Pode haver uma desavença aqui outra acolá, como em qualquer família. Mas vamos trabalhar somando, agregando. Nunca dividindo. Nunca excluindo. O Brasil tem grandes carências. Não pode perder energia com disputas entre brasileiros. Nunca será um país desenvolvido se não promover um equilíbrio maior entre suas regiões. Entre a nossa Amazônia, o Centro Oeste e o Sudeste. Entre o Sul e o Nordeste. Por isso, conclamo: Vamos juntos. O Brasil pode mais. O desenvolvimento é uma escolha. E faremos essa escolha. Estamos preparados para isso.

Ninguém deve esperar que joguemos o governo contra a oposição, porque não o faremos. Jamais rotularemos os adversários como inimigos da pátria ou do povo. Em meio século de militância política nunca fiz isso. E não vou fazer. Eu quero todos juntos, cada um com sua identidade, em nome do bem comum.

Na Constituinte fiz a emenda que permitiu criar o FAT, financiar e fortalecer o BNDES e tirar do papel o seguro-desemprego - que hoje beneficia 10 milhões de trabalhadores. Todos os partidos e blocos a apoiaram. No ministério da Saúde do governo Fernando Henrique tomei a iniciativa de enviar ou refazer e impulsionar seis projetos de lei e uma emenda constitucional - a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e da Agência Nacional de Saúde, a implantação dos genéricos, a proibição do fumo nos aviões e da propaganda de cigarros, a regulamentação dos planos de saúde, o combate à falsificação de remédios e a PEC 29, que vinculou recursos à Saúde nas três esferas da Federação - todos, sem exceção, aprovados pelos parlamentares do governo e da oposição. É assim que eu trabalho: somando e unindo, visando ao bem comum. Os membros do Congresso que estão me ouvindo, podem testemunhar: suas emendas ao orçamento da Saúde eram acolhidas pela qualidade, nunca devido à sua filiaç ão partidária.

Se o povo assim decidir, vamos governar com todas e com todos, sem discriminar ninguém. Juntar pessoas em vez de separá-las; convidá-las ao diálogo, em vez de segregá-las; explicar os nossos propósitos, em vez de hostilizá-las. Vamos valorizar o talento, a honestidade e o patriotismo em vez de indagar a filiação partidária.

Minha história de vida e minhas convicções pessoais sempre estiveram comprometidas com a unidade do país e com a unidade do seu povo. Sou filho de imigrantes, morei e cresci num bairro de trabalhadores que vinham de todas as partes, da Europa, do Nordeste, do Sul. Todos em busca de oportunidade e de esperança.

A liderança no movimento estudantil me fez conhecer e conviver com todo o Brasil logo ao final da minha adolescência. Aliás, na época, aprendi mesmo a fazer política no Rio, em Minas, na Bahia e em Pernambuco, aos 21 anos de idade. O longo exílio me levou sempre a enxergar e refletir sobre o nosso país como um todo.

Minha história pessoal está diretamente vinculada à valorização do trabalho, à valorização do esforço, à valorização da dedicação. Lembro-me do meu pai, um modesto comerciante de frutas no mercado municipal: doze horas de jornada de trabalho nos dias úteis, dez horas no sábado, cinco horas aos domingos. Só não trabalhava no dia 1 de janeiro. Férias? Um luxo, pois deixava de ganhar o dinheiro da nossa subsistência. Um homem austero, severo, digno. Seu exemplo me marcou na vida e na compreensão do que significa o amor familiar de um trabalhador: ele carregava caixas de frutas para que um dia eu pudesse carregar caixas de livros.

E eu me esforço para tornar digno o trabalho de todo homem e mulher, do ser humano como ele foi. Porque vejo a imagem de meu pai em cada trabalhador. Eu a vi outro dia, na inauguração do Rodoanel, quando um dos operários fez questão de me mostrar com orgulho seu nome no mural que eu mandei fazer para exibir a identidade de todos os trabalhadores que fizeram aquela obra espetacular. Por que o mural? Por justo reconhecimento e porque eu sabia que despertaria neles o orgulho de quem sabe exercer a profissão. Um momento de revelação a si mesmos de que eles são os verdadeiros construtores nesta nação.

Eu vejo em cada criança na escola o menino que eu fui, cheio de esperanças, com o peito cheio de crença no futuro. Quando prefeito e quando governador, passei anos indo às escolas para dar aula (de verdade) à criançada da quarta série. Ia reencontrar-me comigo mesmo. Porque tudo o que eu sou aprendi em duas escolas: a escola pública e a escola da vida pública. Aliás, e isto é um perigo dizer, com freqüência uso senhas de computador baseadas no nome de minhas professoras no curso primário. E toda vez que escrevo lembro da sua fisionomia, da sua voz, do seu esforço, e até das broncas, de um puxão de orelhas, quando eu fazia alguma bagunça.

