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quinta-feira, 30 de abril de 2009
PRESENÇA DE TOCQUEVILLE NO BRASIL
A exposição acerca da presença de Tocqueville no Brasil seguirá as linhas gerais que acabam de ser mencionadas. No tocante ao século XIX, ela será feita ao redor das individualidades que sofreram a influência do pensador francês. Já no que tange ao século XX e primeiras décadas do XXI, a exposição será feita levando em consideração as principais instituições culturais e as Universidades onde o pensamento tocquevilliano tem sido objeto de estudo.
I - Século XIX
Os estadistas brasileiros do século XIX, notadamente os do Segundo Império (1841-1889), encontraram nos doutrinários franceses, especialmente em Guizot (1787-1874), preciosos subsídios teóricos para a prática de um liberalismo conservador, que constituiu a tônica da cultura política do país. A presença de Tocqueville no meio brasileiro serviu, nesse contexto, como contraponto liberal ao conservadorismo dos doutrinários, notadamente no que se refere à defesa incondicional da liberdade, em face do Estado centralizador. Ao redor desse aspecto aglutinaram-se outros conceitos do pensamento tocquevilliano, como a questão da livre iniciativa, do self-government, da democratização do sufrágio, da descentralização administrativa, da luta anti-escravagista, da defesa das minorias, da liberdade de imprensa, etc.
Não houve, no decorrer do século XIX, uma leitura sistemática da obra de Tocqueville. As suas idéias inspiram tanto a liberais oposicionistas (como Tavares Bastos ou Tobias Barreto), quanto a liberal-conservadores (como o visconde de Uruguai). Cada um toma do pensamento tocquevilliano o que acha mais importante. Mas deve ser destacado um fato: o recurso à obra de Tocqueville é feito, por todos eles, na trilha da defesa da liberdade, para sustentar propostas de reformas tendentes a consolidá-la, de forma mais ousada nos liberais tout-court, de maneira mais comedida no caso dos membros do stablishment imperial.
Aureliano Cândido Tavares Bastos (1839-1877) é, na cultura política brasileira do século XIX, o pensador político mais afinado com a idéia democrática tocquevilliana, tanto pela sua admiração do self government praticado na América, como pela defesa que fazia da livre iniciativa, do liberalismo social moderado [cf. Rodrigues, 1976: 9], do livre comércio, da liberdade religiosa, da descentralização administrativa, do respeito às minorias, da extinção da escravatura, da imigração, do governo representativo e da democratização do sufrágio [cf. Tavares Bastos, 1976: 46-47].
Monarquista convicto (à la Guizot), no início da sua vida política, foi paulatinamente se aproximando de um modelo de monarquia constitucional e democrática, na medida em que observava a inviabilidade do centralismo administrativo do Segundo Império (1841-1889). Observa-se, nessas duas etapas da sua evolução política, uma certa semelhança com os dois momentos em que pode ser dividida a vida política de Tocqueville, como defensor da monarquia constitucional e parlamentar, ao lado dos doutrinários, e como seguidor do ideal democrático e republicano moderado, se distanciando especialmente de Guizot.
O poeta José de Alencar (1829-1877), no seu ensaio intitulado O sistema representativo [1991: 14], criticava o modelo de representação herdado dos Estados Unidos pelo "domínio exclusivo da maioria e a anulação completa da minoria". Essa idéia de domínio da maioria, no sentir de José de Alencar, é um "pensamento inócuo e absurdo". O pensador-poeta citava, para fundamentar nelas a sua crítica, as palavras de Tocqueville no capítulo 7º da primeira Démocratie en Amérique: "A maioria tem um imenso poder de fato, e um poder de opinião quase igual; uma vez estabelecida a respeito de uma questão, não há obstáculos que possam, já não digo esbarrar, porém mesmo retardar sua marcha, e dar-lhe tempo de escutar as lamentações dos que esmaga em sua passagem" [apud Alencar, 1991: 16].
José de Alencar mostrava-se simpático ao tipo de representação praticado na Inglaterra, pelo fato de, nele, haver controles que impediam a ditadura da maioria. A respeito, frisava: "Nas monarquias representativas, que têm ainda por modelo a Inglaterra, não exerce a maioria um domínio certo e exclusivo. A constituição cria-lhe embaraços já com a permanência de certos depositários do poder, já com as restrições do direito de voto. Tantas cautelas geram muitas vezes um resultado oposto ao fim do governo; é o menor número quem domina a totalidade. Essa tirania, ainda que a primeira vista pareça mais iníqua, de ordinário se reveste de maior prudência. Como a força material da quantidade está na oposição, a parte mínima que usurpou o poder evita exasperá-la" [Alencar, 1991: 17].
Paulino Soares de Sousa, visconde de Uruguai (1807-1866) não escondia a sua admiração pela obra de Tocqueville. No seu Ensaio de direito administrativo [Sousa, 1960; 512, nota 277] escrevia: "De la Démocratie en Amérique, um dos livros mais profundos e melhores que conheço. Sir Robert Peel o apontava enfaticamente, como um livro digno do estudo de um estadista inglês". Paulino Soares de Sousa dedicou várias páginas da sua obra à descrição da vida política e administrativa das comunas americanas [Sousa, 1960: 394-405]. Ele ficou especialmente impressionado com forma em que, na América, a vida democrática brotava dos hábitos das pessoas até se tornar instituição, sem ter havido, nesse ponto, interferência da Metrópole. No seu entender, a descrição que Tocqueville fazia da vida e da atividade das comunas americanas, constituía o exemplo mais puro de município. A prova mais clara do espírito de self-government foi, já no início da vida política das colônias americanas, o pacto social assinado pelos próprios colonos, quando da sua chegada à América.
O visconde de Uruguai destacava a semelhança entre os processos históricos ocorridos na França e no Brasil, no tocante à problemática da centralização. Em ambos os países, a centralização foi uma herança do Ancien Régime. Tanto na França quanto no Brasil, a reforma política veio de cima, sem mudar antigos hábitos administrativos.
Soares de Sousa [1960: 348] considerava que se deveria manter, no Brasil, a centralização política, garantidora da unidade da Nação, para dar ensejo à descentralização administrativa. A sua proposta descentralizadora era moderada e tendia ao fortalecimento da vida municipal. O visconde de Uruguai baseava o seu raciocínio no seguinte arrazoado de Tocqueville: “É (...) na Municipalidade que reside a força dos povos livres. As instituições municipais são, para a liberdade, o que as escolas primárias são para a ciência: põem a liberdade ao alcance do povo, fazem com que aprecie o seu gozo tranqüilo, e habituam-no a servir-se dele. Sem instituições municipais pode uma nação dar-se um governo livre, mas não tem o espírito da liberdade".
