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domingo, 6 de janeiro de 2013

PENSADORES PORTUGUESES - ANTÔNIO BRAZ TEIXEIRA (1936 -)


Antônio Braz Teixeira (esq.) e Antônio Paim, duas figuras de prol da Filosofia portuguesa e brasileira. [Foto no I Congresso Luso-Galaico- Brasileiro reunido no Porto, na Universidade Católica Portuguesa, em 2007]
I - BREVE SINOPSE BIO-BIBLIOGRÁFICA

António Braz Teixeira nasceu em Lisboa em 1936, cidade onde cursou a Faculdade de Direito e deu início à carreira como docente universitário na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e depois na Universidade Autônoma e na Universidade Internacional. Paralelamente à vida acadêmica, Braz Teixeira tem ocupado importantes cargos na administração pública do seu país. Foi Secretário de Estado da presidência do Conselho de Ministros em 1980, no governo Sá Carneiro, bem como Secretário de Estado da Cultura no governo seguinte. Desempenhou também os cargos de Diretor do Teatro Dona Maria II em Lisboa e de Vice-presidente do Conselho de Gerência da Radiotelevisão Portuguesa (RTP), sendo desde 1992 Presidente da Imprensa Nacional Casa da Moeda, onde tem desenvolvido amplo programa de edições de obras de pensadores portugueses; nesse mesmo cargo criou uma coleção destinada a divulgar obras significativas da cultura brasileira.


A obra de Braz Teixeira é muito significativa no que tange à historiografia das idéias filosóficas e jurídicas em Portugal, sendo considerado como um dos mais respeitados historiadores portugueses das idéias na atualidade. Foi iniciativa sua, quando Secretário do Estado da Cultura do governo português, a criação da revista Cultura Portuguesa. Também foi de sua lavra a fundação de Nomos - Revista Portuguesa de Filosofia do Direito e do Estado.


Braz Teixeira tem tido importante destaque no que tange à efetivação do diálogo inter-cultural entre Portugal e o Brasil. Foi um dos principais inspiradores para a criação, em 1991, em Lisboa, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, que conta com a representação de pensadores portugueses e brasileiros. A partir dessa entidade, Braz Teixeira impulsionou decididamente a realização bianual, em Portugal, dos colóquios "Tobias Barreto", com a finalidade de estudar os principais pensadores brasileiros e as suas relações com a cultura portuguesa. Braz Teixeira pertence à Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, à Sociedade Portuguesa de Filosofia, à Academia das Ciências de Lisboa, bem como à Academia Brasileira de Filosofia, como membro correspondente. Acha-se vinculado de forma muito atuante ao Instituto Brasileiro de Filosofia, fundado e presidido em São Paulo por Miguel Reale, tendo colaborado com numerosos ensaios filosóficos e no terreno da historiografia das idéias na Revista Brasileira de Filosofia, órgão do mencionado Instituto. Colabora regularmente em outras publicações periódicas de Portugal e do Brasil como a Revista Portuguesa de Filosofia, Espiral, Nova Renascença, Análise, Revista Jurídica, Didaskalia, Reflexão, Ciências Humanas, Presença Filosófica, etc.


A obra de António Braz Teixeira foi objeto de detalhado estudo no Brasil, no 7º Encontro dos Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, realizado por Leonardo Prota no Centro de Estudos Filosóficos de Londrina, em setembro de 2001. Relacionam-se, a seguir, os trabalhos (ainda inéditos) que foram apresentados nesse evento:


1 - Trajetória de António Braz Teixeira (Antônio Paim, do Instituto Brasileiro de Filosofia e do Instituto de Humanidades). 2 - António Braz Teixeira e o movimento da Filosofia Portuguesa (Ricardo Vélez Rodríguez, da Universidade Federal de Juiz de Fora e do Instituto Brasileiro de Filosofia. Comentário a esta apresentação feito por Constança Marcondes Cesar, da Universidade Católica de Campinas). 3  - Filosofia da literatura na obra de António Braz Teixeira (Mariluze Ferreira de Andrade e Silva, da Universidade Federal de São João del Rei). 4 - Como António Braz Teixeira entende a denominada Filosofia Luso-Brasileira (José Maurício de Carvalho, da Universidade Federal de São João del Rei). 5 - Presença da idéia de Deus na meditação de António Braz Teixeira e que lugar atribui à Teologia (Tiago Adão Lara, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Comentário a esta apresentação de Manuel Cândido, da Universidade de Lisboa). 6 -  António Braz Teixeira, filósofo da saudade (Anna Maria Moog Rodrigues, da Universidade Gama Filho). 7 - António Braz Teixeira, uma filosofia do espírito (Paulo Alexandre Esteves Borges, da Universidade de Lisboa). 8 - O pensamento jus-filosófico de António Braz Teixeira (Aquiles Côrtes Guimarães, da Universidade Federal do Rio de Janeiro). 9 - Posicionamento crítico de António Braz Teixeira diante das principais teorias do direito (Selvino Antônio Malfatti, do Centro Universitário Franciscano de Santa Maria).  10 -  problema da justiça em António Braz Teixeira  (Ubiratan Borges de Macedo, da Universidade Gama Filho). 11 - António Braz Teixeira e o pensamento krausista em Portugal (José Esteves Pereira, da Universidade Nova de Lisboa e do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira). 12 - Braz Teixeira por ele mesmo (António Braz Teixeira, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira).


No boletim do Centro de Estudos Filosóficos de Londrina intitulado 7º Encontro Nacional de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, Leonardo Prota caracteriza da seguinte forma  a obra do nosso pensador: "A trajetória filosófica de António Braz Teixeira pode ser resumida como se segue. Sendo docente de disciplinas jurídicas (Direito Fiscal e Direito Financeiro, inicialmente, passando depois para Filosofia do Direito e do Estado) e, ao mesmo tempo, pertencendo ao chamado movimento da Filosofia Portuguesa, acabou voltando-se para o  que ele mesmo denomina de pensamento filosófico-jurídico português. Mais tarde, por suas ligações com o professor Miguel Reale e também devido à presença no Brasil, desde a segunda metade dos anos setenta a meados da década seguinte, de Eduardo Soveral, Francisco da Gama Caeiro (1928-1994) e Affonso Botelho (1919-1996) - pessoas de seu círculo de relações -,  interessou-se pelo que tem sido denominado de filosofia luso-brasileira. Assim, sua volumosa obra abrange tanto a filosofia do direito como o estudo das filosofias portuguesa e brasileira. Acha-se caracterizada em Logos - Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, editorial Verbo, vol. V, 1992), num verbete do professor Paulo Borges (Da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa)" [Prota,  2001: 2].