Mas é por isso tudo que sempre lutei e luto tanto pela educação dos milhões de filhos do Brasil. No país com que sonho para os meus netos, o melhor caminho para o sucesso e a prosperidade será a matrícula numa boa escola, e não a carteirinha de um partido político. E estou convencido de uma coisa: bons prédios, serviços adequados de merenda, transporte escolar, atividades esportivas e culturais, tudo é muito importante e deve ser aperfeiçoado. Mas a condição fundamental é a melhora do aprendizado na sala de aula, propósito bem declarado pelo governo, mas que praticamente não saiu do papel. Serão necessários mais recursos. Mas pensemos no custo para o Brasil de não ter essa nova Educação em que o filho do pobre freqüente uma escola tão boa quanto a do filho do rico. Esse é um compromisso.

É preciso prestar atenção num retrocesso grave dos últimos anos: a estagnação da escolaridade entre os adolescentes. Para essa faixa de idade, embora não exclusivamente para ela, vamos turbinar o ensino técnico e profissional, aquele que vira emprego. Emprego para a juventude, que é castigada pela falta de oportunidades de subir na vida. E vamos fazer de forma descentralizada, em parcerias com estados e municípios, o que garante uma vinculação entre as escolas técnicas e os mercados locais, onde os empregos são gerados. Ensino de qualidade e de custos moderados, que nos permitirá multiplicar por dois ou três o número de alunos no país inteiro, num período de governo. Sim, meus amigos e amigas, o Brasil pode mais.

Podemos e devemos fazer mais pela saúde do nosso povo. O SUS foi um filho da Constituinte que nós consolidamos no governo passado, fortalecendo a integração entre União, Estados e Municípios; carreando mais recursos para o setor; reduzindo custos de medicamentos; enfrentando com sucesso a barreira das patentes, no Brasil e na Organização Mundial do Comércio; ampliando o sistema de atenção básica e o Programa Saúde da Família em todo o Brasil; prestigiando o setor filantrópico sério, com quem fizemos grandes parcerias, dos hospitais até a prevenção e promoção da Saúde, como a Pastoral da Criança; fazendo a melhor campanha contra a AIDS do mundo em desenvolvimento; organizando os mutirões; fazendo mais vacinações; ampliando a assistência às pessoas com deficiência; cerceando o abuso do incentivo ao cigarro e ao tabaco em geral. E muitas outras coisas mais. De fato, e mais pelo que aconteceu na primeira metade do governo, a Saúde estagnou ou avançou pouco. Mas a Saúde pode avanç ar muito mais. E nós sabemos como fazer isso acontecer.

Saúde é vida, Segurança também. Por isso, o governo federal deve assumir mais responsabilidades face à gravidade da situação. E não tirar o corpo fora porque a Constituição atribui aos governos estaduais a competência principal nessa área. Tenho visto gente criticar o Estado Mínimo, o Estado Omisso. Concordo. Por isso mesmo, se tem área em que o Estado não tem o direito de ser mínimo, de se omitir, é a segurança pública. As bases do crime organizado estão no contrabando de armas e de drogas, cujo combate efetivo cabe às autoridades federais . Ou o governo federal assume de vez, na prática, a coordenação efetiva dos esforços nacionalmente, ou o Brasil não tem como ganhar a guerra contra o crime e proteger nossa juventude.

Qual pai ou mãe de família não se sente ameaçado pela violência, pelo tráfico e pela difusão do uso das drogas? As drogas são hoje uma praga nacional. E aqui também o Governo tem de investir em clínicas e programas de recuperação para quem precisa e não pode ser tolerante com traficantes da morte. Mais ainda se o narcotráfico se esconde atrás da ideologia ou da política. Os jovens são as grandes vítimas. Por isso mesmo, ações preventivas, educativas, repressivas e de assistência precisam ser combinadas com a expansão da qualificação profissional e a oferta de empregos.

Uma coisa que precisa acabar é a falsa oposição entre construir escolas e construir presídios. Muitas vezes, essa é a conversa de quem não faz nem uma coisa nem outra. É verdade que nossos jovens necessitam de boas escolas e de bons empregos, mas se o indivíduo comete um crime ele deve ser punido. Existem propostas de impor penas mais duras aos criminosos. Não sou contra, mas talvez mais importante do que isso seja a garantia da punição. O problema principal no Brasil não são as penas supostamente leves. É a quase certeza da impunidade. Um país só tem mais chance de conseguir a paz quando existe a garantia de que a atitude criminosa não vai ficar sem castigo.

Eu quero que meus netos cresçam num país em que as leis sejam aplicadas para todos. Se o trabalhador precisa cumprir a lei, o prefeito, o governador e o presidente da República também tem essa obrigação. Em nosso país, nenhum brasileiro vai estar acima da lei, por mais poderoso que seja. Na Segurança e na Justiça, o Brasil também pode mais.