A reforma administrativa fortalecedora da vida municipal era, portanto, a melhor escola para o self-government no Brasil, país ainda não suficientemente maduro no terreno do espírito público e passível de se tornar vítima do vício da privatização do Estado pelos clãs. Uma reforma administrativa extremadamente liberalizante, que conduzisse até a descentralização política, como aconteceu no Primeiro Reinado, a partir de 1831, correria o sério risco da anarquia, pondo em perigo a unidade nacional [cf. Sousa, 1960: 368; 379; 404-405].
Em quatro ensaios Tobias Barreto (1839-1889) deixou sintetizada a sua concepção liberal, traduzida num republicanismo democrático e moderado: Os homens e os princípios (1870) [Barreto, 1990: 50-65], Política brasileira (1870) [Barreto, 1990: 66-102], Os bispos anistiados (1875) [Barreto, 1990: 113-114] e Um discurso em mangas de camisa (1877) [Barreto, 1990: 122-131].
Para Tobias Barreto, o regime republicano descrito por Tocqueville em La Démocratie en Amérique constituía o arquétipo da democracia moderna, pelo fato de ser a mais perfeita forma institucionalizada de exercício da liberdade, aperfeiçoada pelo ideal democrático. Mas o pensador sergipano não deixa dúvidas quanto ao fato de que o valor marcante do liberalismo é a liberdade, sendo o ideal da igualdade algo que não se pode perseguir como resultado nivelador. A igualdade significa, para Tobias Barreto, um imperativo moral, no sentido de que não haja desigualdades de jure entre os cidadãos do mesmo país. Significa, outrossim, que todos os cidadãos possam representar os seus interesses no Parlamento, a fim de que vejam garantida a sua participação no governo. Para este pensador, as instituições imperiais, em que pese as declarações dos estadistas do Segundo Reinado em prol das liberdades e da representação, não conseguiram realizar o ideal liberal da efetiva participação de todos os brasileiros. Isso só se tornaria possível mediante a substituição da Monarquia, centrada na instituição do Poder Moderador, pela República entendida nos moldes americanos, ou seja, com representação política de todos os cidadãos e a prática do self-government nos municípios.
A inspiração democrática de Tobias Barreto é clara. No seu ensaio intitulado Os homens e os princípios [Barreto, 1990: 53] destaca que o verdadeiro liberalismo repousa na perspectiva política que bane quaisquer privilégios. Alicerçado nessa concepção liberal, Tobias Barreto passa a criticar o excessivo centralismo que afetava a vida do país no Império. A argumentação de Tobias Barreto lembra as críticas de Tocqueville ao centralismo dos intendentes do Rei no Ancien Régime: nada acontece no país sem o placet dos representantes da autoridade central, ao contrário do que se observa nos Estados Unidos da América, onde prevalece a livre deliberação das comunas e das províncias. A conseqüência de tal centralismo hipertrofiado é clara: o esmagamento, sob o peso do centro, da vida municipal e provincial [cf. Barreto, 1990: 74].
Rui Barbosa (1849-1923), o mais importante pensador liberal da República Velha (1889-1930) inspirou-se, fundamentalmente, no liberalismo anglo-saxão, à luz do qual elaborou o seu Credo Político [apud Sá, 1950: 54; cf. Rezende, 1949: 14-15], cuja parte central rezava assim: "Creio na liberdade onipotente, criadora das nações robustas; creio na lei, emanação dela, o seu órgão capital, a primeira de suas necessidades; creio que, neste regime, não há poderes soberanos, o soberano é só o direito, interpretado pelos tribunais; creio que a própria soberania popular necessita de limites, e que esses limites vêm a ser as suas constituições, por ela mesma criadas, nas suas horas de inspiração jurídica, em garantia contra os impulsos da paixão desordenada; creio que a República decai, porque se deixou estragar, confiando-se às usurpações da força; (...) creio no governo do povo pelo povo; creio, porém, que o governo do povo pelo povo tem a base de sua legitimidade na cultura da inteligência nacional, pelo desenvolvimento do (...) ensino".
Embora tivesse participado, pelo Partido Liberal, do Parlamento imperial [Cf. Barbosa, 1952], Rui prestou a sua colaboração ao primeiro governo republicano como Ministro da Fazenda, sem deixar, por isso, de discordar do militarismo em ascensão. O pensador liberal encontrou em Tocqueville o exemplo para essa colaboração com uma instituição cujo autoritarismo ele próprio criticava. O intuito que o movia era patriótico: evitar males maiores para o país, tratando de preservar a ordem legal contra a anarquia jacobina.
Eis a forma em que Rui referia-se, nessa circunstância (no ano de 1893), aos Souvenirs de Tocqueville: "Os homens de valor, que a revolução afastou dos negócios, não têm o direito de continuar indefinidamente a persistir na reserva, em que se encerraram (...). O Brasil reclama a cooperação desinteressada e ativa de todos (...). Quando a segunda república esteve a soçobrar, em França, na tormenta da insurreição de junho, a própria aristocracia, separada profundamente das instituições reinantes, pegou em armas, para defender a ordem constitucional. Tocqueville, nas suas memórias, nos descreve o chegar a Paris de um desses batalhões de voluntários arregimentados de improviso nos distritos rurais contra a desordem socialista. (...). Foi sob a impressão desses sentimentos que Tocqueville, oposto, aliás, em tese à forma republicana, governo sem contrapeso, segundo ele, que promete sempre mais, mas que dá sempre menos liberdades do que a monarquia constitucional, não hesitou em se alistar entre os colaboradores mais ativos da república, e aceitar, a seu serviço, uma pasta no ministério de Luís Napoleão, presidente eleito (...)" [Barbosa, 1956: 133-134].
Inspiração patriótica semelhante encontrou Rui Barbosa no exemplo de Tocqueville, no tocante à defesa incondicional da liberdade de imprensa [cf. Barbosa, 1956: 240]. O estadista francês era, para o brasileiro, a encarnação viva do ideal liberal de defesa da liberdade em todas as suas manifestações, inclusive na luta em prol da abolição da escravatura [cf. Lacombe, 1944: 90; 124; Barbosa, 1952: 199-229].
