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segunda-feira, 22 de junho de 2015

ANTÔNIO PAIM - O ASPECTO DA REFORMA DO ISLAMISMO QUE DIZ RESPEITO AO OCIDENTE, SEGUNDO AYAAN HIRSI ALI

O professor Antônio Paim.
      Ayaan Hirsi Ali nasceu em 1969 na Somália, cresceu na Arábia Saudita e sua família acabou radicando-se no Quênia, tendo sido educada como muçulmana. Não obstante essa formação, rebelou-se contra a mutilação genital feminina e, em geral, contra o menosprezo às mulheres, em razão do que incompatibilizou-se com o ambiente local e obteve asilo na Holanda. Estávamos em  1992 e tinha então 23 anos.
        Na Holanda, deu prosseguimento à sua militância. Entre outras coisas criou uma organização para a defesa dos direitos das mulheres. Escreveu o roteiro para um filme nessa linha, exibido com o título de Submissão. A circunstância valeu-lhe ameaças de morte que se concretizaram em relação ao diretor (Theo Van Gogh). Tendo sido eleita para o Parlamento em 2003 tornar-se-ia alvo preferencial dos emigrantes muçulmanos radicados no país, verificando-se campanha em prol da cassação de sua cidadania. Estabeleceu-se celeuma de tal ordem que desencadeou uma crise governamental, levando-a a renunciar ao mandato parlamentar.
       Alcançaria ampla notoriedade mundial com a publicação de livro de memórias (Infiel). Traduzido ao inglês tornar-se-ia best-seller e a projetou no mundo acadêmico, passando a integrar o corpo docente  da Escola de Governo da Universidade norte-americana de Harvard. Apesar dessa fama, continua com a sobrevivência ameaçada, a ponto de que, tendo se radicado nos Estados Unidos, mantém em segredo onde precisamente fixou residência.