Lembro que os investimentos governamentais no Brasil, como proporção do PIB, ainda são dos mais baixos do mundo em desenvolvimento. Isso compromete ou encarece a produção, as exportações e o comércio. Há uma quase unanimidade a respeito das carências da infra-estrutura brasileira: no geral, as estradas não estão boas, faltam armazéns, os aeroportos vivem à beira do caos, os portos, por onde passam nossas exportações e importações, há muito deixaram de atender as necessidades. Tem gente que vê essas carências apenas como um desconforto, um incômodo. Mas essa é uma visão errada. O PIB brasileiro poderia crescer bem mais se a infra-estrutura fosse adequada, se funcionasse de acordo com o tamanho do nosso país, da população e da economia.

Um exemplo simples: hoje, custa mais caro transportar uma tonelada de soja do Mato Grosso ao porto de Paranaguá do que levar a mesma soja do porto brasileiro até a China. Um absurdo. A conseqüência é menos dinheiro no bolso do produtor, menos investimento e menos riqueza no interior do Brasil. E sobretudo menos empregos.

Temos inflação baixa, mais crédito e reservas elevadas, o que é bom, mas para que o crescimento seja sustentado nos próximos anos não podemos ter uma combinação perversa de falta de infra-estrutura, inadequações da política macroeconômica, aumento da rigidez fiscal e vertiginoso crescimento do déficit do balanço de pagamentos. Aliás, o valor de nossas exportações cresceu muito nesta década, devido à melhora dos preços e da demanda por nossas matérias primas. Mas vai ter de crescer mais. Temos de romper pontos de estrangulamento e atuar de forma mais agressiva na conquista de mercados. Vejam que dado impressionante: nos últimos anos, mais de 100 acordos de livre comércio foram assinados em todo o mundo. São um instrumento poderoso de abertura de mercados. Pois o Brasil, junto com o MERCOSUL, assinou apenas um novo acordo (com Israel), que ainda não entrou em vigência!

Da mesma forma, precisamos tratar com mais seriedade a preservação do meio-ambiente e o desenvolvimento sustentável. Repito aqui o que venho dizendo há anos: é possível, sim, fazer o país crescer e defender nosso meio ambiente, preservar as florestas, a qualidade do ar a contenção das emissões de gás carbônico. É dever urgente dar a todos os brasileiros saneamento básico, que também é meio ambiente. Água encanada de boa qualidade, esgoto coletado e tratado não são luxo. São essenciais. São Saúde. São cidadania. A economia verde é, ao contrário do que pensam alguns, uma possibilidade promissora para o Brasil. Temos muito por fazer e muito o que progredir, e vamos fazê-lo.

Também não são incompatíveis a proteção do meio ambiente e o dinamismo extraordinário de nossa agricultura, que tem sido a galinha de ovos de ouro do desenvolvimento do país, produzindo as alimentos para nosso povo, salvando nossas contas externas, contribuindo para segurar a inflação e ainda gerar energia! Estou convencido disso e vamos provar o acerto dessa convicção na prática de governo. Sabem por quê? Porque sabemos como fazer e porque o Brasil pode mais!

O Brasil está cada vez maior e mais forte. É uma voz ouvida com respeito e atenção. Vamos usar essa força para defender a autodeterminação dos povos e os direitos humanos, sem vacilações. Eu fui perseguido em dois golpes de estado, tive dois exílios simultâneos, do Brasil e do Chile. Sou sobrevivente do Estádio Nacional de Santiago, onde muitos morreram. Por algum motivo, Deus permitiu que eu saísse de lá com vida. Para mim, direitos humanos não são negociáveis. Não cultivemos ilusões: democracias não têm gente encarcerada ou condenada à forca por pensar diferente de quem está no governo. Democracias não têm operários morrendo por greve de fome quando discordam do regime.

Nossa presença no mundo exige que não descuidemos de nossas Forças Armadas e da defesa de nossas fronteiras. O mundo contemporâneo é desafiador. A existência de Forças Armadas treinadas, disciplinadas, respeitadoras da Constituição e das leis foi uma conquista da Nova República. Precisamos mantê-las bem equipadas, para que cumpram suas funções, na dissuasão de ameaças sem ter de recorrer diretamente ao uso da força e na contribuição ao desenvolvimento tecnológico do país.

Como falei no início, esta será uma caminhada longa e difícil. Mas manteremos nosso comportamento a favor do Brasil. Às provocações, vamos responder com serenidade; às falanges do ódio que insistem em dividir a nação vamos responder com nosso trabalho presente e nossa crença no futuro. Vamos responder sempre dizendo a verdade. Aliás, quanto mais mentiras os adversários disserem sobre nós, mais verdades diremos sobre eles.

O Brasil não tem dono. O Brasil pertence aos brasileiros que trabalham; aos brasileiros que estudam; aos brasileiros que querem subir na vida; aos brasileiros que acreditam no esforço; aos brasileiros que não se deixam corromper; aos brasileiros que não toleram os malfeitos; aos brasileiros que não dispõem de uma 'boquinha'; aos brasileiros que exigem ética na vida pública porque são decentes; aos brasileiros que não contam com um partido ou com alguma maracutaia para subir na vida.