II - O MOVIMENTO DA FILOSOFIA PORTUGUESA SEGUNDO BRAZ TEIXEIRA

Mais do que fazer uma exposição exaustiva acerca do lugar que António Braz Teixeira ocupa no movimento da Filosofia Portuguesa, farei na minha exposição um balanço acerca de como ele entende a meditação filosófica, se louvando de conceitos desenvolvidos no seio da mencionada corrente. A fim de ilustrar o tema central da minha exposição, desenvolverei quatro itens: 1) Conceito de filosofia e de filosofias nacionais; 2) Caráter mediador da antropologia filosófica; 3) A experiência religiosa e a corrente da Filosofia Portuguesa e 4) A experiência jurídica e a filosofia do direito. Concluirei destacando os aspectos mais marcantes do legado filosófico do nosso pensador.


1 - Conceito de Filosofia e de Filosofias Nacionais


A filosofia não é para Braz Teixeira discurso puramente abstrato, sem nenhuma relação com o homem concreto. Para ele, o existencialismo e a fenomenologia deixaram claro que a meditação filosófica abarca o homem na sua concreção histórica. A filosofia é, assim, lógos que surge no seio de uma nação, fala uma linguagem, debruça-se sobre problemas específicos que desvelam o ser humano. Essa contribuição dada pela filosofia contemporânea abriu as portas para que o homem português, a quem se tinha negado num contexto racionalista a vocação de pensar, descobrisse a sua identidade filosófica, traduzindo o viver numa meditação projetada sobre a vida.


A respeito, o nosso autor afirmava já em 1959, numa das suas primeiras obras: "Cabe ao pensamento desenvolvido sob o signo existencial o mérito de ter afirmado e demonstrado, contra as tendências excessivamente racionalistas de certo falso universalismo, pretensamente utópico e ucrónico, a idéia da não existência de uma Filosofia universal, desinserida de qualquer complexo espácio-temporal, mas antes da existência de Filosofias nacionais, já que cada povo, enquanto especial concepção do mundo e da vida, é já Filosofia viva, expressão do seu particular modo de ser nacional, a que os pensadores, intérpretes da situação histórico-cultural concreta do seu povo e do seu tempo, dão superior forma racional. O português, a quem sucessivas gerações, ligadas a um conceito excessivamente racionalista, abstracto e formal de Filosofia, tinham negado um pensamento nacional, por congênita incapacidade filosófica, começa a ser reabilitado, agora que a Filosofia procura concentrar novamente sobre o real e a vida todas as suas atenções, valorizando-os em todos os seus aspectos e, abandonando todas as pretensões de explicação sistemática e total, por compreender, como Radbruch, que o mundo não é divisível pela razão sem deixar resto, está interessada acima de tudo pelo homem de carne e osso, pela vida, pelo concreto, pela existência humana, pelo estar-no-mundo, pretendendo atingir, não  a pseudo-lógica das idéias claras, mas a lógica verdadeira, a da estrutura do vivente e da geometria íntima da natureza, de que fala Maritain. A esta luz ressalta com notável nitidez o caráter eminentemente existencial da nossa Filosofia, dispersa na nossa poesia, na nossa mística, na nossa teologia, na nossa literatura novelística e de viagens e nas obras de intenção propriamente filosófica" [Teixeira, 1959: 9-10].


No epígrafe colocado no início da obra de que foi extraída a anterior citação, A filosofia jurídica portuguesa actual, Braz Teixeira cita as seguintes palavras do pensador espanhol Ganivet: "La filosofía más importante de cada nación es la suya propia, aunque sea muy inferior a las imitaciones de extrañas filosofías" [Teixeira, 1959: 9].


Mas se a Filosofia caracteriza-se pela sua inserção na história, no entanto também devemos reconhecer o seu compromisso com a verdade. O nosso pensador faz suas as palavras de José Marinho, quando afirma: "(...) a Filosofia é desenvolvimento de uma visão autêntica do ser e da verdade numa situação concreta do homem e do pensar do homem no espaço e no tempo" [apud Teixeira, 2000a: 32]. Em relação ao compromisso com a verdade que caracteriza ao filosofar, escreve Braz Teixeira: "A Filosofia não é, como os outros tipos de saber, um corpo de doutrina, um acervo de conhecimentos ou um conjunto articulado de soluções ou de respostas, mas um processo, uma actividade permanente de interrogação sobre o próprio saber, seu valor e seus fundamentos. O que constitui a sua essência é a busca constante e sempre recomeçada da verdade e não a sua posse. Não é um saber feito, que possa transmitir-se e se vá adicionando, mas um conjunto permanente de interrogações, nunca definitivamente respondidas em que cada resposta que o filosofar a si próprio se dá é sempre uma resposta provisória, que se converte em nova interrogação. Com efeito, enquanto a solução resolve, dissolve, elimina ou suprime o problema, a resposta filosófica não é solucionante, deixando irresoluto o problema e viva a interrogação. Daí que, diversamente do que acontece com os restantes tipos de saber humano, a Filosofia seja, essencial e radicalmente, interrogativa, problemática e não solucionante" [Teixeira, 2000a: 15-16].


A filosofia, para o pensador português, possui esse caráter de irresolubilidade, em virtude da sua dimensão aporética, que decorre da inadequação essencial entre o ser e o pensar. Justamente porque a realidade transcende ao pensar, aquela constitui-se, para o homem, em algo de misterioso, inesgotável pelo Lógos. Em relação a esse ponto, frisa o nosso pensador: "A Filosofia é, assim, fundamentalmente, aporética, já que a sua actividade interrogativa do real e do próprio pensamento a conduz à identificação e ao tratamento das aporias, à verificação de que o pensamento e a realidade se não identificam e de que nem tudo é pensável ou abarcável pela razão humana. É precisamente daqui que surge a noção de incognoscível ou de mistério, não como o que contraria a razão ou o pensamento humano, mas como o que o excede, ultrapassando a sua capacidade ou possibilidade de conhecimento ou compreensão. Trata-se, pois, do domínio, não do irracional por defeito, por contrário à razão, mas do irracional por excesso (Leonardo Coimbra), do que, ultrapassando a razão, só é acessível por via mística, por inspiração angélica ou por revelação divina" [Teixeira, 2000a: 27].