       Vem de publicar (New York, Harper Collins Publishers, 2015) um novo livro que está provocando vivos debates e cujo conteúdo ora nos propomos a apresentar. Intitula-se Herege. Porque o Islã necessita de reforma agora. Independente de sua viabilidade bem como do fato de que ao Ocidente só cabe a posição de observador interessado, os termos nos quais coloca a religião islâmica fornece, aos governos europeus e aos Estados Unidos, valiosas indicações para a formulação de uma política em relação aos imigrantes muçulmanos, comprovado que está o fracasso do  chamado multiculturalismo e da inadmissibilidade da simples proibição reivindicada pelos setores mais radicais da população.
        Herege estabelece como premissa  da reforma de que se trata,  concebida por expressivas personalidades, a diferenciação entre três grupos de muçulmanos. Grupamento que difere da conhecida divisão entre sunitas e shiitas.
        O primeiro grupo seria constituído pelos fundamentalistas. Ambicionam regime baseado na lei islâmica (sharia, que regula minuciosamente o comportamento social a ser imposto) com o que revelam considerar intocável o legado do sétimo século, isto é, da época em que viveu e atuou Maomé. Além do mais, sua fé deve ser imposta a todos. Denomina-os “muçulmanos milenaristas”, designação que justifica deste modo: “seu fanatismo corresponde a reminiscência das várias seitas fundamentalistas que floresciam na Idade Média anterior à Reforma, combinados com o fanatismo e a violência decorrente da antecipação do fim do mundo.” Acreditam que a morte de um infiel é um imperativo de sua recusa em converter-se voluntariamente ao Islã. Aspiram à criação de Califato aqui na terra. Judeus e cristão são tidos como “porcos e macacos”. Não admitem nenhuma dúvida sobre tais fundamentos.
       Este primeiro grupo forma a minoria. Estima-se que seriam 3% dos muçulmanos no mundo (1,6 bilhão no total, de que resultaria algo em torno de 48 milhões).
        O segundo grupo representa a maioria. São muçulmanos fieis ao núcleo do credo e adoradores devotos mas sem inclinação para a prática da violência. Chama-os muçulmanos de Meca. Escreve: “Como devotos cristãos ou judeus acham-se atentos ao serviço religioso todos os dias e abençoam o que comem e vestem.” São a maioria de Casablanca a Jacarta.
       A situação singular em que se encontra essa maioria seria a seguinte: “Os muçulmanos de Meca têm um problema: suas crenças religiosas existem numa inquietante tensão com a modernidade -- as complexas inovações econômicas, culturais e políticas não repercutem apenas no mundo ocidental e, dramaticamente, transformam o mundo desenvolvido, como o Ocidente as exporta. Os valores da sociedade racional e individualista são corrosivos dos fundamentos das sociedades tradicionais, especialmente aquelas baseadas na hierarquia de gênero, idade e status daí decorrentes.”
     Nos países de maioria muçulmana é limitado o poder da modernidade de promover mudança econômica, social e (recentemente) nas relações de poder. Nessas sociedades, os muçulmanos podem usar celular sem necessariamente enxergarem conflito entre a sua fé religiosa e as facilidades tecnológicas criadas pela sociedade racionalista e secular. No Ocidente, entretanto, onde a religião muçulmana é minoritária, os muçulmanos devotos vivem o que se convencionou denominar de dissonância cognitiva.
     Engajados numa luta diária para manter suas crenças no islamismo no contexto de uma sociedade secular e pluralística, muitos deles só resolvem essa tensão criando enclaves, tentando educar os filhos em sua crença, em suma, isolando-se.
     Entende a autora que só lhes restam duas alternativas: abandonar o islamismo, a exemplo do que se viu instada a fazer, ou então rejeitar de sua crença o que provém da ação político-social desenvolvida pelo Profeta no período de sua vida que se seguiu ao abandono de Meca, isto é, ao que denomina de (fase ou ciclo) de Medina. Esta parcela do islamismo teria caráter  político ao invés de religioso.
     Prosseguindo em sua análise afirma textualmente: “Por certo reconheço não ser plausível que esses muçulmanos aceitem chamamento à reforma doutrinal provinda de alguém que consideram apostata e infiel. Mas podem reconsiderar esse posicionamento se conseguir persuadi-los a ver-me não como apostata mas como herética: alguém como crescente número de pessoas nascidas no Islã levadas a pensar criticamente sua fé. É com esse terceiro grupo --no seio do qual apenas uma reduzida parte abandonou o Islã-- com o qual desejo agora identificar-me.”
     E, logo adiante: “A maioria dos dissidentes são crentes reformistas --entre eles clérigos que não vêm como realizar seus deveres religiosos se seus seguidores acham-se condenados a interminável ciclo de violências política”.
     Destaca a importância do trabalho desenvolvido por esses dissidentes acreditando que os ocidentais precisam dar-se conta da forma como se originam os atentados  praticados por muçulmanos no Ocidente bem como de onde provém a política de  recrutamento de jovens ocidentais para atuarem em seu favo nos conflitos que proliferam em várias partes do mundo muçulmano.
       Ayaan Hirsi Ali propõe cinco correções ao islamismo, sendo a primeira a de considerar que parte dos textos provindos do Profeta atendem a circunstâncias históricas e não têm porque ser consideradas inalteráveis. Em entrevista ao jornal carioca O Globo (edição de 13/06/2015) apresenta-a como se tratando de uma mudança de atitude diante dos ensinamentos de Maomé. A segunda diz respeito à primazia da vida eterna em detrimento da vida antes da morte. A terceira seria o abandono da sharia, isto é, da regulamentação da vida político-social segundo regras de índole religiosa. A quarta, a de obrigar as pessoas a considerar o certo e o errado do ângulo estrito da religião; e, por último, a admissão da jihad (guerra santa).
     Reconhece que não cabe à intelectualidade ocidental liderar a reforma do islamismo. Mas compete-lhes rejeitar a opinião de que apenas os islamitas podem tecer considerações a seu respeito. Leva em conta, talvez, ao assassinato frio dos redatores  da revista francesa Charlie Hebdo, ocorrido em janeiro do corrente ano de 2015.
     Os aspectos antes enumerados são detalhados em capítulos autônomos evidenciando que se trata de questões analisadas teoricamente com a imprescindível profundidade. Nesta breve resenha não seria o caso de nos determos em sua caracterização.

A escritora somali Ayaan Hirsi Ali.
                