Este é o povo que devemos mobilizar para a nossa luta; este é o povo que devemos convocar para a nossa caminhada; este é o povo que quer, porque assim deve ser, conservar as suas conquistas, mas que anseia mais. Porque o Brasil, meus amigos e amigas, pode mais. E, por isso, tem de estar unido. O Brasil é um só.

Pretendo apresentar ao Brasil minha história e minhas idéias. Minha biografia. Minhas crenças e meus valores. Meu entusiasmo e minha confiança. Minha experiência e minha vontade.

Vou lhes contar uma coisa. Desde cedo, quando entrei na vida pública, descobri qual era a motivação maior, a mola propulsora da atividade política. Para mim, a motivação é o prazer. A vida pública não é sacrifício, como tantos a pintam, mas sim um trabalho prazeroso. Só que não é o mero prazer do desfrute. É o prazer da frutificação. Não é um sonho de consumo. É um sonho de produção e de criação. Aprendi desde cedo que servir é bom, nos faz felizes, porque nos dá o sentido maior de nossas existências, porque nos traz uma sensação de bem estar muito mais profunda do que quaisquer confortos ou vantagens propiciados pelas posições de Poder. Aprendi que nada se compara à sensação de construir algo de bom e duradouro para a sociedade em que vivemos, de descobrir soluções para os problemas reais das pessoas, de fazer acontecer.

O grande escritor mineiro Guimarães Rosa, escreveu: O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Concordo. É da coragem que a vida quer que nós precisamos agora.

Coragem para fazer um projeto de País, com sonhos, convicções e com o apoio da maioria.

Juntos, vamos construir o Brasil que queremos, mais justo e mais generoso. Eleição é uma escolha sobre o futuro. Olhando pra frente, sem picuinhas, sem mesquinharias, eu me coloco diante do Brasil, hoje, com minha biografia, minha história política e com . esperança no nosso futuro. E determinado a fazer a minha parte para construir um Brasil melhor. Quero ser o presidente da união. Vamos juntos, brasileiros e brasileiras, porque o Brasil pode mais.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

LULISMO, PETISMO, ABSOLUTISMO

Nunca é demais refletir sobre a forma em que os despotismos vão se apossando da vida de uma Nação. Especialmente, nestes tempos de lulo-petismo deslavado e cínico, que faz questão de deitar por terra as instituições, a fim de passar o rolo compressor do poder hegemônico sobre a legislação eleitoral e a decência política. É a conquista do poder a qualquer preço. Isso é o que está na ordem do dia.

Alertava para isso, recentemente, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em artigo publicado em 4 de abril, chamava a atenção para o fato de que a vitória da Dilma-PT vai transformar aliados em vassalos e atropelar a democracia. Frisava Fernando Henrique: “Por trás das duas candidaturas polares há um embate maior. A tendência que vem marcando os últimos 18 meses do atual governo nos levará, pouco a pouco, para um modelo de sociedade que se baseia na predominância de uma forma de capitalismo na qual governo e algumas grandes corporações, especialmente públicas, unem-se sob a tutela de uma burocracia permeada por interesses corporativos e partidários. (...) Especialmente de um partido cujo programa recente se descola da tradição democrática brasileira para dizer o mínimo. Cada vez mais nos aproximamos de uma forma de organização política inspirada num capitalismo com forte influência burocrática e predomínio de um partido. Tudo sob uma liderança habilidosa que ajeita interesses contraditórios e camufla a reorganização política que se está esboçando”.

O ex-presidente Fernando Henrique terminava o seu alerta destacando o risco do pensamento único que empolga ao lulo-petismo, e que tem como finalidade conduzir o país a uma forma perversa de absolutismo sindical. Frisava a respeito: “Agora, com as eleições presidenciais se aproximando, o que conta (para eles) é ganhar as eleições. Depois, a força do Executivo se encarregará de diluir eventuais resistências de governadores e parlamentares que se opuserem à marcha do processo em curso, e transformará os aliados em vassalos. O resultado será o mesmo: pouco a pouco, o pensamento único, agora sim, esmagará os anseios dos que sustentam uma visão aberta da sociedade e se opõem ao capitalismo de Estado controlado por forças partidárias quase únicas infiltradas na burocracia do Estado”.

Os clássicos do pensamento liberal também chamaram a atenção para esse fato, notadamente no caso da história francesa. Os liberais doutrinários (cujos precursores foram Madame de Staël e Benjamin Constant, sendo François Guizot a figura de prol), bem como os liberais que alargaram a temática da liberdade no âmbito democrático (sendo Tocqueville e Aron as figuras mais expressivas), sempre ficaram preocupados com essa avalanche do populismo por cima das instituições. Para eles, o povo francês, preso aos afãs da vida privada, poderia, em muitos momentos, abrir mão da liberdade e da luta na defesa da sua dignidade como Nação, em troca do bem-estar garantido pelo déspota de plantão. Mas, nesses instantes, os Franceses estariam se afastando do ideal republicano. O alerta valia, segundo Tocqueville, inclusive para o povo americano, tão sensível à conquista do bem-estar material. Para o autor de A Democracia na América, uma tentação que se desenharia sempre no horizonte da vida democrática americana era a de abrir mão da luta pela liberdade, em prol da manutenção do conforto.