O caráter aporético do filosofar não invalida, antes pressupõe a capacidade da razão de apreender o real numa primeira visão intuitiva, denominada por José Marinho de visão unívoca. Firma-se, a partir desta, a dimensão teórica da filosofia. Assim caracteriza o nosso autor essa dimensão: "Sendo a Filosofia pensamento reflexivo ou especulativo, e sendo este actividade própria da razão, que se exerce, discursivamente, através do raciocínio, não pode esquecer-se, no entanto, que não só a razão humana se não garante a si própria enquanto órgão de conhecimento ou de pensamento, pressupondo sempre a sua actividade um prévio acto de crença, por um lado na racionalidade do real e, por outro, na capacidade da razão para se apreender a si e para compreender a realidade, como ainda, que o raciocínio ou a actividade cognoscente da razão tem sempre como condição ou pressuposto uma intuição ou uma primordial visão, assim como se nutre do outro da razão, seja sensação, imaginação ou crença e das múltiplas formas de experiência, sendo, nessa medida, razão experimental, razão aberta ao outro de si, ao não racional, tantas vezes erradamente confundido ou identificado com o irracional. Assim, em sua radicalidade ou como saber radical, a Filosofia é sempre teoria, no seu originário e tradicional sentido, isto é, intuição intelectual, contemplação de idéias,  visão espiritual do invisível ou teoria do ser e da verdade. De igual modo, a compreensão da realidade ou do ser e da sua verdade que todo o pensamento filosófico procura alcançar depende sempre de uma prévia apreensão intuitiva, sensível ou trans-sensível, daquilo a que José Marinho chamou visão unívoca" [Teixeira, 2000a: 27-28].


O caráter situado do filosofar, que o nosso autor já tinha apontado na sua obra de 1959, A filosofia jurídica portuguesa actual, é destacado de forma mais completa num dos seus últimos escritos, na segunda edição de Sentido e valor do direito. Repitamos as suas palavras, que constituem decantada expressão do pensamento de Braz Teixeira nos últimos anos: "Actividade humana, a Filosofia é, como o próprio homem, ser do tempo, radicada e dinâmica, interrogação permanente a partir de uma situação concreta, de uma circunstância definida, está indissoluvelmente ligada a uma língua, a uma tradição, é um movimento espiritual num espaço-tempo que não é homogéneo e uniforme mas múltiplo e diverso, como o ser individual de cada filósofo. Daí que, sendo embora una na busca da verdade, a Filosofia seja múltipla e diversa na variedade dos seus caminhos, pois, se são imutáveis os enigmas com que se defronta, é sempre outro o movimento do pensamento que pensa e interroga, pensando-se e interrogando-se também a si. Por outro lado, se a Filosofia é actividade ou processo da razão que se interroga a partir de uma intuição ou visão a que sempre regressa ou a que sempre se refere, está também sempre condicionada pela língua em que o filósofo pensa, já que não há pensamento sem palavra nem linguagem, ainda que este não se pretenda comunicar pela fala ou pela escrita (...). Deste modo, não pode haver verdadeiro pensamento filosófico, enquanto discurso racional, sem palavras nem linguagem" [Teixeira, 2000a: 30-31].


Na trilha desta reflexão, a filosofia reveste-se, no sentir de Braz Teixeira, das caraterísticas culturais da língua em que está expressa, ganhando assim o colorido nacional em que se encontra situada. Todo discurso filosófico refere-se, na modernidade, a esse contexto, fora do qual sairia da história. A respeito, o nosso autor escreve: "Ora, as palavras de cada língua contêm virtualidades especulativas próprias, que não só permitem, por vezes, dilucidar ou esclarecer melhor certos problemas a que outras só dificilmente acedem (como acontece, por exemplo, com a distinção entre ser e estar ou ser e ente que o português, o castelhano e o italiano fazem, mas que não existem em francês ou em inglês), ou penetrar mais fundamente em certos sentimentos mais complexos ou mais intensamente vividos ou experimentados (por exemplo, a saudade luso-galaica, a ilusión castelhana, a dor romena, a Sehnsucht germânica ou a morriña galega). Assim, se o pensamento filosófico autêntico é sempre universal, porque demanda o uno essencial do ser e da verdade, nas suas formas e nas suas expressões é também, sempre, individual e nacional, dado o carácter radicado e situado de todo o pensar e agir humanos" [Teixeira, 2000a: 31-32].


Posto que expressa em língua nacional, a filosofia reveste-se, em cada uma delas, de gêneros literários diversos. O pensador português lembra, a respeito, que Julián Marías  na obra intitulada Ensayos de teoría [Madrid, 1954, apud Teixeira, 2000a: 33] identificou catorze formas literárias válidas do discurso filosófico ocidental. Isso testemunha a riqueza da meditação filosófica, que é suscetível de ser vertida em múltiplas formas de expressão, dependendo da personalidade e dos pendores literários de cada pensador. Em relação a essa variedade, frisa Braz Teixeira: "Diferentemente do que, muitas vezes, se diz ou do que uma análise superficial poderia levar a concluir, a Filosofia não só não constitui um género literário como não tem uma forma própria e única de exprimir o seu discurso, quando adopta a forma escrita para comunicar o pensamento pensado pelos filósofos. Na verdade, basta atentar com mediana atenção na história da Filosofia ocidental, para concluir, de imediato, que esta tanto se tem expressado através do poema ou da forma poética (Parménides, Lucrécio, Nietzsche, Teixeira de Pascoaes), como do diálogo, de estrutura teatral ou não (Platão, Cícero, Leão Hebreu, Berkeley, Leibniz, Leonardo Coimbra), do aforismo (Heraclito, Pascal, José Marinho), como da máxima ou reflexão, geralmente de índole ou intenção moral (Epicteto, Marco Aurélio, La Rochefoucauld, Matias Aires), da autobiografia (Santo Agostinho, Dom Duarte, Descartes), como do ensaio (Bacon, Locke, Maine de Biran, António Sérgio), do tratado (Aristóteles, Espinosa, Hume, Wittgenstein) como do comentário (Averróis, São Tomás de Aquino, Pedro da Fonseca), da suma (São Tomás, Pedro Hispano, Ockam), como do sistema (Hegel, Comte, Cunha Seixas, Leonardo Coimbra)" [Teixeira, 2000a: 32-33].