 As dimensões do movimento
Reformista.
          Pelas indicações contidas no livro, parece que organizações em atividade relacionadas à crítica ao islamismo radical limitar-se-iam ao Ocidente. Para exemplificar refiro a seguinte indicação. Nos Estados Unidos, o físico norte-americano Zahid Nasser fundou o Fórum Americano para a Democracia, sediado em Fênix, Arizona, que mantém o “Jefferson Projeto para o Islã”. Advoga a separação das mesquitas do Estado em que funcionem, a exemplo do que ocorre com os templos em geral no Ocidente. Entidades análogas, naturalmente com programas diferenciados, existem na Inglaterra, França, Holanda, Dinamarca, Alemanha e Canadá.
      Em alguns  países islâmicos existiriam personalidades expressivas que advogam  a livre discussão das questões de índole religiosa. Menciona o professor Abd  Al-Hamid Al-Ansari, ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Catar, que desaprova o menosprezo de outras religiões que não sejam o Islã. Questionado publicamente por considerar que não se deve pregar o ódio aos que não sejam islamitas, argumenta com expressões desse tipo: “Deve-se esperar que ensine à minha filha o ódio aos cientistas judeus que inventaram a insulina, que uso para tratar minha mãe?” Trata-se justamente do desconforto suscitado pelos avanços tecnológicos ocidentais que acabam por penetrar em países islâmicos. Em Apêndice constante do livro relaciona cidadãos que advogam a reforma no Egito, Turquia, Iraque e Paquistão. Relaciona inclusive clérigos dissidentes, em relação aos quais diz entretanto não esperar que consigam resultados significativos.
 Onde residiria a contribuição
da obra considerada.
        A intenção de Ayaan Hirsi Ali é alcançar o apoio dos governos ocidentais para a causa dos dissidentes do islamismo. Para tanto busca comprovar que os textos considerados sagrados inserem uma componente política que faz com que o Islã não seja uma religião de paz, como supõem muitos dos ocidentais, inclusive entre os que se proclamam liberais. Embora sua argumentação seja consistente e suas teses achem-se rigorosamente fundamentadas, a laicidade inerente à cultura política ocidental é evidentemente impeditiva de que se imiscua o Estado numa questão que para nós é inquestionavelmente de foro íntimo.
     Entretanto, o livro contém uma informação que deve calar fundo nos formuladores da política de imigração dos Estados Unidos, que é o país referido, mas que diz respeito também à Comunidade Européia, às voltas com problemas dos mais agudos com essa questão imigratória.
     Dados mobilizados pela autora  indicam que a expectativa é a de que a população muçulmana vivendo na América do Norte deve aumentar dos atuais 2,6 milhões para 6,2 milhões em 2030. Embora em termos absolutos seja inexpressiva, na prática tornar-se-á a maior população muçulmana em países ocidentais, com a única exceção da França.
     Resumo a sua argumentação.
     Aproximadamente quarenta por cento dos novos imigrantes serão originários de três países: Paquistão, Bangaladesh e Iraque. A mesma fonte consultada antes indica que os pontos de vista vigentes nesses países seriam considerados radicais no Ocidente. Três de cada quatro paquistaneses e contingentes maiores nos dois outros países revelam concordar com a aplicação da sharia nos seus países. Proporções similares consideram imorais as formas de entretenimento usuais no Ocidente. Somente frações diminutas sentir-se-iam confortáveis se seus filhos contraíssem matrimônio com católicos e desconfortáveis diante do assassinato de mulheres por questões de honra. Um em cada oito paquistaneses e um quarto dos que vivem em Bangaladesh acham justificado atentados suicidas para punir aqueles que consideram infiéis.
       As questões mencionadas são inquestionavelmente políticas. Assim, podem perfeitamente figurar numa pauta que justifique recusa de visto ou expulsão dos que radicados em países ocidentais advogam comportamentos francamente contrários aos mais caros direitos dos nossos cidadãos. A adoção desse tipo de regra poderia suprir a lacuna deixada na legislação ocidental com o fracasso da prática do multiculturalismo. A par disto, muito provavelmente poria termo às divergências em matéria de política imigratória, mais visíveis na Europa mas também presentes nos Estados Unidos.

Um comentário:

  1. Gracias, Ricardo, por plantear las cuestiones en diálogo con un maestro.

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