A República, como lembrava Tocqueville, é o reinado tranqüilo do povo sobre si mesmo, o estreito laço que existe entre a Nação e as instituições. Já Jacques Necker (o pai de Madame de Staël, que foi Ministro das Finanças de Luís XVI) tinha se antecipado a essa concepção, quando frisava que a vantagem da representação política, na vida republicana, consiste no estreitamento de laços entre os cidadãos ativos e os seus Governantes. A propósito, escrevia: "Temo-lo já dito, a intervenção do povo na escolha dos homens públicos não é essencialmente necessária à bondade dessa escolha, nem é uma garantia disso. E pode ser possível que se chegasse ao mesmo objetivo de forma igualmente segura, sem colocar em movimento cinco milhões de Cidadãos ativos. A primeira utilidade da participação do povo na nomeação dos seus Magistrados, dos seus Legisladores, consiste em estabelecer uma ligação contínua, um vínculo mais ou menos estreito entre os Chefes do Estado e a massa inteira dos Cidadãos. Destruamos essa ligação, seqüestremos ao povo o único direito político que pode exercer, troquemos esse direito por algo semelhante, adotando uma simples ficção, e não haverá mais República, ou ela só existirá no papel" [Necker, Últimas perspectivas de política e finanças, 1802].

Madame de Staël considerava que o despotismo bonapartista, que terminou desaguando na entronização de Napoleão como Imperador em 1804 ia se anunciando, como o longínquo furacão que antecipa a sua força destrutiva com uma estranha agitação do ar percebida por animais e aborígines. Esse sentimento, que crescia com o passar do tempo, era o de uma tirania à espreita, que se aproximava passo a passo, galgando progressivamente o poder e ameaçando a liberdade e a dignidade moral. A respeito, escrevia: "Como jamais consegui pensar em nenhum interesse político desvinculado do amor à liberdade, cada dia eu estava mais aflita com a revolução de 18 Brumário (de 1802), cada dia eu apreendia mais um traço de arrogância ou de astúcia naquele que se apossava gradualmente do poder. Refletia comigo mesma para tentar combater, na medida do possível, o sentimento que me dominava, mas ele renascia sempre, apesar de mim. Eu via se aproximar a tirania, ora a passos de lobo, ora com a cabeça erguida, mas parecia-me que, de uma hora para outra, estaríamos mais oprimidos e que, bem cedo, toda a vida moral estaria encadeada"  [Madame de Staël, Dez anos de exílio, 1813].

Incomodava particularmente a Madame de Staël a retórica bonapartista, composta por um discurso populista alicerçado na ameaça das armas. A Revolução de 1789 tinha nivelado a Nação francesa, quebrando os elos entre as antigas ordens, e era mais fácil agora ao futuro amo da Europa tomar posse daquela. Em relação a esse ponto, ela escrevia: "A Revolução tinha feito tabula rasa em face de Bonaparte e ele só tinha raciocínios para combater, espécie de arma com a qual ele se sentia muito à vontade e à qual ele opunha, quando lhe convinha, uma espécie de imbróglio veemente, que parecia muito lúcido com o auxílio das baionetas, nas quais ele poderia se apoiar" [Dez anos de exílio].

De forma semelhante a Chateaubriand, Madame de Staël reconhecia um único ponto positivo na administração napoleônica: aumentou as riquezas da França. Mas a finalidade é que era ruim: isso foi conseguido para melhor o déspota se apossar do que era de todos! A respeito, frisava a ilustre escritora: "O que havia de evidente era, de longe, a melhora das finanças e a ordem restabelecida em muitas áreas da administração. Napoleão era obrigado a passar pelo bem da nação para chegar à desgraça dela. Era preciso que ele juntasse as forças da nação, a fim de melhor se servir delas para a sua ambição pessoal" [Dez anos de exílio].  De positivo, o déspota só tinha a aparência. Se buscava aumentar a riqueza da França, era para melhor roubar os cidadãos mediante o confisco e os impostos esmagadores. A sua norma de comportamento era a negação da ética e se pautava unicamente pela vontade de poder, esmagando a dignidade das pessoas. "O seu grande talento consiste em amedrontar os fracos e tirar proveito dos homens imorais. Quando ele encontra a honestidade em algum lugar, poder-se-ia dizer que os seus artifícios sofrem um grande desconcerto, como quando o diabo é derrotado nas suas maquinações mediante o signo da cruz" [Dez anos de exílio].