II - Séculos XX e XXI
A reflexão brasileira sobre a obra de Tocqueville, no período apontado, começa com a publicação, em 1962, da tradução de A democracia na América, que contou com um breve estudo introdutório da autoria de Neil Ribeiro da Silva. Nele, é caracterizada a obra do pensador francês como um repositório de profecias. A propósito, o autor escreve: "(Tocqueville) foi profético, por exemplo, ao mencionar os perigos de uma guerra civil, inerentes às relações de brancos e negros como senhores e escravos, e, se é verdade que seus temores não se cumpriram no que dizia respeito ao esfacelamento da União, também é certo que esse esfacelamento esteve bem próximo de se consumar" [Silva, 1962: vol I, VIII]. Porém, o aspecto mais importante que ressalta na obra de Tocqueville é a sua crítica à tirania da maioria.
Quanto à repercussão da Democracia no Brasil republicano, Ribeiro da Silva frisa vagamente: "Ao que tudo indica, o livro de Tocqueville alguma influência terá tido no Brasil; afinal, também em nosso país a curiosidade pelos Estados Unidos era grande. E, se a República foi implantada tendo o positivismo de Auguste Comte como fundamento filosófico, não é menos verdade que o sistema de governo construído sobre esse alicerce copiou numerosos detalhes do sistema em vigor nos Estados Unidos" [Silva, 1962: vol. I, X]. A verdade é que, até a década de 60, a obra tocquevilliana é praticamente desconhecida no meio intelectual e político brasileiro. O motivo talvez seja o mencionado por Ribeiro da Silva: a presença de forte tradição positivista no ciclo republicano.
É digno de destaque o fato de A Democracia na América contar, nos últimos anos, com mais duas excelentes edições brasileiras, realizadas pela Biblioteca do Exército, do Rio de Janeiro e pela Editora Martins Fontes, de São Paulo.
Ao lado de Ribeiro da Silva, coube papel pioneiro na análise das idéias de Tocqueville, no século XX, a José Guilherme Merquior (1941-1991), que foi o primeiro em chamar a atenção para o trabalho que tinha sido desenvolvido na França, nos anos 50 e 60, por Raymond Aron, no que tange especificamente aos estudos tocquevillianos, numa perspectiva definidamente liberal.
A partir dos anos 70 inicia-se amplo movimento de estudo da obra de Tocqueville, centrado em algumas Universidades e Instituições culturais, tais como o Instituto Brasileiro de Filosofia (São Paulo), a Sociedade Tocqueville (Brasília e Rio de Janeiro), o Instituto de Pesquisas Políticas da Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro), o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Gama Filho (Rio de Janeiro), o Programa de Pós-Graduação em Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo, o Centro de Estudos Políticos da Universidade Federal de Santa Maria, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Rio de Janeiro) e o Núcleo Tocqueville-Aron de estudos sobre a democracia contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora, bem como o Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da mesma universidade.
1) O estudo de Tocqueville no Instituto Brasileiro de Filosofia.- Criado em 1949 por Miguel Reale (1912-2006), o Instituto constitui ainda hoje espaço pluralista e aberto ao debate filosófico e político, tendo ensejado no Brasil movimento cultural semelhante ao desenvolvido na França por Raymond Aron. Um dos membros do Instituto, Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999) fez a primeira abordagem sistemática do pensamento tocquevilliano no século XX, em dois ensaios publicados no início dos anos 70, sob os títulos de: O Liberalismo romântico: Alexis de Tocqueville e Tocqueville e a história [Barros, 1973: 153-185].
Para Barros, Tocqueville é, fundamentalmente, um pensador liberal, cuja preocupação básica consistia em discutir a problemática da democracia, do ângulo da liberdade dos indivíduos. A respeito, escreve: "A igualdade é o grande e irrecusável fato, a realidade providencial que se acentua a cada dia. O problema, portanto, é o de salvar a liberdade humana, na medida em que for isto possível, no seio da democracia. Conciliar democracia e liberalismo, igualdade e liberdade. Ora, foi precisamente isto, crê Tocqueville, que os Estados Unidos, em boa parte, conseguiram realizar. Vale a pena, pois, estudar o modelo, examinar as instituições básicas que permitiram aquela conciliação para oferecer uma saída ao homem, para que ele escape à pura massificação, para que possa continuar como pessoa num mundo que o convida a ser coisa" [Barros, 1973: 166].
Na sua mais importante obra, publicada em 1990 e intitulada: O fenômeno totalitário, Barros destaca um aspecto assinalado por Tocqueville: a massificação não é puro elemento superestrutural, mas deita raízes no fundo da alma humana, quando os indivíduos preferem o conforto à luta em prol da defesa da sua liberdade [cf. Barros, 1990: 744-745].
Outro membro do Instituto Brasileiro de Filosofia, Antônio Paim (nascido em 1927) destacou, em estudo intitulado O Liberalismo contemporâneo [1995], os pontos em que a moderna filosofia política encontrou elementos importantes de inspiração na obra de Tocqueville. Tais elementos seriam, basicamente, dois: em primeiro lugar, a defesa das instituições do governo representativo, que garantiram à democracia americana a possibilidade de superar os riscos apontados por Tocqueville e, em segundo lugar, a discussão da problemática da pobreza, num contexto de adequado conhecimento das suas particularidades.
2) Estudos realizados na Sociedade Tocqueville.- Segundo a Carta de Princípios e Programa de Atuação da Sociedade (criada em Brasília e no Rio de Janeiro em 1986), é de capital importância a discussão da problemática democrática no mundo atual à luz dos ideais liberais de Tocqueville, a fim de evitar, na ação política, os riscos do anarquismo, do autoritarismo e da democracia totalitária. A construção da democracia, num país como o Brasil, é tarefa difícil, toda vez que a sociedade, no decorrer do século XX, ficou alheia à cultura política liberal. "As instituições do governo representativo no mundo anglo-saxão - frisa a Carta de Princípios - incorporaram a idéia democrática, alargando o voto e consagrando os direitos das minorias. Mas nos países em que foi esquecida a tradição liberal de governo representativo, como é o caso do Brasil, as idéias democráticas apenas estimularam o populismo autoritário e demagógico. Do ponto de vista sociológico (...) consolidou-se no Brasil um Estado mais forte do que a sociedade, na trilha da cultura política herdada do cartorialismo português" [Penna, Vélez et alii, 1986: 3].