2 - Caráter mediador da Antropologia Filosófica


A antropologia filosófica, no sentir do nosso pensador, ganhou um lugar de destaque na hodierna meditação ocidental. Isso em decorrência da evolução das próprias ciências, que conseguiram se ver livres do estreito cientificismo do século XIX, bem como do fato de a meditação filosófica ter superado os limites do racionalismo, por força da crítica vivificante ensejada pela fenomenologia, a filosofia dos valores e o existencialismo. "Para esta nova situação especulativa contribuiu, em não pequena medida  - frisa Braz Teixeira - a crise ou a derrocada do sistema de idéias, valores e crenças filosóficas e científicas que havia constituído o substrato cultural em que assentou a vida espiritual da segunda metade do século XIX. Desencadeada pelos novos caminhos da microfísica, da biologia e da psicologia e pelas correntes de pensamento que, em oposição ao positivismo, ao evolucionismo e ao monismo materialista que àqueles, em geral, andou associado, essa crise veio não só demonstrar as insuficiências e as contradições dos modelos epistemológicos fundados nas ciências do mundo sensível e do minorado conceito de razão de que partiam ou que nelas estava pressuposto, como chamar a atenção para a especificidade e a irreductibilidade do mundo da vida e da psique à matéria e ao mundo inorgânico, para a autônoma e superior realidade do espírito, para o valor gnósico da intuição, da imaginação e do sentimento, para as fecundas e essenciais relações entre a razão e o impropriamente chamado irracional, para o indivíduo singular e concreto, o homem de carne e osso, de que falava Unamuno" [Teixeira, 1993: 79].


A antropologia centro-européia, no entanto, percorreu caminho diferente do trilhado pela meditação antropológica em Portugal. Naqueles países ficou restrita à análise fenomenológica e terminou dando ensejo à formulação de ontologias regionais. Em Portugal, no entanto, graças especialmente à corrente da Filosofia Portuguesa, a antropologia filosófica abriu-se a uma visão metafísica projetada sobre um pano de fundo cósmico e escatológico, de que a meditação de José Marinho, Álvaro Ribeiro, António Quadros, Afonso Botelho e Leonardo Coimbra são exemplos vivos.


Fazendo uma síntese do espírito que anima hoje à antropologia filosófica da corrente em apreço, escreve Braz Teixeira: "No que à filosofia portuguesa respeita, a sua indagação no domínio da antropologia filosófica ou metafísica tem dado preferência aos problemas da origem, liberdade e destino do homem, do mal, da morte e da imortalidade, a uma teoria dos sentimentos que não se detém na sua fenomenologia ou na sua dimensão psicológica ou meramente afectiva, mas atende às suas conexões cósmicas e ao seu significado unitivo e resgatante, e em que ocupam lugar primordial o amor e a saudade, a alegria e a dor e que a graça divina coroa e enleva, às questões relativas à formação e à educação do homem, não descurando nem esquecendo o carácter sexuado do ser humano. Deste modo, se a antropologia filosófica contemporânea tende, noutros países e noutros povos do nosso continente, a circunscrever-se a uma dimensão humanista e fechar-se numa finitude temporal e mundana, a filosofia portuguesa tem revelado uma dupla abertura e um duplo horizonte, simultaneamente cósmico e escatológico, pois sabe, como o lembrou Leonardo Coimbra, que o homem é um ser criado em natureza para se fazer em liberdade, pelo que não é uma inutilidade num mundo feito, mas o obreiro de um mundo a fazer" [Teixeira, 1993: 81].


A filosofia, para Braz Teixeira, está situada historicamente, em virtude do caráter temporal do homem. A dimensão ôntica deste condiciona a sua meditação sobre o real. Ora, como o ser humano pensa fundamentalmente em base aos problemas com que se defronta, a meditação filosófica está condicionada por essa perspectiva problemática. A Antropologia Filosófica é, destarte, a perspectiva mediadora entre a teoria, a prática e a dimensão estética, estabelecendo, de outro lado, o nexo entre a natureza e o espírito. A respeito, escreve o pensador português: "Quem interroga ou defronta os problemas é, porém, sempre o homem, que é a si mesmo e por si mesmo que interroga, pelo que a questão antropológica, a pergunta sobre o que é o homem, qual a sua origem e destino, sobre o valor e sentido da sua vida e do seu agir, se lhe impõe como tão essencial e radical, como a interrogação sobre o ser em que o próprio homem está imerso e de que participa. Sendo essencialmente metafísica, a Antropologia Filosófica é mediadora entre a razão teórica, a razão prática e a razão estética, estabelece a necessária articulação entre o mundo da natureza e o mundo do espírito, liga-se, por um lado, à Teodicéia ou à Ontoteologia e à Cosmologia e, por outro, à Ética, à Filosofia da Religião, à Filosofia da História, à Filosofia da Arte e à Filosofia do Direito, enquanto interrogação filosófica sobre a essência, o sentido e o valor do existir e do agir do homem no mundo e das suas criações espirituais" [Teixeira, 2000a: 30].