Uma vez submetidos os mais diretos colaboradores na cúpula do poder, só restava ao déspota escravizar o resto da Nação. Como? De forma semelhante a como Max Weber considerava que se reforça o poder do governante nos Estados patrimoniais: destruindo sistematicamente todo sentimento de dignidade presente na sociedade. A respeito, escrevia Madame de Staël: "O exército político de Bonaparte compunha-se de trânsfugas dos dois partidos (monarquistas e republicanos). Uns lhe sacrificavam as suas obrigações para com a família dos Bourbons e os outros o seu amor à liberdade. Em todos os casos, não deveria estar presente, em seu reinado, uma forma independente de pensar, pois ele podia ser o rei dos interesses, mas jamais o das opiniões e, pela sua situação, assim como pelo seu caráter, ele sufocava, ao mesmo tempo, tudo que houvesse de nobre na realeza e na república, pois aviltava igualmente nobres e cidadãos. Quando todo o seu estabelecimento constitucional foi completado, um grande homem pronunciou acerca dessa ordem de coisas uma dessas palavras que ecoam pelos séculos afora: É uma monarquia - frisou Pitt (primeiro ministro inglês) - à qual só faltam a legitimidade e os limites. Ele poderia acrescentar que não havia monarquia verdadeiramente legítima senão aquela que tem limites" [Dez anos de exílio].

O Imperador antecipou-se, aliás, aos grandes comunicadores do século XX, ao encarar a nação como massa que poderia ser formatada de acordo com as informações (certas ou erradas, pouco importava), que lhe fossem repetidas dia e noite. Certamente Bonaparte ficaria ao lado de Goebbels nessa empresa, como o precursor deste. A respeito deste ponto, escreveu Madame de Staël: “O sistema de Bonaparte consistia em avançar mês a mês, passo a passo, na carreira do poder. Ele fazia espalhar com estardalhaço decisões que gostaria de tomar, a fim de sondar e ir preparando, desse modo, a opinião pública. De ordinário, preferia que se carregasse a tinta nas decisões que pretendia tomar, a fim de que, quando estas se tornassem concretas, aparecessem como mais brandas ao público do que se temia” [Dez anos de exílio].

Não pode haver glória legítima, no sentir de Madame de Staël, que não seja legitimada pela moral. A propósito, frisava: "A moral fornece os fundamentos sobre os quais a glória pode se levantar e a literatura, independentemente da sua aliança com a moral, contribui ainda, de maneira mais direta, à existência dessa glória, nobre estímulo de todas as virtudes públicas" [Acerca da Literatura considerada em suas relações com as instituições sociais, 1800]. Destaquemos, de passagem, que encontramos, aqui, a essência da posição romântica: o valor da literatura consiste no seu poder de elevar a moral de um país.


segunda-feira, 5 de abril de 2010

RENÉ DESCARTES E O "DISCURSO DO MÉTODO"

 Retrato de René Descartes por Franz Hals

René Descartes (1596-1650) é figura essencial na compreensão da filosofia moderna. Porque com ele inicia-se uma nova fase na evolução da Teoria do Conhecimento. Esta, na Antigüidade Greco-Romana e na Idade Média, tinha girado em torno ao objeto do conhecimento. A teoria da substância, consolidada na reflexão de Aristóteles, garantiu o chão seguro em cima do qual foi possível construir a perspectiva realista, que parte da pressuposição de que a nossa razão apreende, superando os fenômenos, a essência substancial da realidade, ou coisa-em-si.

Embora em Descartes ainda encontremos a noção de substância, no entanto, começa a mudar a forma em que é encarada a perspectiva realista, dando mais ênfase à experiência do sujeito, do que propriamente a uma imposição intuitiva do objeto sobre o sujeito. A atividade do sujeito sobre os dados obtidos na experiência é fundamental. Esse lento movimento de valorização do sujeito sobre o objeto, conduzirá, no século XVIII, à formulação, por David Hume, da perspectiva transcendental, que parte do pressuposto de que a nossa razão só tem o condão de apreender os fenômenos, não conseguindo atingir a essência da substância. Tal perspectiva terminou sendo sistematizada por Kant na sua Crítica da Razão Pura, no final dessa centúria.

Alguns dados importantes acerca de Descartes e sua obra. Em 1606, entrou no colégio jesuíta de La Flèche, tendo permanecido ali até 1614. Este dado da vida de Descartes é importante, pois a espiritualidade inaciana exerceu influência na sua dinâmica intelectual, notadamente no que tange ao método seguido no famoso Discurso, no sentido de indagar pelo “princípio e fundamento” do conhecimento.

Entre 1614 e 1620 o nosso autor participou, como soldado, da Guerra dos Trinta Anos, na Holanda, sob o comando de Maurício de Nassau. Nessa condição viajou pela Dinamarca e pela Alemanha. Em 1622, regressou à França. Em 1633, o físico italiano Galileu Galilei foi condenado pela Inquisição romana e, no ano seguinte, o nosso autor renunciou à publicação do seu Tratado do Mundo. A época não era propícia para a discussão de teorias que colocassem em dúvida a estática cosmologia medieval, alicerçada na idéia grega de ordem harmônica do cosmo.