Para José Osvaldo de Meira Penna (nascido em 1917), fundador e presidente da Sociedade Tocqueville, a lição fundamental da obra do pensador francês é a defesa incondicional da liberdade, no contexto da democratização inevitável do mundo moderno. A respeito, Penna escreve no seu ensaio intitulado O pensamento de Tocqueville: "Temos hoje consciência de que a obra desse pensador francês, que é adotado nos Estados Unidos quase como um americano, é altamente relevante para aqueles que procuram reagir ao desafio totalitário e social-estatizante de nossos dias" [Penna, 1987: 45].
3) O estudo de Tocqueville no Instituto de Pesquisas Políticas da Universidade Cândido Mendes.- Três são as mais importantes contribuições desta instituição aos estudos tocquevillianos: o ensaio de Luiz Werneck Vianna intitulado O problema do americanismo em Tocqueville [1997], a obra de Marcelo Jasmin, Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política [1997] e a tese de doutorado de Paulo Kramer, intitulada: Do despotismo suave à jaula de ferro: Tocqueville, Weber e o mal-estar no liberalismo [1994].
Paulo Kramer aproxima as tipologias tocquevilliana e weberiana, consideradas sob o aspecto dos riscos da moderna democracia. Sintetiza da seguinte forma a contribuição do pensador francês: "Na América, a ardorosa paixão pela igualdade é construtivamente temperada e canalizada pela tradição de independência religiosa do protestantismo puritano, pelos princípios constitucionais da divisão de poderes e do federalismo e pelo típico talento dos cidadãos para se associar livremente na solução de problemas comuns, sem recorrer à tutela do Estado (...). Já na França de Tocqueville, a cega resistência do privilégio às demandas populares por igualdade, acaba precipitando o país no abismo de uma Revolução, que, ao longo de muitas décadas, aprofundaria as tendências centralizadoras do Antigo Regime, por novos e mais eficientes meios" [Kramer, 1994: 3-4].
4) O estudo de Tocqueville no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Gama Filho.- Ubiratan Macedo (1937-2008) estudou as relações entre Tocqueville e os doutrinários, destacando a inspiração liberal de todos eles, bem como a específica contribuição de Tocqueville na formulação do liberalismo democrático [Macedo, 1987. Macedo / Vélez, 1996]. A meditação brasileira do século XIX, aliás, não permaneceu alheia às idéias de Tocqueville, tendo-as adotado na discussão do alargamento da representação no Segundo Império [cf. Macedo 1997].
Ricardo Vélez Rodríguez segue a trilha da interpretação liberal do pensamento tocquevilliano (aberta na França por Raymond Aron, Jean-Claude Lamberti, François Furet, Pierre Manent, Françoise Mélonio e outros e desenvolvida no Brasil por Barros, Penna, Merquior e Paim). Na sua obra intitulada: A democracia liberal segundo Alexis de Tocqueville [1998a], Vélez estudou detalhadamente a gênese, os aspectos centrais e as conseqüências da idéia democrática tocquevilliana. Tocqueville e Marx colocaram a questão da construção da democracia. Ao passo que o segundo equaciona o ideal da igualdade sacrificando a liberdade, o primeiro elabora um modelo de conquista da igualdade preservando a liberdade. As propostas de um e de outro foram submetidas à prova da história. Com a queda do Muro de Berlim, o modelo democrático-totalitário proposto por Marx entrou definitivamente em declínio. O modelo tocquevilliano de democracia liberal, pelo contrário, está em alta e inspira, hodiernamente, as propostas que animam a liberais e social-democratas. As esquerdas brasileiras ainda animadas, em geral, pelo ideal totalitário de democracia apregoado por Marx, muito teriam a aprender se fossem influenciadas pela benfazeja herança do pensador francês.
Solange Thiers, na dissertação intitulada Ética pública: o princípio do interesse bem compreendido segundo Alexis de Tocqueville, aprofunda nesse aspecto do pensamento tocquevilliano, mostrando a sua pertinência na correção de rumos do liberalismo econômico, no contexto da crise financeira e política global [Thiers, 2003].
5) O estudo de Tocqueville no Programa de Pós-Graduação em Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo.- Renato Janine Ribeiro, na introdução intitulada “A política teatral” [1991: 9-14], que escreveu para apresentar a edição brasileira das Lembranças de 1848 de Tocqueville, estabelece um paralelo entre esta obra e o conhecido ensaio de Marx O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Ribeiro aponta um aspecto do pensamento tocquevilliano: a virtude do estadista, entendida como bom senso, a fim de defender o que é de todos, a res publica. Frisa a respeito: "A Tocqueville importa muito a virtude cívica, que ele deseja ver formar-se na sociedade política - no que possivelmente retoma uma bela lição do humanismo renascentista. Assim, num momento de crise fatal para as instituições, o estadista ou o político esposa a sensatez como sendo a última defesa não só da ordem, mas do espírito público" [Ribeiro, 1991: 15].
Helena Esser dos Reis destaca, no seu ensaio intitulado Política e religião no pensamento de Tocqueville [1997], o papel essencial que, segundo Tocqueville, desempenha a religião na tentativa de superar o risco da tutela democrática, nas modernas democracias.
6) O estudo de Tocqueville no Centro de Estudos Políticos da Universidade Federal de Santa Maria.- No ensaio intitulado Instituições políticas da Monarquia Absoluta na França e a Revolução Francesa [1985] Selvino Malfatti estudou a análise feita por Tocqueville acerca do Ancien Régime. O autor encontra elementos básicos semelhantes entre este e o modelo de ditadura científica, que os positivistas impuseram no Rio Grande do Sul, entre 1891 e 1930. O caminho assinalado por Tocqueville, o fortalecimento da liberdade dos cidadãos mediante as práticas do self-government e da representação, constitui, ainda hoje, a solução mais adequada para superar os riscos da ditadura. Infelizmente, considera Malfatti, o Brasil do período republicano afastou-se da tradição política liberal e passou a ser influenciado pelo despotismo ilustrado presente no modelo da ditadura científica positivista.
7) O estudo de Tocqueville no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.- Arno Wehling, atual Presidente do Instituto, dedicou o ensaio intitulado Tocqueville e a razão histórica [1985] ao estudo da lógica histórica tocquevilliana. Wehling considera que Tocqueville deu uma contribuição definitiva, não só à historiografia, mas também às ciências sociais em geral, ao ter estudado os grandes movimentos sociais do Ocidente, enxergando, ao mesmo tempo, as forças profundas que se ocultam sob a superfície dos fatos e ao analisar estes em relação àquelas, numa perspectiva histórica que foge ao determinismo e que abre espaço à livre ação dos indivíduos.