Decorrente do valor especial conferido à Antropologia Filosófica, a experiência constitui a porta através da qual podemos penetrar no interior da razão humana. Haverá tantas áreas em que possamos nós, humanos, plasmar a nossa concepção de mundo, quantas forem as possibilidades da experiência do mundo. O nosso pensador considera que a revalorização do conceito de experiência constitui um dos grandes achados do pensamento contemporâneo. Ela é, basicamente, dos seguintes tipos: estética, ética, religiosa, científica e jurídica. Em relação a este ponto, escreve Braz Teixeira no seu belo ensaio intitulado Experiência jurídica e ontologia do direito [Teixeira, 1987: 24]: "O conceito de experiência, limitado pela filosofia moderna, em especial a partir dos séculos XVII e XVIII ao domínio sensorial e empírico, ao campo das chamadas ciências naturais ou experimentais, viu-se restituído, no nosso tempo, à sua dimensão própria, pelo reconhecimento da existência de outras formas igualmente válidas e legítimas de experiência que o pensamento medieval conhecera e adequadamente valorizara, como a experiência estética, a experiência ética e a experiência religiosa, tal como a experiência científica, modos e expressões da actividade una e indivisível do espírito. Nesta linha de pensamento, natural seria que viesse também a reconhecer-se a existência e a especificidade da experiência jurídica, entendida como conhecimento de algo dado no mundo jurídico, de um objecto que se apresenta à nossa mente sem qualquer intervenção dela na sua constituição ou interpretação".


3 - A experiência religiosa e a corrente da Filosofia Portuguesa


O nosso autor dedica especial atenção ao estudo de dois tipos de experiência, entre os mencionados: a religiosa e a jurídica. Quanto à primeira, Braz Teixeira considera que relaciona-se com a vivência do mistério, da apreensão intuitiva do fato de que há mais mundos do que este apreendido pela experiência sensível. A religiosa constitui a experiência fundamental, já que ela permite superar o estreito racionalismo, aderindo a uma concepção elevada de razão, aberta à realidade na sua mais numinosa plenitude.


Dessa experiência, por outro lado, parte toda a concepção da denominada Filosofia Portuguesa. Eis a forma em que o pensador explicita o seu ponto de vista a respeito: "Importa, antes de mais, partir de um conceito de razão que exceda os limites de um racionalismo fechado e formalista, apoiado unicamente nas ciências do mundo sensível e numa noção redutoramente empírica de experiência, e se abra ao essencial e irrecusável valor e significado gnósico da sensação, da intuição, do sentimento, da imaginação e da crença, reconheça que há mais mundos para além daquele que os sensos nos revelam e admita que a experiência humana assume múltiplas formas, desde aquela em que se fundam as ciências, até à experiência estética, que as figuras e formas simbólicas propiciam, à experiência ética, que transcende a lei, norma e mandamento, para encontrar nos valores e nos princípios o seu centro ou o seu objecto, e à experiência religiosa, que, partindo do numinoso dos mitos, ascende à sublimidade do sagrado e do divino ou se eleva à união mística. Necessário é, também, atender a que a mais autêntica origem da interrogação filosófica se não encontra no espanto ou na admiração perante a multiplicidade dos seres e a imensidão cósmica, pois que ambos são ainda do domínio meramente psicológico e limitadamente humano, mas sim no plano ontológico mais radical do enigma ou do mistério, no qual e pelo qual todo o ser e toda a verdade, em instantânea visão, simultaneamente, se ocultam e patenteiam ao espírito do homem" [Teixeira, 1993: 11]. De outro lado, convém destacar que a preocupação com o problema da dor insere-se no contexto teodiceico da meditação portuguesa contemporânea [Cf. Teixeira, 2000b: 7-15].


A partir do conhecimento do enigma ou do mistério forma-se em nós a idéia de Deus, que passa a se constituir no núcleo que dá sentido a tudo quanto existe e deita os alicerces do filosofar. A respeito escreve Braz Teixeira: "A idéia de Deus é o primeiro princípio e fonte de todo o princípio que confere sentido e valor a tudo quanto existe e possibilita o próprio filosofar, como amoroso e interminável esforço pela sabedoria que é, em si, o mesmo espírito divino que, sendo a eterna e absoluta plenitude, só por analogia pode ser pensado pela razão humana. Singularidade do pensamento português tem sido o descobrir e revelar a profunda relação que une Deus, o mal e a saudade e, ao mesmo tempo, mostrar que foram outorgados à liberdade humana, assistida pela graça divina, os meios para minorar ou vencer o mal e contribuir para restaurar aquela original e fraterna harmonia entre todos os seres, para que está ordenada toda a criação" [Teixeira, 1993: 12].


A busca incondicional do absoluto constitui, no sentir de Braz Teixeira, não apenas um tema de indagação teórica mas é, como já foi salientado, a causa originante do filosofar. Diríamos mais: que a problemática teodiceica é o leitmotiv das preocupações existenciais do homem comum, bem como o ponto de partida para a indagação filosófica. Isso constitui marca caraterística da cultura em Portugal. "No português, escreve Braz Teixeira no seu ensaio intitulado O problema do mal na filosofia portuguesa contemporânea, a ânsia desmedida de absoluto, causa tão freqüente de seus sucessos e fracassos, a apetência de regresso a uma perdida harmonia e perfeição, de que emerge a saudade, como já D. Francisco Manuel o vira, choca-se dramaticamente com a realidade brutal e agressiva do mal nos homens e no mundo. A possibilidade de existência de Deus, suma Bondade e sumo Bem, e a realidade insofismável do mal, eis o que, desde o plano do mais desatento viver quotidiano até ao da mais séria e responsável especulação, é para ele causa de inquietação e perplexidade. De tal atitude e problema dá sinal o seu pensamento, com tão funda ressonância, desde a heresia priscilianista aos nossos dias, que por eles acentuadamente se singulariza no quadro do filosofar europeu, como tem já sido notado por alguns dos seus mais esclarecidos intérpretes" [Teixeira, 1964: 16].


O nosso pensador faz referência específica, neste ponto, a Álvaro Ribeiro e José Marinho. Embora estes pensadores, bem como outros importantes representantes da corrente da Filosofia Portuguesa (como Leonardo Coimbra, Sant'Anna Dionísio, Antônio Quadros e Afonso Botelho) tenham salientado o caráter religioso-metafísico do povo, inspirador da meditação filosófica em Portugal, estudiosos de outras latitudes, em épocas passadas, salientaram também essas caraterísticas, referindo-as ao homem peninsular. Madame de Staël, por exemplo, na sua obra Dix années d'exil tinha dito acerca da Rússia que "os laços da nação consistem na religião e no patriotismo" [Staël, 1996: 304], tendo encontrado profundas semelhanças entre esse povo e os ibéricos (em decorrência do valor atribuído em ambas as culturas ao fator religioso). A escritora francesa chegava ao ponto de dizer que os russos eram os "castelhanos do norte" [Staël, 1996: 258].