Em 1647, o nosso autor encontrou-se com Blaise Pascal, eminente engenheiro e pensador espiritualista francês, em quem teria encontrado motivo de aprofundamento na sua teoria de uma substância pensante (res cogitans), contraposta à materialidade do mundo (res extensa). Em 1649, a convite da Rainha Cristina, da Suécia, Descartes viajou para Estocolmo, onde, em 1650, morreu de pneumonia.

As principais obras escritas por Descartes foram as seguintes: Regras para a direção do espírito (1628), Tratado do Mundo (1634, publicado vários anos depois), Discurso do Método (1637), Meditações Metafísicas (1641).

Em treze passos podemos sintetizar o Discurso do Método:

1. Ponto de partida do itinerário da razão: a introspecção descritiva, à maneira dos geógrafos. Trata-se de uma viagem pessoal, que o filósofo recomenda aos seus leitores. A obra em apreço contém o relato dessa experiência. Descartes, no Discurso do Método, destaca assim estas idéias: “Gostaria muito de mostrar, neste discurso, que caminhos segui; e de nele representar a minha vida, como num quadro, para que cada qual a possa julgar; e para que, retirando do comum rumor as opiniões sobre ele formuladas, isso seja um novo meio de me instruir, que acrescentarei àqueles de que costumo servir-me. Assim, o meu propósito não é ensinar aqui o método que cada um deve seguir para bem conduzir a própria razão, mas apenas mostrar de que maneira procurei conduzir a minha” [René Descartes, Discurso do Método. Tradução de João Gama; introdução e notas de Étienne Gilson. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 41-42].

2. Busca, pelo pensador, do princípio e fundamento da razão, no conjunto de idéias constituído por tudo quanto encontra nessa introspecção descritiva. Esses conteúdos dividem-se em duas classes: idéias claras e distintas (que aparecem à razão com a clareza dos princípios matemáticos) e idéias confusas (ligadas à experiência sensorial). Para Descartes, são idéias todos os conteúdos de consciência que a razão encontra nesse movimento introspectivo por ele proposto. A busca do princípio e fundamento decorre da influência que os Exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola exerceram sobre o pensador; no primeiro dia dos mencionados exercícios, o pregador induz os fiéis a buscarem por esse princípio, no caminho da vida espiritual, respondendo à seguinte indagação teológica: quid hoc ad aeternitatem? (de que forma isto que estou fazendo, aqui e agora, serve para a vida eterna?)

3. Formulação da hipótese do gênio maligno: retomando uma antiga tradição filosófica que remonta a Santo Agostinho, o nosso pensador decide duvidar de tudo quanto encontra na sua consciência para, a partir daí, observar o que fica em pé e construir o edifício do conhecimento sobre bases firmes. Eis as palavras de Descartes a respeito: “(...) Considerando que todos os pensamentos que temos no estado de vigília nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que, neste caso, algum seja verdadeiro, resolvi supor que todas as coisas que até então tinham entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos” [Discurso do Método, quarta parte, p. 74]. Contudo, é nas Meditações Metafísicas onde o nosso autor explicita a hipótese da dúvida metódica, retomando a figura antiga do gênio maligno (numa argumentação que foi identificada pelos estudiosos como argumento hiperbólico, que é sintetizado magistralmente por Étienne Gilson, da seguinte forma): “Nada nos impede de imaginar que o autor de nossa natureza seja um gênio maligno e enganador, que nos tenha criado de tal modo que nunca possamos descobrir a verdade, mesmo quando pensamos tê-la captado com a maior evidência. Descartes abrevia e atenua intencionalmente as razões de duvidar, no Discurso, porque esta obra está escrita em linguagem vulgar, e seria imprudente pôr assim um instrumento tão perigoso como a dúvida nas mãos de toda a gente” [in: Discurso do Método, 4ª parte, nota 5, p. 74]. A hipótese do gênio maligno deita raízes na reflexão de Santo Agostinho acerca dos fundamentos do conhecimento. No seu esforço para superar o ceticismo, Agostinho descobre um caminho que lhe permite vencer o temor de ter sido enganado pelo Maligno, no que tange à verdade daquilo que conhece. Eu posso, pensa o Padre da Igreja, me equivocar acerca das coisas fora de mim, por força dos ardis do Maligno. Instala-se, portanto, no seio da minha consciência, a dúvida. Mas, enquanto duvido, sou consciente de mim mesmo enquanto pensante que duvida. Ora, a certeza da minha existência é pressuposto em qualquer julgamento que eu fizer, em toda dúvida e em todo erro: “Si enim fallor, sum” (“Pois se eu errar, é porque existo”).