Wehling conclui o seu estudo da seguinte forma, destacando a feição clássica do pensador francês: "Tocqueville é, portanto, um clássico das ciências sociais, em especial por ser dos principais elaboradores da teoria da razão histórica. Clássico, porque sua influência não se limitou a marcar determinados autores que o sucederam na análise dos termos específicos, mas pela elaboração ou aplicação de paradigmas - como os conceitos de democratização, centralização, igualitarismo, monetização da sociedade - que se revelaram fecundos na interpretação da sociedade muito depois que sua principal aspiração, a crença (ou mesmo ideologia) da razão histórica, foi superada pelo refinamento das metodologias de pesquisa" [Wehling, 1985: 108].
8) O estudo de Tocqueville na Universidade Federal de Juiz de Fora.- Duas iniciativas têm sido desenvolvidas nessa Universidade: no Núcleo Tocqueville-Aron de estudos sobre a democracia contemporânea (criado em 2007) e no Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa” (criado em 2005). Ambas as iniciativas são coordenadas por Ricardo Vélez Rodríguez. A finalidade consiste em estudar os problemas que enfrenta a democracia no século XXI, tendo como marco de referência o pensamento dos dois mestres liberais, Alexis de Tocqueville e Raymond Aron. Os resultados das pesquisas desenvolvidas são divulgados no “Portal Defesa” da Universidade Federal de Juiz de Fora [www.defesa.ufjf.br].
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sábado, 11 de abril de 2009
A sobrevivência do liberalismo
RESUMO
Antônio Paim e Ricardo Vélez Rodríguez analisam a situação e as perspectivas do liberalismo no Brasil e em Portugal. Destacam que, em virtude da tradição política do patrimonialismo nos dois países, a acolhida das idéias e das práticas do liberalismo foi, tradicionalmente, limitada. As perspectivas que se abrem para a entrada dos ideais do liberalismo são estreitas, na medida em que não se vê uma abertura das respectivas sociedades nesse sentido, sendo que parecem se consolidar, neste início de milênio, práticas protecionistas alicerçadas na preservação de antigos hábitos burocráticos. Esses hábitos pretendem ser uma resposta aos atuais desafios da crise financeira global.
Antônio Paim and Ricardo Vélez Rodríguez analyse Liberalism's situation and perspectives in Brazil and Portugal. Being Patrimonialism a political tradition on both countries, Liberalism´s ideas and practices have had, historically, little acceptation, stress the authors. Therefore, while the paths to Liberalism ideals are narrow, because neither brazilian nor portuguese societies seem to be opened to them, protectionism practices based on the maintenance of old bureaucratic habits, seem to emerge on the beginning of this millenium, as an answer to the global economical crisis.
Antônio Paim
Antes de mais nada, situo o que tenho em vista ao me referir ao liberalismo. Entendo que a doutrina liberal diz respeito, basicamente, ao governo representativo. Nesse particular, subdividiu-se, historicamente, no que se convencionou denominar de conservadorismo liberal e liberalismo social. Este último, especialmente na Europa, depois que o tradicional Partido Liberal Inglês aderiu à social democracia, encontra-se muito combalido.
Embora o Partido Social Democrata português possa ser qualificado como agremiação liberal conservadora, essa denominação é recusada por sua liderança, embora pertença à IDC-Internacional Democrata de Centro. No plano estritamente político, por certo pode-se afirmar que o liberalismo (como antes o definimos), não sobreviveu em Portugal.
No Brasil, temos uma situação paradoxal. Existe uma agremiação política assumidamente liberal, atual Democratas (no período anterior e desde a abertura política de 1985, com o nome de Partido da Frente Liberal – PFL). Contudo, no que respeita ao essencial - a organização do sistema eleitoral -, não tem sido capaz de promover a necessária adequação de nosso equivocadamente denominado “sistema proporcional”. No sistema proporcional consolidado, o eleitor vota numa lista pré-ordenada, enquanto no Brasil, embora exista uma lista partidária, pode escolher qualquer nome.
Pela primeira vez, nos 16 anos nos quais o tema esteve na ordem do dia do Congresso Nacional, conseguiu-se relativo consenso em torno dessa questão, na atual Legislatura (2006/2009). Inclinando-se a maioria pela adoção do financiamento público das campanhas eleitorais, a única forma de fazê-lo seria mediante a introdução da lista pré-ordenada. Entretanto, submetida a votos no ano passado, a providência foi rejeitada.
O governo reencaminhou ao Congresso os mencionados projetos (lista preordenada e financiamento público), a par de outras providências que permitiriam acabar com a permissividade eleitoral existente no país. Temos em vista a eliminação da representação dos partidos que não obtenham percentuais mínimos de votação e a proibição de coligações em eleições proporcionais (praxe que assegura a sobrevivência de partidos de aluguel). O país tem hoje em torno de trinta partidos políticos sendo que 18 com representação na Câmara dos Deputados. Nas últimas eleições parlamentares, o partido do governo (PT) alcançou apenas 17% das cadeiras na Câmara. No quadro atual, a base parlamentar do governo será sempre um saco de gatos.
O sistema eleitoral permissivo existente no país, completa-se pela maneira como tem sido expandido o corpo eleitoral. Presentemente cerca de 70% da população têm direito a voto, sem qualquer exigência em matéria de escolaridade. Dentre os 126 milhões de eleitores, cerca de 60% são declarada ou virtualmente analfabetos. Os analfabetos são 7% do total; os que apenas lêem e escrevem, 17%, mais 35% que sequer completaram as primeiras quatro séries do primeiro grau.
Mais grave é o que nos revela a pesquisa resumida, por Alberto Carlos Almeida, no livro A cabeça do brasileiro (Record, 2007). Com base nos resultados conclui que grande parte da população brasileira é patrimonialista, não tem espírito público, sendo a favor da intervenção do Estado na economia, é tolerante com a corrupção e acha natural que o ocupante de cargo público use-o em benefício próprio. Dada a limitação de tempo, apresento em anexo uma indicação mais circunstanciada desse documento.
Como a incidência de tais opiniões reduz-se nas camadas com maior escolaridade, o autor nutre certo otimismo quanto ao futuro de nosso sistema político. Obviamente, deixou de levar em conta a realidade da maioria das nossas escolas de nível superior, notadamente no âmbito das ciências sociais, onde ainda viceja a vulgata pseudomarxista (na verdade uma cozinha mal digerida da tradição política autoritária, vigente na República, estruturada com base no comtismo).
