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sábado, 7 de janeiro de 2017

MUDANÇAS DE PARADIGMAS REPUBLICANOS: PRESIDENTES, GENERAIS, MAGISTRADOS E LEGISLADORES


A nossa história republicana, ao contrário da relativa ao ciclo imperial, tem sido tremendamente instável. Isso em decorrência daquilo que Oliveira Vianna denominava de "marginalismo liberal" (que eu prefiro chamar de "marginalismo patrimonialista", ressaltando a insuficiente prática da representação política de inspiração liberal), ou seja, em decorrência do fato de não termos contado com um constitucionalismo que realmente se alicerçasse na defesa dos interesses da sociedade, não apenas na preservação do arcabouço burocrático.

Algo se perdeu no trânsito abrupto do Império à República. Como diria Max Weber, abandonamos um "Volkstaat"(com o povo presente) para adotarmos um modelo vertical de "Obrikeistaat" (centrado nos interesses dos que mandam). Assim, o ciclo republicano da nossa história, desde 1889, tem sido um ir e vir de fórmulas verticais de modelos republicanos a serviço do Poder e não em função da Sociedade.

Nesse vaivém de cartorialismo e atraso, três grandes modelos de governança republicana foram percorridos: em primeiro lugar, o centrado na predominância do Executivo, identificado com Presidentes e Generais; em segundo lugar, o representado pelo predomínio dos Legisladores aglutinados no Congresso e, em terceiro lugar, o modelo que ora se inicia com a Operação Lava-Jato e o sistemático combate à corrupção, centrado na atuação dos Magistrados do Poder Judiciário e dos procuradores do Ministério Público.

1 - O primeiro modelo, de Presidentes e Generais, parece esgotado, após o longo ciclo identificado com o regime militar que se estendeu de 1964 até 1985. Corresponde essa etapa à organização da República num contexto definidamente autoritário e bafejado pela ideologia positivista. 

Começou com o golpe contra as instituições imperiais, deflagrado pela tropa sem a participação do povo. A quartelada de 1889 foi preparada pela imprensa de inspiração republicana através dos editoriais incendiários de Júlio de Castilhos no jornal gaúcho A Federação, órgão do Partido Republicano Riograndense, bem como pela intensa propaganda republicana que cobriu os principais centros do país de Norte a Sul, nos denominados "Clubes Republicanos".

Foi Castilhos o principal articulador da denominada "questão militar", que visava a estabelecer a contraposição entre o Exército e a Monarquia. Tudo para adotar um modelo de República que se aproximasse da "ditadura científica" apregoada por Comte, mas que terminou dando ensejo, nos primeiros anos da nascente República, a um tipo de bonapartismo caboclo com predomínio do Executivo apoiado pelo Exército.  

Superado o fantasma do bonapartismo com os regimes civis, até 1930 houve o predomínio de uma entente das oligarquias regionais, através da "Política dos Governadores", habilmente elaborada por Campos Salles, que se elegeu presidente para o quatriênio de 1898-1902. Tal modelo de dominação oligárquica entrou em crise com a agitação da sociedade ao redor das questões trabalhistas, com a presença forte de ativistas de inspiração anarco-sindicalista e de socialismo humanitário, notadamente em São Paulo e com a agitação que tomou conta do meio militar no movimento do Tenentismo, que ao longo da década de 1920 questionou o modelo oligárquico vigente.

A ascensão de Getúlio Vargas ao poder com o apoio dos militares na Revolução de 30, pôs fim à prática do regime oligárquico que foi denominado de República do Café com Leite, em decorrência do fato de que nos Estados de São Paulo (tradicional pela economia cafeeira) e de Minas Gerais (principal centro de produção leiteira da Região Sudeste) encontrou os principais elementos de dirigência política, com a indicação dos candidatos à Presidência da República. 

Getúlio partiu para elaborar uma sintomatologia dos males nacionais, centrados, no sentir dele, na atomização do país ao redor dos núcleos oligárquicos que deram vida à República Velha. Vargas estava inspirado no Castilhismo, temperado pela visão organicista de sociedade encontrada na obra de Saint-Simon, que o líder gaúcho conheceu através dos romances de Émile Zola.

A longa permanência de Getúlio Vargas no poder (1930-1945; 1951-1954) consolidou o modelo de autoritarismo presidencialista com apoio dos militares. No terreno econômico foi adotada a ideia de Planejamento com a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e se firmou o modelo tecnocrático, com a substituição do Parlamento pelos Conselhos Técnicos Integrados à Administração, como motor do desenvolvimento econômico. 

O estatismo terminou vingando como opção contraposta ao liberalismo defendido por Eugênio Gudin e claramente relegado a segundo plano pela política econômica que, chefiada pelo Executivo, dava incentivos fortes à industria nacional, com esquecimento do setor agropecuário.

O ciclo militar repetiu a opção tecnocrática getuliana, inclusive com o preconceito contra a livre representação de interesses da sociedade pelo Parlamento. No terreno das políticas econômicas terminou vingando um estatismo crescente que viu passarem as empresas estatais de 94 para perto de 400 no final do ciclo, em 1985. 