A primeira conseqüência da adoção, por parte da Filosofia Portuguesa, do mencionado ponto de partida teológico, é a crítica à razão que pretendeu, sob a inspiração do racionalismo iluminista, se constituir em juíza e senhora da verdade. A propósito, frisa Braz Teixeira: "Como, porém, o problema de Deus é indissociável do problema do Logos, a crítica filosófica à idéia tradicional da divindade é acompanhada por uma paralela dissolução do conceito iluminista de uma razão clara e segura de si, que recusa todo o negativo e todo o irracional, primeiro através da interrogação sobre os limites da própria razão e sobre o seu saber de si, e, depois, pela admissão progressiva do irracional que recusara, tanto do irracional entitativo, como do irracional cognitivo, e, por fim, pela sua abertura a outras formas gnósicas, como a intuição, a imaginação ou a crença" [Teixeira, 1993: 16].


Em decorrência desta avaliação crítica da razão, as questões antropológicas deságuam em questões teológicas, sendo o problema do mal a indagação central da antropologia na Filosofia Portuguesa. Em relação a esse ponto, escreve o nosso pensador, sintetizando a evolução da meditação filosófica em Portugal nos séculos XIX e XX: "No pensamento português contemporâneo, a análise filosófica da idéia de Deus foi acompanhada por uma paralela revisão do conceito de uma razão clara e segura de si, que repele todo o irracional, seja mal seja erro  (como é ainda a de Amorim Viana), primeiro, pela interrogação sobre os limites da mesma razão (Antero de Quental) e, depois, pela admissão do próprio irracional, quer como racional entitativo (com Sampaio Bruno e a admissão do mal como o positivo e o plenamente real), quer com a consideração do erro como irracional cognitivo (Leonardo Coimbra), quer,  por fim, com o fazer depender todo o pensamento do enigma e com o considerar recíproca e complementarmente implicadas as noções de visão unívoca e de cisão (José Marinho). Este processo de paralelo desenvolvimento do debate filosófico sobre a idéia de Deus e o conceito de razão não poderia, naturalmente, deixar de projectar-se também sobre o modo de defrontar a grande aporia que o mal suscita: como conciliar, no plano especulativo, a sua existência com a omnipotência e a bondade divinas? Daí que, no pensamento português dos séculos XIX e XX se assista a uma radical alteração na atitude filosófica perante o mal, que depois de haver sido longamente pensado como problema, passou a ser visto como enigma que leva o homem a interrogar-se sobre si próprio e sobre a cisão em que o mal se dá ou manifesta, quando não já como mistério. Ou seja, de algo exclusivamente humano, que poderia ser resolvido ou superado pelo pensamento ou pela razão do homem, negando a sua essencial realidade e convertendo-o em ilusória aparência ou privação, o mal ascendeu ao reino divino e converteu-se em algo inegavelmente real que, no entanto, por exceder a capacidade da razão humana, é incognoscível, tornando-se, por isso,  inviável toda a ontologia do mal e limitando-se à sua fenomenologia, ao conhecimento dos modos como se manifesta na vida e no agir dos homens o saber que sobre ele é possível" [Teixeira, 1993: 62].


No contexto da crítica à tendência racionalista atrás apontado, a meditação portuguesa, no sentir de Braz Teixeira, passa a se polarizar ao redor das seguintes questões: a idéia de Deus, o problema do mal, o conceito de razão e as relações entre razão e fé, filosofia e religião e filosofia e ciência [cf. Teixeira, 1971: 355-373]. Se a meditação filosófica se polarizou em Portugal em torno às questões teológicas, isso não significa, contudo, que esteja fechada a porta para um diálogo criativo com a meditação brasileira, claramente formulada numa perspectiva fenomenológica e crítica. Valha aqui o alerta de tolerância e abertura intelectual dado pelo nosso pensador no prefácio à sua obra O pensamento filosófico de Gonçalves de Magalhães [Teixeira, 1994: 15]: "Cabe ter presente (...) que a historiografia filosófica, no caso vertente, a do pensamento luso-brasileiro, só terá a ganhar com os contributos, por modestos que sejam, dos diversos pontos de vista, já que não se trata aqui de estabelecer ou definir qualquer ortodoxia interpretativa ou uma visão dogmática, monolítica e definitiva, mas sim daquele diálogo especulativo sempre em aberto e sempre sujeito a revisão em que consiste toda a actividade hermenêutica".


4 - A experiência jurídica e a filosofia do direito


A experiência jurídica constitui o outro tipo de experiência que, junto com a religiosa, merece especial atenção do nosso autor. Diferentemente desta, que se abre à escatologia e à transcendência, como acabamos de ver, a experiência jurídica projeta-se sobre o mundo e sobre os conflitos entre as pessoas. É definida por Braz Teixeira, no seu ensaio intitulado Experiência jurídica e ontologia do direito [Teixeira, 1987: 27], no qual o pensador português sintetiza os aspectos essenciais da sua filosofia do direito, que expôs de maneira sistemática na obra, já citada, Sentido e valor do direito. Introdução à filosofia jurídica [cf. Teixeira, 2000a]. Eis a definição de experiência jurídica, no primeiro dos escritos mencionados: "A experiência jurídica aparece-nos constituída por um conjunto, complexo mas unitário, de dados, de que se destaca, em primeiro lugar, a sua estrutura antinómica, a natureza ou dimensão conflitual das relações jurídicas, o envolver uma questão prática, um problema referente à conduta, em que existe um conflito entre diversos sujeitos, que carece de ser resolvido ou composto, de ser satisfeito, de modo a obter a paz social. Este tipo particular de experiência (...) revela-se constituído por dados que se referem não só a pessoas e a realidades da vida ou coisas do mundo, como também a valorações, a necessidades e pretensões, envolvendo questões concretas que é necessário resolver ou decidir. É por isso que constituem dados imediatos da experiência jurídica, por um lado, os conflitos de interesses e, por outro, o critério de valor - o sentido do justo e do injusto - a que se recorre para a respectiva solução. E também aqui a sua estrutura antinómica se revela, agora no confronto entre o sentimendo de justiça, que fornece o critério de valor em que se baseia a solução dos conflitos e a necessidade de fundamentar racionalmente essa mesma solução, de encontrar razões ou argumentos que a justifiquem" [Teixeira, 1987: 27-28].