É fora de dúvida que a população brasileira tem proporcionado inequívocas demonstrações de repúdio aos governos ditatoriais. Tivemos nos anos oitenta, o empolgante movimento denominado de “diretas já”. Ao longo desses vinte e tantos anos de abertura, as eleições constituem uma verdadeira festa cívica. Mas isto é muito pouco para sustentar qualquer otimismo, dada a manifesta fragilidade das instituições que tipificam o sistema democrático representativo.
A meu ver, não há maiores indícios de que possa sobreviver uma democracia sem partidos políticos. As duas experiências históricas patrocinadas pela República –a República Velha e o interregno democrático 1945/64 – louvavam-se precisamente dessa suposição e acabaram como se sabe.
Passo a palavra a Ricardo Vélez Rodriguez que talvez possa expressar melhor juízo.
Antônio Paim referiu-se, de forma clara, à questão da presença do Liberalismo em Portugal. Concentrarei a minha atenção no caso brasileiro. Vou partir de um esclarecimento que Benjamin Constant faz, em relação ao âmbito que deve ser levado em consideração quando falamos dos ideais liberais. Esse âmbito, para o mestre doutrinário, é triplo: político, econômico e cultural. São três vertentes cujas partes integrantes, irredutíveis umas às outras, não conseguem se desenvolver a contento, cada uma delas, sem a presença das outras duas. São como círculos que se tangem interceptando-se, sem se misturarem plenamente, mas também sem se separarem. O Liberalismo, no Brasil, tem sido inviabilizado, pela elite patrimonialista que governa, nos terrenos da política, da economia e da cultura.
Que a prática do liberalismo, do ângulo político, é periclitante, na nossa realidade, Antônio Paim já deixou claro na sua fala, por uma razão fundamental: a sociedade brasileira não cuidou, a contento, no ciclo republicano, de aperfeiçoar a prática da representação. Basicamente isso ocorreu por uma razão de fundo, de natureza axiológica: não foi mudada a ordem de valores que dá sustentação à política patrimonialista.
Na penosa transição do Império à República perdeu-se o elo da prática da representação política. O Império, graças à figura do Imperador e também aos “homens de mil” que o cercavam, equacionou a questão, como todos sabemos. Essa trajetória foi ceifada pelo positivismo que inspirou a aventura militar de 1889 e, ulteriormente, pelo castilhismo em ascensão, que acompanhou ao estabelecimento de um patrimonialismo explícito na gestão da República.
Era de se esperar que, nos últimos vinte anos de vida política, a questão da representação fosse devidamente equacionada, mediante uma reforma eleitoral que possibilitasse melhor vinculação entre eleitores e eleitos. O que terminou prevalecendo foi a preservação dos vícios do passado. A Constituinte de 1987, da qual emergiu a nova Carta de 88, deveria ter sido a oportunidade para debater, entre os políticos, a questão da representação. Mas essa oportunidade foi perdida, em função dos interesses fisiológicos do Congresso Constituinte, que legislou “olhando pelo retrovisor” do statu quo.
Somente gostaria de dizer, ainda no que tange à variável política, que, se houve alguma coisa que continuou se firmando no panorama político brasileiro do ciclo republicano, foi a hipertrofia do Executivo, que já vinha de tempo atrás, com a adoção do modelo castilhista-getuliano, no que tange aos preconceitos para com a representação política e à substituição do modelo representativo pelo cooptativo. (Vale a pena lembrar o estribilho castilhista, cunhado por Germano Hasslocher, deputado gaúcho em fins do século XIX: “O sistema parlamentar é um sistema para lamentar”).
Ora, essa prática tem sido retomada com grande força nos últimos dois mandatos presidenciais. O Executivo tem-se esforçado, ao máximo, para substituir a nossa minguada representação política, por um sistema cooptativo que implica na valorização do assembleísmo de corte sindical, para passar à sociedade uma imagem de respeito aos interesses dos cidadãos. Isso tem acontecido no terreno da saúde, no da comunicação e nas questões sociais. O governo tem reforçado o assembleísmo em todos esses campos, chamando, para deliberar, quando se trata de legislar, conselhos ad hoc, como o Conselho Nacional de Saúde, ou a correspondente organização sindical, no caso da legislação sobre jornalismo, por exemplo, ignorando sumariamente que o Congresso é a instituição chamada, por sua natureza, para debater essas questões. No caso da demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, o Executivo ignorou sumariamente, na sua decisão em prol da criação da mencionada área em terras contínuas, parecer contrário do Parlamento. Para não falar da esdrúxula presença dos mal-chamados “movimentos sociais”, que têm sido criminosamente tolerados e até financiados pelo governo, a fim de criar uma série de praxes que sinalizem para novas opções, nos terrenos econômico e político, com lesão evidente do tesouro da Nação, da propriedade privada e da empresa capitalista, notadamente do agronegócio.
A mensagem que se passa para a sociedade é a seguinte: o Executivo conseguirá equacionar qualquer problema, com a ajuda dos seus conselhos sindicais. Remedo grosseiro do modelo tecnocrático que tinha sido instaurado por Getúlio, ao ensejo da adoção dos “Conselhos Técnicos Integrados à Administração”. No período getuliano, o Executivo, para equacionar qualquer problema e para legislar nos diferentes âmbitos da administração, solicitava ao seu conselho na área respectiva (educação, saúde, políticas sociais, etc.) a apresentação de soluções tecnicamente viáveis; o processo terminava com a escolha, por parte do Presidente da República, da solução que melhor lhe conviesse, com total marginalização da sociedade quanto à discussão política, no Parlamento, acerca das soluções apresentadas pelos técnicos. Esse modelo, no ciclo militar, (à luz da reforma constitucional de 1967), reduziu-se ao que passou a ser denominado de “petit comité”, na reunião dos ministros técnicos e os da casa com o general presidente, a famosa reunião das 9 horas.
Com o abandono do caráter técnico dos conselhos reunidos pelo Executivo, e a sua substituição pelas organizações sindicais e pelos “movimentos sociais”, voltamos atrás no modelo de “patrimonialismo modernizador”, consolidado no período getuliano e no ciclo militar, para um modelo atrasado de patrimonialismo predatório e sindical, em que campeiam o nepotismo, a irresponsabilidade fiscal, a improdutividade e as práticas mais deslavadas de clientelismo e corrupção.