O regime de 64 teve um ato de clarividência democrática, ao reconhecer que o modelo estava já gasto e que era necessário abrir a porta para a plena democracia republicana. O governo militar possibilitou a volta dos exilados, bem como a formação de novos partidos políticos que aceleraram as reformas que culminaram com a Constituição de 1988. 

Os próprios militares, graças às reformas efetivadas pelo Presidente Ernesto Geisel, ajustaram as suas normas de comportamento e de formação de novos oficiais às exigências da retomada da evolução democrática da sociedade. A proclamação da Lei de Anistia fez cessarem os anseios revanchistas de parte dos representantes do sistema e de boa parte da sociedade, embora no contexto dos grupos de extrema-esquerda, inspirados pelos comunistas, continuassem vivas as antigas rixas ideológicas.

Destaquemos um aspecto interessante no relacionado à percepção da presença das Forças Armadas ao lado do Executivo no ciclo republicano: tal presença foi entendida pela sociedade civil, até 1964, como informal interferência de um "Poder Moderador" que não formou parte da Constituição Republicana de 1891, mas que entrava em ação toda vez que o pacto republicano era ameaçado pela instabilidade social. Tais interferências tornaram-se célebres, ao longo da República Velha, como as conhecidas ajudas "salvadoras", dadas pelos militares ao poder civil. A intervenção de 64, aliás, preservou esta característica, chegando a ser denominada como "a Salvadora".

Juarez Távora, um dos tenentes que ajudaram Getúlio Vargas a colocar a política partidária em escanteio nos anos 30, a fim de substituí-la pelos Conselhos Técnicos Integrados à Administração, destacou assim o papel dos militares no Estado getuliano, em declaração feita a Oliveira Vianna nos anos 50: "Nós observamos a política como se fosse um banquete: quando o banquete vira rega-bofe, entramos com a espada moralizadora".

O brasilianista Alfred Stepan deixou registrada essa característica da nossa política republicana, como a intervenção de um Poder Moderador informal, na obra intitulada: Os militares na política (Rio de Janeiro: Artenova, 1975). 

À luz das declarações feitas pela alta cúpula militar ao ensejo dos atuais solavancos do Estado brasileiro, fica claro que essa vertente moderadora das Forças Armadas já é coisa do passado.

2 - O modelo representado pelo predomínio dos Legisladores aglutinados no Congresso, a bem da verdade, teve momentos em que pareceu vingar, sem que,  no entanto, não se solidificassem as reformas conducentes ao amadurecimento da representação. Foi assim na Constituinte de 34, bem como nas reformas que desaguaram temporariamente no Parlamentarismo de início dos anos 60 e nas reformas que se seguiram à promulgação da Constituição de 1988. 

A questão da representação ficou sempre incompleta, ao não terem se adotado os mecanismos que, como o voto distrital, possibilitariam o maior controle do eleitorado sobre os eleitos e ao não ter sido possível efetivar a reforma político-partidária, que impediria a proliferação das legendas e o predomínio dos núcleos oligárquicos nos Estados. 

Assim, o estado atual da República no Brasil obedece mais à imagem de uma colcha de retalhos do ângulo da representação política, em que os representados se representam a si próprios, são cooptados pelo Executivo hipertrofiado mediante a obscena prática das emendas parlamentares e se beneficiam com os milhões desviados, pela corrupção instalada nos altos escalões da Presidência da República, para engordar o caixa dois dos Partidos, possibilitando, assim, o enriquecimento descontrolado de deputados e senadores, bem como do restante dos eleitos, nos Estados e Municípios, por um sistema corrupto de cooptações e alianças de legenda.

O quadro de desgaste e de descrédito do Poder Legislativo parece ter tocado fundo, ao ensejo dos escabrosos episódios do Mensalão e do Petrolão da era lulopetista, que não somente esvaziaram os cofres das estatais e dos fundos de pensão, como também liquidaram com a pouca credibilidade dos Partidos políticos, do Congresso e das demais instituições da representação política em Estados e Municípios.

3 - O modelo que ora se inicia com a Operação Lava-Jato e o sistemático combate à corrupção, centrado na atuação dos Magistrados do Poder Judiciário e dos Procuradores do Ministério Público, já tinha sido antevisto por Oliveira Vianna na sua obra, dos anos 50, intitulada: Instituições Políticas Brasileiras. Destaquemos de entrada que este modelo já tinha sido anunciado, de forma precursora, pelos dois grandes juristas que deitaram as bases para o funcionamento do nosso Poder Judiciário nas Instituições Republicanas: Rui Barbosa e Pedro Lessa. Mas seriam necessárias décadas até que se conseguisse firmar um Judiciário independente e a serviço de todos os brasileiros.