O nosso autor destaca o caráter cultural da realidade jurídica, criação humana referida a valores, princípios ou ideais, inserida no contexto da historicidade em que se desenvolve a vida do homem. Eis a maneira em que Braz Teixeira sintetiza esse aspecto do direito, de forma muito próxima, aliás, a como Miguel Reale interpreta essa realidade, no contexto do seu conhecido culturalismo, que constitui o marco da teoria tridimensional do direito. "Como realidade cultural, - frisa Braz Teixeira - o Direito não pertence ao mundo físico nem biológico, em que impera a causalidade e o determinismo, nem ao domínio psíquico, nem sequer ao dos seres ideais, em que se situam as realidades lógicas e matemáticas, pois enquanto estas são intemporais e abstractas, o direito é concreto, variável no tempo e no espaço e, como realidade humana, é profundamente marcado pela temporalidade e pela historicidade essenciais ao próprio homem. Como criação cultural, o Direito não é um dado, uma realidade pré-existente que o homem encontre no mundo ou na natureza, nem uma realidade estática, mas sim espírito objectivado, projecção espiritual do homem, algo que está aí para ser pensado, conhecido e vivido e cuja existência depende, por isso, da relação cognitiva e vivencial que o homem com ele estabelece e mantém, a qual lhe dá vida e conteúdo e actualiza, dinâmica e criadoramente, o sentido que nele está latente e lhe é conferido pela referência a valores, princípios ou ideais" [Teixeira, 1987: 29].


Braz Teixeira considera que o Direito, enquanto realidade cultural, objetiva-se em normas, "constituindo uma ordem reguladora da conduta ou do agir humano na sua interferência inter-subjectiva, na sua convivência ou na sua vida social"; refere-se, assim, à atividade prática do homem e não à atividade teorética e pressupõe, fundamentalmente, a liberdade, "porquanto só enquanto o homem é livre no seu agir, quando pode escolher o seu comportamento e optar entre diversas condutas possíveis, tem sentido que se lhe ordene que aja de certo modo e se responsabilize e puna pelo desrespeito pela ordem recebida ou imposta. Assim, o seu domínio próprio é o da liberdade de agir, cujo exercício e manifestação exterior regula e disciplina, visando estabelecer uma ordem nessa mesma conduta, definida a partir de princípios, valores ou ideais que se entende ou pretende deverem conformar o agir humano. Ao Direito, como realidade cultural, é, pois, inerente um sentido ou um conteúdo axiológico, uma relação entre a liberdade e determinados valores, princípios ou ideais" [Teixeira, 1987: 29-30].


 Importante contribuição dá Braz Teixeira à reflexão acerca da forma em que são atualizados os valores no contexto da experiência jurídica. Nesse particular, atribui grande importância ao papel do magistrado, aquele que tem a missão de tornar vivo o valor da justiça. A respeito, escreve o nosso pensador: "Deve notar-se que, do ponto de vista da Justiça, é mais decisiva a aplicação da lei, porquanto é então que, em concreto, o Direito se realiza e o próprio de cada um se afirma e define, o que, obviamente, não impede um juízo sobre a justiça ou a injustiça da lei em si. Desta conclusão uma outra deriva: a de que é mais decisivo o papel do juiz do que o do legislador, da jurisprudência do que da lei. De igual modo, o costume, como mediador mais direto do que a lei entre o sujeito e a norma, pela sua menor abstração e generalidade, pela sua origem mais vivencial do que racional-voluntária, mais coletiva do que individual, poderá garantir melhor do que aquela uma solução justa. Por outro lado, esta visão da Justiça vem pôr a claro a inadequação do modo de entender a sentença como mero processo lógico-formal, como um raciocínio silogístico e chamar a atenção para que o dizer o Direito - a jurisdição - do caso concreto, o juízo de legalidade que o juiz profere é condicionado, precedido e,  em larga medida, determinado por um juízo de justiça, de natureza intuitivo-emocional, ditado pelo sentimento da justiça" [Teixeira, 1986: 128].


O Direito, de outro lado, considera nosso autor, tenta regular ou ordenar a conduta relacionada à condição social do homem,  às relações com os outros homens e com as coisas, "na medida em que estas últimas relações possam interessar ou afectar os outros". O Direito possui, portanto, o caráter de realidade social e de bilateralidade, ao envolver as relações interpessoais, "implicando direitos e deveres de uns perante os outros". O Direito é, além disso, uma realidade social heterónoma, "uma vez que a regulamentação ou a ordenação da conduta que se propõe estabelecer é imposta do exterior aos sujeitos, por um outro sujeito dotado do poder de estabelecer e impor critérios, regras ou normas de conduta ou de comportamento" [1987: 30].


Na análise que o nosso autor realiza do Direito como ordem normativa ressaltam, de um lado, a sua extensa e profunda cultura jurídica e, de outro, o sábio equilíbrio de quem muito refletiu sobre a problemática humana do ângulo da solução dos conflitos à luz do ideal de justiça. Além dos seus clássicos estudos no terreno da filosofia do direito, é conhecida, também, a importantíssima contribuição dada por Braz Teixeira no terreno do direito fiscal e tributário [Cf. Teixeira, 1967; 1969], ou no da teoria do Estado [cf. Teixeira, 1955; 1956], especificamente no que diz relação à guerra e ao papel das corporações. Não vou me alargar mais na análise deste aspecto do pensamento de Braz Teixeira. Gostaria de destacar apenas que, no terreno da historiografia das idéias sociais e jurídicas, espelha-se de modo claro a sensatez e o equilíbrio que animam a reflexão do nosso pensador [cf. Teixeira, 2001a: 177-191], bem como a sua indiscutível atualização, segundo transparece no seu ensaio intitulado A justiça no pensamento contemporâneo [cf. Teixeira, 2001b]. Outras comunicações neste encontro destacarão com mais profundidade e pertinência a importante contribuição de Braz Teixeira neste terreno.