4. Efeito da dúvida metódica: Ao duvidar de tudo quanto encontro no seio da minha consciência, só tenho certeza de uma coisa: duvido. Ora, se duvido, é porque penso. E se penso, é porque existo. Cogito ergo sum (Penso logo existo). Eis o princípio e fundamento de todas as certezas do edifício do conhecimento. Sobre essa base firme, poderei construí-lo, sem temor a que afunde. A respeito desse raciocínio, Descartes afirma: “Mas, logo a seguir, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era de todo necessário que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava” [Discurso do Método, 4ª parte, p. 74]. Agostinho já tinha percorrido esse caminho de superação do ceticismo. Ao duvidar, pensa o mestre de Hipona, sou consciente de mim mesmo enquanto pensante que duvida. Ora, a certeza da minha existência é pressuposto obrigatório, em qualquer julgamento que eu fizer, em toda dúvida e em todo erro. “Si enim fallor, sum” (“Pois se eu errar, é porque existo”).

5. O ato de pensar, apreendido como finito: Descartes, a seguir, considera que o nosso ato de pensar apresenta-se como duplamente finito. Em primeiro lugar, porque somente posso pensar uma coisa de cada vez. Em segundo lugar, porque o nosso pensamento está corriqueiramente eivado de dúvidas. A propósito, comenta Gilson: “É na dúvida que o pensamento apreende a própria existência; mas conhecer que duvidamos é verificar que carecemos de certeza e, por conseqüência, também saber que somos imperfeitos” [in: Discurso do Método, 4ª parte, nota 16, p. 76].

6. Arrazoado platônico: a idéia de finito pressupõe a de infinito. Eu me apreendo como finito, no ato de pensar. Já afirmara Platão que a idéia de finitude pressupõe a de infinitude. A respeito, afirma Descartes: “Depois disto, tendo refletido sobre o que duvidava e que, por conseqüência, o meu ser não era inteiramente perfeito, pois via claramente que conhecer é uma maior perfeição do que duvidar, lembrei-me de procurar de onde me teria vindo o pensamento de alguma coisa de mais perfeito do eu; e conheci, com evidência, que se devia a alguma natureza que fosse, efetivamente, mais perfeita” [Discurso do Método, 4ª parte, p. 76].

7. Pressuposto da existência de uma natureza infinita em perfeições: essa natureza de onde provinha a idéia de mais perfeito do que eu, não poderia ser uma natureza finita, como a minha, porque a idéia de perfeição finita, como já foi visto, pressupõe a de perfeição infinita. Logo, conclui Descartes: “De maneira que restava apenas que ela (a idéia de perfeição infinita) tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que eu, e que até tivesse em si todas as perfeições de que eu podia ter alguma idéia (...)” [Discurso do Método, 4ª parte, p. 76].

8. Prova da existência de Deus: essa natureza infinita em perfeições, de onde provém a idéia de mais perfeito do que eu, deve ser portadora da mais importante perfeição que consiste na existência. Logo essa natureza infinita existe e “para me explicar como uma só palavra”, é Deus [Discurso do Método, 4ª parte, p. 76-77]. Trata-se, aqui, de uma retomada da prova da existência de Deus, efetivada à luz do argumento conhecido na Idade Média como ontológico.

9. Idéia de substância pensante: eu me apreendo como ser que permanece idêntico a mim mesmo, embora pense em muitas idéias (lembremos o sentido amplo que Descartes confere a este termo, de forma a significar tudo quanto passa pela consciência, ou seja, pensamentos ou afecções). Logo sou um substrato que permanece, como sustentáculo de muitas idéias. Logo sou uma substância pensante. Eis a radicalidade com que o nosso pensador caracteriza essa substância pensante, prenunciando o dualismo metafísico que explicaremos a seguir: “Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existisse; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente porque pensava ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu existia; ao passo que se deixasse somente de pensar, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro, não teria razão alguma para crer que eu existisse: por isso, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é” [Discurso do Método, 4ª parte, p. 75].

10. Idéia de substância extensa: eu apreendo, através dos sentidos, o meu corpo e os corpos externos. Graças a uma analogia com a apreensão da minha alma racional como substância pensante, penso a idéia de substância extensa como fundamento dos corpos. Mas tal idéia é absolutamente diferente da minha essência como substância pensante.

11. Dualismo metafísico: duas substâncias irreconciliáveis. Entre substância pensante e substância extensa não há nada em comum. A substância pensante é claridade perante si mesma. A substância extensa, pelo contrário, é opacidade perante a substância pensante. A minha razão não consegue, destarte, justificar racionalmente a existência da substância extensa, absolutamente diferente dela.

12. Dualismo antropológico: corpo e alma estão, no homem, simplesmente superpostos. Somos razão pensante, de um lado; somos extensão, de outro. Mas entre corpo e alma não há nada em comum. A alma pilota o corpo, que é uma máquina perfeitissima. O homem está tragicamente dividido em dois princípios irreconciliáveis.

13. “Deus ex machina” para justificar a existência do mundo físico: Deus é infinitamente perfeito. Logo é infinitamente bom. Logo não permitirá que nos enganemos continuamente em relação ao mundo físico, no qual vivemos. Logo a bondade de Deus é a garantia racional da existência da substância extensa. Este princípio cartesiano subsistirá no pressuposto de Newton de que Deus é o fundamento do Universo, como base racional que explica o espaço absoluto (que é, para o físico inglês, “sensorium Dei”).