Evidentemente que tudo não foi obra da dupla gestão petista. Já encontrávamos raízes de hipertrofia do Executivo na vida nacional, na prática política após a Constituição de 1988, que abriu espaço para a famigerada “medida provisória”. Quanto à deformação da representação, conferindo maior peso no Congresso aos Estados mais atrasados da Federação, o vício original encontra-se no Pacote de Abril (de 1977) do general Geisel. Vício que ainda não foi subsanado, em decorrência do protelamento da reforma política.
Digamos, para terminar esta parte dedicada à ausência de uma política liberal, que o abandono da representação, substituída pela cooptação da sociedade pelo Executivo hipertrofiado e contando com a ajuda dos seus Conselhos, configurou o modelo posto em prática em 1804 pelo imperador Napoleão Bonaparte, com a criação do seu famoso Conseil d´État, que empolgou a troupe dos cientificistas franceses, encabeçada por Saint-Simon e Augusto Comte, que se encarregaram de teorizar sobre ela e erguê-la como modelo acabado de civilização. Pela mão desses dois pensadores, os líderes republicanos, chefiados pelos castilhistas, passaram a implantar o modelito da “ditadura científica”, ao longo da República Velha e ulteriormente ao ensejo das reformas getulianas...Longa vida seria dada, assim, ao despotismo ilustrado republicano, que conta, hoje, com aliados de peso, inclusive dentro do próprio Legislativo.
O modelo cooptativo no terreno político, foi acompanhado, na República brasileira, pelo colbertismo econômico. Já se prenunciava esse fenômeno na retomada, pela intelligentsia republicana, do modelo pombalino do Estado empresário que garante a riqueza da Nação. Não foi esse o cerne da obra de Aarão Reis, de 1918, intitulada Economia política, finanças e contabilidade? O modelo pombalino seria posto em prática, na política de encampação de empresas particulares, notadamente as dedicadas ao transporte público, pelos governos castilhistas, no Rio Grande do Sul, entre 1891 e 1930. A Segunda Geração Castilhista, sob a batuta de Getúlio e de Lindolfo Collor, desenhou os traços gerais de uma política econômica que emergiria da presença do Estado construtor da infra-estrutura necessária à industrialização, em Volta Redonda e, ulteriormente, já na última passagem de Getúlio pelo poder, na década de cinqüenta do século passado, no surgimento da empresa estatal de petróleo, ao som do slogan de “o petróleo é nosso”.
De lá para cá, os surtos modernizadores sempre estiveram fortemente marcados pela presença do Estado empresário, tanto no Plano de Metas de Juscelino, quanto na ação modernizadora dos regimes militares, entre 1964 e 1985. Significativo é o fato de que, no início do período militar, o Brasil contava com aproximadamente 90 empresas estatais, sendo que, no final do governo Figueiredo contavam-se 490.
No plano da cultura, o trabalho de verdadeiro desmonte das instituições republicanas praticado pelas duas últimas administrações é deveras lamentável e equivale, como diria o professor Miguel Reale, à instauração da “revolução cultural” gramsciana entre nós. Tudo conduz ao descrédito das instituições republicanas. Só vale o que contribuir para o estabelecimento da hegemonia da classe trabalhadora (leia-se: do novo peleguismo sintonizado com as pretensões do Executivo). Ajuda importante é dada, nesse contexto de desmonte do estado de direito, pelo Conselho Indigenista Missionário e pela Pastoral da Terra, que abençoam claramente as ações abusivas do MST e dos demais movimentos sociais.
ADENDO – Notícia mais circunstanciada
do livro A cabeça do brasileiro - (Antônio Paim)
Roberto DaMatta nasceu em 1936, sendo natural de Niterói. Fez curso de pós-graduação em antropologia social no Museu Nacional, seguindo a carreira universitária, nessa mesma instituição. Concluiu o doutorado, em idêntica área, na Universidade de Harvard, Estados Unidos. Foi professor visitante nas Universidades norte-americanas de Berkley e Notre Dame. É co-editor da revista Current Antropology e do Anuário Antropológico, este publicado regularmente pela Editora Tempo Brasileiro.
De início ocupou-se de etnografia, com base em pesquisas desenvolvidas junto às comunidades indígenas remanescentes no Médio Tocantins. Seu primeiro livro de sociologia, uma autêntica novidade, intitulou-se Carnavais, malandros e heróis (1979). A hipótese básica, então apresentada, seria desenvolvida em outras obras, entre estas O que faz o Brasil, Brasil? -1984, e A casa e a rua-1987. Registra uma grande presença na imprensa periódica.
Aquela hipótese básica seria utilizada para empreender uma ampla pesquisa, dirigida por um de seus discípulos, Alberto Carlos Almeida, que se ocupa, desde há muitos anos, da denominada Pesquisa Social Brasileira. Teve o mérito de apresentá-la em poucos conceitos, de fácil compreensão, sem empobrecer a riqueza originária. Seus resultados foram divulgados no livro A cabeça do brasileiro (Editora Record, 2007).
Almeida ressuscitou uma antiga dicotomia, o confronto entre arcaico e moderno, revestindo-o de grande vivacidade.
No Brasil, o arcaico é identificado com o que DaMatta comprovou ser a nossa característica central: “um país hierárquico no qual a posição social e a origem são fundamentais para definir o que se pode e o que não se pode fazer; para saber se a pessoa está acima da lei ou se terá de cumpri-la.” A comprovação empírica dessa identificação não deu lugar à discussão que, supostamente, deveria ocorrer inevitavelmente. Foi bloqueada como tudo quanto, no plano teórico ou ideológico, contraria a elite burocrática, a serviço da qual se têm colocado sucessivos segmentos da intelectualidade.
Por entender que se trata de algo essencial, vou procurar sintetizá-la.
A pesquisa em apreço comprova que a maioria da população brasileira recorre ao que DaMatta denominou de jeitinho brasileiro, isto é, admite que regras essenciais para a sobrevivência da sociedade podem ser violadas. Estabelecendo-se uma certa gradação nesse “jeitinho” chega-se a conclusões espantosas. Por exemplo: “Para a população de baixa escolaridade, que apóia a quebra de regras patrocinada pelo “jeitinho brasileiro”, há também uma tendência em mostrar-se tolerante com a corrupção. Para muitas dessas pessoas, não há “esquecimento” das denúncias; elas simplesmente não são importantes.” (pág. 27)
Essa verificação correlaciona-se diretamente com a tese defendida pelos autores que tipificam o Estado brasileiro como Estado Patrimonial. Neste tipo de estrutura estatal, a alta burocracia e parte da elite política consideram que podem lidar com seus recursos como se fossem uma propriedade particular. Como mostramos precedentemente, Simon Schwartzman identifica tanto o processo histórico de sua constituição como a respectiva base social.