A respeito da necessidade das reformas profundas a serem feitas de forma que a Justiça alcance a todos, escrevia Oliveira Vianna: "Os nossos reformadores constitucionais e os nossos sonhadores liberais ainda não se convenceram de que nem a generalização do sufrágio direto, nem o self-government valerão nada sem o primado do Poder Judiciário - sem que este poder tenha pelo Brasil todo a penetração, a segurança, a acessibilidade que o ponha a toda hora e a todo momento ao alcance do Jeca mais humilde e desamparado, não precisando ele - para tê-lo junto a si - de mais do que um gesto de sua mão numa petição ou de uma palavra de sua boca num apelo. Sufrágio direto ou sufrágio universal, regalias de autonomia, federalismos, municipalismos -  de nada valerão sem este primado do Judiciário, sem a generalidade das garantias trazidas por ele à liberdade civil do cidadão, principalmente do homem-massa do interior - do homem dos campos, das vilas, dos povoados, das aldeias, das cidades, sempre anuladas nestas garantias pela distância dos centros metropolitanos da costa. De nada valerão a estes desamparados e relegados, entregues aos caprichos dos mandões locais, dos senhores das aldeias e dos delegados cheios de arbítrios, estas regalias políticas, desde que os eleitos por este sufrágio universal e direto - sejam funcionários municipais, sejam estaduais, pouco importa - estiverem certos que poderão descumprir a lei ou praticar a arbitrariedade impunemente".

Assim conclui Oliveira Vianna a sua reflexão sobre o papel novo que o Judiciário tem no seio da sociedade brasileira: "O ponto vital da democracia brasileira não está no sufrágio liberalizado a todo o mundo, repito; está na garantia efetiva do homem do povo-massa, campônio ou operário, contra o arbítrio dos que estão em cima - dos que detêm o poder, dos que são governo. Pouco importa para a democracia no Brasil, sejam estas autoridades locais eleitas diretamente pelo povo-massa ou nomeadas por investidura carismática: se elas forem efetivamente contidas e impedidas do arbítrio - a democracia estará realizada" (Oliveira Vianna, Instituições políticas brasileiras, posfácio de Antônio Paim, Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP; Niterói: Editora da UFF. 1987, volume 2, pg. 159-160).

Esclareço que não concordo plenamente com as palavras, citadas acima, do eminente sociólogo fluminense, porquanto somente será obtida a definitiva submissão das instituições democráticas à sociedade brasileira, se forem equacionadas duas coisas: em primeiro lugar, as eleições livres e, em segundo término, a garantia para os direitos de todos, mediante o  funcionamento de um Judiciário independente e forte. 

Somente isso, num processo de séculos de amadurecimento das instituições do governo representativo, tornou possível aos Ingleses contarem com instituições que respeitassem os interesses dos cidadãos. Isso permitiu ao primeiro ministro William Pitt dizer no Parlamento em 1793: "Neste país nenhum homem por sua fortuna ou categoria, é tão alto que esteja acima do alcance das leis e nenhum é tão pobre ou obscuro que não desfrute a sua proteção. Nossas leis proporcionam igual segurança e garantia ao exaltado ou ao humilde, ao rico e ao pobre" (cit. por Oliveira Vianna, em Instituições Políticas Brasileiras, 2º volume, ed. cit., pg. 160).

Ora, o grande significado da Operação Lava Jato consiste justamente nisto: pela primeira vez a Justiça consegue enquadrar, dentro dos rigores da lei, a alta cúpula do Estado e dos empresários das grandes empreiteiras que, na sinistra era lulopetista, fizeram aliança com aquela, a fim de se locupletarem todos à margem das instituições. 

O trabalho da Magistratura e do Ministério Público está resgatando a credibilidade no Judiciário e possibilitando, aos Brasileiros, o aperfeiçoamento das instituições democráticas firmadas na Carta de 1988, que muito acertadamente foi chamada pelo saudoso Ulysses Guimarães de "Constituição cidadã".

2 comentários:

  1. Sentia falta de um reflexão assim que sintetizasse a política no Brasil. Muito boa! Tô replicando à exaustão. Sugiro que vc construa um proposta que melhore a nossa representatividade.

    Beleza, sô!

    MAM

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  2. Professor, excelente texto. Tenho que concordar com a sua análise e com suas ressalvas ao pensamento de Oliveira Viana.
    Tenho pensado muito sobre a questão do que chamo “o paradoxo do federativismo brasileiro”. Parece evidente que um dos problemas mais graves de nossa república é a centralização excessiva, que não respeita as particularidades e necessidades de cada região ou estado. Nisso penso que ainda temos muito a aprender com os pricípios dos pais fundadores dos EUA - que a meu ver solucionaram o problema roussoniano de que a democracia caberia apenas em pequenos Estados.
    Mas por outro lado, ainda sinto que os estados brasileiros estão nas mãos de oligarquias despreparadas e que não entendem o verdadeiro "espírito do capitalismo e do liberalismo". Para mim, o espírito de patota ainda impede que os agentes estatais se vejam como moderadores e garantidores da liberdade.

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