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quinta-feira, 2 de junho de 2011

PATRIMONIALISMO PARA SEMPRE?

Mestre Roberto DaMatta, um dos melhores intérpretes do Brasil, perdeu a paciência, como diz, de Juiz de Fora, Dutra de Moraes. Concordo. Perdeu a paciência e detonou todo mundo, inclusive, se não estiver errado, o próprio ciclo imperial, lá no penúltimo parágrafo da sua análise. Caiu no exagero que já cometera o bravo gaúcho de Vacaria, Raymundo Faoro, com o seu pioneiríssimo livro Os donos do poder (1958). Para este intérprete, o patrimonialismo seria invencível, jamais podendo se dar a sua superação.
Sempre considerei, no entanto, com mestres Antônio Paim e Simon Schwartzman, alicerçados em aguçada interpretação de Max Weber, que do patrimonialismo pode-se evoluir, nas sociedades modernas, até formas de contratualismo. Algo que aconteceu na Espanha e em Portugal, ou em Chile, para citar um exemplo mais próximo. No nosso caso, segundo Paim e Schwartzman, teríamos tido surtos de modernidade no seio da estrutura patrimonial, que eles denominaram de “patrimonialismo modernizador” (Paim), ou de “neopatrimonialismo” (Schwartzman).
Com o lulopetismo no poder, estamos assistindo, no entanto, a uma indisfarçada engenharia de corrupção que visa manter incólume a estrutura patrimonial do Estado, perpetuando-a pelos séculos dos séculos. Dificilmente, ao que tudo indica, nos veremos livres “dessa raça” (sem conotações racistas, mas no sentido mais amplo de “grupelho corrupto”), a que aludia, anos atrás, o combativo Senador Jorge Bornhausen. Dificilmente nos veremos livres dessa elite corrupta (como, aliás, dificilmente os nossos vizinhos argentinos ver-se-ão livres do tango kirshnerista, embalado pelo bandoneão peronista). Dificilmente. Mas não podemos afirmar que tudo já esteja entregue às baratas.
Primeiro, porque tivemos experiências, no passado, de que do patrimonialismo selvagem a sociedade brasileira emergiu a patamares mais civilizados de Estado cooptativo, como foi o caso do Segundo Reinado, com os seus “homens de mil” (de que fala Oliveira Vianna em Instituições políticas brasileiras). Dom Pedro II conseguiu, com enorme criatividade e persistência, consolidar sólida base de apoio político, com a finalidade de criar as instituições nacionais, superando a planície de compadrio que era o Brasil de meados do século XIX, mantendo em funcionamento as instituições do governo representativo. Até François Guizot (na sua História da Civilização Européia, em reedição de 1864), historiador e primeiro ministro da monarquia liberal de Luís Filipe, fez referência ao que significava, do ângulo civilizatório, a estrutura do Império brasileiro, no contexto do sanguinolento caudilhismo ibero-americano. Getúlio, num ambiente autoritário (não podia acontecer de outro jeito com um rebento castilhista), reestruturou a unidade nacional fragmentada pela República oligárquica do café com leite e encetou ímpeto modernizador nessa maquinaria. 64 modernizou sobre essa base, de novo com um pano de fundo autoritário, no denominado por Wanderley-Guilherme dos Santos de “autoritarismo instrumental” (presente, por exemplo, na frase do general-presidente Figueiredo: “Juro fazer deste país uma democracia e prendo e arrebento quem àquilo se opuser”). Juscelino modernizou, sem o viés autoritário, mas mantendo a idéia getuliana de planejamento presente no “programa de metas”...
O lulopetismo veio para nos assombrar com a possibilidade de um Patrimonialismo (novamente selvagem e sem-vergonha) duradouro. Duradouro, mas não eterno. Difícil manter a calma nesse ambiente putrefato de manipulação e calhordice que de Brasília emana para o resto do país. Mas, nestes momentos de nojo político, devemos olhar mais largo, para o horizonte da história de longo curso, e ver que, certamente, a Nação brasileira ainda tem recursos espirituais para dar a volta por cima e efetivar um chega pra lá no samba patrimonialista, reestruturando a representação política, dando novas forças às reformas de que carecemos e introduzindo decência nas nossas práticas políticas. Tarefa difícil, mas não impossível. Afinal de contas, como ensina mestre Antônio Paim, a democracia não cai do céu e temos de construí-la passo a passo, com persistência e esperança.
Em homenagem ao bravo e criativo Roberto DaMatta e com as ressalvas que acabo de fazer, reproduzo, a seguir, o seu artigo de 1º de Junho.