Nessa direção, a pesquisa dirigida por Alberto Carlos Almeida permite-lhe concluir que grande parte da população brasileira é patrimonialista, não tem espírito público, sendo a favor de mais intervenção do Estado na economia. Entre outras, as perguntas a seguir indicadas facultam as mencionadas conclusões. Antes de apresentá-las, cabe destacar a pertinência do planejamento adotado, tendo em vista a verdadeira feição do contexto social.
A metodologia adotada levou em conta a realidade brasileira no que respeita à escolaridade da população, que seria o parâmetro central na subdivisão do universo a ser pesquisado. Tiveram um peso mais ou menos proporcional os contingentes populacionais que tinham freqüentado até a quarta série isto é, o antigo primário (25% do universo pesquisado); da quinta à oitava séries, isto é, o atual primeiro grau (23%) e o ensino médio (31%). Os analfabetos e os que concluíram o ensino superior tiveram peso menor, respectivamente 9% e 12%.
A escolha em apreço tem muito a ver com a distribuição de nossa população, segundo os níveis de escolaridade. O grau de instrução do eleitorado brasileiro, na oportunidade da última eleição (2006) --equivalente a 125,8 milhões de pessoas, isto é, 70% da população--, apresentava-se deste modo: analfabeto, 7%; lê e escreve, 17%; primeiro grau incompleto, 35%. Temos portanto que cerca de 60% dos detentores do direito de voto, possuidores de título eleitoral, são virtualmente analfabetos.
A faixa subseqüente distribui-se deste modo: primeiro grau completo, 8%; segundo grau incompleto, 17%; segundo grau completo, 11%; superior incompleto, 2%; superior completo, 3%.
Damos a seguir idéia sumária dos resultados da pesquisa.
As pessoas pertencentes aos grupos situados abaixo daqueles que freqüentaram a escola até à oitava série, em proporção superior a 50%, consideram certo o “jeitinho brasileiro”. Têm-no na conta de errado 52% dos que concluíram o ensino médio e 67% daqueles com nível superior.
No que respeita à aceitação da tradicional hierarquização da sociedade, foram feitas perguntas deste tipo: admissão de que a empregada assista televisão na sala; uso de elevador social; forma de tratamento do patrão (você ou senhor). O propósito era encontrar maneira de fazer as perguntas de modo o mais claro possível.
Constatou-se que as pessoas com menor escolaridade aceitam parte das liberalidades, mas continuam chamando o patrão de senhor.
Nesses grupos de menor escolaridade aparece contingente que considera legítimo usar, em benefício próprio, o cargo público que ocupe. O mesmo ocorre em relação à presença do Estado na economia. É espantoso também verificar que, quanto mais baixa a escolaridade, mais pessoas se apresentam favoráveis à censura a programas da TV que façam críticas ao governo.
Em síntese, as pessoas com superior e nível médio completos são contrárias a certos comportamentos (enquanto os segmentos que não completaram o ensino médio são a favor), a exemplo dos seguintes: “jeitinho brasileiro; “você sabe com quem está falando?”; tratar a coisa pública como se fosse algo particular de cada um. Os dois grupos se distinguem em relação a outros comportamentos. Os de mais alta escolaridade são antifatalistas, tendem a não acreditar ou dar importância ao destino; confiam mais nos amigos; são a favor de que as pessoas colaborem com o governo no zelo pelo espaço público; contra a lei do talião (por exemplo: estupro de preso que tenha praticado tal crime, pelos companheiros de cela); a favor de comportamentos sexuais diversificados; contra a intervenção do Estado na economia; contra a censura.
Transcrevo o essencial da conclusão.
Alberto Carlos Almeida esclarece que a intenção fundamental da pesquisa era averiguar, até que ponto o comportamento cotidiano de nossa população seria compatível com a prática democrática, tendo em mente a resposta negativa de Roberto DaMatta. Afirma em resposta: “Nossa pesquisa mostrou que Roberto DaMatta está essencialmente correto. O Brasil é hierárquico, familista, patrimonialista e aprova tanto o “jeitinho brasileiro” quanto um amplo leque de comportamentos similares. Porém, uma qualificação importante precisa ser feita. O país não é monolítico, é uma sociedade dividida entre o arcaico e o moderno.”
Alberto Carlos Almeida considera, entretanto, que, os resultados da pesquisa levam-no a confiar em que a elevação dos níveis de escolaridade aproximará a cultura brasileira de outras culturas, inclusive as dos países anglo-saxões.
O trabalho liderado por Alberto Carlos Almeida é de extrema relevância. Naturalmente será lícito discordar do seu otimismo quanto à possibilidade de superação desse estado de coisas, pela simples elevação dos contingentes que concluam o ensino médio e o superior. Nesse particular, aliás, basta ver a composição do eleitorado brasileiro, antes apontada, para tornar-se patente que a grande prioridade é o Ensino Fundamental. Esse nível escolar atua de modo perverso, na contra-mão da tarefa que lhe compete: tornou-se o grande alimentador dos baixos níveis de escolaridade vigentes no país.
O patrimonialismo brasileiro é uma estrutura estatal que tem revelado ser mais forte que a sociedade. O esforço teria que ser desenvolvido nesta direção: reduzir o seu poder. Há muita coisa que poderia ser feita. Em primeiro lugar, atender à grande aspiração nacional no que se refere ao fortalecimento da Federação. E, em segundo, desfazer o nó de que resultou da industrialização com base na substituição de importações. Para tanto, basta substituir, na distribuição de incentivos e acesso a financiamentos oficiais, a obrigatoriedade dos chamados “índices de nacionalização” pelo princípio da parceria permanente com empresa estrangeira. Desde que se estenda à tecnologia, isto é, nos torne partícipes do processo correspondente (norma que, adotada no governo FHC, tem sido ignorada pelo governo petista).
Essa discussão somente irá prosperar se os resultados da pesquisa, de Alberto Carlos Almeida, forem levados a sério. É compreensível, portanto, que o patrimonialismo brasileiro, na pessoa daqueles que movem os seus cordéis, tenha tratado de silenciá-la.