Chamarei a atenção, finalizando este item, para a concepção de Braz Teixeira acerca da sociedade como pluralidade de interesses em conflito, regulados pelo Direito na busca do bem comum, preservando a liberdade e à luz do valor justiça. Eis, a seguir, uma bela síntese feita pelo nosso autor, acerca da sua concepção (que poderíamos chamar de culturalista e liberal) da realidade e da experiência jurídicas: "As normas em que se objectiva o Direito constituem uma ordem, num duplo sentido: por um lado, formam um conjunto ordenado a partir dos princípios, valores ou ideais de cuja visualização ou interpretação são objectivada expressão; por outro, procuram ordenar, rectificar ou tornar direita ou recta a vida social, a convivência entre os homens, as suas relações, substituindo por uma ordem o caos a que a desordenada conduta individual inevitavelmente conduziria, no seu jogo de egoísmos e na luta em que o mais fraco sucumbiria ao arbítrio do mais forte. A ordem que o Direito visa instituir, porque referida a valores, princípios ou ideais, não é uma ordem neutra ou indiferente, mas sim uma ordem justa, uma ordem concreta definida a partir do princípio ou valor justiça, que é, precisamente, aquele que dá sentido e conteúdo ao Direito na sua essencial dimensão axiológico-cultural. Partindo da justiça, como princípio, valor ou ideal, o Direito é, pois, o meio de que o homem se serve para alcançar uma adequada ordenação da sua conduta social, com o fim de coordenar o exercício da liberdade de cada um com a liberdade dos restantes, realizando, deste modo, o bem comum da sociedade política" [Teixeira, 1987: 34-35].


Conclusão


A meditação de António Braz Teixeira apresenta-nos, sobre o pano de fundo de uma concepção da Filosofia entendida na sua dupla dimensão de contemplação diuturna da verdade a partir do horizonte histórico do homem, um amplo painel da realidade humana estudada sob o ângulo da experiência. Se, do ponto de vista metafísico em que se projeta a experiência religiosa, o nosso autor faz verter a sua reflexão na temática da que passou a ser conhecida como corrente da Filosofia Portuguesa, polarizada pela idéia de Deus e de mistério insondável (na trilha da revelação cristã), do ponto de vista da sua reflexão sobre a experiência jurídica, pelo contrário, a meditação do nosso autor passa a se projetar sobre o horizonte humano do agir no mundo e das relações inter-pessoais, com os conflitos a que dá lugar essa realidade (apreendida no contexto da experiência fenomenal).


Aparece, assim, no pensamento de Braz Teixeira, a meu modo de ver, uma dupla vertente: mística e fenomenológica. A primeira, que é condicionada por uma retomada da idéia medieval de experiência, como decorrência da vivência de uma realidade transcendente que nos é revelada numa manifestação que vem de cima, a partir de uma tradição escatológica preexistente e com predomínio do argumento de autoridade. É a dinâmica dos mitos fundadores da meditação filosófica, que tanto seduziu o pensamento de autores como Adolpho Crippa, Eudoro de Souza ou Vicente Ferreira da Silva, no panorama cultural brasileiro. A "teologia filosófica" destes, como aliás destaca Braz Teixeira, aproxima-se da meditação portuguesa [cf. Teixeira, 1998b: 390-401].


A segunda vertente é condicionada pelo conceito hodierno de experiência, aberta ao mundo dos fenômenos e pressupondo a função crítica da razão como "faculdade ordenadora do real", para repetir as palavras do filósofo de Königsberg. O mundo do direito, para o mestre português, é fundamentalmente o que nos é dado pela nossa experiência fenomenal do mundo e das lutas entre os interesses contrapostos das pessoas, apreendido tudo isso à luz ordenadora do valor justiça, de que a razão jurídica é portadora, a fim de garantir a civilização e o convívio pacífico entre os homens.


Dupla perspectiva que, inserida no pensamento do mesmo autor, torna-se paradoxal, do ângulo da busca de um princípio unificador na sua obra. A primeira perspectiva, ao inspirar a historiografia das idéias empreendida com dedicação e grande espírito de sistema pelo nosso autor, terminou dando ensejo a uma versão do pensamento brasileiro que se contrapõe à nossa tradicional forma de abordarmos as questões da história das idéias no contexto da perspectiva transcendental kantiana, aliada à temática da filosofia como problema herdada de Hartmann, Rodolfo Mondolfo e dos nossos mestres culturalistas, Miguel Reale e Antônio Paim. A escolha da perspectiva transcendente não impediu ao nosso autor, no entanto, de elaborar uma ampla e objetiva caracterização de outras correntes da meditação portuguesa, diferentes da vertente em que ele se situa, como é o caso da fenomenologia [cf. Teixeira, 1998a: 5-20].


A segunda perspectiva, ao se aproximar da realidade social do ângulo pluralista da diversidade de interesses em conflito, e ao tentar uma solução à luz do Direito como criação cultural, aproxima-se muito da nossa metodologia culturalista de análise filosófica. A meditação antropológica seria, talvez, o elo que uniria, no pensador português, ambas as perspectivas apontadas, a julgar pela oportuna observação de Paulo Borges: "(Braz Teixeira) constata assim, nos vários rumos do pensamento português, a profunda relação entre a reflexão sobre o direito e a justiça e as concepções antropológico-metafísicas dos autores, nos quais denota uma razão que não se presume de uma suposta autonomia antes comprometida com a situação singular e concreta do sujeito humano, na abertura à experiência intuitiva, afectiva e crente" [Borges, 1992: 42].


Resta-nos realizar uma análise desassombrada da obra de Braz Teixeira, a fim de, sine ira ac studio, melhor compreendermos a sua posição no mundo da meditação luso-brasileira, obedecendo sempre ao critério de rigor crítico e de modéstia epistemológica expresso pelo mestre português, no prefácio da sua obra Espelho da razão [Teixeira, 1997: 10]: "Cabe agora aos investigadores e historiadores da filosofia brasileira avaliar em que medida é adequado o caminho que segui e são pertinentes as hipóteses interpretativas aqui propostas, com aquela serena simpatia intelectual que é condição de toda verídica compreensão filosófica".


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 [Este texto foi publicado na Revista Brasileira de Filosofia e no Proyecto Ensayo, da Universidade de Georgia]


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