“SOMO” TUDO PALACIANO
Roberto DaMatta (O Globo, 01-06-11)

Com o devido respeito, mas nessa era petista, quando misturamos o pior do mercado com o mais desonesto estatismo, o caso Palocci ultrapassa a trivial suspeita de enriquecimento indébito. Ele contempla aspectos típicos do lulopetismo, bem como o passado do suspeito, mas vai adiante. Mais uma vez ele nos põe diante de nós mesmos, já que todos somos palocianos ou palacianos e temos a certeza de que, uma vez na panelinha, a "ética da condescendência" que sustenta o nosso espírito ainda patronal-escravocrata salva qualquer um do inferno. Mesmo quando se fala errado e relativiza-se o moralismo da língua culta, vendendo (eis o que conta) milhares de livros ao Ministério da Educação. A questão, entretanto, é que esse aumento patrimonial comicamente extraordinário abre uma porta sequer ventilada pela teoria política nacional.
Refiro-me ao fato de que, no Brasil, o Estado não é um instrumento da burguesia, como manda o velho Marx. É, isso sim, um veículo de enriquecimento e de aristocratização de seus funcionários, na razão direta de sua importância dentro das suas burocracias. Basta tabular o aumento patrimonial dos seus membros situando o quanto possuíam e quanto eles amealharam depois que cumpriram os tremendos sacrifícios de fazer parte do poder para verificar o triunfo da mendacidade com o povo, pelo povo, e para cada um de deles!
Na relação até hoje mal estudada entre o Estado (com suas leis) e a sociedade (com seus costumes e tradições), esses casos revelam algo típico da tal América-Latina: o fato de que o Estado é hierarquicamente superior à sociedade. Ele traz à tona o mito segundo o qual, quando Deus nos inventou, Ele primeiro fez o Estado (com seus caudilhos, ministros, secretários, puxa-sacos e toda a malta que estamos fartos de conhecer), e depois fez uma desprezível sociedade com a sua miscigenação, os seus burgueses, sua abjeta classe média e a massa de miseráveis com escolas (mas sem professores respeitados e bem pagos); com hospitais (mas sem médicos); com delegacias (mas com policiais bandidos) e com essa esquerda autocomplacente que inventou a bolsa-ditadura, que anistia destruidores da floresta e que ama o atraso.
Quando surge a suspeita de um enriquecimento ridiculamente excepcional, como esse de Antonio Palocci - imagine, leitor, você em quatro anos ter mais 19 apartamentos, mesmo pequenos como o seu! -, batemos de frente com um aspecto pouco visto. Refiro-me ao fato de tanto a direita quanto o centro e a esquerda serem todos viciados em Estado! A estadofilia, estadomania e estadolatria é o cerne do nosso republicanismo, é ele - supomos! - que vai corrigir a sociedade. Por isso é centralizador, autoritário e perdulário. Ele usa leis para não mudar costumes.
Num país do tamanho do Brasil é impossível não desperdiçar recursos com a centralização. É impossível controlar de Brasília o que se passa no cu de judas! Mais: nada melhor para a ladroagem, para o tráfico de influência e para o furto cínico dos dinheiros do povo do que essa concepção de um Estado autista, com razões que só ele conhece. Um órgão engessado em si mesmo e avesso ao mercado e a qualquer tipo de controle, competição ou competência. Tudo isso que o lulopetismo endossou por ignorância e/ou malandragem, mas que ainda goza de um inigualável prestígio junto da nossa opinião pública dita mais esclarecida que tem horror ao mercado.
Por quê? Porque esse é o resultado da operação de um Estado feito de parentes e amigos que eram de sangue e hoje - eis a contribuição petista - são ideológicos. Um Estado autocomplacente e referido, como mostra esse vergonhoso governo de coalizão que serve primeiro e si próprio, depois a si mesmo e, em terceiro e último lugar, aos seus adoradores. Jamais lhe passa pela sua cachola, cheia de prêmios a serem distribuídos aos seus compadres, servir à sociedade que o sustenta.
Numa estadolatria, há alergia a competição e a seguir o básico das repúblicas: atribuir responsabilidade. Daí o "eu não sabia", pois todos concordam com o descalabro, mas nada acontece. Como punir o ministro? Como sair de um viés aristocrático que foi justamente a matriz social dos republicanos que queriam ser presidentes, fiscais do consumo, embaixadores, ministros do Supremo e senadores? As mensagens não passam nessas redes administrativas em contradição cujos agentes sabem que enriquecer fácil significa criar dificuldade para vender facilidade. Algo simples de fazer nas sucessivas aristocracias que têm usado o liberalismo político como um disfarce para assaltar o Brasil. Em outras palavras: o governo dá para seus filhos; nós, os trabalhadores assalariados que não temos cláusulas secretas com quem nos paga, como é o caso do Palocci, pagamos a conta!
Será que ninguém sacou a burrice de aplicar marxismo burguês a um Brasil tocado a escravidão? Um país com uma burguesia contra máquinas e toda ela apadrinhada por si mesma? Eu fico com vergonha ao ler como a nossa burguesia é reacionária quando sei que a modernização política do Brasil foi feita por um avô fujão, por um filho mau-caráter e por um neto que não sabia o que acontecia em sua volta. A partir das repúblicas de 89, contam-se nos dedos os administradores e políticos que não multiplicaram por 20, 200 ou 2.000 seus patrimônios graças ao controle de um pedaço do Estado!
Palocci é juvenil perto dos outros que, se citados, tomariam todo o espaço de um jornal. Aguardo suas explicações que serão normas de ouro para o enriquecimento blitzkrieg.

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